sexta-feira, 30 de julho de 2010

2460 - HISTÓRIA DA IMPRENSA

A Questão de Limites e a questão identitária no Paraná:
História e imprensa na construção do acontecimento.
Alexandro Neundorf
(UFPR, CAPES)
Resumo: Nos variados discursos que se inserem no debate acerca da questão de limites com
Santa Catarina, ou então, na promoção de um projeto identitário para o Paraná, verifica-se
uma integração de diversos campos disciplinares distintos. Da história a geografia, do direito
ao discurso “administrativo”, uma rede imbricada de caracteres soma-se na construção do
acontecimento. De toda forma, guardadas as devidas diferenças entre os campos disciplinares
e seus respectivos modus operandi, uma espécie de “matriz” perfaz a maioria dos discursos, e
que é composta de uma gama de características que fazem referência e estabelecem relação
direta com o contexto lato sensu da sociedade em geral e com um contexto stricto sensu da
própria formação dos personagens emissores dos discursos. Este trabalho pretende discutir a
construção do acontecimento “Questão de Limites” no Paraná do inicio do século passado.
Palavras-chave: acontecimento, questão de limites, identidades.
Introdução
Se ao longo do século XIX, em toda a America Latina as independências e
formações das diversas repúblicas exigiram dos quadros dirigentes uma reflexão mais apurada
sobre o status e a legitimidade dos limites que demarcam seus respectivos territórios (e, em
conseqüência, “demarcam” também seu povo), esse pensamento, não obstante, também se fez
presente no recém independente Brasil. Embora a preocupação inicial tenha sido em tornar
independente o estado, logo em seguida mostrar-se-ia de extrema importância a consecução
de um projeto de nação que definisse não só as características, como também o conjunto do
que viria a ser chamado “povo brasileiro”. A função de tal projeto residia na necessidade de
legitimação da nação e de suas balizas geográficas ante a instabilidade dos estados recém
formados em toda a América Latina.
Para cumprir com este objetivo, um primeiro passo constituir-se-ia com a
elaboração de uma história pátria, uma história nacional que estruturasse o passado e, em
conseqüência, projetasse o presente da nação, tecendo seu enredo com as características de
uma “cultura”, de um “espírito” nacional brasileiro. Dessa forma, produzindo também um
sistema de representações que originasse e fundamentasse um sentimento de pertencimento,
tão importante ao preceito fundamental da autodeterminação dos povos (origem de diversas
reivindicações de independência no período).
É devido a isso que, já em 1838, é criado o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro que se encarregaria de buscar no passado o sentido do “ser brasileiro”, ressaltando
os elementos de unidade nacional, as peculiaridades do povo e a herança civilizadora dos
colonizadores europeus. Se a sua criação fora inspirada no Institut Historique de Paris (este
fundado em 1834), não menor seria a influência deste no pensamento daquele. A orientação
geral, apresentada mais claramente a partir da segunda metade do século XIX, era a da
construção de narrativas históricas nas províncias, atreladas a um projeto de história nacional
do IHGB que pretendia integrar as diversidades provinciais (posteriormente, diversidades
estaduais).
No Paraná o tema da identidade é também um problema a ser resolvido, embora a
tentativa planejada de construção de uma identidade seja relativamente tardia, quando se tem
em mente que a emancipação da então província ocorre em 1853 e a busca deliberada por
elementos que corroborem na sua construção ocorre, com ênfase, somente a partir da
república. 1 Perfeitamente compreensível, no entanto, pois com a república instaura-se
também o regime federativo que fornece relativa autonomia às ex-províncias.
