domingo, 18 de julho de 2010

1729 - HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

Vinte mil cartas freudianas
Poema
Conflito e cultura
Freud na cultura brasileira
Cronologia

Fim do séc. XIX: efervescência científica

O que é a psicanálise
Maurício Knobel


Sonho, o despertar de um sonho
Fabio Herrmann

Freud e Jung: a cisão com o príncipe herdeiro
Ulisses Capozoli

Freud e Lacan
Marcia Szajnbok

Freud e Reich: duas matrizes
André Valente de Barros Barreto

A psicanálise no Brasil
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho

Cartas freudianas
Mariza Corrêa

Psiquiatria psicanalítica
Sílvio Saidemberg

Do começo ao fim
Daniel Delouya

Psicanálise e arte
Giovanna Bartucci

Coincidência ou Freud explica?
Carlos Vogt

Pré-história do sonho
Yannick Ripa

Homenagem a Hélio Pellegrino
Miriam Chnaiderman

Agora que as relíquias mais caras à história da psicanálise vêm ao Brasil, deveríamos lembrar que não são os objetos em si e sim as palavras que eles referem, a lembrança que encerram, o que era caro a Freud. O homem que mais contribuiu para devolver a palavra aos sem-razão foi também um grande cultor dela e não somente em seus escritos analíticos: Renato Mezan observa que um historiador alemão calculou que Freud escreveu cerca de vinte mil cartas durante sua longa vida, e que só o volume das publicadas já daria para encher uma prateleira do mesmo tamanho que a ocupada por seus textos canônicos.

Como essa palavra, sua palavra chegou até nós? Também através de cartas - cartas que, seria de se esperar, já tivessem sido recuperadas e estivessem presentes nessa exposição de seus objetos pessoais, pois são um elo de ligação curioso com os primeiros brasileiros a mencionar seu nome, lá pelos idos dos anos vinte. Aquelas que vi citadas, em teses acadêmicas sobre a história da medicina, são em geral cartas curtas, polidas, agradecendo o envio de algum artigo ou livro, ou dando alguma informação pedida pelos médicos pioneiros em seu interesse pela psicanálise: Franco da Rocha, Porto Carreiro, Juliano Moreira, Arthur Ramos. Mas é em geral como argumento de cosmopolitismo que "o nome do pai" é citado, como quando algum autor se gaba, de maneira genérica, de ter mantido correspondência com o Dr. Freud. Capítulo interessante este da história da psicanálise no Brasil e ainda por ser escrito.


A palavra desvirtuada

No entanto, a palavra de Freud, segundo os analistas da história dessa recepção no país (Joel Birman, Silvia Alexim Nunes, Jurandir Freire Costa, entre outros), foi de início incorporada ao contexto médico de uma ótica inteiramente avessa à sua intenção original: de palavra transgressora que era no seu contexto de criação, passou aqui a servir de argumento de autoridade para normas de higiene social. Silvia Alexim Nunes cita, por exemplo, a grande fixação desses primeiros médicos higienistas com a questão da sexualidade infantil, mas não exatamente da perspectiva adotada por Freud.

Como o médico Porto Carrero, escrevendo em 1934: " Para as crianças que demonstram o hábito de manusear os órgãos genitais, o uso do velocípede e da bicicleta pode concorrer para aquele cultivo do prazer. O mesmo se entenda quanto à equitação, verdadeira ou simulada, em cabos de vassoura ou cavalinhos de madeira."

São, como disse Joel Birman, os especialistas médicos atuando nos campos da pedagogia e da criminologia de uma perspectiva higienista, os que vão se destacar por articular o discurso psicanalítico às práticas vigentes na psiquiatria brasileira - o que certamente dará um matiz inteiramente próprio à origem do movimento psicanalítico nacional, se comparado com o de outros países.

Só nos anos setenta é que a teoria freudiana, e aí já em muito influenciada pela sua leitura feita por Lacan, encontrará um lugar próprio no âmbito da intelectualidade brasileira, isto é, um lugar não mais (necessariamente) atrelado à medicina ou à psiquiatria. Mas há, ainda assim, alguns elos dessa corrente histórica menos conhecidos e que valeria a pena recordar, aproveitando essa ocasião da exposição Freud.

"Que coisa horrível, doutor"

Fazendo uma crítica avant-la-lettre à psiquiatria da década de vinte, um paciente de Arthur Ramos, certamente cansado da parafernália maquinística a que era submetido nos tratamentos de então, pronunciou esta frase: "Que coisa horrível é a psiquiatria, doutor." Arthur Ramos, um dos que se gabava de sua correspondência com Freud, ainda quando estudante na Bahia, nasceu em Alagoas, como Nise da Silveira, a criadora do Museu do Inconsciente (veja reportagem da Com Ciência). Há aí uma bifurcação interessante: ambos se encontravam nos saraus em casa da mãe de Nise da Silveira, pianista afamada, em Maceió; ambos se encontravam nas aulas da Faculdade de Medicina em Salvador, mas seus caminhos tomaram rumos muito distintos. A doutora Nise, em franco desacordo com o modo como eram tratados os esquizofrênicos asilados, foi uma inovadora nas técnicas de devolver a palavra aos 'loucos', de escutar a sua fala, de oferecer-lhes uma outra linguagem na qual se expressar - a das imagens. Arthur Ramos, mais conhecido por sua atuação como antropólogo e como chefe do Departamento de Ciências Sociais da Unesco - famoso por ter proposto o projeto da Unesco sobre relações raciais no país - posto no qual morreu, em Paris, mal o havia ocupado, seria o iniciador de uma outra linha percorrida pela influência da psicanálise no país. Ana Cristina Figueiredo, ao historiar a trajetória da psicanálise no Rio de Janeiro, menciona como precursores os psicólogos que trabalhavam com crianças - justamente no serviço que Ramos criara, nos anos trinta: o Serviço de Ortofrenia e Psicologia da Secretaria de Educação. O livro que publicou, em 1939 - A criança problema, a higiene mental na escola primária - com base nas pesquisas realizadas pelo Serviço, é um primor como exemplo do já mencionado aprisionamento da palavra freudiana nas teias de uma visão eugênica da sociedade. Mas é, também, a seu modo, um dos elos da história da apropriação dessa palavra entre nós.

Pós-escrito ano 2000

A Revista Com Ciência publicou uma bela matéria no seu número anterior, com o título sofrível de Reforma Manicomial, matéria que apresenta dados quase inacreditáveis. A lei que regulamenta o tratamento oferecido nos manicômios brasileiros data de 1934, justamente os anos de ouro da eugenia, da estigmatização dos comportamentos que não se adequam a uma certa norma social. E o projeto de lei que propõe a mudança desse sistema, do deputado federal Paulo Delgado, arrasta-se há dez anos na Câmara,tendo recentemente sofrido substituições que o desfiguram. Oxalá a exposição dos objetos amados por Freud propicie uma reflexão nova sobre a velha questão da loucura em nosso país...

Mariza Corrêa - Antropóloga. Professora do Departamaneto de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, integrante no Conselho Científico do Núcleo de Estudos de Gênero PAGU.


Esta reportagem tem
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Atualizado em 10/10/2000

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