segunda-feira, 19 de julho de 2010

1755 - HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

A cisão de 1998 83
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A cisão de 1998*
Maria Anita Carneiro Ribeiro
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, no 137, 83-89
* Texto apresentado e discutido no Encontro Sul-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise,
realizado em São Paulo, de 13 a 15 de novembro de 1999.
A partir de um evento local, que marcou a história da psicanálise no Brasil em
1998, a autora desenvolve uma reflexão sobre as cisõese rupturas na história da
psicanálise desde Freud. A questão que perpassa o texto é: serão as rupturas
acidentais ou logicamente necessárias na história da psicanálise? No centro
desta questão um problema se repete desde “Análise terminável ou interminável
– a formação do analista”.
Palavras-chave: Psicanálise, história, formação, crise
Starting fron a local event, something that made a mark in the history of
psychoanalysis in Brasil, the author develops a reflexion on schisms and splits in
the history of psychoanalysis, since Freud. The question that leads the text is: are
thoses schisms accidental or are they a logical postulate in the history of
psychoanalysis? In the heart of this question there is the problem that repeats
itself since Freud – the analytical training.
Key words: Psychoanalysis, history, training, crisis
84 Pulsional Revista de Psicanálise
Em 1920, Freud estabelece o conceito
de repetição, presente em sua obra
desde 1895. Deste ganho conceitual
decorrem algumas conseqüências
que não deixam de incidir no tratamento
e em seu término, assim como
no que se espera e no que se pretende
dos psicanalistas e na própria organização
que estes estabelecem entre si.
Ao longo destes mais de cem anos de
história da psicanálise, as crises, cisões,
rupturas e recomeços se repetem e, em
seu âmago, a mesma questão crucial a
causá-las: a formação dos analistas.
1941-45, Londres; 1953, a ruptura de
Lacan com a IPA; 1980, dissolução da
Ecole Freudienne de Paris; 1998, cisão
da Escola Brasileira de Psicanálise. Em
todas, a advertência freudiana em “Análise
terminável e interminável”, de que
os analistas deveriam retomar periodicamente
suas análises serve de baliza para
a reflexão sobre o que se quer e o que
não se pode em um final de análise.
Se em 1967, na “Proposição de 9 de
outubro”, Lacan inaugura o dispositivo
do passe na tentativa de verificar os resultados
de uma análise conduzida para
além do rochedo da castração, hoje,
após uma geração de analistas que atravessaram
o dispositivo e quando já se
dispõe de toda uma literatura sobre seus
resultados, é este mesmo dispositivo o
que está em causa na crise atravessada
pela Escola de Lacan. E é deste ponto
nodal que decorrem as mais graves conseqüências
institucionais: a ameaça do
totalitarismo, o desrespeito aos estatutos,
a guerra das transferências.
A partir da Cisão de 1998 da Escola Brasileira
de Psicanálise, ainda em curso,
podemos nos perguntar, mais uma vez,
se estas rupturas são apenas contingentes
ao que Freud chamou de “mudanças
naturais das relações humanas” ou se
são da ordem do necessário, a partir da
especificidade da formação do analista,
que tem conseqüências na formação do
grupo.
I
A Cisão de 1998 não é um dado isolado
na história da psicanálise. Ela se
inscreve em um movimento mais amplo
que atinge toda a Associação
Mundial de Psicanálise, fundada por Jacques-
Alain Miller, em 1992, e que
congrega as cinco Escolas de Psicanálise
do Campo Freudiano: além da EBP,
a Escola Européia de Psicanálise (com
sede na Espanha), a Escola da Causa
Freudiana (na França e com seção na
Bélgica), a Escola de Caracas (com ramificações
na Colômbia, Bolívia, Chile
e Peru) e a Escola de Orientação Lacaniana
(na Argentina).
A crise foi deflagrada justamente a partir
da tensão entre as Escolas com sua
particularidade e a organização da AMP,
que aos poucos foi se tornando uma superestrutura
que as abarcava. Uma Escola
concebida em termos lacanianos
pressupõe a permutação e a garantia. A
permutação visa estabelecer o funcionamento
da hierarquia (diretoria e conselho),
evitando que esta se perpetue no
poder, e a manutenção de sua separação
do gradus. A hierarquia é asseguA
cisão de 1998 85
rada por eleição em Assembléia Geral ou
por nomeação do conselho. Isto varia de
acordo com os estatutos das Escolas e
com o cargo na hierarquia. Por exemplo,
na EBP o diretor-adjunto seguinte
de cada seção é nomeado pelo diretor
em exercício e ratificado ou não pelo
conselho. Assim, o diretor em exercício
decide sobre o sucessor de seu sucessor
– o diretor-adjunto em exercício
– mediante aprovação do conselho. O
mesmo ocorre com o diretor-secretário
– tesoureiro-adjunto. Os demais diretores-
adjuntos – de cartel e de biblioteca
– são cotados em Assembléia Geral.
