domingo, 27 de maio de 2012
AS PIORES SECAS DO NORDESTE
4) 2004
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E
Resumo: O artigo analisa o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – Peti, baseando-se principalmente
na experiência do Estado da Bahia, considerada uma referência nacional. O texto também discute o significado
do novo paradigma brasileiro de políticas sociais pela análise das condições operacionais do Programa,
seus objetivos, limitações e benefícios.
Palavras-chave: crianças e adolescentes; trabalho infantil; programas sociais.
Abstract: This article analyses the Program of Eradication of Child Labor – Peti, mainly based on the experience
of the state of Bahia, considered a national reference. The text also points out the meaning of the new Brazilian
Social Politics paradigm through the analysis of the Program’s operational conditions, objectives, limitations
and benefits.
Key words: children and adolescents; child labor; social programs.
INAIÁ MARIA MOREIRA DE CARVALHO
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(4): 50-61, 2004
ste artigo analisa um dos principais programas
da rede de proteção social implantados no Brasil
na década de 90, o Programa de Erradicação
Erradicação do Trabalho Infantil – Ipec, da Organização
Internacional do Trabalho, e em 1994, foi criado e instalado
o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do
Trabalho Infantil, sob a coordenação do Ministério do Trabalho
com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a
Infância – Unicef e com a participação de organizações
não-governamentais, empresários, representantes de sindicatos,
da Igreja, do Poder Legislativo e do Judiciário.
No segundo semestre de 1996, o Fórum Nacional lançou
o Programa de Ações Integradas, que traçou o caminho
para a implementação do Programa de Erradicação e Prevenção
do Trabalho Infantil no país, orientado para o combate
às chamadas “piores formas” desse trabalho, ou seja,
aquelas consideradas perigosas, penosas, insalubres ou degradantes.
Com o apoio da OIT e do Unicef, o programa começou
a operar em Mato Grosso do Sul, onde denúncias
apontavam a existência de 2.500 crianças trabalhando na
produção de carvão vegetal e vivendo em condições inaceitáveis.
Pouco depois ele se estendeu aos Estados de
ALGUMAS LIÇÕES DO PROGRAMA DE
ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL
do Trabalho Infantil – Peti, que vem retirando meninos e
meninas entre 7 e 15 anos das consideradas “piores formas”
desse trabalho.
Tão perversas quanto persistentes, as desigualdades
sociais e a pobreza atingem particularmente a população
infanto-juvenil no país. Conforme o último Censo Demográfico,
45% dessa população pertencia a famílias com
uma renda per capita de até meio salário mínimo,
porcentual que se elevava especialmente nos Estados
menos desenvolvidos do Norte e Nordeste (UNICEF, s.d.).
Essa pobreza contribui para que muitas crianças e adolescentes
sejam expostos a diversas situações de risco, violência
e exploração, entre outras, devido à inserção precoce
no mundo do trabalho, muitas vezes em condições
extremamente penosas e degradantes.
Em decorrência dessa situação, em 1992 o Brasil passou
a fazer parte do Programa Internacional para a
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ALGUMAS LIÇÕES DO PROGRAMA DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL
Pernambuco e da Bahia, privilegiando, respectivamente,
a zona canavieira e a região do sisal.
Envolvendo uma parceria entre governo federal, Estados
e municípios, dando prioridade a áreas que utilizam o trabalho
infantil em larga escala e em condições especialmente
intoleráveis, ao longo dos anos o Peti se expandiu significativamente.
Em 2000, ele já atendia a cerca de 140 mil
crianças e adolescentes no país. Em 2001, houve um grande
aumento e, em 2002 esse número chegou a 810.769, beneficiando
2.590 municípios em todos os Estados da Federação.
Priorizando o atendimento às famílias com uma renda
per capita de até meio salário mínimo, ou seja, que vivem
em situação de extrema pobreza, o Peti oferece uma compensação
financeira para a retirada das crianças do trabalho,
uma bolsa no valor de R$ 25,00 por criança nas áreas
rurais e de R$ 40,00 nas áreas urbanas, ou, mais precisamente,
nos municípios com uma população igual ou superior
a 250 mil habitantes, condicionada a uma freqüência
regular à escola, assim como à “Jornada Ampliada”
no turno complementar.
Os municípios são responsáveis pela implementação da
Jornada, recebem do governo federal R$ 20,00 por criança
ou adolescente para a sua manutenção,1 devendo contratar
monitores qualificados, propiciar espaços e materiais
necessários para seu bom funcionamento. Além de
almoço e merenda reforçados, a Jornada deve propiciar
reforço escolar, atividades culturais, esportivas e de lazer
às crianças atendidas, contribuindo para a melhoria do seu
desempenho escolar, a ampliação dos seus horizontes e o
desenvolvimento das suas potencialidades.
A expansão do Peti em 2000 foi acompanhada por algumas
redefinições, como a perda do seu caráter preventivo
e o estabelecimento de “metas” para os diversos Estados,
que por sua vez as redistribuem entre os municípios;
o programa se estendeu a áreas urbanas e metropolitanas
e passou a contemplar um maior elenco de atividades que
envolvem o trabalho precoce, como os lixões, o comércio
ambulante e em feiras livres, o cultivo de algodão, fumo,
café e laranja, a ocupação em cerâmicas e olarias ou em
garimpos e pedreiras, entre outras; foi estabelecido um
tempo máximo de quatro anos para a permanência dos
beneficiários e, para justificá-lo, a Secretaria de Estado
de Assistência Social – Seas, do Ministério da Previdência
e Assistência Social, a quem o Peti se encontrava vinculado,
ampliou seus objetivos e responsabilidades.
Essa ampliação considerou sobretudo a centralidade da
família, que, de acordo com as novas orientações,
[...] deve ser trabalhada por meio de ações socioeducativas
e de geração de trabalho e renda que contribuam para o
processo de emancipação, para sua promoção e inclusão
social, tornando-as protagonistas do seu próprio desenvolvimento
social (PETI, 2002).
Para tanto, as famílias assistidas pelo Peti passaram a
ter um acesso prioritário ao Programa Nacional de Geração
de Emprego e Renda em Áreas de Pobreza – Pronager,
desenvolvido pelo Ministério do Interior na ocasião. De
acordo com o Manual de Orientações do Peti, publicado
em 2002,
O Pronager é um programa que visa gerar ocupação e renda
para os chamados ‘excluídos’ sociais, potencializando
todos os recursos e vocações econômicas da comunidade.
O Pronager parte da capacitação de pessoas desempregadas
ou subempregadas, para sua organização em empresas,
associações e cooperativas de bens e/ou serviços com
competitividade no mercado (PETI, 2002, p. 14).
Com uma metodologia que viabilizaria uma capacitação
rápida e massiva, acessível a pessoas com baixa escolaridade
e qualificação, o Pronager propiciaria a inserção
de uma imensa parcela de excluídos dos mecanismos
comuns de formação profissional, crédito, produção e
consumo, contribuindo para a superação da pobreza e para
a redução das desigualdades sociais.
