quarta-feira, 30 de maio de 2012

SECA: CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO NO CEARÁ

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Ali, os sertanejos encontraram fome, sede, doenças e morte Por: Cida de Oliveira Publicado em 16/03/2011 Barragem em Serra do Patu (Foto:Alex Pimentel:Revista do Brasil) A fé e a emoção unem os mais de 6.000 romeiros, quase todos vestidos de branco. Partem da igreja matriz do município de Senador Pompeu e percorrem mais de três quilômetros de estrada de terra até a capela do Cemitério da Barragem. Acendem velas e rezam pela alma dos enterrados ali. Acreditam que sejam intercessores de graças alcançadas. A procissão ocorre há 28 anos e mantém viva a memória de uma das páginas mais cruéis da história brasileira: a morte­ de milhares de flagelados da seca de 1932 em campos de concentração­ construídos­ no estado pelo governo cearense­. O governador Roberto Carneiro de Mendonça, interventor nomeado por Getúlio Vargas, atendia aos interesses da elite política e coronelista da ocasião. E Vargas precisava de apoio ao processo que levaria ao Estado Novo, posto em andamento a partir do golpe­ de 1930. A 270 quilômetros de Fortaleza, Senador Pompeu abrigou um desses campos. Entre 1932 e 1933, mais de 16 mil pessoas foram confinadas nos casarões do canteiro de obras da barragem do açude Patu – cuja construção começou em 1919, paralisada em 1923, foi retomada em 1984 e, finalmente concluída em 1997. O tombamento dos casarões em ruínas, bem como da própria procissão, é uma luta antiga. “Preservá-los é perpetuar a lembrança dos mais de mil enterrados aqui e de todas as vítimas de outros campos, da seca, da fome, de doenças e do descaso do governo”, diz o advogado e escritor Valdecy Alves, um dos articuladores do Fórum Popular do Patrimônio Cultural e Ambiental de Senador Pompeu. A professora Kênia Sousa Rios, do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), conta que a ideia desses campos surgiu bem antes de 1932. Um deles foi construído em Fortaleza em 1915, ano marcado por longa estiagem. Mencionado no romance O Quinze, de Rachel de Queiroz, o espaço já tinha o objetivo de poupar as elites da capital cearense do incômodo convívio com retirantes sem trabalho, famintos e doentes, que para lá iam em busca de meios de sobrevivência sempre que a estiagem se prolongava. Segundo a professora, o sanitarista Rodolfo Teófilo (1853-1932), grande cronista da seca, relatou que em 1877 cerca de 110 mil sertanejos deixaram a própria casa com a esperança de vida em Fortaleza. Pelo menos 400, porém, eram encontrados mortos todo dia nas ruas da cidade. Para proteger a elite da capital dos “dissabores” dessa experiência migratória, o governo cearense desenvolveu o primeiro projeto de campos de concentração em 1915. O governador era Benjamin Liberato Barroso e seu vice, o padre Cícero Romão Batista, mas as oligarquias políticas cearenses eram lideradas pelo senador José Gomes Pinheiro Machado. Não faltavam inspiração e apoio para o método higienista das elites, uma vez que era forte a presença de ligas religiosas e até mesmo operárias de inspiração conservadora. Isca Com a seca de 1932, aprimorou-se o projeto de 1915. Foram construídos sete campos. Em Fortaleza havia dois, para confinar retirantes que lá já estavam. Ambos chegaram a ter 1.800 presos. Os de Crato e de Senador Pompeu receberam mais de 16 mil cada um; Quixeramobim, 4.500; Cariús, 28 mil; e Ipu, cerca de 6.500. “Os sertanejos eram atraídos por promessas de trabalho, alojamento, alimentação e serviço de saúde”, afirma Kênia Rios. Mas a multidão era concentrada em espaços precários. Tinha a cabeça raspada, usava roupas feitas com sacos de farinha e trabalhava praticamente em troca de comida. Os homens lidavam principalmente com marcenaria e construção de tijolos, as mulheres na fabricação de sabão e as crianças, que não tinham escola, podiam trabalhar e aprender artes e ofícios. Faltavam comida, água e remédios. Soldados armados detinham aqueles que tentavam fugir. Os campos mantinham locais para punir e encarcerar os rebeldes. “Atestados de óbito mostram que no campo de Ipu a fome e doenças como cólera chegavam a matar oito pessoas por dia”, destaca a historiadora. Registros oficiais contabilizam mais de 60 mil cearenses mortos nesses campos. Estudiosos creem que morriam mais pessoas em função deles que da seca. “O flagelo era maior lá dentro, com tamanha concentração de gente doente. Por maior que fosse a seca, em liberdade o sertanejo poderia caçar ou se alimentar de frutos silvestres em muitas regiões, como no Cariri (região do Ceará)”, ressalta­ Valdecy Alves. O advogado Otoniel Ajala Dourado, da ONG SOS Direitos Humanos, afirma que os flagelados eram aprisionados por ser pobres, forçados a trabalhar para prefeituras, sem remuneração, e torturados por se rebelar. Desde 2009 a entidade