domingo, 27 de maio de 2012
FAUNA DO NORDESTE
4
CONHECIMENTO POPULAR
(Da Fauna do Nordeste do Brasil)
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE 193
CAPÍTULO I
OS ANIMAIS IMPERFEITOS:
ESQUISITOS, PERTURBADORES E
AMEDRONTANTES
SE VERDADEIRA a preferência de o homem identificar-se
com os animais, que elege em seus nem bem esclarecidos
princípios de convivência com seres estranhos, dentre os quais
sobrelevam muitas vezes exemplos de ferocíssimas espécies,
não menos precedente a afirmativa de o constrangerem, atemorizando-
o, algumas criaturinhas animais visivelmente vulner
áveis ao seu trato. Mas todavia não fáceis de serem
dominadas, vencidas.
Dá-se de prova o caso de ser mais plausível alguém
livrar-se da ameaça de onça canguçu, do que da arremetida
implacável das chamadas formigas soldado que, em hordas
incontíveis, caminham obstinadas, e por onde passam na mata,
vão mordendo, triturando, pulverizando o que lhes deparar
de obstáculo.
Tais monstrinhos, também chamados carregadeiras, não
se dobram ao menos às suas competidoras habituais: as formigas
de fogo e os marimbondos (Roosevelt, 1943, p. 330).
Curiosas as apreciações, a respeito, de observadores
mais antigos, a se tirar pelas do senhor mestre Frei João César,
ilustre membro da Academia Brasílica dos Esquecidos (1724).
EDUARDO CAMPOS 194
Em linguagem preciosa, denunciou a existência do
que, a certo momento de sua dissertação, dá por indivíduos
aéreos e insetos voláteis: Quase molestos perturbadores
dos viventes, pungentes e ruidosos despertadores do sono,
vociferantes, e roucos clarins do meio-dia, reluzentos
Piraustas da noite, volantes Clícies das Luzes, estragos sussurrantes
das flores, e vorazes destruidores das plantas
(Castello, 1971, p. 216).
No rol desses aéreos indesejáveis os que contrapõem,
no dizer do douto acadêmico brasílico, a melifluidade e do-
çura com aspereza, insulto, e crueldade: as vespas maiores,
e menores, Capueruçus, Uruperanas, Aiçavas, e Tupeiçavas,
mais conhecidas por Marimbondos-de-tatu, Marimbondos de
Caboclo, e Petiocabos, que não só com seus pungentes aguilh
ões infestam aos homens, mas também penetram a grossa,
a áspera pele dos brutos, comovendo-os até a última
desesperação; porque próprios, e naturalmente no Brasil;
mediis, feruoribus acrior instant (idem, p. 216).
Antológica a Dissertação Oitava do dito senhor mestre
Frei João César, na qual se descrevem os Insetos Voláteis
do Brasil: nenhum dos chamados imperfeitos escapa às
curiosas definições do erudito religioso: são mais grosseiros
e obscuros no nome afiança o acadêmico a seus pares os
esplêndidos Voláteis Insetos, cintilantes Piraustas da noite,
ígneospíropes dos campos, luminosos pequenos Astros, ou
exalações viventes, relâmpagos volantes, alígeros luzentos bichinhos,
aos quais Plínio com os Gregos chama Lampírides,
os Latinos Cincidela, os cultos Pirilampos... (o.c., p. 220).
Indivíduos desse porte formam mundo à parte. Vão desde
os ortópteros, de mandíbulas vigorosas adestradas para cortar
paus, até os isópteros, terríveis na proliferação e fome, comendo
madeira, papelão, couro, enquanto percorrem o chão ou
furam parede, deixando para trás um rastro excrementício de
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destruição. E nessa projeção de seres indesejáveis, não raro
senhores de apetite voraz, os anopluros, família que abrange
os nauseantes piolhos que sugam o homem.
Crê o povo inexistir sangue nesses pequenos seres. Neles
a Ciência explica, mas sem convencer os menos aprendidos,
que, circula sangue incolor ou levemente colorido de verde
, frio, pois não portam coração nem vasos de circulação,
entendíveis como veias (Moreira, 1921, p. 184).