Sem maiores considerações sobre a validade dessas
expectativas, elas ficaram longe de se concretizar. A mobilização
e a capacitação das famílias iniciadas pelo
Pronager em algumas áreas não foram seguidas pelo apoio
indispensável aos pequenos empreendimentos que ele procurou
estimular (ou seja, por assistência técnica, microcrédito
e outras condições). Reconhecendo a insuficiência da
sua estratégia, a própria Seas passou a estimular os Estados
a buscarem alternativas para a melhoria das condições
das famílias assistidas pelo Peti, disponibilizando
alguns recursos para esse fim. Ao que se sabe, porém, tal
iniciativa foi implementada apenas na região sisaleira do
Estado da Bahia, com o Programa Prosperar.
No quadro de instauração do novo governo federal, a
partir de 2003, tanto os rumos quanto a própria persistência
do Peti tornaram-se indefinidos. Em 2003, o programa
foi mantido, na expectativa de uma avaliação, e em 2004,
com a unificação dos programas federais de transferência
de renda (como o Bolsa-Escola, o Vale-Gás ou o Cartão
Alimentação), sua incorporação ao Bolsa-Família foi cogitada,
mas não chegou a se realizar, pelos seus objetivos e
especificidades. Em fevereiro de 2004, porém, foi anunciado
pela imprensa um corte de 80% das verbas do Peti no
orçamento de 2004 e a transferência das mesmas para o
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(4) 2004
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Bolsa-Família. Com a repercussão negativa dessa decisão
e as pressões da rede de solidariedade à infância e à adolescência
(que inclui órgãos como o Unicef e a OIT), no
dia seguinte essa decisão teria sido revertida, garantindose
a continuidade do atendimento em 2004 (FOLHA DE
S.PAULO, 12/02/2004, p. A3). Mas o repasse de verbas
federais para os municípios permaneceu atrasado e mais uma
vez, segundo a imprensa, os recursos destinados à Jornada
Ampliada seriam reduzidos em 45%, sendo suficientes para
custeá-la apenas até junho de 2004, se não houvesse uma
suplementação (FOLHA DE S.PAULO, 13/03/2004, p. A3).
Não se dispõe, ainda, de uma avaliação mais ampla e
sistemática das condições de funcionamento e do impacto
do programa no conjunto de municípios onde ele foi
implantado.2 Contudo, a partir de uma auditoria efetuada
em 2000 pelo Tribunal de Contas da União, de alguns
estudos parciais e da própria observação direta dos seus
responsáveis, pode-se constatar que o Peti apresenta problemas,
efeitos positivos e desafios. Entre os primeiros
estão uma cobertura insuficiente das crianças que exercem
atividades laborais; atrasos recorrentes no repasse de
verbas e no pagamento das bolsas;3 insuficiência do apoio
e da contrapartida das prefeituras para a implantação da
Jornada; ausência de critérios, falta de fiscalização, interferência
política e clientelista na escolha das crianças contempladas;
carência de maior controle sobre as verbas
repassadas aos governos locais; desarticulação entre a
escola regular e a Jornada; funcionamento da mesma em
condições inadequadas; baixa qualificação dos monitores,
cuja capacitação é bastante variada entre os municípios.
No que se refere aos benefícios, destacam-se a contribuição
do programa para a melhoria das condições de nutrição
e do desempenho escolar de crianças e adolescentes
(além da sua retirada do trabalho), reduzindo a repetência
e a evasão, além do impacto positivo da transferência de
recursos para a economia e o comércio dos municípios. Têm
sido qualificados como desafios a continuidade da assistência,
o destino dos egressos e principalmente a geração
de trabalho e renda para as famílias contempladas.
Algumas dessas questões foram aprofundadas, podendo
ser retomadas a partir da experiência do Peti no Estado
da Bahia, especialmente na região sisaleira, que vem
sendo acompanhada, atrai atenções como uma referência
nacional e deu origem a estudos como os de Ramos e
Nascimento (2001), Souza e Souza (2003), Carvalho e
Maia (2003) e Fundação Abrinq (2002).
Em compensação, não se pode esquecer que este é um
dos programas mais importantes da chamada rede de proteção
social construída pelo governo federal na década de
90, com uma nova perspectiva de tratamento da questão
social no Brasil. Assim, também contribui para a discussão
dos impactos e significados dessa perspectiva, que,
conforme assinalado em trabalhos anteriores (CARVALHO,
2001; CARVALHO; ALMEIDA, 2003), envolve
uma concepção antinômica entre o desenvolvimento econômico
e o social, considerando o segundo como um
subproduto do primeiro; despolitiza a questão social,
dissociando-a da injustiça e da desigualdade e subordinando
o desenvolvimento e as políticas sociais aos ditames
absolutos da economia, reduz a questão social ao problema
da pobreza, com uma outra compreensão deste
fenômeno; adota uma concepção residual que questiona o
caráter universal das políticas sociais, direcionando-as,
fundamentalmente, aos contingentes excluídos do mercado
e em situação de maior pobreza, com o objetivo de
atenuar os seus efeitos mais perversos e o seu potencial
conflituoso e disruptivo e promove uma reconfiguração
do sistema de proteção e das políticas sociais, adequando-
os a essas orientações.
Com uma disponibilidade reduzida de recursos e sujeita
a pressões crescentes pela sua contenção, a chamada
“área social” do Estado brasileiro vem buscando uma racionalização
dos gastos e uma adequação das suas ações
às orientações acima mencionadas, por meio da focalização
(direcionando-as para os segmentos considerados mais
vulneráveis, como crianças, adolescentes e produtores
rurais de baixa renda), da descentralização e da busca de
novas parcerias com o mercado e a sociedade. Reproduzindo
uma concepção da vida social fragmentada, os “problemas
sociais” passaram a ser enfrentados pela multiplicação
de políticas e programas sociais, emergenciais e
isolados, sem um projeto que os articule e lhes imprima
um sentido político (COHN, 1999). Além disso, esses programas
são implantados à margem do institucionalismo
vigente, têm um caráter flexível e não se constituem em
direitos, como assinala Ivo (2001), estando sujeitos a uma
grande instabilidade ou a uma fácil extinção.
O PETI NO ESTADO DA BAHIA
Na Bahia, o Peti foi implementado inicialmente na
região sisaleira, marcada não apenas pela intensidade do
atraso, da pobreza e da utilização da mão-de-obra infantil
em condições especialmente intoleráveis, como também
por uma forte mobilização do associativismo, constituídos,
conforme Ramos e Nascimento, em torno de três elementos
básicos: as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, os
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ALGUMAS LIÇÕES DO PROGRAMA DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL
sindicatos rurais liderados pela Contag e as organizações
estimuladas pelo Movimento de Organização Comunitária
– MOC, organização não-governamental com tradição e
experiência de mais de 30 anos de atuação em prol das
famílias carentes da zona rural e das periferias urbanas.
Na região sisaleira, as condições de trabalho e a utilização
da mão-de-obra infantil já chamavam a atenção
desde a década de 70, quando foi organizada uma ampla
campanha alertando as autoridades competentes para o
problema das mutilações pelas máquinas de beneficiamento
do sisal e reivindicando tanto medidas para evitálas
como a aposentadoria por invalidez para os trabalhadores
mutilados. Além disso, na década de 90 a região
também se destacou pela implementação de algumas
experiências contra a utilização de crianças como mãode-
obra. Uma delas foi um projeto de caprinocultura
denominado Bode Escola, desenvolvido pelos sindicatos
de trabalhadores rurais em conjunto com o MOC e
com o apoio da OIT.
