segunda-feira, 19 de julho de 2010

1745 - HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

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12/07/2010
As ciências humanas e a formação do psicanalista
Entrevista com Elisabeth Roudinesco











Uma das mais importantes intelectuais francesas da atualidade, Elisabeth Roudinesco esteve no Brasil em junho de 2010 para o lançamento de seu mais recente livro: Retorno à questão judaica (Zahar). A convite do Globo Universidade, ela participou do ciclo de debates Identidade e Referências – Novas definições, realizado na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. No encontro, no qual estiveram presentes também os professores e psicanalistas brasileiros Betty Fuks e Marco Antônio Jorge, a historiadora falou sobre as manifestações antissemitas atuais, a questão palestina, a psicanálise e a identidade judaica.

Roudinesco nasceu em Paris, em 1944. Filha de Jeanne Aubry, uma das pioneiras da psicologia infantil na França, desde cedo manifestou interesse pelas Ciências Humanas. Ao longo dos anos, optou pela história, com foco na psicanálise. Nos anos 1980, tornou-se conhecida ao publicar dois importantes volumes intitulados A história da psicanálise na França (1988). Em 1993, viveu um dos momentos mais polêmicos de sua carreira, quando escreveu uma biografia de Jacques Lacan: o livro foi criticado tanto por desconstruir a imagem do ídolo, quanto por destacar sua importância para a história do pensamento.

Diretora de pesquisas na Universidade de Paris-VII e professora da École Pratique des Hautes Études, Roudinesco também é autora, entre outros, do Dicionário de psicanálise (com Michel Plon, 1998), Por que a psicanálise? (2000), De que amanhã... (com Jacques Derrida, 2004), A família em desordem (2003) e Filósofos na tormenta (2006), todos lançados no Brasil. Nesta entrevista, ela fala de sua trajetória acadêmica e profissional, dos grandes professores que teve e da formação do psicanalista nos dias atuais.

Globo Universidade - Você é de uma família judia e sua mãe era psicanalista. Até que ponto esta influência foi decisiva na sua trajetória?
Elisabeth Roudinesco - Minha mãe foi uma pioneira da psicanálise da criança na França. Ela era médica e foi a introdutora das teorias de Anna Freud em nosso país. Foi amiga de Lacan, uma pessoa da sua geração, e fundadora da Escola Freudiana de Paris. Minha infância foi muito boa e inteligente. Minha mãe era divorciada e eu tinha dois pais. Ela era uma pessoa excepcional e, é claro, através dela pude conhecer a psicanálise ainda criança.

GU - Você gostava de psicanálise? Era algo com que pensava em trabalhar?
ER - Não, eu queria escrever romances. Comecei fazendo crítica literária e depois me orientei para a história da psicanálise.

GU - Até que ponto a psicanálise já se fazia presente em suas análises literárias?
ER - Eu evitei aplicá-la na crítica literária. Ao contrário, o que me interessava era sua história. Era o período do estruturalismo e tive a oportunidade de conviver com Gilles Deleuze e Michel de Certeau, dos quais fui aluna. Nesse tempo li a obra de Jacques Lacan, de Michel Foucault e de Deleuze. Com a leitura de Lacan, comecei a me interessar pela psicanálise. Foi inicialmente uma aproximação intelectual. Na sequência, fiz análise e prática clínica. Depois, voltei-me para a história. Na mesma época, houve a publicação de As palavras e as coisas, de Foucault, dos Escritos, de Lacan, e pouco antes de Pour Marx, de Louis Althusser. Depois houve maio de 68. Na Universidade de Vincennes, onde eu estudava Letras, acompanhei os seminários de Deleuze, Foucault e Michel de Certeau. Foi fascinante.

GU - Por que, depois literatura, você optou pelo novo caminho?
ER - Eu procurava a minha voz. Dei-me conta de que eu não tinha talento nem para escrever romances, nem peças de teatro. Minha cabeça era mais teórica. Eu tinha feito também filosofia e era apaixonada por história. No fundo, havia uma parte da minha trajetória na psicanálise e eu sentia que a fascinante aventura lacaniana chegava ao fim naqueles anos. Havia a necessidade de fazer o balanço daquela herança. Foi Michel de Certeau, por volta de 1975, que me orientou para a história da psicanálise. René Major, um amigo, também desempenhou um papel importante nisso. Em 1976, Major promoveu reuniões de confrontação entre todas as sociedades psicanalíticas. Foi um momento de desconstrução que me interessou. Ele também me apresentou Jacques Derrida, de quem me tornei amiga. Nesse tempo, eu também já era psicanalista, tinha feito minha formação, mas não era minha atividade principal.