A garantia funciona para o gradus, que
depende de uma nomeação. Os Analistas
Membros da Escola (AME) são
chistosamente chamados, por Lacan, de
âme, as almas da Escola. Na sua primeira
versão da “Proposição de 9 de
outubro”, ele os coloca no lugar do sintoma
no grafo do desejo. Os AME são
o sintoma de uma Escola porque são a
resposta que a Escola dá ao Outro social
que interroga: “Afinal, quem são os
analistas desta Escola?”. A resposta vem
na nomeação dos AME: “Estes são os
analistas garantidos por esta Escola”.
Já a garantia do Analista da Escola (AE)
corresponde, segundo Lacan, ao significante
da falta no Outro – S (EMBED
Equation.3). Sua nomeação não provém
de uma questão que chega do socius: ela
responde à questão interna da Escola no
que diz respeito à pulsão. A nomeação
de um AE faz ressoar as perguntas de
Lacan em O seminário. Livro 11. Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise
(1964):
O que se torna então aquele que passou
pela experiência desta relação, opaca na
origem, à pulsão? Como um sujeito que
atravessou a fantasia radical pode viver a
pulsão?
E Lacan completa, ainda em 1964,
... isto é um mais-além da análise, e jamais
foi abordado (Lacan, 1979; p. 258).
O AE é nomeado a partir do passe, que
é o dispositivo inventado por Lacan em
1967 para tentar responder às questões
acima enunciadas. Trata-se na verdade
de um dispositivo ao mesmo tempo
muito simples e muito complexo. O sujeito
que julga ter terminado sua análise
e deseja dar seu depoimento para fazer
avançar a psicanálise dirige-se à Secretaria
do Passe, tem uma entrevista e,
uma vez aceito, sorteia dois passadores
que irão escutá-lo. Os passadores são
analisantes que estão no momento de
passagem do final de sua análise. O passante
se encontrará com os passadores,
um a um em separado, e dará seu depoimento.
Os passadores, por sua vez,
também em separado, transmitirão este
depoimento ao Cartel do Passe, composto
por cinco analistas que ouvirão os
depoimentos dos passadores, estudarão
o caso clínico e decidirão sobre a nomeação
ou não do AE.
Uma vez nomeado AE, cabe a este analista
dar, durante três anos, o ensino mais
importante da Escola: ensinar a partir de
sua própria experiência com a psicanálise,
a partir do que aprendeu, às suas
86 Pulsional Revista de Psicanálise
próprias custas, no divã. Como se pode
observar, a Escola de Lacan é uma estrutura
complexa que se sustenta na
tensão dialética entre hierarquia e gradus,
e entre os próprios gradus. Visa,
desta forma, manter o funcionamento
independente das pessoas (permutação
da hierarquia) e a abertura da psicanálise
para o novo que a faça avançar
(dialética AME x AE).
II
A crise na AMP, que resultou na Cisão
de 1998, inscreve-se por sua vez no cerne
da história da psicanálise, marcada
por crises, compromissos e cisões. Na
verdade a dissolução está inscrita na história
da psicanálise desde seu nascimento.
Em 1907, Freud escreve para os
membros de seu pequeno grupo de amigos,
conhecido como a Sociedade Psicanalítica
das Quartas-feiras:
Desejo informar ao senhor que proponho
no início deste novo ano de trabalho, dissolver
a pequena Sociedade que costuma
reunir-se às quartas-feiras em minha casa
e imediatamente a seguir trazê-la de novo
a vida (Jones, v. II, 1989; p. 25, grifo meu).