move uma ação civil pública contra a União e o estado do Ceará por danos morais às vítimas do crime, imprescritível, de lesa-humanidade e genocídio. A indenização pedida é de R$ 500 mil para sobreviventes e familiares dos mortos. No mesmo ano, o juiz substituto da 6ª Vara da Justiça Federal no Ceará extinguiu a ação sem julgar seu mérito. Nova ação foi protocolada e está para ser julgada. A denúncia foi apresentada também à Comissão Internacional dos Direitos Humanos, em Nova York. Em 1933, quando as chuvas voltaram a cair, os campos foram desativados e os sobreviventes deveriam ser encaminhados de volta aos locais de origem. Nem todos, porém, retornaram. Em Fortaleza, a maioria ficou e deu início a uma das maiores favelas, a Moura Brasil, em Pirambu. “A violência desses campos reflete os primeiros anos da República, a crueldade com os pobres e com os negros”, diz Kênia Rios, autora do livro Campos de Concentração no Ceará – Isolamento e Poder na Seca de 1932, que inspirou documentários e peças teatrais. Para a pesquisadora, o episódio não findou em 1933. Ainda há projetos políticos que levam às praticas de repressão, humilhação e segregação. “Exemplos são os conjuntos habitacionais construídos em cidades-dormitório para afastar os pobres do usufruto dos bens culturais e de lazer oferecidos pelas cidades. Desestimulados pelo cansaço da semana de trabalho, pela distância e pelo transporte ruim, os mais humildes acabam deixando para os ricos o que as cidades oferecem de melhor.” Massacre Quatro anos depois do fim de seu campo de concentração, Crato, no interior do estado, voltou a ser palco de violência contra os direitos humanos. Segundo historiadores, as casas localizadas no Sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto foram destruídas por forças do Exército e da polícia do estado. A comunidade não resistiu, como em Canudos. Os militares metralharam de aviões o pouco que sobrou e, em terra, com fuzis, revólveres, pistolas, facas e facões, liquidaram os sobreviventes. Cerca de mil moradores morreram e foram enterrados em vala comum. Alguns meses depois, foram encontrados 16 crânios de crianças numa área da Chapada do Araripe. A SOS Direitos Humanos move ação civil pública contra a União e o estado do Ceará. A ação cobra do poder público: a entrega dos documentos de identidade dos mortos, os documentos secretos da ação militar, a localização da vala comum, a lista de todos que participaram da ação criminosa, exames de DNA dos restos mortais para identificação e enterro digno e indenizações a sobreviventes e seus descendentes. A ONG defende ainda a inclusão do episódio em livros de História de todo o país. O sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, chefiado pelo beato negro José Lourenço, representou para as elites cearenses um “antro de fanatismo e comunismo primitivo”. Já para seus ex-moradores­, era um reduto de “bondade cristã”. O Caldeirão tinha no trabalho coletivo e na religiosidade pilares da organização social. O fruto do trabalho era dividido conforme a necessidade de cada família, constituindo-se assim numa economia alternativa. Mais que “fanáticos desprovidos de qualquer organização racional”, seus habitantes promoveram uma política de convívio com a natureza, desfrutavam de água e alimentos com fartura. A autonomia da comunidade era um modelo ameaçador para as relações de exploração vigentes. Lembranças do holocausto Mãos e rosto enrugados, olhar profundo, voz miúda, corpo castigado. Aos 84 anos, uma das últimas sobreviventes do campo de concentração de Senador Pompeu, Luiza Pereira, dona Lô, ainda recorda passagens angustiantes do cativeiro erguido no sertão do Ceará, comparado aos campos nazistas. Única herdeira viva dos oito filhos do casal de agricultores José Pereira e Josefa Bezerra, todos de Tauá, dona Lô continua solteira, morando em uma casa modesta próxima ao centro dessa cidade do sul do estado, outrora próspera devido à infraestrutura ferroviária, no corredor de escoamento do “ouro branco”, como eram conhecidas as plumas de algodão colhidas na região. A passageira do “curral do Governo”, como também eram conhecidas as áreas de agrupamento de retirantes espalhadas pelo Ceará naquele ano de 1932, ainda fala com lucidez e firmeza sobre a época. Ao registrar o sofrimento dos pais e da irmã, nascida e morta no campo onde mais tarde se ergueu a barragem do açude Patu, revela o trauma que a fez abdicar de se casar e ter filhos. “Tenho muita coisa pra dizer não. Minha mãe não deixava nós desgrudar dos pé dela. Era muita gente. Ela tinha medo de alguém carregar eu e meu irmão. Do resto todo mundo já sabe. Perdi a conta de quantas vez já repeti tudo isso. O sofrimento foi medonho... Quando chegamos neste lugar, após caminhada de 16 léguas, deitamos ali mesmo, no chão. Exaustos, sem ter o que comer, minha mãe ferveu água para passar a fome. Era