terça-feira, 29 de maio de 2012
seca: miséria e fome n o semi-árido
Resumo
Parte do pressuposto de que os diagnósticos e proposições sobre o Semi-árido brasileiro têm, em sua maioria, como referência imagens historicamente construídas sobre um espaço problema, terra das secas e da miséria. Entretanto, na primeira metade do século XX surgem olhares críticos sobre as causas estruturais e conseqüências da miséria regional. O presente artigo analisa as relações entre essas duas perspectivas com os diferentes paradigmas de desenvolvimento no Semi-árido brasileiro. Conclui que, apesar dos avanços, permanece a perspectiva reducionista e fragmentada de combate às secas e aos seus efeitos com grandes obras hídricas e com a irrigação orientada para o mercado externo. A concepção de convivência com o Semi-árido ainda não foi suficientemente internalizada nos programas e ações governamentais.
Palavras-chave:
Semi-árido; Combate às Secas; Água; Políticas Públicas; Transição Paradigmática; Desenvolvimento Sustentável.
Entre o Combate à Seca e a Convivência
com o Semi-Árido: políticas públicas e transição paradigmática
Roberto Marinho Alves da Silva
Graduado em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Mestre em Ciência Política.
Doutorando em Desenvolvimento Sustentável, no Centro de Desenvolvimento Sustentável na Universidade de Brasília (CDS/UNB).
Professor licenciado do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 38, nº 3, jul-set. 2007
1 – INTRODUÇÃO
Desde o período colonial até hoje, os relatos e imagens sobre o Semi-árido brasileiro, em sua maioria, enfatizam paisagens naturais desoladoras e o flagelo social da população sertaneja nos períodos de seca. Os primeiros registros de ocorrência de secas no sertão, segundo o historiador Joaquim Alves (1982), datam de 1587, com o relato de Fernão Cardin sobre a fuga de índios do sertão para o litoral em busca de alimentos. Desde então, as secas no sertão nordestino apareciam como um elemento de desordem no projeto de colonização. Havia um contraste significativo entre uma perspectiva sedentária de ocupação e a fixação de povoamentos para exploração de riquezas, com as possibilidades de ocorrências de flagelos de fome e de sede decorrentes das grandes secas.
A seca na região semi-árida só passou a ser considerada como problema relevante no século XVIII, depois que se efetivou a penetração da população branca nos sertões, com o aumento da densidade demográfica e com a expansão da pecuária bovina. As secas passaram a entrar de forma permanente nos relatos históricos enfatizando a calamidade da fome e acusando os prejuízos dos colonizadores e das fazendas de gado. Julgamentos superficiais sobre o fenômeno e interesses políticos locais conduziram à construção de explicações reducionistas dos problemas regionais como produtos de condições naturais adversas, do clima, da terra e de sua gente. A seca tornou-se vilã do drama nordestino, a principal imagem de “uma terra estorricada, amaldiçoada, esquecida de Deus” (CASTRO, 1967, p. 168).
Na segunda metade do século XIX, quando as ocorrências de secas prolongadas colocaram em risco o povoamento e as atividades econômicas no sertão nordestino, tiveram início os estudos científicos sobre a problemática . Predominou a tentativa de descobrir e explicar as causas naturais do fenômeno das secas no Nordeste. A visão parcial do Semi-árido, como a região das secas, conduziu a adoção de soluções fragmentadas, cujo núcleo gerador é o combate à seca e aos seus efeitos.
Na primeira metade do século XX, surgiram outros olhares críticos sobre as causas estruturais e as conseqüências da miséria na região semi-árida. Tanto na literatura regional quanto nos estudos científicos, a
Várias obras históricas desse período são citadas por Joaquim Alves (1982); Thomas Pompeu Sobrinho (1982); José Guimarães Duque (2004); Manuel Correia de Andrade (1999); Marco Antonio Villa (2000); Gustavo Maia Gomes (2001), entre outros. análise sociológica ganhou destaque ao enfatizar a forma predominante de ocupação e exploração do território pelos colonizadores e seus sucessores que levaram à concentração das riquezas e do poder político, gerando miséria e dependência da maioria da população sertaneja. Essa visão crítica da realidade desmistificou as ações de combate à seca que, além de ineficazes, reproduziam as estruturas locais de dominação.
