quinta-feira, 29 de julho de 2010

2315 -

História & Religião

HISTÓRIA &... REFLEXÕES
Sérgio da Mata
História & Religião
Copyright © 2010 Sérgio da Mata
Coordenadores da coleção História &... reflexões
Eduardo França Paiva
Carla Maria Junho Anastasia
CAPA
Alberto Bittencourt
(Sobre foto de Walter Martin, 1939)
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Revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico.
Mata, Sérgio da
História & Religião / Sérgio da Mata. – Belo Horizonte :
Autêntica Editora, 2010. – (História &... Reflexões, 13).
ISBN 978-85-7526-480-5
1. Experiência religiosa 2. Fenomenologia 3. Religião -
Filosofia 4. Religião - História 5. Religiões 6. Religiosidade I.
Título. II . Série.
10-05869 CDD-200.7
Índices para catálogo sistemático:
1. Estudo das religiões 200.7
2. Religiões : Estudo 200.7
Igualdade significa: poder ser diferente dos demais
sem medo. Por isso sempre importa mais, aos seres
humanos, a sua capacidade de ser peculiar que a
sua capacidade de generalizar: sua competência
para a diversidade. E toda universalização há de
promover a diversidade ou não serve para nada.
Odo Marquard

Para o mestre Pierre Sanchis

Sumário
Introdução ...................................................................... 11
Pequena crônica da religião, hoje ................................. 12
Compreender a religião: mas como? ............................ 18
Capítulo I
Tempo, consciência histórica e religião ............................ 21
Historiadores da crença e crenças dos historiadores .... 21
Do eterno retorno à consciência histórica .................... 23
A era axial ..................................................................... 29
Capítulo II
A religião como objeto: da história eclesiástica à
história das religiões ......................................................... 35
Eusébio e a História eclesiástica ................................... 35
A revolução filológica e os limites da história
eclesiástica moderna ..................................................... 37
A metodização da historiografia eclesiástica no
século XVIII ................................................................... 45
Uma peculiaridade alemã: as raízes teológicas
da historiografia acadêmica ............................................48
Historicização e pluralismo moderno:
o nascimento da história das religiões ............................53
A historiografia contemporânea e a
história das religiões .........................................................65
Capítulo III
Métodos, perspectivas, problemas .....................................71
Considerações sobre o método ........................................72
“Secularização”: rumo à laicidade futura? ....................77
As variedades da experiência político-religiosa ..............80
“Retorno” do sagrado? ..................................................87
Capítulo IV
Pequena morfologia histórica da religião ...........................91
Ascetismo.........................................................................92
Átheos/ateísmo ................................................................95
Carisma ...........................................................................99
Conversão .....................................................................102
Dominação/contestação ................................................104
“Exteriorismo”/“crença” .............................................107
Intolerância/violência ....................................................108
Imagem/representação ..................................................112
Masculino/feminino .......................................................115
Mística ...........................................................................118
Oráculo/utopia ...............................................................119
Paganismo/politeísmo ...................................................122
Religio ............................................................................126
Rito .................................................................................129
Sagrado/profano ............................................................132
Teodiceia .........................................................................134
Conclusão .......................................................................141
Referênci as .....................................................................145
11
Introdução
Ante o tema “religião” há três atitudes possíveis. A
primeira é a da certeza incondicional afirmadora. Podemos
ilustrá-la com o exemplo do psiquiatra suíço Carl Gustav
Jung, que respondeu a alguém que havia lhe perguntado se
acreditava em Deus: “Eu não creio, eu sei”.
A segunda atitude é a da certeza incondicional negadora.
Nós a encontramos em Karl Marx, quando evoca os
dizeres de Prometeu no prefácio de sua tese de doutorado:
“Numa palavra, eu odeio todos os deuses”. Para o jovem
jurista, tal deveria ser o principal mandamento da filosofia,
a sua “sentença contra os deuses celestiais e terrestres que
não reconhecem a autoconsciência do homem como a maior
das divindades”.