GU - Qual foi a recepção ao seu livro A história da psicanálise na França?
ER - O primeiro volume, de 1982, teve uma boa recepção. Abordava o início, de 1885 a 1939, e todos lá retratados estavam mortos. Mas, a partir do segundo volume (1986), que cobria o período de 1925 a 1985, começaram os conflitos. Quando fazemos história, buscamos o equilíbrio, mas o movimento psicanalítico é muito dividido. Havia também os que estavam vivos. O momento, apesar de difícil, foi também de reconhecimento. Eu me impus. A ocasião mais delicada, contudo, foi quando publiquei a biografia de Lacan, em 1993. Todos ficaram bravos comigo. Uns porque desconstruía o ídolo, outros porque mostrava a importância dele como grande pensador. Além disso, Lacan era fonte de muitos rumores. Ele foi o contrário de Freud, que tinha uma vida simples e sobre quem é preciso inventar histórias. Lacan não: ele tinha uma vida complicada e uma relação complicada com a psicanálise. Transgrediu todos os códigos, reduziu o tempo das sessões. Era muito idolatrado e muito detestado. Mas havia outros problemas também. Um era que os psicanalistas não conheciam bem a sua história. A vida de Lacan não era conhecida. A publicação da biografia teve uma repercussão problemática, mas o livro se tornou um best-seller. A revista Nouvel Observateur estampou na manchete: “Deve-se queimar Lacan?” Houve uma onda de loucura, com muitos artigos equivocados na imprensa. Contudo, foi a primeira vez que se falou de Lacan de outra forma.

GU - Como essa dificuldade se refletiu no seu trabalho?
ER - Eu defendi meu doutorado em história em 1991 com o objetivo de ensinar a história da psicanálise na universidade. Felizmente, com esse título me tornei oficialmente historiadora, pois os psicanalistas não paravam de dizer que eu não era. O problema é que eu estava sozinha neste trabalho e continuei só. Não havia historiadores focados no assunto. Com eles, contudo, não tive problemas, porque a história é a história, não há clãs. Depois de 1991, formei doutorandos, essencialmente estrangeiros, muitos deles argentinos e brasileiros. É no mundo anglo-saxão que o estudo da história do freudismo e da psicanálise é mais avançado. Nos EUA, a história da psicanálise é feita no departamento de história.

GU - Para estudar a história da psicanálise é importante ser psicanalista?
ER - Não mais do que para estudar a história da medicina é preciso ser médico: o importante é conhecer o setor. Um historiador da medicina que não conhece as doenças tem um problema. Pode-se estudar de maneira livresca, sem ser praticante, mas é preciso conhecer. Eu considero – e este é outro debate – que para ser analista deve-se conhecer medicina para não se cometer erros de diagnóstico. É preciso saber diferenciar uma doença neurológica de uma psíquica. Isso é fundamental. Contudo, não há necessidade de ser médico.

GU – Como você avalia a formação atual?
ER - Com o tipo de formação que recebem na psicologia, os psicanalistas hoje não conhecem bem nem a medicina, nem a psiquiatria clássica. Eles não têm formação suficiente. Não conhecem a sua história. Para um psicanalista, Freud já dizia isso, é preciso conhecer minimamente a sociedade, para ser capaz de responder às perguntas dos pacientes. É preciso conhecer a história política do seu país, ser culto.

GU - Qual seria o curso ideal?
ER - Os estudantes precisam de mais formação em Ciências Humanas e menos de ciências duras. Os cursos são muito orientados para a biologia e para a neurologia. Há muita ciência, porém não o suficiente de medicina, que é diferente e necessária. Estuda-se o cérebro, por exemplo, algo que não serve para nada. É um aprendizado que sente a falta de estudos literários e filosóficos. Este, no entanto, não é o caso aqui do Brasil. Vejo isso mais na França. O nível é melhor no Brasil.

GU - Como compara o ensino nos dois países?
ER - Atualmente, o nível de ensino no Brasil é melhor, porque na França a psicanálise ficou relegada a segundo plano nos departamentos de psicologia. Há uma formação única. Os profissionais de hoje, com 30 ou 40 anos, são exclusivamente psicólogos. É uma formação restrita. Eu participo de todo tipo de banca - desde que haja Freud, sou chamada... Quando estou numa banca com colegas de psicopatologia, noto que os alunos são bons em clínica, mas não em cultura geral. Os estudos de psicologia não são suficientemente sólidos do ponto de vista intelectual.