Para a implementação do Peti na Bahia, em 1996, foi
criada a Comissão Interinstitucional de Prevenção e
Erradicação do Trabalho Infantil, vinculada à Secretaria
do Trabalho e Ação Social do Estado da Bahia – Setras;
no início com um caráter marcadamente oficial. Contudo,
com o apoio do Fórum Nacional e do escritório local do
Unicef e a sustentação de uma forte rede de entidades de
defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes e de
uma sociedade local bastante ativa, desenvolveram-se
articulações, pressões, debates e negociações que contribuíram
para dar ao programa uma feição diferenciada
(RAMOS; NASCIMENTO, 2001).
Com uma expressiva participação da sociedade civil, a
comissão estadual assumiu um caráter deliberativo, único
entre os Estados brasileiros, e definiu critérios para a prioridade
de atendimento aos municípios. Foi estabelecida
uma parceria entre a Setras, o Unicef, o MOC e a Universidade
Federal da Bahia – UFBA (que se mantém até o
presente) e, para evitar uma utilização clientelista e
eleitoreira do programa e assegurar uma melhor condução,
foram tomadas providências que envolveram:
- uma ampla participação da sociedade organizada no seu
desenvolvimento;
- a criação de mecanismos que viabilizassem uma administração
compartilhada entre instituições governamentais
e não-governamentais, que terminou se consolidando por
meio de grupos gestores municipais;
- o cadastramento das famílias e crianças pelo Centro de
Recursos Humanos da Universidade Federal da Bahia, que
assegurasse não apenas uma maior isenção na identificação
e escolha dos beneficiários, como também análises
sobre a realidade de cada município;
- uma construção compartilhada e evolutiva do programa
e, particularmente, da metodologia da Jornada Ampliada,
com pesados investimentos na capacitação e seleção dos
monitores. Essa seleção é realizada através de prova escrita
e de uma entrevista feita pela equipe técnica da Setras.
Nesse processo, o governo estadual foi sensibilizado com
a importância do programa e a participação da sociedade
na sua condução. Se nas demais Unidades da Federação a
contribuição estadual é periférica, na Bahia o governo tem
assumido um papel crucial no financiamento e na condução
do programa, por meio da Setras, cuja equipe é responsável
pelo acompanhamento. Além do custeio do processo
de seleção das crianças beneficiadas, recursos orçamentários
expressivos têm sido destinados à capacitação e ao
pagamento dos monitores no conjunto de municípios, contribuindo
tanto para a unidade da proposta pedagógica como
para uma melhoria da qualidade da Jornada Ampliada.
A parceria entre a Setras, o Unicef e o MOC levou à
implementação de um Programa de Educação Complementar
do Peti, criado e executado pelo MOC na região
sisaleira, com financiamento do Unicef e o envolvimento
e a supervisão da comissão estadual. Esse programa
viabilizou uma capacitação sistemática dos monitores, que
desenvolvem uma prática pedagógica mais qualificada,
uma consciência do valor social do seu trabalho e do seu
papel como agente de transformação social. Permitiu, ainda,
o acompanhamento dessa prática, em reuniões mensais
com os coordenadores da Jornada Ampliada nos diversos
municípios e inovações como o Projeto Agente da
Família e o Baú de Leitura (SOUZA; SOUZA, 2003).
Os agentes de família são representantes das comunidades
que recebem uma pequena ajuda de custo para fazer
contatos e reuniões com as famílias inseridas no programa,
incentivando a sua participação. Já o Baú de Leitura tem
como objetivo incentivar a leitura prazerosa e crítica nas
escolas públicas rurais e nas Jornadas Ampliadas, beneficiando
crianças e adolescentes cujas privações também se
expressam pela falta de acesso à cultura e à informação.
Para tanto, o projeto viabiliza a circulação de um baú com
vários livros infanto-juvenis entre as escolas (em regime
de revezamento) e capacita professores e monitores para o
desenvolvimento da prática da leitura e da sua utilização
em jogos, encenações teatrais e outras atividades lúdicas,
desenvolvendo a capacidade de leitura e escrita, a compreenSÃO
PAULO EM PERSPECTIVA, 18(4) 2004
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são e a imaginação de meninos e meninas do Peti.4 Além
disso, quando a necessidade de geração de renda para as
famílias e as limitações do Pronager tornaram-se patentes,
foi a partir da experiência e do compromisso do MOC que
teve origem o chamado Projeto Prosperar, que vem atingindo
cerca de 5 mil famílias do Peti com ações de capacitação,
crédito e uma continuada assistência técnica.
Da região sisaleira o Peti se estendeu a outras áreas,
fazendo-se presente em 93 municípios em 14 das 15 regiões
do Estado da Bahia, alargando o leque de atividades
contempladas e retirando 117.809 crianças e adolescentes
do trabalho, não apenas no sisal e nas pedreiras
como na cafeicultura, na cacauicultura, nos lixões, no
comércio ambulante, na coleta de sucata ou na mariscagem.
Como já foi mencionado, porém, essa extensão foi
acompanhada pela perda do caráter preventivo e por uma
grande restrição na cobertura do programa, com o estabelecimento
de um sistema de “metas” para cada município,
que representa uma “focalização da focalização”. Salvador,
por exemplo, a terceira maior capital brasileira, com
uma grande incidência do trabalho precoce, muitas vezes
em condições especialmente penosas e degradantes, recebeu
de início uma “meta” de apenas 5 mil bolsas, exigindo
procedimentos cada vez mais rigorosos e refinados
para a seleção dos beneficiários.5
O cadastramento realizado pela UFBA deixa bem claro
o perfil desses beneficiários, que são crianças e jovens
que pertencem a famílias extremamente empobrecidas de
pequenos produtores rurais, muitas vezes obrigados a trabalhar
de “ganho” em outras propriedades para assegurar
a sua subsistência; de trabalhadores rurais que, expulsos
das propriedades, transferiram-se para as periferias urbanas,
na expectativa de encontrar serviço, ou que trabalham
como diaristas em atividades agrícolas típicas de cada
região; famílias de indivíduos que estão na base da pirâmide
do mercado de trabalho urbano, como os trabalhadores
menos qualificados da construção civil, as empregadas
domésticas, os vendedores ambulantes, os catadores
de material reciclável (latas de alumínio, principalmente)
nas ruas e lixões da cidade, ou de desempregados, sem
qualquer ocupação e renda.
O Peti se propõe a atender preferencialmente famílias
excluídas, com uma renda per capita de até meio salário
mínimo, com crianças e jovens precocemente ocupados.
No caso da Bahia, porém, a pobreza das famílias assistidas
chama a atenção, uma vez que 80,6% delas tinham uma
renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo e
14,9% entre um quarto e menos de meio salário. Entre os
responsáveis por essas famílias (a mãe ou substituta, por
definição do programa, com raras exceções), 69,3% se
declararam analfabetas ou apenas “alfabetizadas”. Como
nessa população a escolaridade tende a ser mais reduzida
entre os homens, 81,1% dos pais encontravam-se nessa
situação. Além disso, durante o cadastramento várias
carências foram observadas nos domicílios, onde adultos
e crianças muitas vezes dormiam em esteiras ou no chão
batido e apresentavam claros sinais de desnutrição.