Miran de Barros Latif testemunha: nas regiões tropicais,
em pleno verão, até os animais se aproximam das fogueiras
para se livrarem da perseguição dos insetos, e dá exemplo
de fracasso do homem no trópico ante a coexistência de
minúsculos animais de sangue frio, como foi ver, a mostrar
ao leitor, em documento do século XVIII. Nesse dito expediente,
de natureza oficial, desesperado soldado escreve aos
seus superiores a avisar que o posto avançado dos paulistas
à margem do Paraná será abandonado não devido às onças
ou pressão dos paraguaios, mas da bicharia que atacando os
cavalos, os fazia correr a buscar abrigo junto ao fogo, no
interior dos ranchos (Latif, 1959, pp 66, 67).
Na Relação do Maranhão, informação valiosa escrita
pelo inaciano Luiz Figueira em 1608, está contado o que foi a
grande incursão que empreenderam ao Ceará o dito mission
ário e seu companheiro de ordens religiosas, Pe. Francisco
Pinto, trucidado pelos índios da região. Enfatizada na obra,
em algumas passagens, a presença de animais atormentadores
do homem, quer por sua ação venenosa, quer pelas
importunações à feição de vexame.
Desse estado, mencionado: Nesta triste serra dos corvos
parece q se ajuntarão todas as pragas do Brasil, inumeráveis
cobras e aranhas a q chamão caranguejeiras, peçonhentíssimas
de cuja mordedura se diz q morrem os homens, carrapatos sem
conta, mosquitos e moscas q magoão estranham-te, e ferem
EDUARDO CAMPOS 196
como lancetas fazendo logo saltar o sangue fora... (Três Documentos
do Ceará Colonial, 1967, p. 81).
Em nota de esclarecimento ao assunto, na mesma publica
ção, Th. Pompeu Sobrinho vê o enxame das meruanhas
(Itamaxia caleitrans, Geof.), díptero hematófago da família
dos Eumüdeos), como extremamente incômodo (o.c., p. 126).
Os que perlustraram por esses dias os sertões, os longes,
a interioridade mais funda do país, não aceitam sem
visível azedume a agressão insólita de indesejáveis insetos,
sobre os quais Claude dAbbevile, a propósito, ajustaria esta
definidora apreciação da condição atenazante daqueles: Muitas
pessoas ouviram falar na existência, no Maranhão, de animais
que, embora pequenos, incomodam o homem. E muito
se admiram do fato. Mas é pura verdade. Devem eles saber
que em qualquer país onde existam animais perfeitos tamb
ém os há imperfeitos, a que alguns denominam insecta e
outros anulosa ou annulata e outros ainda, com Aristóteles e
Plínio, Eyvooyu. São pequenos animais sem sangue ou sem
membros distintos, apenas alguns têm cabeça e ventre ou
simplesmente um centro que serve de peito e dorso; têm uns
a pele golpeada; outros a têm enrugada ou ainda anelada ou
feita de rodelas (Abbeville, 1975, p. 204).
Vivem em todas as partes. Na França, acrescenta Claude
dAbbeville, alguns são dotados de asas e voam, como borboletas.
São moscas, abelhas, vespas, mosquitos, besouros e carac
óis. Outros, possuidores de pés, correm ou rastejam, como o
gafanhoto ou saltarelo, a pulga, o escorpião e a víbora. Outros
ainda participam dos dois tipos, como as formigas; outros ainda
não têm asas, nem pés como os vermes, as lêndeas em
crescimento. Vivem uns nas matas e outros no corpo do homem
como o oução e outros vermes (idem, ibidem).
O Maranhão, prossegue o capuchinho francês, não se
isenta desses seres imperfeitos. Ali abundam as abelhas, a
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motuca, o maruim, o içá, o cupim, e dentre muitos mais,
como esclarece Mário Guimarães Ferri em nota de pé de pá-
gina à obra já mencionada, qual a espécie de díptico
hematófago, um tipo de moucheron assim grafado por
Claude dAbbeville pequenas moscas, inominadas ou grandes,
possivelmente as varejeiras (o.c., p. 205).