Em 1900 é fundado o Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense,
seguindo as normas do IHGB, cujo quadro de sócios era composto por indivíduos destacados
da cena pública local. Na mesma orientação do homônimo nacional, o IHGEP enfatiza as
diferenças regionais, a dimensão territorial, em uma abordagem histórico-regional que
prioriza os aspectos físicos e geográficos. O escopo maior, no entanto, era o de tornar os
“fatos memoráveis” e os “filhos ilustres” eternizados na memória das populações, como fator
gerador de identidade do povo. Para isso, uma das estratégias era (nas narrativas) tentar
minimizar a dimensão tensiva, conflitante, contraditória, excludente da história das diversas
regiões, mascarando dessa forma as diferenças internas (mas ao mesmo tempo marcando o
“regime de identidade” em relação a uma alteridade para além das fronteiras da região
estudada). É nesse aspecto que a questão de limites e posteriormente a Guerra do Contestado
1 Cf. WACHOWICZ, Ruy C. Universidade do Mate: História da UFPR. Curitiba: APUFPR, 1983, p.
19-20.
constituem um dos maiores problemas para a constituição de uma identidade para o Paraná,
na medida em que tornam visíveis em demasia essa dimensão de conflito e exclusão.
Desde a constituição da província do Paraná, um problema aliado a necessidade
de constituição de uma identidade que fundamente e legitime a autonomia política, é a
resolução da questão das fronteiras territoriais com Santa Catarina. Já com a emancipação se
percebia a necessidade da elaboração de um discurso que pudesse melhor consolidar a nova
província, enquanto uma unidade do Império. Ou seja, à orientação geral do IHGB vem
somar-se a necessidade de justificar a autonomia. Conjuntamente, no mesmo período (ao
longo do segundo quartel do século XIX), intelectuais e políticos se auto-promoveram os
forjadores da nacionalidade, e no Paraná eles propuseram a confecção de um caráter
identitário paranaense. Para tanto, a afirmação dos limites com o estado ao sul passou a ser
um locus privilegiado aos interesses identitários dos paranaenses. Devido a isso, um aspecto
característico das narrativas intelectuais da época era a ênfase na construção de uma
identidade para o Paraná e o paranaense, sendo que para isso havia a necessidade estratégica
premente de definir suas fronteiras (separando assim dois regimes de identidade), assim
como, a de caracterizar a alteridade contida para além das marcas limítrofes (constituindo,
dessa forma, “efeitos de fronteira”).
O Acontecimento e sua construção
Nos variados discursos que se inserem no debate acerca da questão de limites com
Santa Catarina, ou então, na promoção de um projeto identitário para o Paraná, verifica-se
uma integração de diversos campos disciplinares distintos. Da história a geografia, do direito
ao discurso que poderíamos chamar “administrativo” (da administração pública, político,
sanitarista), uma rede imbricada de caracteres soma-se na construção do – contemporânea ao
– acontecimento. De toda forma, guardadas as devidas diferenças entre os campos
disciplinares e seus respectivos modus operandi, uma espécie de “matriz” perfaz a maioria
dos discursos. Essa “matriz” é composta de uma gama de características que fazem referência
e estabelecem relação direta com o contexto lato sensu da sociedade em geral (na qual os
discursos são produzidos, na qual há um determinado conjunto de recursos mentais a
disposição) e com um contexto stricto sensu da própria formação dos personagens emissores
dos discursos. Nesse sentido, com o auxílio do que já foi dito anteriormente, tendo
consciência de que é impossível recuperar, no conjunto, todo um “ethos” ou “mentalidade” do
passado, pretendemos aqui traçar uma espécie de “itinerário” da construção do acontecimento
“Questão de Limites” e do infra-acontecimento “Questão Identitária”.
Um dos aspectos principais, e também o mais genérico, é o do próprio resultado
da influência positivista. Toda uma geração de “intelectuais” e “técnicos” seria formada sob
os auspícios do pensamento cientificista, em específico, na tônica da filosofia positivista
comtiana e, posteriormente, durkheimiana (ou mesmo na heterodoxia de um Paul-Émile
Littré, autor positivista relativamente difundido no Brasil). Nesse sentido, um dos principais
aspectos é a perspectiva evolucionista no pensamento intelectual, que se desdobra sob a forma
da visão progressista (ou mesmo teleológica) da história da civilização e, em um sentido mais
common sense, na própria idéia de “destino”.