Por outro lado, o nível de mobilização e organização
existente nos municípios onde o Peti começou a ser implantado
(que viabilizou uma significativa participação da
sociedade civil no acompanhamento e gestão do programa,
a sensibilização de autoridades locais, negociações e
compromissos básicos com os prefeitos) não é encontrado
em outros municípios e regiões. E onde a mobilização
é mais reduzida, a rede de associações apresenta-se mais
frágil e as lideranças são menos ativas, o programa enfrenta
dificuldades: os grupos gestores não conseguem se
consolidar e nem sempre as elites políticas locais se sensibilizam
com a questão do trabalho infantil, deixando de
dar a contrapartida do município ou resistindo à participação
e ao controle da sociedade, acostumados às velhas
práticas patrimonialistas e clientelistas e à “cultura do favor”
que permeiam os programas sociais no Brasil. Além
disso, embora a Setras tenha tentado replicar a parceria
com o MOC, articulando-se com organizações não-governamentais
para melhorar as condições de funcionamento
e o próprio alcance do programa em outras regiões, esses
esforços geralmente não foram bem-sucedidos.
Assim, há municípios baianos onde a Jornada Ampliada
tem uma estrutura bastante precária, encontra-se
suspensa ou em alguns casos sequer foi iniciada e a própria
freqüência escolar deixa de ser observada (inclusive
por orientação dos prefeitos), possibilitando o retorno das
crianças ao trabalho. Em outros locais, as mães ignoram
o próprio nome do programa que retirou os seus filhos do
trabalho (confundindo-o com o Bolsa-Escola),6 evidenciando
como são frágeis os laços com as famílias, apesar
da centralidade que lhes é atribuída no discurso oficial.
Com exceção daqueles grupos atendidos pelos agentes de
família, na região do sisal, esses laços se resumem à participação
em algumas reuniões com os monitores, nas quais
se discutem basicamente o desempenho e o comportamento
dos filhos ou se desenvolvem algumas atividades lúdicas
e comemorações como o Dia dos Pais ou Dia da Família.
Outros problemas observados, comuns a todo o Brasil,
são a fragilidade e o despreparo das equipes técnicas lo55
ALGUMAS LIÇÕES DO PROGRAMA DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL
cais nas regiões mais pobres e atrasadas, que prejudicam
o seu papel de protagonistas nos programas sociais; os
freqüentes atrasos na liberação dos recursos da União para
esses programas, algumas vezes resultantes de dívidas com
o INSS, cujo parcelamento precisa ser negociado; a dissociação
entre o ensino regular e a Jornada Ampliada e,
principalmente, a extrema precariedade da escola pública
a que têm acesso os filhos das classes populares.
Estudos como os de Neves (1999) ou Azevedo,
Menezes e Fernandes (2000), entre vários outros, têm
constatado que o trabalho precoce geralmente não chega
a impedir a freqüência à escola, o que o cadastramento e
os estudos do Peti na Bahia também comprovaram. Contudo,
ele está associado à repetência, à defasagem idade/
série e a um atraso cumulativo que levam ao abandono da
escola com baixos níveis de escolaridade, não apenas pela
condição de atividade das crianças mas pelas características
e qualidade da escola. Embora valorizem a educação
(até porque têm consciência dos efeitos perversos da sua
carência), os pais não têm expectativa de que os filhos
aprendam nessa escola, esperando, apenas, que ela lhes
forneça noções básicas de leitura e matemática. Para os
estudantes ela também não é atrativa, desestimulando a
dedicação, o rendimento e a permanência.
Como seria de esperar, ao longo dos levantamentos de
campo efetuados pela UFBA, principalmente na zona rural,
as escolas visitadas funcionavam sem infra-estrutura
adequada, com professores pouco qualificados e dispondo
apenas de um quadro-negro como material. Algumas
se resumiam a pequenas salas, multisseriadas, nas quais a
cópia constituía a atividade básica. Por isso mesmo, não
chega a ser surpreendente que, em um dos municípios
pesquisados, ao saber dos objetivos e condições de funcionamento
do Peti um garoto de 13 anos pediu:
“Ah, não coloque meu nome aí não, Deus me livre; se já não
agüento ficar um tempo na escola, imagine o dia todo...”.
EFEITOS E LIÇÕES DO PETI
Nessas circunstâncias, qual o significado e os efeitos
do Peti sobre os seus beneficiários? Quais as suas limitações?
Que elementos ele oferece para uma análise mais
ampla do novo paradigma brasileiro de políticas sociais?
Pesquisas de campo realizadas pelo CRH durante o
cadastramento e, mais recentemente, em alguns municípios
do recôncavo baiano,7 onde o programa começou em
2000, assim como avaliações efetuadas pela Fundação
Abrinq (2002) e por Souza e Souza (2003) na região
sisaleira permitem algumas conclusões.
As primeiras se reportam à própria relevância dos objetivos
do programa e não há dúvidas de que combater o
trabalho precoce (ainda que apenas nas suas piores formas),
resgatando a dignidade e a infância e adolescência,
é essencial. O depoimento de uma mãe cujos filhos trabalhavam
no lixão deixa isso muito claro, assinalando que:
Hoje [os filhos] não perdem mais aula, só se preocupam
em estudar. Hoje eles andam como seres humanos, se vestem
direitinho, cuidam da saúde. Antes não tinha banho que
tirasse o mau cheiro; não andam com pé cortado, feridentos,
com crecas [sic]. Andam com a pele limpinha. Tinha muita
discriminação com meus filhos, porque andavam no lixo,
hoje não tem mais isso, [os outros] diziam que comia lixo,
chamavam eles de fedorentos (SOUZA; SOUZA, 2003).
O número de crianças e jovens retirados do trabalho é
expressivo na Bahia e no Brasil, mas está muito aquém
das necessidades, deixando de fora um grande número de
beneficiários potenciais. A pesquisa realizada pelo CRH
deixou muito evidente esse fato, com mudanças na metodologia
do cadastramento e a definição de critérios cada
vez mais refinados para escolher entre as famílias em situação
de extrema pobreza, com crianças em ocupações
adversas, aquelas em pior situação.
Com esse grau de pobreza, a transferência de renda
propiciada pelo Peti torna-se fundamental para a reprodução
social dessas famílias. Utilizados basicamente para
a compra de alimentos, os recursos da bolsa também
viabilizam a aquisição de material escolar, roupas e calçados
para as crianças, a compra de remédios ou o pagamento
eventual de contas de água e de luz, conforme depoimentos
das famílias entrevistadas:
“Ajuda na alimentação, compra roupa... quando recebo é
só para pagar quem eu devo. Esse dinheiro é uma bênção, é
pouco, mas serve”.
“Ah! Eu compro tudo para as crianças. Eu tenho sete filhos
na escola. Em primeiro lugar, a alimentação da família [que]
é feijão, farinha e carne. Mas a carne hoje, para nós, é um
esporte. Lá de vez em quando.”.
“[O dinheiro da bolsa é gasto com... ‘Comida’] O dia que
recebo é o dia mais alegre da vida, porque compro comida”.
“[...] agora estou apertada, recebi R$ 100, fui na rua, paguei
R$ 25 de luz (que estava atrasada) e fiz uma comprinha
de comida” (SOUZA; SOUZA, 2003, p. 39).