Freud alega estar “apenas levando em
conta as mudanças naturais nas relações
humanas” e propõe que a cada três anos
a Sociedade se dissolva e se reconstitua
a partir de uma notificação de cada
um dos seus membros ratificando seu
desejo de prosseguir. A Sociedade Psicanalítica
das Quartas-feiras começara
em 1902, mas o próprio Jones, biógrafo
de Freud, diz que
... o início do que se tornaria depois a famosa
Sociedade Psicanalítica de Viena,
mãe de tantas outras subseqüentes não
tem sido de fácil elucidação (ibid.; p. 23).
Seja como for, a idéia de uma dissolução
já está presente em Freud desde o
início do processo de institucionalização
da psicanálise.
Em 1908, os interessados na teoria freudiana
se reúnem em Salzburg, por
iniciativa de Jung. No domingo, 26 de
abril de 1908, um grupo de estudiosos
vindos de vários países se reúne no Hotel
Bristol e ouve durante cinco horas
seguidas a apresentação do caso do “Homem
dos ratos”. Outros oito trabalhos
foram apresentados e Jones descreve
assim este primeiro encontro:
O Congresso diferiu de todos os subseqüentes
por não ter presidente, nem
secretário, nem tesoureiro, nem conselho,
nenhum tipo de subcomitê e – o melhor
de tudo – nenhuma reunião administrativa!
Durou apenas um dia (ibid.; p. 54).
O segundo Congresso Psicanalítico Internacional
realizou-se em Nuremberg,
nos dias 30 e 31 de março de 1910. No
ano anterior, Freud estivera nos Estados
Unidos levando sua peste analítica. Em
1o de janeiro de 1910, escreve para Ferenczi
encarregando-o de apresentar
uma proposta de associação de psicanalistas
no Congresso de Nuremberg:
Aliás, o que o Sr. acha de uma organização
mais rigorosa com a formação de uma
associação e uma pequena contribuição
para os membros? Acha positivo?
A cisão de 1998 87
Ao que Ferenczi responde prontamente:
Considero sua proposta extremamente
pertinente, mas seria preciso controlar a
admissão dos membros com o mesmo rigor
da Associação Vienense; seria um
meio de manter à distância elementos indesejáveis.
(apud Falzeder, 1994; pp. 180-
182)
Freud propunha, na verdade, ampliar a
psicanálise para além do restrito círculo
dos analistas judeus, o que em parte
explicava seu entusiasmo por Jung. Encarrega
Ferenczi de apresentar a
proposta no Congresso, sugerindo Jung
como seu primeiro presidente. Ferenczi
o faz de tal modo, que ofende os
analistas vienenses, desqualificando-os.
Segundo Jones, à proposta de Ferenczi
seguiu-se “de imediato uma onda de protestos”
(Jones, v. II, 1989; p. 82).
Assim, o nascimento da primeira organização
internacional de psicanalistas já
emerge sob o signo do debate entre o
Uno (psicanálise para os vienenses) e o
múltiplo (psicanálise sem fronteiras). É
também o Uno, porém o da orientação
teórica freudiana, que estará no cerne da
ruptura de Adler e de Jung nos anos seguintes.
Esta tensão está presente ao
longo de toda a história do movimento
psicanalítico e nem mesmo a presença
viva de Freud, o criador da psicanálise,
impediu os mais variados desvios de
suas concepções teóricas.
A partir da segunda metade da década
de 1920, por exemplo, surge o que Lacan
chamou de
... um exemplo de paixão doutrinal, à qual
a degradação da psicanálise, consecutiva
a sua transplantação norte-americana,
acrescenta um valor de nostalgia (Lacan,
1998; p. 694).
Trata-se de um debate que confrontou
de um lado Freud [com três artigos: “Algumas
conseqüências psíquicas da
diferença anatômica entre os sexos”
(1925), “Sobre a sexualidade feminina”
(1931) e “A feminilidade” (1932)] e, de
outro, Karen Horney, Helen Deutsch e
Ernest Jones. O biógrafo de Freud narra
assim suas diferenças:
Minhas próprias divergências eram em
parte dúvida sobre a teoria de Freud de
uma pulsão de morte e em parte uma concepção
algo diferente do estágio fálico do
desenvolvimento, particularmente nas mulheres.
Assim, em 24 de abril de 1935, li um
artigo sobre o último assunto perante a
Sociedade de Viena, Freud nunca concordou
com meus pontos de vista e talvez
estivessem errados: acho que até agora a
questão não foi inteiramente esclarecida
(Jones, v. III, 1989; p. 203).