Na série de desdobramentos da mentalidade cientificista no Brasil, outro aspecto
que surge como de absoluta importância no entendimento da mesma, é o do lugar que ocupa a
idéia de “raça” e de “meio” (advindas das teorias raciológicas 2 em voga a partir da segunda
metade do século XIX). Essas idéias teriam sido “importadas” muito mais como um
movimento de recepção seletiva, a fim de explicar as causas do “atraso” brasileiro comparado
com os países europeus, do que uma simples imitação ou aceitação inconsciente. Nesse
sentido, as teorias que aqui vingaram, no que tange a idéia de “raça”, ocuparam um lugar de
destaque, na medida em que produziam “o” sentido para o lugar que o Brasil ocupava na roda
da evolução: o lugar do atraso, mas que, nas disposições otimistas, era referendada por um
destino infalível e glorioso 3.
Dessa forma, as idéias-matriz de “evolução” e “raça”, seriam pensadas de forma
imbricada e implantadas no estudo da realidade brasileira. A partir dessas idéias, a derivação
de inúmeros pressupostos iria permear os discursos intelectuais: o antagonismo entre cidade e
suas margens, então chamadas “sertão”; de forma análoga, a incompatibilidade entre o que se
desejava moderno e o primitivo, em outros termos, as fronteiras entre a “civilização” e a
“barbárie”; o problema da identidade e a estigmatização da diferença.
Por trás dessa “receptividade” de idéias como as de “raça” e “evolução” está um
fator de ordem política, que acaba por dotar de sentido a seletividade que caracteriza essa
2 Termo empregado por: ORTIZ, Renato. Cultura brasileira & identidade nacional. 5ª Ed. São Paulo:
Brasiliense, 2003. Ou então, o também empregado oximoro “racismo científico”.
3 Mesmo Gobineau, um crítico (ou “inimigo cordial”) do Brasil, teria apontado em "L’Emigration au
Brésil: l’Empire du Brésil à l’Exposition Universelle de Vienne” de 1873, que o Brasil “tinha jeito”.
Ver: GAHYVA, Helga. Brasil, o país do futuro: uma aposta de Arthur de Gobineau? In: Alceu,
jan./jun. 2007, vol. 07, n° 14, p. 152-159.
apropriação: a questão do nacionalismo. É nesse aspecto que o projeto político nacional, que
visa à fusão entre o estado e a nação, recorre a “idéias” (na maior parte, “importadas”, porém
“adaptadas” ao contexto) que forneçam uma explicação plausível para os problemas
decorrentes da aplicação da ideologia nacionalista: o evolucionismo se não explicava a atual
situação, ao menos propunha a possibilidade de um futuro triunfante ao mesmo tempo em que
colocava em suspensão uma resolução dos problemas coevos; as teorias racialistas, no
entanto, almejavam uma resposta imediata aos problemas de desenvolvimento social, cultural
e econômico, enfim, ao atraso brasileiro ante os países europeus; e a modernização seria uma
tentativa de impor de forma mais pragmática o desenvolvimento nacional, ou então, a
“evolução de uma civilização”.
Esse arcabouço de idéias conformaria o campo disciplinar da história, assim como
das demais disciplinas produtoras de discurso histórico no âmbito dos debates no Paraná. A
idéia de uma história que progride, genética, evolutiva, mas também etnocêntrica, cuja
preponderância do elemento dito “civilização” e “moderno”, contrapostas à de “barbárie” e
“atraso”, seria a tônica das narrativas sobre os assuntos de fronteira e identidade.