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(4) 2004
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Algumas vezes esse dinheiro também viabiliza a aquisição
de móveis básicos (uma mesa com cadeiras, camas
ou colchões), eletrodomésticos ou pequenas melhorias na
habitação, sobretudo quando a família tem vários filhos
no programa ou pagamentos atrasados e acumulados são
liberados de uma só vez. Além disso, nos municípios do
recôncavo observou-se que as famílias do Peti que recebem
mensalmente pelo Cartão Social da Caixa Econômica
adquirem crédito junto ao comércio local, podendo fazer
compras à prestação.
Contudo, a preocupação básica é com a subsistência
imediata e isso interfere na própria compreensão do programa.
No decorrer da pesquisa de campo observou-se que
uma parte das famílias possuía uma visão clara sobre os
objetivos do Peti, declarando, por exemplo, que ele “veio
para as crianças não trabalharem, para que as crianças
fiquem na escola e na Jornada”, ou que “é para as crianças
não trabalharem fora, contra a exploração”. A maior
parte das mães entrevistadas, porém, considera o programa
como algo muito bom que lhes foi oferecido em razão
da sua pobreza e necessidades, afirmam que:
“É bom porque os meninos comem. Já teve uma reunião que
falou sobre o programa, mas já esqueci.”
“É um programa bom, ensina mais às crianças, ajuda muito
na alimentação, dá dinheiro para comprar roupa e calçado
para eles.”
“É um programa que ajuda pessoas carentes; muitos precisam
de dinheiro, mata a fome de muitas crianças.”
“É tudo, porque [as crianças] aprendem muito. O Peti ensina
o dever que eu não sei ensinar; lá tem alimentação e
dinheiro para comprar comida, pagar o gás, o dinheiro ajuda
muito.”
“Foi uma ajuda muito grande do governo, que veio para
nós” (SOUZA; SOUZA, 2003).
Declarações como esta última confirmam que a noção
de direitos não está incorporada ao universo da maioria
das famílias assistidas pelo Peti, conforme ressaltado
por Souza e Souza (2003, p. 34) a partir da pesquisa
na região sisaleira e de declarações como esta: “Ouvimos
falar de direitos. Mas pobre não tem direitos. Pobre
é pobre”. Como na área do sisal, nos municípios do
recôncavo também predomina uma visão de “ajuda” para
as famílias “fracas”, que não têm como sobreviver, representando
uma “bondade” do governo ou uma “bênção”
de Deus.8 Com essa perspectiva, diversas mães
explicaram o ingresso dos seus filhos no programa “[...]
porque foi uma sorte dada por Deus, era uma família
que merecia”, “porque a gente era muito fraco”, ou,
ainda, “[...] eu não entendo nada, eu acho assim, que
foi uma sorte que deram a eles”.
Além da transferência direta de renda, a freqüência à
Jornada Ampliada tem propiciado uma melhoria do padrão
nutricional e de saúde das crianças, a aquisição de
noções e hábitos de higiene e mudanças de comportamento
como redução da agressividade e da inibição e
maior facilidade de expressão e de convívio social, notadamente
nas Jornadas que incentivam trabalhos em
grupo e enfatizam o desenvolvimento de atividades
lúdicas e culturais. Verifica-se, também, o crescimento
do interesse pelo estudo e pela aprendizagem, uma melhoria
do desempenho com o reforço escolar e, pelo
menos para uma parte dos beneficiários, uma ampliação
de horizontes.
Por isso mesmo, no contato com as famílias os pais
também ressaltaram a importância e os efeitos positivos
do programa em termos da alimentação, do reforço escolar
(com grandes elogios à dedicação e ao trabalho dos
monitores), do acesso a atividades lúdicas, culturais e esportivas,
do desenvolvimento pessoal e da própria guarda
dos filhos. Com a freqüência à Jornada, além de um maior
interesse pelos estudos e um melhor desempenho escolar,
as crianças teriam ficado “mais responsáveis”, “mais espertas”,
“mais sabidas” e mais “desasnadas” (desembaraçadas).
Conforme depoimentos das mães,
“[Eles] aprenderam a falar direitinho, ler, escrever, desenhar,
brincadeiras diferentes. Na escola ajudou, nunca perderam
de ano, não fazem recuperação, passam direto.”
“[...] melhorou na educação, no tratamento dos pais, no
comportamento, aprendeu muitas coisas.”
“Tem mais amigos, desenvolveu no conhecimento.”
“Hoje lê melhor, traz livros para casa, com o Baú de
Leitura.”
“Os monitores se interessam pelos meninos, fazem o dever
de casa que a gente não sabe ensinar, os meninos também
se divertem.”
“[A Jornada] é boa porque aprende várias coisas e [ele]
não fica na rua, aprendendo coisas ruins” (SOUZA; SOUZA,
2003).
57
ALGUMAS LIÇÕES DO PROGRAMA DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL
Depoimentos dos meninos e meninas tendem a confirmar
essas declarações. Estimulados a se pronunciar sobre
os efeitos e benefícios do programa, alguns não souberam
responder ou não manifestaram um maior entusiasmo,
considerando que na sua vida continuava “tudo igual”.
Outros se reportaram à saída do trabalho, à contribuição
da bolsa para o sustento da família ou à alimentação recebida
na Jornada. A maioria do grupo estudado, porém,
refletindo o resgate da sua infância e adolescência, ressaltou
o acesso a atividades lúdicas, esportivas e culturais,
uma melhor aprendizagem e mudanças como:
“Não sabia matemática, aprendi no Peti.”
“Na Jornada a gente estuda, faz teatro, conhece mais gente,
aprende bastante. Lá não me bato para fazer o dever,
elas [as monitoras] ensinam.”
“Estou aprendendo mais, a ler e a escrever melhor, passei
a me interessar mais pelos estudos, os professores [da Jornada]
incentivam.”
“Deixei de trabalhar, o Peti tem muitas coisas importantes,
ensinam o que as pessoas têm dificuldade e tem brincadeira
também.”
“Fiquei gostando de assistir ao noticiário [pela televisão]
porque uma monitora pediu aos alunos para assistirem, para
fazer um trabalho escolar sobre a guerra do Iraque.” (SOUZA;
SOUZA, 2003).
Benefícios dessa ordem também foram constatados nos
estudos efetuados na região sisaleira pela Fundação Abrinq
(2002) e por Souza e Souza (2003). Fazendo uma análise
bastante ampla e aprofundada das condições e transformações
ocorridas com os beneficiários do Peti naquela região,
estes últimos autores também ressaltam que, com o reforço
escolar, uma maior exposição a debates e a utilização do Baú
de Leitura, nas provas da Saeb, cujos resultados foram
divulgados em 2002, os alunos envolvidos com o Peti obtiveram
um desempenho superior ao encontrado no Nordeste.9
É claro que esses resultados não podem ser generalizados,
uma vez que, com o Programa Complementar MOC/
Unicef e outras condições assinaladas, a trajetória do Peti
na região sisaleira é bastante especial. Como já foi mencionado,
mesmo no Estado da Bahia, onde o governo estadual,
em parceria com o MOC e o Unicef, vem fazendo
um amplo trabalho para uma melhor seleção, capacitação
e acompanhamento dos monitores, unificando a proposta
pedagógica e qualificando a Jornada, o programa apresenta
significativas variações locais. No conjunto do país,
onde sua condução depende de cada município, a diferenciação
é ainda mais acentuada, reduzindo-o, algumas
vezes, ao simples pagamento de bolsas.10
Ademais, os ganhos assinalados tendem a ser temporários
e relativos, uma vez que as crianças normalmente
apresentam significativo atraso escolar ao serem incorporadas
ao programa (saindo dele, na maioria dos casos, sem
concluir o ensino fundamental) e este está muito longe de
mudar as condições de suas famílias.