A terceira atitude é a do lírico grego Simônides, cuja
pitoresca história é relatada por Cícero em seu De natura
deorum. Instado pelo tirano Hierion a dizer-lhe o que seria
“Deus”, Simônides pediu um dia para refletir a respeito.
Quando Hierion o procurou no dia seguinte, o sábio disse-lhe
que precisaria de mais dois dias. A cada nova investida,
um edido de prorrogação maior era feito. Até que o tirano,
evidentemente irritado, exigiu uma explicação. Simônides
disse-lhe: “Quanto mais eu penso sobre esta questão, mais
obscura ela se torna”.
Coleção “História &... Reflexões”
12
O leitor certamente terá percebido que, a rigor, as duas
primeiras atitudes não diferem uma da outra. De nossa parte –
gostaríamos de admiti-lo desde já –, agrada-nos mais a cautela
de Simônides. Optamos por fugir, tanto quanto nos foi possível,
das afirmações categóricas, das certezas inabaláveis. Um estudo
sobre as relações entre história e religião, desde que queira ser
honesto, será sempre um experimento. O que significa dizer
que este livro deve ser compreendido como um esforço de
reflexão. E como uma tentativa de formular perguntas, mais
que de trazer respostas.
Pequena crônica da religião, hoje
“A civilização corre um risco muito maior se mantivermos
nossa atual atitude para com a religião do que se a abandonarmos”
(Freud, 1974, p. 48). Desde 1927, quando estas
palavras de Freud passaram ao papel, a situação das religiões
no Ocidente se alterou dramaticamente. Mas não como ele
imaginava em seu ensaio O futuro de uma ilusão. Sistemas de
crença, seitas e igrejas não refluíram ante o avanço da ciência
e da racionalização. A “ilusão” religiosa passou a se servir, e
cada vez mais, da técnica, de forma a ampliar sua influência.
O mundo não foi desencantado. Talvez seja mais correto dizer,
à luz da experiência das últimas décadas, que aquela figura
invocada pelo pai da psicanálise, o “deus logos”, é que se
encontra numa situação particularmente difícil na atualidade.
Todavia, há um pequeno e significativo acerto na profecia
desmentida de Freud, ali mesmo onde preferiríamos que
ele tivesse errado. O preço pago pela manutenção da religião
(e das instituições religiosas) nas sociedades contemporâneas
parece ter sido também, em grande medida, o do enrijecimento
e o da indisposição crescente para o diálogo. A religião voltou
a ser um fator de tensão e de conflito. Talvez seja esta a
incômoda verdade por detrás da tese de Nietzsche segundo a
qual “Deus não pode sobreviver sem os insensatos”.
Introdução
13
Alguns exemplos de nossa história recente reforçam
esse diagnóstico.
O século XXI se iniciou em 11 de setembro de 2001, sob o
signo do maior atentado terrorista da história, o ataque às torres
gêmeas do World Trade Center. É bem sabido em que medida
a religião desempenhou ali um papel central. A descoberta de
documentos pertencentes a um dos envolvidos demonstra – ao
contrário do que foi divulgado pelo governo norte-americano –
que se realizaram diversas cerimônias de purificação, recitações
e preces antes dos ataques. Ao seu modo, aqueles eram homens
perfeitamente “pios” (se é que o conceito de “piedade” pode
sobreviver a tais extremos). O 11 de setembro teria configurado
o ponto alto daquilo que o aiatolá Fadlallah, do Líbano,
denominara, numa expressão magnífica, a “rebelião contra o
medo” (Kippenberg, 2005, p. 29-58).