Mas quem descreve a presença insuportável de tais
seres imperfeitos, por experiência própria, é Theotônio José
Juzarte, através das páginas do Diário da Navegação do Rio
Tietê, Rio Grande Paraná e Rio Gustemi, relato escrito a partir
de 10 de março de 1769 (Taunay, 1981, p. 236).
Lembrados com ênfase os insetos importunadores dos
monçoeiros: mosquitos chamados pólvora, borrachudo;
pernilongos, e em tal quantidade, que se formam nuvens;
além destes há os vermes que, picando na cútis, introduzem
dentro um bicho negro gadelhudo à semelhança de uma lagarta
de couve. E mais carrapatos, moscas de ferrão etc.
No dia 4 de maio de 1769, quando a expedição do
sargento-mor passava sua gente por terra, abandonadas momentaneamente
as embarcações nas quais subiam o rio, veiolhes
do mato uma nuvem de marimbondos, mordendo a
todos, de lastimar; os homens fugiam, gritavam as mulheres e
as crianças choravam (o.c., p. 256).
A expedição de Theotônio José Juzarte teve de enfrentar
depois as pragas de imundícies que por lá, à época, engendravam
muitas doenças e amiudavam as mortes. Assim, surgiram
os ratos; não faltaram as pulgas seguidas de uns bichos grandes
felpudos, nojentos, e muito moles, que por toda a parte se trepavam
e perseguiam a gente; por diante, baratas que, voando,
davam na cara das pessoas, e grilos, tão a fim de perturbarem,
que ninguém podia dormir; e, finalmente os gafanhotos grandes,
que se levantavam em nuvens que escureciam o sol, tudo
a modo de coisas sobrenaturais (o.c., p. 280).
EDUARDO CAMPOS 198
Oscar Canstatt mais próximo de nós, em 1871, anotou
serem os mosquitos uma praga no país. Deles, escreveu,
três espécies se distinguem como tormento dos homens e
igualmente do gado: o maruim, o pium e a carapanã. Ajuntou:
O ataque desses pequenos demônios pode também levar
o mais calmo dos homens à impaciência e ao desespero
(Canstatt, 1975, p. 67).
Spix e Martius em sua peregrinação pelo Brasil, no
primeiro quartel do século passado, demoraram observação sobre
o mucuim: inseto microscópico, sem asas, do gênero
Trombidum; vive nos capins verdes e agarra-se com avidez à
pele, onde aparece como quase invisível pontozinho escarlate.
Aí, ele penetra logo, por meio de sua tromba: morto, permanece
com peçonhenta irritação e provoca desagradabilíssima coceira
que dura dois e três dias (Spix-Martius, 1981, v. 3, p. 55).
Às vezes dão-se migrações desses chamados animais
imperfeitos. Francisco de Barros Júnior, conhecido caçador e
pescador, autor de vários livros sobre os prazeres cinegéticos,
conta as migrações de insetos alados que assistiu nas jornadas
esportivas pelo interior do país. Deixou-nos um quadro
rememorativo de ocorrência testemunhada: Em determinado
dia, e quase à mesma hora, como obedecendo a um secreto
comando, saem dos cupins legiões de mimosos ternicídeos
alados, para gáudio de pássaros e peixes. Dos formigueiros
enxameiam os içás, suculenta alimentação do mundo alado,
fácil alimento dos desdentados tamanduás e tatus... (Barros
Júnior, 1981, p. 164).
Outra descrição surpreendente: Subindo o rio Madeira
em 1937, encontramos descendo pela margem direita, voando
em coluna cilíndrica, uma nuvem de mariposas brancas,
pequenas de um centímetro. Para fazer-se idéia de seu número,
basta dizer que viajando em sentido contrário, levamos
mais de uma hora para passar pela gigantesca coluna, com
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um diâmetro de pelo menos cinqüenta metros e longa de
uma legua e meia (idem, p. 165).
Caçando pelo Tocantins, esse conhecido cinegista fez
um desabafo contra os incômodos provocados pelos piuns.