Conforme avaliação da Fundação Abrinq (2002), na
própria região sisaleira, após cinco anos, o Peti contribuíra
para a redução do trabalho precoce, para a permanência
das crianças na escola e para algumas melhorias
em termos de nutrição, habitação, vestuário e saúde. No
aspecto econômico, porém, não constava nenhuma mudança
significativa na situação das famílias, que não se diferenciavam
fundamentalmente daquelas não incorporadas
ao programa e permaneciam abaixo da linha de pobreza,
tal como normalmente definidas.
O estudo de Souza e Souza (2003) confirma essa
constatação, assinalando como as famílias persistem em
situação de penúria, sem terra, sem nenhuma poupança ou
capacidade de tomar empréstimos, com mudanças que se
restringem à melhoria da alimentação, a alguns consertos
na moradia, à aquisição de alguns móveis, uma televisão
ou alguns pequenos animais, assim como a uma transformação
ou outra na compreensão do mundo, da educação e
do trabalho, conforme avaliação das famílias entrevistadas:
“Com essa bolsa? Continuou tudo no mesmo” (SOUZA;
SOUZA, 2003, p. 67).
“Só mudou um pouco porque, de qualquer maneira, esse
que está lá no Peti não dá despesa dentro de casa. A comida
que ele não come em casa já serve para o outro. Mas a
situação financeira continua a mesma coisa, porque a gente
demora muito para receber. E é muito pouco” (SOUZA;
SOUZA, 2003, p. 69).
Não foi muito diferente o que se observou em municípios
do recôncavo baiano, incluídos no programa para a
retirada das crianças principalmente da produção clandestina
de fogos de artifício, após uma grande explosão com
várias vítimas fatais. As famílias continuam na pobreza
(em certos casos, de forma degradante) e quando reconhecem
algumas melhorias de vida isso se dá devido a sua
extrema carência e no nível da sobrevivência imediata:11
“Com esse dinheiro já dá para comprar qualquer coisa; se
não fosse o Peti eu não podia fazer nada, porque meu mariSÃO
PAULO EM PERSPECTIVA, 18(4) 2004
58
do trabalha para ganhar R$ 7,00 por dia [como trabalhador
rural].”
“Melhorou no ensino das crianças, tem almoço e merenda,
o pagamento [da bolsa] ajuda nas despesas.”
“[Melhorou] sim, às vezes dá para ajudar na alimentação.
A gente compra fiado e depois paga; os comerciantes vendem
fiado pra gente que é do Peti; quando atrasa a gente
explica pra eles, eles entendem.”
“Foi uma coisa boa que o governo mandou. O dinheiro é
uma coisa ótima. Foi o que me salvou.”
“Minha valença é o Peti; se acabar não sei o que fazer; sou
capaz de morrer.” (SOUZA; SOUZA, 2003).
Esses e outros depoimentos deixam claro como se criou
uma dependência e uma verdadeira neurose (denominada
por Souza e Souza como “síndrome da perda da bolsa”)
nas famílias assistidas. Há, também, o problema do que
fazer com os meninos e meninas desligados por ultrapassarem
o limite de idade, que na ausência de outras alternativas
e sem qualquer apoio tendem a deixar a escola, a
procurar trabalho ou voltar às atividades penosas e precárias
de onde foram retirados, muitas vezes com uma grande
frustração.
Entre os egressos entrevistados no recôncavo baiano,
por exemplo, um jovem agora com 18 anos passou três
anos no Peti e, quando saiu, abandonou a escola e não
pretende voltar a estudar. Casou-se, já tem dois filhos e
vive em condições bastante precárias, com o auxílio da
família e o que ganha como ajudante de pedreiro. Outra
moça parou de estudar aos 15 anos, na sétima série; ficou
grávida, teve um filho e mora com os pais e de vez em
quando ganha algum dinheiro fazendo faxinas. Declarou
que “na Jornada Ampliada aprendi algumas coisas, mas
já esqueci”. Um rapaz, atualmente com 16 anos, cursa a
quinta série; ficou dois anos e meio no programa, onde
aprendeu a ler melhor, mas “a vida não melhorou porque
não acho trabalho”. O último exemplo é de um jovem de
18 anos, que participou do Peti e do Agente Jovem e hoje
cursa a primeira série do segundo grau e faz biscates, cortando
grama, esforçando-se para mudar de vida,
“[...] no ano passado fiz um curso de informática, com certificado.
Mas a vida não melhorou porque estou sem emprego
e somente a esperança de arranjar um”.
Para equacionar esse tipo de problema, foi criado o Programa
Agente Jovem, direcionado a carentes entre 15 e 17
anos e dando prioridade aos egressos do Peti e de outros
programas sociais. Oferecia uma bolsa no valor de R$ 65,00
aos seus participantes, condicionada à freqüência escolar e
à sua capacitação e atuação na comunidade no apoio às áreas
de saúde, meio ambiente e cidadania, articulada com sua
participação em atividades de cultura, esporte e lazer. Mas
o Agente Jovem teve uma cobertura insuficiente (incorporando
apenas parte dos egressos do Peti), poucos resultados
e uma curta duração. A necessidade de geração de trabalho
e renda ficou cada vez mais patente, levando a Seas a
ampliar os objetivos do Peti e a enfatizar a centralidade da
família, além de articulá-lo ao Pronager.
Contudo, as novas orientações praticamente não saíram
do plano do discurso. As ações e o próprio contato
com a família continuaram muito restritos (com exceção
da área sisaleira, onde existem os agentes de família) e os
resultados do Pronager não apenas não foram propagados,
como foi desativado em 2003. Em 2001, quando o
insucesso do Pronager levou a Seas a incentivar os governos
estaduais a buscarem alternativas, mais uma vez na
região sisaleira e por meio de uma articulação entre a Setras
e o MOC (aprovada e apoiada pela Seas), teve início o
chamado Projeto Prosperar.
O Prosperar procura superar as limitações de experiências
anteriores, que apostavam em um empreendedorismo
popular sem qualquer apoio à sua sustentação. Contando
com a infra-estrutura, a equipe técnica (composta por 20
profissionais, como sociólogos, agrônomos e técnicos em
agropecuária) e uma experiência de mais de 30 anos do
MOC em prol do associativismo, do cooperativismo e da
melhoria das condições socioeconômicas das famílias
pobres da região, esse projeto vem desenvolvendo um
conjunto de ações integradas, que envolvem:
- o diagnóstico das condições socioeconômicas de uma
parcela das comunidades e famílias assistidas pelo Peti
nos municípios da área do sisal, selecionadas em conjunto
com os grupos gestores locais;
- a formulação de um plano de desenvolvimento da comunidade,
no qual as famílias são agrupadas de acordo
com seus interesses produtivos;
- a capacitação dessas famílias, promovendo a racionalização
do uso das suas propriedades (principalmente no
que tange ao manejo de criatórios e técnicas de convivência
com a seca), assim como a geração de novas ocupações
produtivas para aqueles que não dispõem de terra;
- a concessão de crédito de baixo custo e longo prazo de
pagamento, por meio de cooperativas rurais;
59
ALGUMAS LIÇÕES DO PROGRAMA DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL
- o acompanhamento dos projetos, com visitas periódicas
(pelo menos duas por mês) dos técnicos e reuniões
para assessoria às famílias;
- a avaliação do impacto do projeto, verificando a nova
situação das famílias em termos de renda, emprego, alimentação,
abastecimento de água, moradia, saneamento,
posses e relações de gênero e geração.