No que tange a especificidade do embate sobre a questão de limites e o problema
da identidade, inúmeros personagens colaboraram para que o evento “questão de limites” se
tornasse, enfim, um “acontecimento” com duração e caráter extraordinário. No entanto, para
que uma historiografia ulterior pudesse retomá-lo e rememorá-lo, portanto garantindo sua
permanência e importância histórica, foi necessário que ele (o acontecimento) fosse
construído por uma série de discursos, no caso de nossa pesquisa, contemporâneos ao próprio
“acontecimento”. É de se notar, porém, que quando se pensa a questão identitária no
período, verifica-se que ela não possui o mesmo status de “acontecimento” (ou então, de
“Acontecimento”), vindo a ser constituída como tal, somente muito posteriormente.
Na medida em que os discursos orientam a atenção para focos específicos na
ordem dos eventos – transformando-os em “acontecimentos” –, são os intelectuais, ou então,
muito genericamente, todo personagem com competência de produzir um discurso dotado de
autoridade e legitimidade, que efetivamente definem o que portará o status de
“acontecimento” em detrimento daqueles relegados ao esquecimento, ou a uma posição
inferior (infra) no conjunto das produções históricas. Nesse sentido, com a preponderância de
um evento, alçado a “Acontecimento”, quantos outros seriam impedidos de tornarem-se como
tais? A historiografia ulterior e o seu papel na “monumentalização” dos acontecimentos e de
uma história seriam, nesse quadro, um capítulo posterior da análise.
Ao afirmar o desenrolar da questão de limites como “o” grande “Acontecimento”
do período, de certa forma operava-se uma transposição: do problema concreto daquela
sociedade (dos “intelectuais”), uma questão primordial na agenda dos debates, a uma imagem
representativa do status de tal problema (e de seus desdobramentos) no âmbito de um quadro
geral simbólico da organização histórica da sociedade (em geral), com repercussões em sua
moral e visão de mundo, nos seus quadros de representações e nas próprias posições-desujeito
a se ocupar.
Dos personagens diretamente envolvidos com a questão das fronteiras e, ao
mesmo tempo, com a problemática identitária, dois deles já foram mencionados acima: Rocha
Pombo e Romário Martins seriam os principais representantes do ofício histórico no momento
em que o século inicia sua “evolução”.
O primeiro, José Francisco da Rocha Pombo, considerado “pai da historiografia
paranaense”, seria apontado por seu sucessor como uma “cerebração potente”, onde “tudo
através do seu espírito e do seu temperamento assumia proporções mal pressentidas pelas
inteligências comuns” 4. Vinculado de forma umbilical a imprensa e, com menor destaque, a
vida política paranaense, ficou conhecido por sua proposta de criação de uma universidade no
Paraná, onde esta exerceria “um papel fundamental no projeto educativo proposto por Rocha
Pombo, pois seria responsável pela formação do sábio, capaz de dirigir a cidade, bem como
de promover a elevação intelectual e moral dos outros homens” 5.
Sua vida de escritor inicia-se já em 1881 quando publica “A Honra do Barão”,
seguida de “Dadá” e “Supremacia do Ideal”, ambos de 1882, “A Religiao do Belo” de 1883, o
romance “Petrucello” e o livro de contos e poesias “Visões” de 1888. Contudo, seu primeiro
trabalho histórico somente é produzido em 1900 quando da publicação de “Paraná no
Centenário”, obra que tinha por objetivo prestar seu contributo às comemorações do quarto
centenário do descobrimento ou, com outro tom, bradar “Ave Pátria!”, “em nome do Estado
do Paraná – solemne demonstração de solidariedade com a alma nacional, na grande
4 MARTINS, Romário. Terra e Gente do Paraná. Curitiba: Coleção Farol do Saber, 1995, p. 111.
5 CAMPOS, Névio de. Intelectuais paranaenses e as concepções de universidade: 1892-1938. In:
http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/trabalhos/GT02-2866--Int.pdf. Acesso em: fevereiro de 2008,
p. 03.
commemoração de 1900” 6. Em meio as suas produções ficcionais, poéticas, filosóficas, era a
história que, no entanto, passaria a ser o campo que lhe garantiria o status de figurar entre os
principais historiadores paranaenses, sendo sua “História do Brasil” (em 10 volumes) o seu
ponto maior.