O chamado mosquito pólvora atravessava-lhe o mosquiteiro
vexando-o e o atacando de modo persistente. Quase todas
as feridas notadas nas pernas de homens, e mulheres e animais
esclareceu aí ; nessa região equatorial, são causadas pela
picada do terrível Simulium amazonicum (idem, p. 57).
Mas nem todos os representantes dessa fauna tão
importunadora e até exasperante como se verá por diante é
de tamanho insignificante. Há por exemplo a jaquiranabóia,
também conhecida por cobra-do-ar, cobra-de-asa, cigarracobra
, gafanhoto-cobra, como registrou Karol Lenko. Inseto
da ordem Homóptera, família Fulgoridae, é o gigante entre
eles, pois o comprimento de algumas espécies, com asas dobradas,
chega a 10 cm, a envergadura chega a 16 cm. Além
disto, as asas posteriores possuem grandes membranas ocelares,
amarelas, circundadas de preto, do tipo olho de coruja.
(Almanaque Agrícola Chácaras e Quintais, julho 1963, p. 120).
Tem-na o sertanejo como inseto-monstro, perigosíssimo,
podendo cegar as pessoas nas quais se chocar. Seu ferrão
registrou Osvaldo Orico infunde pavor e obriga a todos a
se defenderem de suas picadas (Orico, 1937, pp 129, 131).
Trata-se de um hemíptero luminescente, conforme descobriu
Marie Sibille Mérian, em 1819, propriedade confirmada pelo
entomólogo de Paramaribo, H. Heyde, em 1952, em seu livro
Bioluminescence. (Almanaque Agrícola Chácaras e Quintais,
1963, p. 122).
Outros representantes dos animais imperfeitos sempre
atenazaram o homem. Nesse caso, as pulgas, os percevejos,
não incomuns e localizados no interior de abrigos de pouco
uso, e no interior das próprias residências.
EDUARDO CAMPOS 200
Mas o Tunga, o chamado bicho-de-pé, no dizer de
Oscar Canstatt (Canstatt, 1975, p. 68) é peculiaridade do país
(Brasil) e altamente perigosa. A fêmea do Pulex penetrans se
enterra nos dedos dos pés, particularmente debaixo da unha,
e aí põe grande número de ovos que podem produzir postemas
perigosas, a gangrena e muitas vezes a morte de homem e de
animais.
É inseto sobremodo incômodo, que a linguagem popular
consagrou como bicho-de-pé, criaturinha animal de
hábitos nocivos ao homem, diligente aproveitador da exposi-
ção de pés e mãos no chão, e muito sensível ao estímulo de
certas circunstâncias falta de aeração, luz solar, desasseio.
Antigamente surgia com bastante freqüência em casebres abandonados,
ou em lugares de pernoite ocasionais. Mas não importunava
a quem se resguardasse usando, por exemplo, como
repelente, as ramas de Melão São Caetano (Mmordia
Charantia, Linn) espalhadas pelo chão.
Quero crer que o hábito generalizado no país, pelo
século passado, de as pessoas lavarem os próprios pés antes
de dormir (ou da refeição da noite), estava vinculada tamb
ém à precaução contra o assédio das impulsivas pulgas do
bicho-de-pé. Todo mundo, antes de se deitar, lava os pés em
água quente, conta Auguste de Saint-Hilaire (Saint-Hilaire,
1938, p. 189) acrescentando no mesmo lugar: Nas casas ricas
um negro, com sua toalha ao ombro, leva a água ao estrangeiro
em uma grande bacia de cobre; os pobres, porém, se
contentam com uma gamela de madeira.
Há inesperado episódio narrado pelo Barão João Tiago
Von Tschudi, suíço, em sua estada no interior de São Paulo,
em 1860, a respeito: Durante o jantar, senti, de repente, que
alguém me tirava os sapatos com grande agilidade. Surpreendido,
debrucei-me para olhar para baixo da mesa e vi que
um negro, munido de grande bacia, prontificava-se a lavarO
PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE 201
me os pés, o que o fez e tornou a calçar-me, procedendo
assim com as demais pessoas (Tschudi, 1980, p. 180).