Quatro anos depois, a pacata Dinamarca viu-se no epicentro
de uma crise diplomática de grandes proporções. O
pivô da crise, o jornal conservador Jyllands-Posten, publicara
12 caricaturas de Maomé consideradas ofensivas pela comunidade
mulçumana. No dia 19 de outubro, embaixadores de
dez países (entre eles Egito, Irã, Paquistão, Arábia Saudita
e Turquia) solicitaram uma audiência ao primeiro ministro
norueguês Anders Rasmussen para discutir o caso. Rasmussen
recusou-se, alegando não poder limitar a liberdade
de expressão e de imprensa. Sua negativa foi interpretada
em inúmeros países islâmicos como uma demonstração de
descaso e produziu consequências imediatas: Arábia Saudita
e Líbia chamaram seus embaixadores de volta, no Paquistão
e na Faixa de Gaza fizeram-se manifestações de protesto, e
até mesmo uma pena de morte chegou a ser decretada contra
as tropas da Dinamarca estacionadas no Iraque. No Egito,
na Arábia Saudita e no Kwait falou-se, e em alguns casos se
praticou efetivamente, um boicote contra produtos de empresas
dinamarquesas.
Coleção “História &... Reflexões”
14
A tensão entre o mundo islâmico e o cristão voltaria a
manifestar-se por ocasião de uma conferência do papa Bento
XVI feita na Universidade de Regensburg, em 2006. Discorrendo
sobre Fé, razão e universidade, o papa evocou palavras
do imperador bizantino Manuel II Palaeologos a um sábio
persa num debate travado no ano 1381: “Mostrai-me o que
Maomé trouxe de novo, e lá encontrareis somente coisas ruins
e desumanas, como isto que ele prescreveu, de se difundir a
fé que professava pela força da espada”.1
As declarações do pontífice geraram nova onda de
protestos no mundo mulçumano. A Conferência Islâmica
manifestou-se contra o que entendeu ser uma “campanha”
do Vaticano. A principal autoridade do clero turco, Ali Bardakoglu,
exigiu uma retratação. O parlamento paquistanês
votou uma resolução afirmando que as declarações de Bento
XVI feriam os sentimentos dos mulçumanos e aumentavam
o fosso entre as religiões. O secretário do Conselho Geral
dos Mulçumanos Alemães declarou numa entrevista que lhe
custava acreditar “que o papa visse justamente na relação com
a violência a fronteira entre o islã e o cristianismo”.
É certo, em todo o caso, que as variedades contemporâneas
de experiência religiosa não se resumem a produzir
conflitos. Nos últimos anos do século XX, em face da utilização
cada vez mais consciente (e competente) dos meios de
comunicação de massa, a religião produziu “espetáculos” de
dimensões até então inimagináveis. Basta pensar nos megafunerais
do aiatolá Khomeini e do papa João Paulo II. Pense-se
ainda na tournée mundial do Dalai Lama, realizada há uma
década. No Brasil, figuras como o médium kadercista Chico
Xavier gozaram de popularidade mesmo entre católicos. O
carisma religioso deixa, assim, de ser apenas rotinizado: as
1 A íntegra da conferência foi publicada pelo jornal Süddeutsche Zeitung, 12/09/2006.
Cf. a interessante nota crítica de Giovanni Levi (2008).
Introdução
15
tecnologias modernas de comunicação parecem tê-lo levado a
seu ponto máximo de potencialização. Daí que as Igrejas, sobretudo
algumas denominações protestantes e a católica, tenham
passado a investir pesadamente em mídia. Assistimos em nossos
dias não apenas à proliferação da mídia religiosa eletrônica,
mas, o que é mais grave, a uma verdadeira confessionalização
de algumas das principais redes de televisão no Brasil.
Diante de tudo isso, deveríamos falar em atualidade
da religião ou de “persistência” do maravilhoso na modernidade?