Em relação à questão racial, Rocha Pombo é, como no clichê, um “homem de seu
tempo” e está absolutamente envolvido com a discussão sobre a presença africana no Brasil.
Naturalmente, é um dos que acabam por reforçar a visão etnocentrista da inferioridade tanto
do elemento negro como indígena. Como aponta, em relação ao oeste paranaense, ele “se acha
quasi inteiramente despovoado. Erram por alli ainda numerosas hordas selvagens, umas de
todo refractarias á civilisação” 7.
[...] dizendo aos povos co-irmãos como têm marchado até hoje, quaes os
estímulos da sua fé no destino, da sua esperança na grandeza futura da terra
bemdicta onde em 1500 puseram pés e levantaram tendas os seus avós. E
assim, a commemoração que celebramos virá a significar o que significar
devem todas as commemorações – uma parada nesta ascenção para o
destino, uma pausa de resfolego, que nos permitta volver olhares para a rota
vencida e medir os horizontes que vamos desvendando! 8
De uma geração posterior, Romário Martins 9 é o autodidata que se tornou
historiador de seu tempo através dos debates a que se viu envolvido, o que, também, produziu
mais um elemento de sua caracterização: sua intensa vida pública, na medida em que também
6 Já na página de abertura: POMBO, José Francisco da Rocha. O Paraná no Centenário. 1500-1900.
Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1900.
7 POMBO, José Francisco da Rocha. O Paraná no Centenário. 1500-1900. Rio de Janeiro: Typ.
Leuzinger, 1900, p. 88.
8 POMBO, José Francisco da Rocha. O Paraná no Centenário. 1500-1900. Rio de Janeiro: Typ.
Leuzinger, 1900, p. XI.
9 Romário Martins (1874-1948). Ver: CARNEIRO, Cíntia Maria Sant´ana Braga. O museu paranaense
e Romário Martins: a busca de uma identidade para o Paraná – 1902 a 1928. Dissertação de mestrado
em história. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2001; SVARÇA, Décio. O Forjador: Ruínas de
um Mito: Romário Martins (1874-1944). Dissertação de mestrado em história. Universidade Federal
do Paraná. Curitiba, 1993; CAROLLO, Cassiana Lacerda. Romário Martins: Biografia intelectual. In:
MARTINS, Romário. Terra e Gente do Paraná. Curitiba: Coleção Farol do Saber, 1995, p. V-X;
_____. História do Paraná. In: MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos
Editores, 1995, p. XXIX-XLII; SOARES, Luis Roberto. Romário: um historiador combatente.
In: MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995, p. III-XV;
WESTPHALEN, Cecília Maria. Alfredo Romário Martins. In: Dicionário Histórico-Biográfico do
Paraná. Curitiba: Chain: Banco do Estado do Paraná, 1991, p. 275-7.
fora deputado estadual por várias candidaturas, funcionário público e jornalista nos diversos
jornais (Dezenove de Dezembro, A República, Diário do Paraná, etc.) e revistas curitibanos.
No entanto, sua carreira enquanto historiador só inicia em 1898 quando da publicação do
folheto “Combate do Cormorant”, seguido do livro “História do Paraná” de 1899, e após, uma
fértil via nos caminhos da historiografia. Entre 1901 e 1916, período intitulado por ele mesmo
como a segunda fase de sua vida intelectual 10, desenvolveu seus esforços na questão de
limites do Paraná, empenho que lhe gerou além de inúmeros convites de participação em
Institutos Históricos do país e internacionais, também condecorações da mesma ordem.