GU - O que acha da convivência das diferentes escolas analíticas na universidade?
ER - As diferentes escolas são necessárias e sua rivalidade é a vida. A universidade, ao contrário, deve temperar os ânimos das diferentes sociedades psicanalíticas em seu meio. Se um professor é psicanalista, ele é obrigado a conviver com um colega de uma escola rival e isso é positivo no mundo acadêmico. A função das escolas analíticas, com seus estatutos privados, é formar analistas. A universidade não pode ser o reflexo de uma ou outra teoria. O ensino não pode ser tendencioso e um professor não pode perder a objetividade em prol de sua escola. O ideal é haver regras deontológicas: não se deve cooptar os estudantes e muito menos transformá-los em pacientes. Esse tipo de atitude sempre gerará problemas. Essas questões devem sempre ser reafirmadas, porque há uma tendência, por parte das sociedades psicanalíticas, de colonizar a universidade. É preciso estabelecer regras que, na França, são mais ou menos aplicadas no momento.

GU – Como foi a sua interlocução com Derrida, com quem escreveu o livro De que amanhã... . De que forma a obra dele continua a ter importância no seu campo de estudos?
ER - Tem importância em todos os campos. Se compararmos a obra de Derrida, Deleuze, Foucault, os três grandes, eu acho que Foucault tem a obra mais importante, do ponto de vista do impacto. Mas Derrida, que escreveu muito mais, até porque morreu mais tarde, é provavelmente o mais moderno, sempre querendo desconstruir o presente, o mais aberto a todas as singularidades, o mais curioso, o mais fiel e infiel - ao mesmo tempo - ao passado. Foucault tem um pensamento mais sistemático. Os dois se completam, em minha opinião. Gostei muito de Derrida, muito acessível no plano pessoal, muito simpático, aberto. Fui aluna de Deleuze nos anos 1970. Foucault, a cujos cursos assisti, foi quem mais me influenciou no campo da história. É normal. Ele é o mais historiador deles. Derrida tinha uma dignidade incrível. Por exemplo, ele buscava nas coisas novas seus objetos filosóficos. Interessava-se – ainda mais que Foucault – pelos costumes sociais, pelas transformações da família, pelos animais, pelos avanços do direito e da democracia. Foi provavelmente o mais polivalente. Já Deleuze era socrático, o melhor professor que eu tive. Ele tinha um contato muito pessoal e uma maneira própria de despertar o estudante, ao mesmo tempo, mantinha a severidade. Em 1969, os cursos de Deleuze em Vincennes tinham 300 alunos, uma multidão, e ele falava maravilhosamente.

GU – Você sempre participou de debates políticos, o que a aproxima da tradição dos grandes intelectuais engajados em seu país. Acredita hoje estar na contramão da tendência predominante entre os acadêmicos, que adquirem cada vez mais um perfil de especialistas?
ER - Ah, este é o lado formidável da França: existe no país um verdadeiro poder intelectual que não se vê em nenhum outro lugar. Nos EUA, Susan Sontag e Noam Chomski não tiveram o mesmo impacto. Os intelectuais na França podem derrubar um governo, modificar uma lei. E isso ainda hoje. Embora digam que não, eu digo que sim. É claro, batalhas podem ser perdidas, mas tudo na França é debatido: a homossexualidade, o casamento de homossexuais, as questões religiosas. Há quem queira ver o intelectual como um especialista. Foucault falava de fato no intelectual específico. Na Inglaterra, não há esse tipo de presença, mas o mundo acadêmico é muito forte, com debates muito ricos entre as partes. E na Alemanha, existe a figura do intelectual engajado, como a do filósofo Peter Sloterdijk, por exemplo.

GU - Poderia falar de projetos futuros?
ER - Acabo de sair de mais uma polêmica sobre Freud [com Michel Onfray, que publicou um livro contra Freud, Le crépuscule d’une idole]. É incrível que Freud seja tão atacado hoje quanto Darwin no mundo inteiro. A psicanálise e Freud são atacados o tempo todo, da mesma forma que os judeus. Sartre também é motivo de polêmica a cada cinco anos e é sempre atacado por ser judeu. No mundo islâmico, põe-se o tempo todo Darwin, Sartre, Freud, Marx como inimigos. Todos eles são pensadores das Luzes. Quando temos um tempo de obscurantismo, esses ataques voltam.

GU - Estamos num período de obscurantismo?
ER - Sim, mas com avanços que não vemos. Derrida tinha razão: ele dizia que o futuro se preparava atrás das aparências. Por exemplo, eu acredito que teremos a volta das rebeliões. Está claro em toda parte. Estamos saindo do tempo de conservadorismo, mas com o perigo dos fanatismos. Teremos a volta da miséria e das revoltas. As sociedades democráticas tentam cada vez mais normatizar para evitar a erupção de rebeliões.






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