apenas o começo dessa miséria que nunca esqueci... Desesperado, meu pai resolveu carregar a gente de Tauá para cá (Senador Pompeu) à procura do que comer e beber. Mas se estava ruim ficou pior.” Carmélia Gomes Pinheiro, de 87 anos, foi criada em Senador Pompeu, na Vila da Comissão, onde ainda mora. Seu pai, Antônio Gomes da Silva, foi vigia noturno do campo. Ela tinha 8 anos quando começou a ver famílias chegando de todos os cantos do sertão. Pouco saía. Os pais ficavam preocupados. Das colinas do outro lado da vila sabia apenas de imaginar e de ouvir as descrições da irmã, 12 anos mais velha, que às vezes doava alimentos aos flagelados. “A maioria era desviada. Medicamentos, chegavam poucos para atender a tantos doentes. Roupas não eram enviadas. Quando as vestimentas já estavam aos trapos, os corpos eram cobertos com sacos de mantimentos. Muitos sacos eram costurados e transformados em camisões. E era assim que a maioria era sepultada. Com receio de arrancarem o fígado dos mortos quando eram jogados nas valetas do cemitério, muitas famílias enterravam seus mortos no mato, escondido”, conta. Carmélia lembra um momento marcante naquele ano da concentração, quando caminhando pelo campo viu corpos ainda não enterrados. Ficou paralisada. “Vi uma lagartixa saindo de dentro da boca de um dos mortos.” Leia mais: Rebeldia e tradição conviveram em sítio no Crato, sul do Ceará Tags: seca, Crato, doenças, sertanejos, fome, Ceará, barragem, romeiros, morte Indique | Compartilhe | Imprima | Relate Erros Compartilhe: Del.icio.us Facebook Google Bookmarks Yahoo Bookmarks Technorati Twitter MySpace BlogMemes Digg Rec6 Reddit StumbleUpon YahooBuzz Ações do documentoTopo Home Disqus LoginSobre o DisqusCurtir Não curti Que bom que gostou. Gostaria de compartilhar? Facebook Twitter Compartilhar Não obrigado Sharing this page … Obrigado! Close Login Adicionar novo comentário Comentar como … Image Ordenar por: populares Ordenar por: melhor classificado Ordenar por: recentes primeiro Ordenar por: antigos primeiro Showing 1 comment Valmirius 1 comment collapsed Collapse Expandir Essa matéria retrata uma situação que é a mais nefasta e hedionda que já li até hoje. Simplesmente, uma das maiores imbecilidades que podem vagar e permear a mente do ser humano (se é possível chamá-lo assim) é da mais pura imundicie, pior crueldade, crueldade que farta no coração do homem sem luz, é pecaminosa, é maquiavélica, é da pior maledicencia, é de tantos outros adjetivos que torna-se impossível transcereve-los. Essa matéria tem sim que chegar ao conhecimento de todo os seres humanos (no planeta todo), das escolas, dos bares, das instituições públicas e, além de tudo, fazer parte da história deste nosso País, para podermos evitar que novos "deitadores" ou simplesmente idiotas governem o mundo e os povos, devemos evitar novos casos como estes que inventaram essa tragédia no Ceará. Que Deus tenha piedade dessas almas que tornaram possível tamanha atrocidade. É desalentador saber que isso ocorreu e que ainda esta ocorrendo, isso merece pena (pena de penada, vagar feito ser bestial que é, por uns trinta mil anos passando diariamente, hora após hora, minuto após minuto, segundo por segundo, tudo, tudo, tudo mesmo que essas pessoas passaram durante suas vidas; talvez os beócios tendam a parar para pensar , antes de fazer o que sempre fazem! (é difícil, mais não impossível e esse dia chegará). A Curtir Responder 1 ano ago 0 Curtir F M Notificar por e-mail S RSS URL de Trackback Powered by DISQUS comment system Comentários Outras matérias desta edição Viola que cabe neste latifúndio A rainha Maria Bonita Futebol na TV Tempo velho, novos tempos Lisboa ao pé da letra Uma baita servidora O parto de uma nova idade Um roteiro cultural Mais cruéis que a seca Uma bússola na cabeça Engatou a primeira Telejornal colaborativo De volta à África Governo do Bullying O que foi notícia em 30 dias Fé na moçada O fator Arapiraca Ativistas na vida e na rede João, made in Juazeiro Nem o céu é o limite Blogueiras agitadas, mulheres inquietas, uma juventude e um mundo em movimento Revista do Brasil Edição de maio O preconceito paulistano e suas novas vítimas Contestado A sangrenta guerra entre PR e SC sucumbe à miopia da história oficial ASSINE AGORA>> Últimas notícias 29/05/2012, 20:01 Espanha e Brasil vão negociar redução de exigências para entrada de brasileiros 29/05/2012, 19:49 Patrimônio do FAT sobe em 2011 e atinge R$ 185 bilhões 29/05/2012, 19:35 Militares querem retirar um pedaço do território da Cúpula dos Povos 29/05/2012, 19:25 Itamaraty analisa pedido de senador boliviano que quer se exilar no Brasil 29/05/2012, 18:52 Relatora da ONU sobre Nova Luz: prefeitura quer destruir bairro para destruir as pessoas Mais… No Celular Acompanhe as noticias da Rede Brasil Atual direto do seu celular. 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