quarta-feira, 30 de maio de 2012
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sexta-feira, 27 de maio de 2011A Fome, de Rodolfo Teófilo, reeditada
A Tordesilhas, de São Paulo, chega ao mercado apostando em um catálogo de boa literatura nacional e estrangeira. Entre os primeiros títulos lançados pelo novo selo, está a reedição de "A Fome", do escritor e cientista cearense Rodolfo Teófilo, publicado originalmente em 1890. Escrevi o posfácio para a edição caprichada, a cargo de Joaci Furtado, ex-editor da Globo Livros, que assumiu o leme da Tordesilhas.
Teófilo foi meu primeiro biografado. Em 1998, publiquei "O Poder e a Peste - A vida de Rodolfo Teófilo" (Edições Demócrito Rocha, de Fortaleza). Foi o livro que me abriu caminho para as biografias de Castello, Alencar, Maysa, Padre Cícero e, agora, Getúlio Vargas.
Abaixo, trechos da excelente resenha de "A Fome" escrita pelo jornalista, crítico literário e escritor José Castello, publicada pelo "O Globo":
Antonin Artaud dizia que o problema da literatura não é impedir um homem de passar fome, porque a literatura não pode fazer isso, mas nele despertar ideias cujo poder de convencimento se assemelhe ao da fome. Acreditava Artaud que temos, sim, fome de literatura, e o mais estranho: essa fome não se mata com a literatura. Ler ficções só a torna mais aflitiva e intensa.
Talvez a literatura possa ser pensada como uma máquina de produzir mais fome. Novas fomes.Tiro essas ideias da epígrafe de “A arte da fome”, ensaio que Paul Auster publicou em 1970. O tema de Auster é “Fome”, o inquietante romance que o norueguês Knut Hamsun publicou no inverno de 1890.
Inexplicável sincronia: no mesmo ano de 1890, sob o sol de Fortaleza, o farmacêutico Rodolfo Teófilo lança “A fome”, um dos mais desprezados, mas também mais fortes romances da literatura brasileira. Tem 37 anos de idade. Ao publicar seu livro, Knut Hamsun tem 31. São dois jovens homens atordoados pela realidade e suas exigências. E o que é a realidade, senão a fome de mais realidade?Uma mesma palavra, fome, e duas direções.
O protagonista sem nome de Hamsun vagueia por Kristiana, hoje Oslo, tentando ligar duas coisas, fome e escrita, que não se ligam. Resume Auster: “Se não escrever, não vai poder comer. E se não comer, não vai poder escrever”. Não tem sequer um lápis. Quando consegue um emprego, na carta de apresentação, em vez de datar “1890”, erra e escreve: “1848”. Perde o trabalho, a fome se expande e o devora. Sim: a fome come o homem. Diz:“Começaram a introduzir-se em meu interior manchas apodrecidas, manchas negras que se estendiam cada vez mais”.
Terríveis feridas também se espalham pelo mundo de Manuel de Freitas, o protagonista de “A fome”, o primeiro romance de Rodolfo Teófilo (editora Tordesilhas, organização e notas de Waldemar Rodrigues Pereira Filho e posfácio de Lira Neto). O relato inspira-se na grande seca que devastou o Ceará entre 1877 e 1878, quando mais de 300 mil pessoas, ou morreram de fome, ou fugiram. Farmacêutico engajado, Teófilo envolveu-se, ainda, com a luta abolicionista e, durante a epidemia de varíola dos anos 1900, inventou uma vacina que mereceu registro no Instituto de Manguinhos.
É com o mesmo espírito de combate e raiva que ele escreve “A fome”. Pensava Teófilo que a literatura, se não pode saciar os famintos, pode salvá-los. Adepto da estética naturalista, que ele adaptou aos princípios do regionalismo, concebeu a ficção como uma síntese dos piores aspectos do mundo real; reunião, no entanto, benigna, que em vez de matar, concentra o desespero e o converte em vida. Com o mesmo desejo de salvação, Rodolfo Teófilo foi o inventor da cajuína, bebida derivada do suco do caju e ainda hoj e muito popular no Nordeste, com que pretendia combater o alcoolismo. Ele a via como um substituto benévolo da cachaça — assim como a literatura, incorporando a brutalidade do mundo, a substituía e domava.