Na verdade, a “concepção algo diferente”
a que Jones se refere é a questão do
falo. Todo o debate gira em torno disto:
de um lado, Freud defendendo a
primazia do falo como organizador da
diferença sexual e, do outro, os demais
autores, cada um a seu modo, defendendo
uma simetria lógica entre a
sexualidade feminina e a masculina. Em
outras palavras, é o próprio cerne da
doutrina psicanalítica – resumido por
Lacan no axioma “Não existe a relação
sexual” – que está em questão.
88 Pulsional Revista de Psicanálise
III
Assim como no caso da chamada “Querela
do falo”, nem todas as divergências
teóricas em psicanálise degeneraram em
uma crise, e nem toda crise em ruptura,
como aconteceu na Cisão de 1998
da Escola Brasileira de Psicanálise. Dentro
do quadro geral da história do
movimento psicanalítico, a própria ruptura,
quando se dá, impõe uma reflexão
sobre a lógica que preside o agrupamento
dos analistas.
O que poderia se presentificar na ruptura
como um momento de concluir é,
na verdade, o instante de ver de uma
nova maneira de convivermos em um
nível internacional. Revendo os vários
momentos da Cisão de 1998, podemos
verificar que isto já estava anunciado nos
debates. Os herdeiros de Lacan, a comunidade
analítica que quer prosseguir
com sua Escola, querem constituir uma
comunidade de pares; que alguns destes
pares sejam ímpares é evidente, já
que o próprio sujeito do inconsciente,
como efeito de linguagem, assim o é.
Uma comunidade de pares que possam
ser ímpares não é uma fratria. Poderá
ser talvez, como Lacan o desejou, um
refúgio ao mal-estar inevitável à civilização.
Não podemos, no entanto, nos
esquecer que o impossível está no cerne
de toda aglutinação de psicanalistas.
Revendo e estudando os vários momentos
das crises da história do movimento
psicanalítico e os da Cisão de 1998,
podemos verificar que a coesão institucional
só se dá à medida que se exclui
o discurso do analista e o impossível
que está escrito no numerador a →$.
Foi o que ocorreu em 1945 na IPA, em
que o Acordo de Damas fez calar a
efervescência da criação ex-nihilo, instaurando
a burocracia do discurso
universitário, e é o que acontece agora
na AMP, em que o discurso do mestre
impõe a estrutura de um exército.
Como construir uma comunidade em
que circulem os quatro discursos e, sobretudo,
da qual o discurso analítico não
esteja excluído é o nosso desafio no
momento. Talvez possamos fazer algo
mantendo no horizonte a dissolução,
como sugere Freud, em 1907, e como
retoma Lacan em sua proposição para
a Escola.
A partir das três facticidades apontadas
por Lacan, em 1967, podemos refletir:
a) no simbólico, temos Édipo e a lei do
pai. “Retirando o Édipo”, nos diz Lacan,
“torna-se justificável o delírio de Schreber”.
Uma comunidade analítica,
composta por aqueles que de alguma
forma passam pela experiência de ir
além do pai deve, por isso mesmo, se
ater às leis por ela mesma criadas para
efeito regulador. A importância que teve,
em nível mundial e local, o desrespeito
aos estatutos e à autoridade constituída
poderá servir-nos como um poderoso
alerta.
b) No imaginário, temos a obscenidade
inevitável do grupo que nos faz pensar
que outras crises virão, sem dúvida.
Novas rivalidades, novas obscenidades.
Mas se temos que errar, que sejam novos
erros e não a repetição dos
A cisão de 1998 89
mesmos. Neste sentido, a revisão documental
do que se passou pode nos guiar
no caminho oposto à repetição.
c) No registro do real, surge no horizonte
a segregação. Ao denominar-nos
os segregados da AMP aponto para este
real que não nos une, como o diz Michel
Bousseyroux citando Lacan no
Seminário: ... ou pire, mas que pode nos
unier.
É o real da experiência da Escola que
pode nos manter unidos na radicalidade
de nossa diferença subjetiva. Talvez deste
modo, partindo do impossível,
possamos caminhar para uma Escola
possível. É uma aposta na psicanálise,
mais uma vez e sempre. 􀂄
BIBLIOGRAFIA
FALZEDER. Correspondência Freud-Ferenczi.
Rio de Janeiro, 1994.
JONES, E. Vida e obra de S. Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1989, v. II
LACAN, J. O seminário. Livro 11. Os quatro
conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1979.
____ . Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998.
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