A prática de lavar os pés, com ou sem cerimonial, perde-
se no tempo, elucido. Penélope nem percebeu que se
dirigia a Odisseu, seu amado esposo, nestes termos:
Sim, tenho em casa uma velha dotada de esp
írito justo, que serviu de ama a Odisseu, o
infeliz, e o criou delicada, desde o momento
do parto, a lhe pôr a mãe dele nos braços.
Ela, conquanto mais fraca, há de os pés, cuidadosa,
lavar-te..
Quem andava descalço pelos sertões, passeando por
armazéns e choças, parando às vezes debaixo de árvores
ensombradas, corria o risco de contrair com indesejável freq
üência os importunantes bichos-de-pé. Por essa razão -e
pela que se explicará logo os escravos viviam muito vulner
áveis ao desadorado inseto. Pelo menos se depreende,
pois em meados do século passado as posturas da Câmara
Municipal do Icó, em seu artigo 72, explicitava que escravos,
à exceção dos pajens e criados, não poderão andar
calçados de sapatos, botinas, Sc., Sc. Os senhores que o
consentirem ficam sujeitos a multa. Daí a facilidade de os
cativos, àquele tempo, adquirirem o bicho-de-pé, ocorrência
que, como tudo parece indicar, além de incomodar, os
defeituava. Nesse caso está, a exemplo, de escravinho
Marcelino, mulato cozinheiro de 16 anos, que fugiu ao seu
senhor em junho de 1870, os pés indicando ter muito bicho...
(Jornal da Fortaleza, 9.06.1870).
Caminhar sem sapatos foi sempre de muito risco para
os que viveram entre nós nos séculos passados. Ao tempo
dos holandeses, em Recife, muitos soldados que andavam
descalços (às vezes por não haver sapatos nos armazéns da
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Companhia), pelos idos de 1683, ficavam inválidos e incapazes
de marchar por terem os pés cheios de bichos; relata
José Antônio Gonçalves de Mello. (Mello, 1979, 2a., p. 127).
Os que adentravam o interior, no século XIX, principalmente
estrangeiros, ao escreverem a memória de suas experi-
ências em nossa terra, via de regra registravam a presença do
bicho-de-pé sob acentuado azedume, tais e quais padecimentos
advindos de seu contacto.
Eram em tamanha quantidade esses insetos encontrados
no interior das casas, de permeio com as pulgas, que
revoltaram a José Mariano, companheiro de Auguste de Saint-
Hilaire na viagem empreendida às nascentes do São Francisco,
começada em Minas Gerais.
No rancho dos Viajantes, em Registro, na mencionada
jornada, o cientista sem se conter acabou por escrever: fui
quase devorado pelos bichos-de-pé. Para cúmulo do azar,
não escaparia também das conseqüências. Assim, sofreu a
ação de um deles no index direito da mão, circunstância
que quase o deixou sem escrever naquela ocasião as impress
ões de viagem (o.c., p. 296).
Mas quem melhor observou e escreveu a respeito foi
sem dúvida Auguste de Saint-Hilaire, que demora a atenção
numa descrição dos incômodos e da forma como a tunga
penetrans torna-se hospedeira do homem: A pulga (bichode-
pé) penetrante perfura a pele e esconde-se completamente
sem deixar perceber, além do orifício que abriu, senão os
dois ou três últimos anéis do abdome; a nutrição que absorve
a vontade dilata-lhe o tubo intestinal de modo extraordinário;
mal penetrou na carne e já não pode sair pela abertura por
ela própria feita, adquirindo rapidamente o tamanho de um
grão de cânhamo, ou mesmo de ervilha. Nesse estado, o
inseto apresenta um aspecto completamente diferente, e seria
incapaz de mudar de lugar; mostra-se então um globo
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embranquecido, achatado, apresentando em cada uma das
faces uma proeminência pardacenta pequena; a face superior
é formada pelos últimos anéis do abdome, e a proeminência
da face inferior pela da cabeça e tórax, que não sofreram
distorção. Uma ligeira comichão..., e se instala insuportável
vexame, dizemos nós, em quem o hospeda (Saint-Hilaire,
1938, Tomo l, pp. 46-47).