É preciso lembrar que também as práticas mágicas
continuam demonstrando, ao contrário do que se supunha, a
mesma vitalidade desfrutada em épocas passadas. Nas grandes
cidades brasileiras se oferecem, a cada esquina, serviços de
“orientação espiritual” capazes de resolver quaisquer problemas
pessoais. A religião intelectualizada de um Friedrich
Schleiermacher ou a mística arrebatadora de Santa Teresa de
Ávila tornaram-se ainda mais improváveis. O que define a
religião de massas no mundo contemporâneo é, em grande
medida, a sua dimensão terapêutica. A “salvação” deve dar-se
aqui e agora – por meio da cura.
Mesmo um ex-presidente da República afirma, publicamente,
acreditar em fantasmas: “eu estava com um
repórter na sala, e uma porta se abriu sozinha. [...] O palácio
[da Liberdade] é povoado por espíritos, mas eles expandem
energia positiva e contribuem para o bom estado de ânimo
dos governadores” (Itamar Franco, Veja, 18/12/2002).
Enquanto George W. Bush anunciava sua cruzada sagrada
contra o “eixo do mal”, chefes de Estado africanos
diziam-se enganados por feiticeiras.
O presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, admitiu
a seus ministros que pagou uma mulher que dizia ser
bruxa e prometia produzir gasolina a partir de pedras.
Mugabe pagou a suposta feiticeira com dois bois e
três búfalos. Após perceber que havia caído em um
Coleção “História &... Reflexões”
16
golpe, ele mandou prender a mulher sob acusação de
fraude (O Estado de S. Paulo, 17/11/2007).
Tais relatos, por anedóticos que sejam, nos ajudam a
perceber que a variedade dos fenômenos que o historiador
da religião tem diante de si é muito mais ampla do que normalmente
se admite. Daí que o conceito de “religião” aqui
adotado seja assumidamente flexível e plural. A razão para isso
não é apenas teórica – voltaremos a esse ponto no momento
adequado –, é igualmente de ordem prática: um conceito demasiado
estreito de “religião” não é compatível com a lógica
que rege uma sociedade pluralista.
Ante o avanço dos conflitos religiosos nas últimas três
décadas, amplia-se o coro daqueles para os quais a religião
faria melhor em limitar-se à esfera do privado (Rorty, Vattimo,
2006). Não são poucos os que têm utilizado os meios ao seu
dispor para fazer frente a esse aparente “retorno” do sagrado
de que falamos anteriormente. No campo da pesquisa histórica,
nomes como o brasileiro Luís Mott e o alemão Karlheinz
Deschner escrevem o que se poderia chamar de uma história
antirreligiosa da religião. Às vezes, quase sempre, uma época
profundamente religiosa tem seu corolário na crítica radical
do religioso.
As últimas aliadas dessa reação contra a religião têm
sido as ciências naturais. O renomado geneticista Richard
Dawkins publicou um livro sobre o “delírio” da crença no
sobrenatural, obtendo extraordinário sucesso (Dawkins, 2007).
Seus argumentos não parecem ter avançado muito desde os
tempos do zoólogo Ernst Haeckel (1834-1919). À fé cega de
alguns, opõe-se uma fé igualmente cega nas possibilidades
da ciência e da razão. Ainda assim, os argumentos de Dawkins
são considerados convincentes por setores da opinião
pública – não obstante se mantenham alheios a praticamente
tudo o que o estudo sistemático das religiões produziu nos
últimos cem anos.
Introdução
17
Tal reação antirreligiosa é uma atitude até certo ponto
compreensível. Violência e terrorismo religiosamente motivados,
espírito de cruzada ou puro e simples obscurantismo (a
condenação do Vaticano ao uso de preservativos num mundo
onde campeia a AIDS, para mencionar apenas um exemplo)
são um pesadelo para todo aquele que se acreditava vivendo
numa sociedade pautada pelos princípios racionalistas e críticos
legados pelos filósofos gregos e pelo Iluminismo.
Ao fazermos este brevíssimo esboço dos (des)caminhos
da religião no presente, tocamos apenas a superfície do problema.