Com relação ao seu modo de pensar a história, em específico, apesar da
“evolução” do seu pensamento ao longo dos anos, a “matriz” antes mencionada, seria uma
conformadora. Tanto as idéias teleológicas (ou simplesmente progressistas) como um
candente etnocentrismo baseado nas idéias de raça-meio, contornariam seus escritos sobre a
história do Paraná e, especificamente, as publicações sobre os problemas fronteiriços e
identitários. É notório que em sua “História do Paraná” de 1899, de inicio, já proponha uma
descrição do “meio físico”, seguida de uma “distribuição geográfica das tribos indígenas” e de
“fatores étnicos fundamentais”, sendo que já nas primeiras linhas verifique-se uma súmula do
pensamento que conduzirá sua escrita: “o conjunto de circunstâncias que definem o meio
físico de um país, exerce influência, por vezes decisiva, no seu destino”, assim como, “o
campo e a floresta, não somente decidiram de nossa existência como de nossa índole” 11.
Tendo isso por base, a do “contrato humano com a terra” 12, é que Romário Martins, apesar de
mencionar uma não-diferenciação das raças em superiores e inferiores, acaba por construir
sua idéia etnocêntrica de que determinadas parcelas da humanidade estariam diversamente
adaptadas a meios geográficos distintos: no caso do Paraná, com seu clima ameno, seriam “as
raças européias” as que melhor ali se desenvolveriam 13.
Sua “vocação” racista, a lá Euclides da Cunha e Roquete Pinto, por exemplo, seria
verificada em passagens em que aponta a “pouca solidez de estrutura moral e pouco equilíbrio
de caráter” do elemento negro, com franca vantagem dos “mestiços” do “ponto de vista
intelectual e social”. Vantagem porque acabavam por produzir “perfeitos tipos eugênicos”, no
10 Cf. MARTINS, Romário. Eu. Curitiba: Impressora Paranaense.
11 MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995, p. 03, 04.
12 MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995, p. 05.
13 MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995, p. 25.
sentido de “europeização da tez” 14, afinal: “são tais os efeitos do cruzamento de mestiços de
negro observados no Brasil, que se pode prever, ainda para este século, o desaparecimento
total dos seus restantes índices etiópicos na fisionomia da parte da população nacional que lhe
é correspondente” 15. E continua:
Está assim o nosso país fazendo a sua evolução étnica e social muito mais
rapidamente do que o fizeram quaisquer dos povos europeus e realizando
muito mais perfeitamente a assimilação dos elementos bárbaros que
entraram na formação das suas populações. Desses elementos não herdou o
brasileiro as qualidades egoísticas como as que habitam o fundo psicológico
das populações do Velho Mundo, antes, pelo contrario, constituiu-se por
desígnio insondável da Criação, um dos mais nobres tipos morais da
Humanidade, do ponto de vista social, político e moral. 16
E essa passagem resume, em grande parte, o que aqui se deseja falar sobre um dos
historiadores do período que é, em parte, o reflexo de uma mentalidade difusa no meio ao
qual faz parte Romário Martins: não só a visão progressista, teleológica, evolucionista, mas
uma fé irremediável na infalibilidade de um destino certo e glorioso, como também na certeza
da “missão cultural” 17 a que estavam imbuídos; não só o etnocentrismo, baseado nas idéias
de raça e meio, mas o enaltecimento da “raça paranaense” com tons claros de uma grandeza
romântica.
Para todos esses “intelectuais”, entre outros não mencionados, historiadores de
ofício ou não, a questão de limites do Paraná tornara-se “o” Acontecimento do período.
Apesar de já após a emancipação da província ocorrerem narrativas que advogam os direitos
paranaenses dos limites, primeiro com o Paraguai e a Argentina, depois com São Paulo e
Santa Catarina, assim como da questão identitária, é somente nas primeiras décadas do século
XX que esses eventos assumem uma feição dramática na ordem dos acontecimentos. É a
escrita histórica, utilizando toda essa dêixis fundadora produzida ao longo da segunda metade
14 Uma das obras que sintetizam esse pensamento da “mestiçagem”, desdobrado no projeto e ideologia
do “branqueamento” é “A Redenção de Can” de Modesto Brocos y Gomes lançada em 1895.
15 MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995, p. 157, 155, 156,
157, respectivamente.