Carls Seidler, alemão agenciador de colonos e soldados
como o identifica o cel. F. de Paula Cidade, a nos visitar
em 1835, deplorou:
A natureza, cuja história secreta nos continua
vedada, também aqui apresenta bastante outros
males. É singular que especialmente os
insetos tenham sido inoculados do pendor e do
poder para o despotismo, de maneira que o
homem, com toda a sua glória de liberdade, é
tiranizado pelos mais ínfimos bichos da terra,
que ele encara com desdém. Uma dessas pragas
da terra, em todo o Brasil, inclusive na
divina capital, é a pulga da areia (pulex
penetrans) que os naturais do país chamam de
bicho-de-pé (Seidler, 1976, p. 69).
O indesejado hóspede dos pés (não raro das mãos), é
mais conhecido do que podemos imaginar. Richard Burton,
ao mencionar o problema, registrou a presença do bicho-dep
é (em inglês: Jigger) imortalizado numa canção negra:
Rose, Rose, lubly Rose,
I wisch may be figgerer if dont lub Rose.
Narra igualmente que viajantes mais precavidos não
andavam descalços. E repete seu colega Southey, a informar:
EDUARDO CAMPOS 204
as pessoas lavavam cuidadosamente os pés todas as noites
como o melhor preservativo contra as chiguas (bicho-de-pé).
Burton acrescenta mais: Os tupis chamam-no tumyra.
Os espanhóis preferem nigua e chigua, donde os franceses
tiraram chique, e o termo chegou até nós (ingleses) sob várias
formas: chigre, cheger, chegre, chegoe, chiga, chigos, chiger, e,
finalmente, jigger.
Mas os imperfeitos dão, e como dão, sua contribuição
ao homem do campo. O embuá é aproveitado como isca na
pesca, quando falta minhoca; o grilo, outro incrível
importunador à hora do sono, é meizinha muito recomendada
para aliviar os incômodos de urina presa. Carrapato, esmigalhado
em pano até tintar de sangue, aplicado na direção de
dente cariado, faz desaparecer a nevralgia. A substância da
casa do besouro, conhecido por busca-vida, diluída nágua
e aplicada em área de pescoço comprometida pela parotidite
a cachumba sertaneja; alivia; chá de barata, torrada, é de
pronto valimento no tratamento de cólica intestinal de crian-
ças... (Campos, 1967).
Outro exemplar dessa família de indivíduos pouco aceitos
pelo povo, que, em certas circunstancias, os combate a
pretextos múltiplos (repulsa, receios, abusões etc.) é o morcego,
explicado na sabedoria popular como nascido de ratos
malfazejos, pela semelhança que esse quiróptero guarda dos
últimos. Seguem-se-lhe, na exclusão de sentimento de afeição,
os gafanhotos. Em Salgadinho (Pernambuco) apareceram alguns
maiores do que morcegos. .. Vozes santas, entre as quais
a do Pe. Cícero, disseram que os gafanhotos são os membros
do demônio (Bradesco-Goudemand, 1982, p. 14).
No mesmo lugar a autora lembra folheto de José Soares
e Francisco Sousa Campos, Abelhas, Morcegos e Grilos
Sugando a Humanidade, livreto baseado também em fatos
reais: uma invasão de grilos de dentes afiados, de morcegos
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE 205
e de abelhas africanas que não poupam nada, nem animais,
nem gente (idem, p. 142).
A fome, em determinadas circunstâncias, parece funcionar
como boa orientadora do homem. Desse modo, não difícil
ver o ser humano aproveitando inusitada alimentação zoomorfa,
que se imagina originar-se de situações de extrema falta de
provisão. Assim, termina acostumado, por exemplo, ao repasto
de escorpiões, de minhocas cruas, aranhas, e, dentre essas, a
caranguejeira, artrópode dado por petisco saboroso, assado e
polvilhado de sal (Mello Leitão, 1953, p. 169).