Na década de 1950, diante do aprofundamento da crise socioeconômica e política na região, forças sociais do Nordeste passaram a exigir maior atenção do governo federal para a promoção do desenvolvimento regional. O documento elaborado em 1958 por Celso Furtado, em nome do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), mostrou que as ações governamentais nas ocorrências de secas, de curto e de longo prazo, por diversos motivos, não conseguiram modificar as causas do problema (FURTADO, 1959; BRASIL, 1959). A partir da criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959, houve uma tentativa de mudança profunda de orientação das ações governamentais no Nordeste. Durante o período ditatorial, com o abandono das propostas de reformas substanciais na região, ganhou destaque uma concepção da “modernização econômica e tecnológica” como base do desenvolvimento regional. Na década de 1970, as políticas governamentais passaram a dar ênfase à implantação de pólos de modernização agrícola e pecuária. A agricultura irrigada, com especialização na fruticultura para exportação, tornou-se a “solução” para os problemas da seca no sertão.
Porém, os indicadores mostravam que, na sua maior porção, a economia do Semi-árido permanecia tradicional e estagnada e a situação estrutural de pobreza ainda se transformava em calamidade nas estiagens prolongadas. Verificava-se também o agravamento das problemáticas ambientais na região com os processos de desertificação e de poluição de bacias hidrográficas. A partir da década de 1980, no processo de redemocratização da sociedade brasileira, passou-se a buscar alternativas para o desenvolvimento no Semi-árido brasileiro. Organizações da sociedade civil e algumas instituições públicas de pesquisa e extensão passaram a formular propostas e realizar projetos com base na idéia de que é possível e necessário conviver com o Semi-árido. As novas tecnologias de captação e armazenamento de água de chuva, o manejo sustentado da caatinga, as tecnologias alternativas de produção e a educação contextualizada, entre outras, geraram novos referenciais para a convivência. Diante do descrédito nas ações de combate à seca, programas
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governamentais passaram também a reproduzir esse discurso da sustentabilidade.
Considerando a importância desse debate na atualidade, busca-se identificar e analisar as mutações nas concepções de desenvolvimento que têm sido propostas e que orientam as políticas governamentais de intervenção na realidade do Semi-árido brasileiro . Para isso, foram realizados estudos bibliográficos e documentais. A revisão de literatura possibilitou a averiguação do processo de formulação e da trajetória histórica do discurso sobre a realidade e sobre as alternativas de desenvolvimento do Semi-árido, das formas de institucionalização e da efetivação desse discurso em iniciativas governamentais. A pesquisa documental permitiu produzir uma caracterização de políticas governamentais no Semi-árido brasileiro.
O estudo teve como pressuposto a existência de relações entre as concepções e políticas no Semi-árido com paradigmas globais que orientam o debate sobre o desenvolvimento . Percebe-se a relação entre o paradigma da modernidade e as concepções de “combate à seca e aos seus efeitos” e de “modernização econômica do Semi-árido”. Da mesma forma, são percebidas relações entre a “convivência com o Semi-árido” e o paradigma contemporâneo da sustentabilidade do desenvolvimento. É possível afirmar que as mudanças substanciais nas concepções sobre a realidade e nas proposições para o desenvolvimento no Semi-árido expressam modificações profundas nas formas de conceber e explicar a realidade e de construir perspectivas alternativas futuras. Trata-se, de uma transição paradigmática que, segundo Boaventura de Sousa Santos (2001, p. 16), é caracterizada pela passagem entre a falência de um paradigma sociocultural dominante e a emergência de um novo paradigma que não está plenamente definido: “Entre as ruínas que se escondem atrás das fachadas, podem pressentir-se os sinais, por enquanto vagos, da emergência de um novo paradigma”. Formula-se então, como hipótese, que é nesse contexto de crise das concepções, práticas e políticas que predominaram secularmente no Semi-árido,
Trata-se de estudo realizado pelo autor, no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UNB), entre 2002 a 2006, e que resultou em Tese de Doutorado, defendida e aprovada por unanimidade da banca examinadora.
O paradigma é uma matriz disciplinar partilhada pelos membros de uma comunidade que conduz os olhares e as visões na interpretação e soluções de determinados problemas. Segundo Thomas S. Kuhn (1975, p. 13) o paradigma é modelo que “[...] durante algum tempo, fornece problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”.que se vislumbra a construção de um novo paradigma de desenvolvimento sustentável para aquela região.