16 MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995, p. 157.
17 CAMPOS, Névio de. Intelectuais paranaenses e as concepções de universidade: 1892-1938. In:
http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/trabalhos/GT02-2866--Int.pdf. Acesso em: fevereiro de 2008.
do século XIX sobre as fronteiras e a identidade, que organizará um quadro muito mais
preciso e coerente da “ordem e progresso” do devir da “civilização paranaense” 18.
Para a maioria dos historiadores em atuação no período, principalmente após a
ação reivindicatória do território contestado por Santa Catarina em 1901, a questão de limites
ressurge dramática, comparada com o clima anterior, quando só se discutia o problema como
forma de “marcar posição” ante a agitação catarinense no parlamento ou imprensa 19. Já na
obra de Romário Martins, no entanto, a questão de limites é o leitmotiv da maior parte de seus
escritos e pesquisas. Já em “História do Paraná” de 1899, a questão é tomada como ponto de
honra para todos aqueles que advogam a “causa paranaense”: é o último acontecimento
abordado em seu livro. É, provavelmente, a ocasião em que se instituiu o acontecimento
“questão de limites” como digno de figurar no hall dos ressentimentos emoldurados pela
historiografia paranaense.
Apesar da presença de vários historiadores – ou com pretensões historiográficas –
durante as primeiras décadas do século, quem domina o campo são Rocha Pombo e Romário
Martins. No entanto, todos participam de uma forma ou outra, na construção e consolidação
dos mitos historiográficos, ou em outros termos, das fantasmagorias presentes até os tempos
atuais na história paranaense ou, então, em uma mentalidade difusa no interior da sociedade.
Logicamente, havemos de convir, que algumas obras de autores mais “famosos” em seu
tempo tiveram, não só mais ampla abrangência em termos de possibilidade de sua leitura,
como também maior irradiação do sentido que queriam, naturalmente, passar. Algumas obras
foram alçadas ao status de “História Oficial” 20, com republicações e tendo seu interesse
renovado, outras obras tiveram uma menor “longevidade”, até serem “superadas” por
reflexões ou, ainda, descrições mais aprimoradas dos variados objetos da historiografia local.
Contudo, relativizados seu campo de circulação e de influência, essas produções, cujo caráter
historiográfico é característico do período, tiveram seu papel no lugar em que, ao fazê-lo
objeto de estudo, ao mesmo tempo “glorificavam”.
18 Expressão contida originalmente em: MARTINS, Romário. Terra e Gente do Paraná. Curitiba:
Coleção Farol do Saber, 1995; posteriormente utilizada na publicação comemorativa: O MATE, a
economia e a civilização paranaense: esboço histórico. In: 1º Centenário da Emancipação Política do
Paraná: 1853-1953. Curitiba: Câmara de Expansão Econômica, 1953. Embora ainda hoje seja de uso
relativamente difundido, na imprensa principalmente.
19 Cf. MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995, p. 447.
20 Verificável nos programas e diretrizes do ensino de história, por exemplo. Contudo, o epíteto é o de
“Historiografia Tradicional”.
Emblemas locais (mas que assumem, alguns, também status de “símbolo
nacional”), com vivências ainda presentes, seriam construídos não só através de elementos
retirados da natureza, tais como a araucária e, a sua derivação, o pinhão, como também na
busca de “heróis” em personagens genéricos como a figura do bandeirante, assim como nos
específicos vultos da história política e intelectual da província. Não obstante, a narrativa
histórica também proporcionaria a construção de uma imagem de unidade e coerência a
experiência anterior e, nesse sentido, dotando de significado (e de um “caminho rumo ao
destino”) um passado paranaense. A ilusão de unidade e totalidade da experiência comum, na
medida em que as narrativas limitam e controlam a polissemia, seria um fundamento à
construção de uma identidade, ou em outro sentido, a difusão de uma mensagem: o Paraná é
uma comunidade no tempo.
Bibliografia
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CARNEIRO, Cíntia Maria Sant´ana Braga. O museu paranaense e Romário Martins: a busca
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