Não temos a pretensão de formular uma “resposta”
ou de apontar saídas, se é que se pode chegar a tanto. O autor
dar-se-á por satisfeito caso seja capaz de demonstrar o caráter
enganoso de toda explicação demasiado simples, demasiado
rápida, quando se trata de religião.
Em que pese o descrédito generalizado do ideal de
“objetividade”, nenhum senso de moderação e equilíbrio é
demasiado quando se trata de temas como os que pretendemos
abordar aqui. Mais que a política, a religião parece ser um
estorvo para amplos setores da comunidade científica: “como
o mundo seria melhor se ela não existisse!”. Um belo sonho,
como o de Freud mencionado há pouco. Isso nos traz à memória
a figura arquetípica do Dr. Vergerus, personagem do filme
O rosto, de Ingmar Bergman. Vergerus é obcecado pela ideia
de desmascarar Albert Emanuel Vogel, um misto de mago e
ilusionista. Para atingir seu intento, ele reluta em deixar que
Vogel deixe sua cidade. O médico pretende submetê-lo a um
rigoroso escrutínio e, assim, desmascará-lo, “pois representa
o que eu mais desprezo: o inexplicável”.
Não é esta a tarefa que se coloca à moderna história das
religiões, afastada que está tanto das pretensões apologéticas
quanto das desmistificadoras. Ela quer – o que já é um desafio
suficientemente grande – compreender e explicar geneticamente
a religião nas suas relações com a cultura e a sociedade.
Coleção “História &... Reflexões”
18
Compreender a religião: mas como?
Sem ter pretendido oferecer um retrato das “variedades
de religião hoje”, a seção anterior serviu para sublinhar a
complexidade do campo religioso contemporâneo. As chamadas
religiões “universais” (budismo, hinduísmo, cristianismo,
judaísmo e islamismo) continuam dando prova de sua vitalidade,
sem que com isso os sistemas religiosos próprios de
pequenas comunidades e de grupos étnicos espalhados pela
superfície do planeta tenham se desfigurado inteiramente.
Contatos interculturais cada vez mais frequentes não levaram
sempre à morte dos deuses dos mais fracos. Produziram-se
sobreposições, escamoteamentos, reinterpretações, sínteses,
“hibridismos”. A crescente diversidade religiosa se expressa
também por meio de formas de religiosidade que poderíamos
chamar de “leigas”. O culto à personalidade nos regimes totalitários
do século XX e a “religião civil” moderna demonstram
que o potencial mobilizador de um sistema de crenças não tem
de extrair sua força da noção de “salvação”.
O que importa saber é se, num contexto de radicalização
como o atual (mesmo os outrora tolerantes suíços agora proíbem
minaretes), ainda há espaço para um estudo histórico das
religiões numa perspectiva reflexiva e crítica, o que equivale
a dizer: teoricamente fundamentado, não confessional e sem
quaisquer aspirações de natureza proselitista. É pouco provável
que tanto os heróis da causa da religião – qualquer que
seja ela – quanto os da causa da irreligião estejam dispostos a
aceitar os argumentos que não correspondam às suas próprias
posições. Uma historiografia reflexiva e crítica do religioso não
pode ter a pretensão de dizer às pessoas em quê e sequer se
elas devem crer. Aqui, mais que em qualquer outro campo da
pesquisa histórica, qualquer iniciativa nessa direção torna-se
duas vezes mais perigosa.
Eis porque um dos princípios básicos que norteiam a
história das religiões é que ela realiza um esforço consciente
Introdução
19
de abster-se de construir suas análises a partir de juízos de
valor (ou de fé). Poderíamos falar aqui numa espécie de
“dever” de autocontrole científico. Trata-se de um preceito
que a literatura mais recente tem designado “agnosticismo
metodológico” (gomes, 2002, p. 13-24).