Enfrentando o grave problema da má distribuição de terra
e levando em conta tanto as condições e vocações da região
quanto a viabilidade econômica dos empreendimentos,
o Prosperar tem estimulado atividades como a
caprinocultura (com a produção de embutidos e derivados),
o artesanato de sisal, a apicultura, a produção de temperos,
ovos e detergentes, beneficiando cerca de 5 mil famílias,
em 30 municípios. A produção é destinada principalmente
aos mercados locais, incluindo a própria Jornada Ampliada.
Em alguns municípios, a prefeitura vem adquirindo alimentos
para a Jornada junto às cooperativas do Prosperar,
mantendo os recursos recebidos do governo federal no próprio
município e ativando a produção local.
OBSERVAÇÕES FINAIS
A avaliação de impacto junto ao primeiro grupo de famílias
(2.340) vinculado ao Prosperar ainda não foi efetuada.
Contudo, apesar de obstáculos, como a estrutura
agrária ou os reduzidos recursos à sua disposição, esse
impacto pode ser diferenciado e mais positivo, na medida
em que o programa vem associando capacitação e assistência
técnica continuadas, acesso a microcréditos, estímulo
à melhoria dos rebanhos e caprinocultura mais moderna,
equacionando o problema da água12 e de acesso aos
mercados. Ao demonstrar como é possível conviver com
as condições ecológicas da área e trabalhar com pequenos
produtores rurais, essa experiência também oferece
subsídios para uma política nacional de desenvolvimento
das condições sociais do semi-árido nordestino, demandadas
há décadas.
Das evidências até aqui apresentadas podem ser tiradas
algumas lições. No que se refere mais diretamente ao
Peti, reafirma-se a importância do combate ao trabalho
precoce, cuja face cruel o programa tornou mais evidente,
desmistificando e combatendo, inclusive, a sua naturalização
como “sina” das crianças pobres ou de seus supostos
“efeitos educativos”. Nessa perspectiva, a retirada
de 810.769 crianças e adolescentes de ocupações especialmente
penosas e degradantes, em 2.590 municípios
brasileiros, viabilizando a sua permanência na escola e,
através da Jornada, o seu acesso a atividades recreativas,
esportivas e culturais, ampliando o seu capital cultural e
os seus horizontes, não pode ser menosprezada. Mas podese
questionar se políticas mais amplas e universais seriam
mais eficazes, como um programa de renda mínima para
as famílias, condicionado à freqüência de seus filhos à
escola e pesados investimentos para a melhoria da escola.
Como foi visto, mesmo focalizado nas “piores formas”
de ocupação precoce (quando todas elas tendem a ser negativas),
o Peti deixa de lado uma grande parcela da sua
clientela potencial13 e não transforma significativamente
as condições e perspectivas dos seus próprios beneficiários.
Os ganhos obtidos quanto a nutrição, estímulos
socioculturais e a própria escolarização tendem a ser relativamente
restritos e temporários. Freqüentando uma
escola pública de péssima qualidade (que não estimula a
permanência e a dedicação) e trabalhando no turno complementar,
ao ingressar no Peti os meninos e meninas apresentam
um atraso escolar que poucas vezes pode ser compensado.
Ainda que a Jornada funcione como uma
“muleta” para essa escola, na expressão de Souza e Souza,
ao atingir a idade limite para a permanência no programa
a maioria não chega a concluir o ensino fundamental
e após o desligamento, sem maiores perspectivas e tendo
que contribuir para a subsistência da família, poucos continuam
a estudar, persistindo com baixos níveis de escolaridade,
restritas oportunidades ocupacionais e reproduzindo
o ciclo de pobreza dos pais.
Aliviando essa pobreza, mas sem efeitos expressivos
sobre a sua superação, o Peti também suscita reflexões
mais amplas sobre o novo paradigma das políticas sociais,
cujas características foram antes assinaladas. Isso porque,
entre outros aspectos, a trajetória do programa coloca também
em questão:
- a urgência de políticas governamentais (com pesados
investimentos) orientadas para uma transformação e melhoria
radicais do ensino público, implementando, inclusive,
ainda que de forma progressiva, as disposições da
Lei de Diretrizes e Bases sobre a escola em tempo integral;
- a importância da participação da sociedade civil no
desenvolvimento e no controle das políticas sociais, assim
como a própria fragilidade dessa participação;
- as potencialidades, os limites e as perversões da descentralização
e da municipalização das políticas públicas
e a necessidade da criação de mecanismos efetivos de
subsídios e solidariedade entre os diversos níveis de governo,
em um país tão heterogêneo como o Brasil, levanSÃO
PAULO EM PERSPECTIVA, 18(4) 2004
60
do em conta as condições dos Estados e municípios com
baixo nível de desenvolvimento econômico, político e
institucional; e, sobretudo,
- os problemas e limites do paradigma mencionado.
Conforme assinalado em páginas anteriores, eles partem
de uma concepção antinômica entre desenvolvimento
econômico e desenvolvimento social, subordinando o
segundo à dinâmica e às supostas exigências do primeiro.
Enfatiza o combate à pobreza sem enfrentar seus determinantes
estruturais (como a estrutura de propriedade da
terra ou as desigualdades), com a multiplicação de um
conjunto de programas setoriais, emergenciais, assistenciais
e focalizados que, a exemplo do Peti, realizam pequenas
transferências diretas de renda, com algumas
condicionalidades.14
A experiência do Peti deixa patente como essas transferências
são necessárias e relevantes, tendo em vista as
condições de pobreza ou de indigência de uma grande
parcela da população brasileira, apesar das suas limitações.
Porém, não é com iniciativas dessa ordem que a
perversa realidade social do país poderá ser transformada.
Programas de alívio à pobreza (como os que compõe
a chamada rede básica de proteção social) precisam ser
associados a medidas que viabilizem a sua superação, mais
precisamente, a políticas estruturais e amplas, que permitam
a retomada do desenvolvimento com uma maior eqüidade
social e que (mesmo quando de médio ou longo prazos)
sejam orientadas, já no primeiro momento, para a
eliminação do pauperismo e para o resgate da dignidade e
dos direitos de cidadania de todos os brasileiros.
NOTAS
1. Na área urbana esse valor é de R$ 10,00 por criança ou adolescente
nas capitais, regiões metropolitanas e municípios com mais de 250 mil
habitantes. Nos demais municípios o repasse é de R$ 20,00. Esses recursos
só podem ser utilizados em material de consumo, ou seja, na
compra de alimentos e materiais escolares, esportivos, artísticos e de
lazer. Desde que não prejudique as ações essenciais da Jornada, 30%
do repasse pode ser gasto com os monitores, cuja seleção, capacitação
e remuneração são de responsabilidade dos municípios (cf. Programa
de Erradicação do Trabalho Infantil. Manual de Orientações. 2002).