Não é fácil ler “A fome”, romance que Teófilo escreveu com o rigor, mas também a crueza de um cientista. Avanço, com grande desconforto, entre cenas dolorosas, em que a fome surge não só como falta, mas como excesso. Não só como ausência que perfura, mas como monstro que devora. A fome, dizia Glauber Rocha, é “nossa originalidade”. Defendia Glauber que dela arrancássemos não só a dor, mas uma estética. A experiência radical da carência, se aniquila e mata, abre espaço para uma ficção densa (sangue derramado), que não é elevação, ou exibição intelectual, mas a cola áspera com que nos grudamos ao real. Com que nós o suportamos.
A fome extrema, em vez de ser um vazio, é um depósito do Mal. Com a seca de 1877, de fazendeiro pródigo Manuel de Freitas, o protagonista, se torna retirante. À deriva pelo sertão, ele atravessa um “deserto cheio” que só a fome consegue produzir. As cenas são arrepiantes: ultrapassam nossa capacidade de digestão. Um bebê mama no seio da mãe morta. Logo depois, um cão delicia-se com as vísceras de seu falecido dono — e Manuel, horrorizado, duplica o horror: ele o mata a machadadas. Morcegos sugam o sangue de uma mulher morta: um a um, Manuel os estrangula. Um esfomeado, ferido no braço, bebe em desespero do próprio sangue. Não saciado, arranca com os dentes nacos do próprio braço, que mastiga com prazer. Deitada sobre uma pedra, na postura de crucificada, uma mulher, ainda viva, tem os intestinos devorado por urubus.
Fome: não a falta, mas transbordamento. No lugar do alimento ausente, um excesso que sufoca.Volto ao relato de Hamsun: “O solo tinha um aspecto de deserto. Árvores desfolhadas enchiam áreas de léguas com uma monotonia de cemitério”. A fome preenche esse deserto com o horror. Dele o escritor se alimenta. Confrontado com a penúria extrema, seu herói resolve “dizer a verdade tal como é”. Com uma frieza de cirurgião, também Knut Hamsun nos joga não na cara do real — porque este nunca se vê —, mas contra os seus espinhos. Na fome, é o sangue que se derrama.
Também a comida intoxica e embriaga. Ouçam o norueguês: “Disse a mim mesmo que se agora voltasse a comer, minha cabeça se transtornaria de novo, a febre se apoderaria de meu cérebro e teria muitas ideias enlouquecidas contra que lutar”. Claro que a fome é inaceitável e vergonhosa. Contudo, não basta comer para matá-la. O personagem de Hamsun quer dinheiro para se alimentar, mas também para conseguir escrever. “Ele perde tudo — até a si mesmo”, observa Auster. Não é por acaso que não tem um nome: “Ele não diz quem é porque não sabe. Seu nome é uma mentira e com esta mentira desaparece a realidade de seu mundo”. O que busca? Algo muito anterior: a fome de ter fome.
Volto ao romance de Rodolfo Teófilo. Trata não só do horror da fome, mas da fome transformada em horror. Não é preciso invocar espectros, psicopatas, ou feiticeiros: o horror está em nós. Com a comida do dia a dia, nós só o controlamos. Lendo “A fome”, ocorre-me que precisamos pensar duas vezes quando, na primeira esquina, com a alma arrepiada pelo desespero, um miserável nos pede comida. Pode ser nosso espelho.
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O autor
Lira Neto
Sou jornalista. Nasci em Fortaleza, em 1963. Moro em São Paulo. Escrevi, entre outros livros, as biografias Padre Cícero (Companhia das Letras, 2009), Maysa (Globo, 2007), O Inimigo do Rei (Globo, 2006) e Castello (Contexto, 2004).
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