Os fundadores da moderna história das religiões, homens
como Max Müller (1823-1900), Cornelis P. Tiele (1830-1902) e
Chantepie de la Saussaye (1848-1920), entendiam-na como uma
disciplina científica, “espírito” que ela preserva até hoje. Não no
sentido da profissão de fé cientificista, como a que caracterizou
boa parte dos estudos produzidos nos séculos XIX e XX, mas
num sentido muito preciso: um conhecimento que se pretende
científico se pauta pelo seu rigor e, sobretudo, pelo fato de que
seus pressupostos (esquemas interpretativos, conceitos, hipóteses,
teorias) sempre estão explicitados, abertos para a reavaliação e o
aperfeiçoamento constantes. Somente assim os resultados de uma
pesquisa podem aspirar a um mínimo de validade intersubjetiva.
Max Weber dizia, e isso permanece válido, que uma demonstração
científica, desde que bem conduzida, “será aceita como correta
também por um chinês”. Ernst Troeltsch traduziu esse postulado
da seguinte forma: os resultados a que chega o historiador da
religião deverão ser reconhecidos como válidos tanto por crentes
quanto por descrentes – supondo-se, é claro, que tanto uns quanto
outros coloquem o valor da integridade intelectual acima de todos
os demais. Isso não se consegue sem o que poderíamos chamar
de uma eterna abertura para a crítica – tanto a alheia quanto, evidentemente,
a própria autocrítica do pesquisador. É precisamente
essa abertura que garante à história das religiões a possibilidade
de avançar, ao mesmo tempo que estabelece com clareza – e isso
é decisivo – os limites que a separam do seu objeto. Assim conduzida,
a história das religiões nada tem de “religiosa”. O estudo
histórico da religião não se pode pautar pelos termos do discurso
que a religião elabora sobre si mesma.
Com isso chegamos ao ponto em que é preciso fazer algumas
distinções adicionais. A teologia, como reflexão sistemática
Coleção “História &... Reflexões”
20
sobre religião feita a partir de pressupostos religiosos, nada tem
a ver com a perspectiva adotada neste livro. A teologia não se
insere no campo das “ciências da realidade”. Seus procedimentos
são essencialmente especulativos e metafísicos, algo que a ciência,
de Descartes a Husserl, não se permite nem pode ser. Isso não
significa que todos os teólogos procedam da mesma forma, ou
mesmo que a ciência nada tenha aprendido com eles. Digamos
apenas que esta caracterização, provisória e algo rudimentar,
tem lá sua dose de verdade. O surgimento da história eclesiástica
representou um importante passo adiante, na medida em que
colocou o homem e não o divino no foco da análise. Ao longo
de sua extensa trajetória, ela carregou consigo alguns vícios de
origem – como o de ter instaurado uma confusão entre religião e
instituições religiosas, ou o de ter-se concebido como mera ciência
auxiliar da teologia. Entretanto, também ela representou, como
veremos, um laboratório de importantes inovações no campo da
pesquisa histórica. Foi somente no século XIX, com a história
das religiões, que o estudo dos fenômenos religiosos atingiu sua
maioridade. Rompeu-se com o cristocentrismo da história eclesiástica
e se passou a considerar o universo da religião em toda sua
luxuriante riqueza. Pode-se dizer que a história das religiões se
diferencia da história eclesiástica em três aspectos fundamentais:
ela é autônoma como disciplina, multicultural na percepção do
seu objeto e agnóstica em sua forma de abordá-lo.
Muitos historiadores que se interessam pela relação entre
religião e história ignoram a longa e rica tradição de estudos que
todo um conjunto de disciplinas – não só as que foram mencionadas
– devota ao fenômeno religioso. Seguindo um raciocínio
que lembra o do Dr. Vergerus de Bergman, é como se apenas
as expressões “concretas” (políticas, econômicas, sociais) da
religião contassem para esses pesquisadores, sem que qualquer
atenção tivesse de ser dada àquilo que antecede e subjaz a tais
manifestações “concretas”, ou seja: as ideias religiosas propriamente
ditas. Para os que comungam de reducionismos desta
espécie, as páginas que seguem nada têm


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