Na Bahia, porém, o governo estadual assumiu essas atribuições, garantindo
a qualificação dos monitores e uma Jornada com uma concepção
básica a ser trabalhada em todos os municípios, respeitadas as
peculiaridades locais.
2. A Seas enviou aos municípios um questionário solicitando diversas
informações sobre as condições locais de funcionamento do programa,
que deu origem a um relatório preliminar, divulgado recentemente
e de forma restrita, que não chegou a ser utilizado neste trabalho.
3. Conforme o relatório do Tribunal de Contas da União, atrasos no
repasse de recursos do programa seriam freqüentes em 73% dos municípios
do Norte, 81% do Nordeste, 43% do Centro-Oeste, 68% do Sudeste,
56% do Sul e 68% do Brasil. Com a implantação do Cadastro
Único, algumas famílias do Peti passaram a receber a bolsa pontualmente,
com o cartão da Caixa Econômica Federal, enquanto outras
amargam as conseqüências dos atrasos. Curiosamente, há famílias em
que um dos filhos recebe pelo cartão e outros pela prefeitura, com um
grande atraso.
4. Inicialmente restrito à região do sisal, o projeto do Baú de Leitura
chamou a atenção de outros municípios, levando o Unicef a capacitar
professores e monitores para a sua implementação, desde que as prefeituras
se responsabilizassem pela aquisição e circulação dos livros.
5. Para a concessão das bolsas, nos primeiros municípios onde o Peti
foi implantado (ou seja, na região sisaleira), a equipe coordenada pelo
Centro de Recursos Humanos da UFBA realizou um censo de crianças
e adolescentes ocupados ou em risco de trabalhar em atividades como
a produção de sisal e as pedreiras. Com a perda do caráter preventivo
e a concessão de bolsas sempre em um número muito inferior ao
necessário, essa estratégia teve que ser modificada. Através de uma
ampla reunião com representantes de entidades oficiais e de organizações
da sociedade civil, em cada município passaram a ser
identificados os locais onde se concentrava a ocupação precoce com
caráter especialmente penoso, perigoso ou degradante. Nesses locais,
foram identificadas e cadastradas famílias e crianças nessa situação.
A partir das informações obtidas e da aplicação de alguns critérios,
foram selecionadas aquelas em situação mais crítica para o ingresso
no Peti (RAMOS; NASCIMENTO, 2001; CARVALHO; MAIA, 2003).
6. Como este artigo está centrado na análise do Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil, ele não se reporta a outros problemas da chamada
rede de proteção social implantada nos anos 90, como a superposição
de clientelas e benefícios ou a tentativa de implantação de um Cadastro
Único dos beneficiários dos diversos programas, sob a responsabilidade
da Caixa Econômica Federal.
7. Coordenada por Lúcia Pedreira e com participação de Sylvia Maia
e da autora (cuja freqüência às reuniões da comissão estadual como
representante da UFBA tem lhe propiciado valiosas informações), a
pesquisa no recôncavo foi realizada entre fevereiro e abril de 2004.
8. Conforme Souza e Souza (2003), apenas as famílias atendidas pelo
agente de família na região sisaleira tinham uma postura mais crítica e
reivindicatória.
9. Realizado por uma equipe interdisciplinar que incluiu educadores e
psicólogos e ouviu depoimentos de famílias, crianças, monitores, grupos
gestores, autoridades e empresários locais, o livro de Souza e Souza
(2003) apresenta observações muito interessantes sobre o funcionamento
e os efeitos do Peti na área sisaleira, inclusive do ponto de vista sociocultural.
Entre os benefícios ali constatados estão o alívio que a Jornada
representou para as mães, reduzindo a sua “lida” com a casa e os filhos
e livrando-as do “vexame” de não poder ajudá-los nos deveres, assim
como estímulos à economia e ao comércio local. Sem abordar todos esses
aspectos, o presente artigo concentra suas análises sobre o impacto
mais direto sobre as condições das famílias e crianças beneficiadas.
10. Até mesmo no Estado da Bahia há municípios que não chegam
sequer a implantar todas as Jornadas. A qualificação dos monitores
também vem sendo questionada nos demais Estados. Relatório do Programa
de Capacitação de Monitores e Educadores de Apoio das Escolas
Rurais da Jornada Ampliada, mencionado pela Coordenadora da
Comissão Estadual de Pernambuco, por exemplo, ressalta que os mesmos
“apresentam pouca escolaridade e que exercem profissões e ofícios
tão distantes do universo do educador: cabeleireira, costureira,
padeiro, etc.” (BEZERRA, 2000, p. 84).
11. Melhorias um pouco mais substanciais foram assinaladas por apenas
duas famílias. A responsável por uma delas, empregada doméstica,
comprou um pequeno terreno na periferia do município, onde depois
a patroa a ajudou a construir uma casinha; a outra família, que
possui um pequeno pedaço de terra e cujo chefe trabalha como pedreiro,
adquiriu uma vaca. Mas a situação dessa família não sofreu uma
grande mudança e ela continua envolvida na perigosa fabricação de
fogos de artifício (bombas) na própria residência.
61
ALGUMAS LIÇÕES DO PROGRAMA DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL
12. A convivência com as condições ecológicas do semi-árido baiano
foi discutida na própria Jornada Ampliada da região sisaleira, com a
realização de uma pesquisa sobre a questão da água na qual foram
aplicados questionários em 38 mil domicílios e realizadas entrevistas
com autoridades e lideranças locais. A partir dos dados dessa pesquisa
foram trabalhados conteúdos de português e matemática e os meninos
e meninas puderam analisar um dos problemas mais cruciais da região.
13. Até pela relatividade da definição, não há como estimar o número
de envolvidos nas “piores formas” de trabalho infantil. Em termos mais
gerais, embora a ocupação precoce venha se reduzindo de forma continuada
e significativa em todo o Brasil, o total de crianças e adolescentes
entre 5 e 17 anos ocupados em 2001 chegava a 5,5 mil, conforme
informações da PNAD; 81% da mão-de-obra infantil começou a
trabalhar antes dos 14 anos, e entre as crianças na faixa dos 5 aos 9
anos, 297 mil já se encontravam ocupados (IBGE, 2002).
Na Bahia, a comissão estadual não tem conseguido atender a vários
municípios e a demandas do Ministério Público e da Delegacia Regional
do Trabalho, pela insuficiência de metas. Entre as próprias famílias
vinculadas ao programa algumas crianças são inseridas e outras
não, criando situações como a observada em um dos domicílios do
recôncavo baiano: enquanto uma das crianças ajudava os pais no fabrico
de fogos de artifício, uma segunda assistia o programa de televisão,
pois, como beneficiária do Peti, não podia trabalhar.
14. Como se sabe, nos primeiros meses de 2004 houve uma unificação
de programas (como o Bolsa-Escola, Cartão Alimentação, Vale-Refeição,
Vale-Gás e Fome Zero), através do Bolsa-Família. Isso introduziu
uma maior racionalidade no sistema, atacando problemas como
a superposição de beneficiários e clientelas, mas sem mudar suas orientações
e seu significado.
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INAIÁ MARIA MOREIRA DE CARVALHO: Pesquisadora do Centro de Recursos
Humanos e Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal da Bahia. Bolsista do CNPq.
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