Além dessa introdução e das considerações finais, o artigo está organizado em quatro seções. Na primeira, apresenta-se uma visão da complexidade socioeconômica e ambiental do Semi-árido na atualidade. A segunda e a terceira seções apresentam as relações entre as concepções sobre o Semi-árido e os paradigmas da modernidade e da sustentabilidade do desenvolvimento. A quarta parte é uma análise da transição paradigmática nos processos de formulação de políticas públicas para o Semi-árido.
2 – SEMI-ÁRIDO BRASILEIRO: ESPAÇO DE COMPLEXIDADES
As regiões semi-áridas são caracterizadas de modo geral, pela aridez do clima, pela deficiência hídrica com imprevisibilidade das precipitações pluviométricas e pela presença de solos pobres em matéria orgânica. O prolongado período seco anual eleva a temperatura local caracterizando a aridez sazonal. Na América do Sul, existem três espaços caracterizados pela semi-aridez. A área de domínio do Semi-árido brasileiro é, segundo Ab’Sáber (2003), a mais homogênea delas do ponto de vista fisiográfico, ecológico e social. Trata-se da maior área de domínio de clima semi-árido, em termos de extensão e de densidade demográfica.
O conceito técnico de Semi-árido é decorrente de uma norma da Constituição Brasileira de 1988, mais precisamente do seu Artigo 159, que institui o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE). A norma constitucional manda aplicar no Semi-árido, 50% dos recursos destinados ao Fundo. A Lei 7.827, de 27 de setembro de 1989, regulamentando a Constituição Federal, define como Semi-árido a região inserida na área de atuação da Sudene, com precipitação pluviométrica média anual igual ou inferior a 800 mm. Segundo a última delimitação feita pelo Ministério da Integração Nacional, conforme Portaria Ministerial n. 89, de março de 2005, o Semi-árido abrange 1.133 municípios em uma área de 969.589,4 km2, correspondendo a quase 90% da área total do Nordeste mais a região setentrional de Minas Gerais . Com uma população de cerca de 21 milhões de
A presença do Semi-árido em Minas Gerais é a justificativa técnica para a expressão “Semi-árido brasileiro”. A justificativa política é de que a questão do Semi-árido deve ser de interesse nacional e não apenas regional.
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pessoas (11% da população brasileira), é um espaço cada vez mais urbano .
A insuficiência e irregularidade na distribuição de chuvas, a temperatura elevada e a forte taxa de evaporação são características climáticas que “projeta derivadas radicais para o mundo das águas, o mundo orgânico das caatingas e o mundo socioeconômico dos viventes dos sertões” (AB’SÁBER, 2003, p. 85). A hidrologia é totalmente dependente do ritmo climático. As secas são caracterizadas tanto pela ausência e escassez quanto pela alta variabilidade espacial e temporal das chuvas. Não é rara na história da região a sucessão de anos seguidos de seca. No entanto, a limitação hídrica ocorre anualmente devido ao longo período seco que leva à desperenização dos rios e riachos endógenos. A reduzida capacidade de absorção de água da chuva no solo é dificultada em virtude do relevo alterado e dos solos rasos e pedregosos.
Um dos fatores marcantes da paisagem é a vegetação de caatinga. Trata-se de um bioma com alta biodiversidade, onde se destaca a formação vegetal xerófila com folhas pequenas que reduzem a transpiração, caules suculentos para armazenar água e raízes espalhadas para capturar o máximo de água. Além das cactáceas, destacam-se espécies arbóreas, herbáceas e arbustivas. Nas primeiras chuvas, a caatinga perde seu aspecto rude e torna-se verde e florida, inspirando o poeta sertanejo: “Chegando o tempo do inverno, tudo é amoroso e terno, sentido o Pai Eterno sua bondade sem fim. O nosso sertão amado, estrumicado, pelado, fica logo transformado no mais bonito jardim” (ASSARÉ, 1978, p. 355).
Apesar dessas características gerais, o Semi-árido brasileiro é uma realidade complexa, tanto no que se refere aos aspectos geofísicos, quanto à ocupação humana e à exploração dos recursos naturais. Ab’Sáber (2003, p. 88) destaca, com base em trabalho realizado por George H. Hargreaves, na década de 1970, a existência de quatro faixas no Semi-árido: as faixas semi-áridas acentuadas ou subdesérticas (o “sertão bravo”); as faixas semi-áridas rústicas ou semi-áridas típicas (os “altos sertões”); as faixas semi-áridas moderadas (caatingas agrestadas); e as subáreas de transição ou faixas subúmidas (os agrestes).