Isso, objetará o leitor, será ocorrência de lugares distantes
(ilhas remotas). Mas os imperfeitos também entre nós
acabam sendo deglutidos vorazmente. Dos insetos não há
nenhum, por mais repelente, que o homem não coma. Nem
o piolho, o nojento piolho escapa. Dos índios da Serra do
Norte diz Roquette Pinto: De um modo geral pode dizer se
que os Nahambiquaras comem tudo; um mosquito que apanham
sobre o corpo, um piolho (grifamos), um gafanhoto,
uma lagartixa... (o.c., p.170). Nada escapa ao homem, quando
a fome aperta. Nem os cupins, apreciadíssimos pelos
Araruaques. (idem, p. 176).
Entusiasmado pela disposição com que os mandacarus
consumiam lagartas, bichos-de-coco e algumas formigas e
certos insetos como cupins no século passado, o etnólogo F.
S. Hart comeu cabeças de saúva, manifestando-se a respeito:
Quando o inseto ficou esmagado entre meus dentes, a minha
boca ficou invadida por um sabor de especiaria, assemelhando-
se um pouco ao cravo (Santos, 1987, p. 87).
Resta de tudo a impressão de que o homem dos
sertões nem sempre sabe distinguir os animais de sangue
frio dos que os têm quente. Luís da Câmara Cascudo anotou
a respeito: O sertanejo ensina que as cobras se dividem
em duas seções: cobras de sangue frio, que são as
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venenosas, e as cobras de sangue quente, que não o são
(Cascudo, 1956, p. 71).
Mas os imperfeitos, malquistados, temidos, amedrontantes
ou simplesmente deglutidos pelo homem, acabam aproveitados
para substituir os ensalmos que adestram ou protegem
o vaqueiro no trato de gado rebelde.
Getúlio César ouviu de vaqueiro pernambucano Cícero
Romão curiosas indicações de como adentrar-se na caatinga,
ainda que de noite, e submeter o boi brabo:
Mata-se um urubu em uma sexta-feira e enterra-
se numa encruzilhada do camim, adepois de
sete dias se desenterra o urubu e se encontra na
cabeça dele três tapurus, sendo um branco, outro
escuro e um outro preto. Tira-se os tapuru,
enrola-se bem enrolado, adispois, bota-se em
saquim de couro e se guarda em um lugar que
ninguém veja. E quando se vai campeá, leva-se
o saquim no bolso do gibão. O tapuru preto é
pra se campeá de noite, o escuro é pros cafús e
o branco é pra se corrê de dia... (César, 1941,
p. 81).
Ainda no capítulo de interesse aos seres de sangue
frio, por oportuno lembrar em seus aspectos curiosos o que
foi a questão levantada pelos religiosos de Santo Antônio,
no Maranhão, intentando ação de força às formigas ou às
saúvas para as fazer despejar da sua cerca, como conta, a
repetir documentos dos dias de 1713, o erudito autor da Crô-
nica do Brasil Colonial, aí narrado que o Procurador da dita
ordem deu libelo contra as formigas indesejáveis, no que
foi contrariado pelo procurador daquele negro e miúdo povo,
a alegar que elas, uma vez recebido o benefício da vida por
seu Criador, tinham direito natural a conservá-lo por aqueles
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE 207
meios, que o mesmo Senhor lhes ensinara. Item, que na praxe
e execução destes meios serviam ao Criador, dando aos
homens os exemplos das virtudes que lhes mandara; a saber,
de prudência acautelando os futuros, e guardando para o
tempo da necessidade: Formica populus infirmus qui
praeparat in messe cibum sibi (Prov. 30,26), de diligência ajuntando
nesta vida merecimento para a eterna. E empós outras
tantas e pertinentes citações piedosas, em bom latim, acrescentado
que eles (os religiosos) eram irmãos mais nobres e
dignos, todavia diante de Deus também eram umas formigas...
Ao arrastar do questionamento, com réplicas e contrar
éplicas, restou finalmente a sentença para que fossem obrigados
os frades a assinalar dentro de sua cerca sítio
competente para vivenda das formigas, e que elas sob pena
de excomunhão mudassem logo habitação, visto que ambas
as partes podiam ficar acomodados sem muito prejuízo,
maiormente, porque estes religiosos tinham vindo ali por obedi
ência a semear o Grão Evangélico, e era digno o operário
do seu sustento, e o das formigas podia consignar-se em outra
parte, por meio de sua indústria, a menos custo (Lisboa,
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