Entre 1991 e 2000, a população do Semi-árido cresceu 8,62%. O crescimento urbano chegou a 26,48% e o rural decresceu 8,16%, conforme o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2000 (ATLAS..., 2000).
O desconhecimento da complexidade do Semi-árido conduziu à introdução de práticas agropecuárias inadequadas, provocando ou agravando desequilíbrios ambientais. Estudos realizados pelo Ministério do Meio Ambiente (BRASIL, 2002a) indicam que 68% da área estão antropizados, sendo 35,3% extremamente antropizados. O zoneamento realizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária − Embrapa (1993) revelou que 36% da área de domínio do Semi-árido (cerca de 35 milhões de hectares) possuem fortes restrições ao uso agrícola. As maiores extensões de áreas em processo de desertificação no Brasil, com a perda gradual da fertilidade biológica do solo, são localizadas no Semi-árido, resultado do cultivo inadequado da terra, associado às variações climáticas e às características do solo. Segundo as informações do Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Secas (PAN) as áreas susceptíveis à desertificação no Brasil (ASD) abrangem 1.201 municípios, numa superfície de 1.130.790,53 km², dos quais 710.437,30 km² (62,8%) são caracterizados como semi-áridos e 420.258,80 km² (37,2%), subúmidos secos (BRASIL, 2006).
A introdução de práticas econômicas e tratos culturais nem sempre adequados aos ecossistemas locais é resultado do processo de ocupação do Semi-árido. As práticas não-apropriadas àquela realidade, com a excessiva exploração dos recursos naturais e a ausência dos estudos de ecologia das regiões naturais, é que levaram os lavradores a insistir nos cultivos dos cereais em ambientes impróprios, desde o período de colonização. Conforme Duque (1980, p. 9), a ampliação da ocupação humana significou um desgaste ambiental com a “expansão biológica em meio físico estático”.
O Bioma Caatinga que predomina na área de abrangência do Semi-árido foi durante muito tempo o mais negligenciado bioma brasileiro . Somente em 1965, com o Novo Código Florestal (Lei 4.771), é que a caatinga foi considerada como passiva de proteção (DRUMOND, 1998/1999). Em 2002, o projeto do Ministério do Meio Ambiente de “Avaliação e Ações Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade da Caatinga” (BRASIL, 2002a) recomendou a ampliação da área protegida por Unidades de Conservação na Caatinga para 10% nos próximos 10 anos.
Do ponto de vista econômico, o Semi-árido também é marcado por contrastes. A estrutura fundiária é extreÉ
na Caatinga onde se encontra o menor percentual de áreas protegidas em Unidades de Conservação. As 16 Unidades Federais de Conservação abrangem apenas 0,5% do território do bioma caatinga.
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mamente concentrada. Além dos latifúndios, verifica-se um grande número de minifúndios, com cerca de 90% das propriedades possuindo área inferior a 100 hectares e detendo apenas 27% da área total dos estabelecimentos agrícolas (BRASIL. Ministério da Integração Nacional, 2005). Essa realidade não tem mudado, apesar do recente processo de modernização econômica na região, com a incorporação de novas áreas e setores dinâmicos e competitivos. Com os incentivos fiscais, foram valorizados os empreendimentos agroindustriais que tinham maior porte de investimento, maior possibilidade de introdução de inovações tecnológicas e gerenciais, além da capacidade de inserção no mercado competitivo. Na sua maior parte, porém, a economia do Semi-árido é caracterizada pela produção de subsistência, tendo em vista que as atividades econômicas comerciais tradicionais estão em crise, como é o caso do algodão e da pecuária.
Estudos recentes, realizados pelo Grupo de Trabalho Interministerial para Recriação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (BRASIL. Ministério da Integração Nacional, 2003), indicam que, entre 1970 e 1998, período de expansão das atividades modernas de agricultura irrigada, houve uma redução da participação do Semi-árido na formação do Produto Interno Bruto (PIB) do Nordeste, passando de 28,4% para 21,6%. Segundo os dados oficiais citados no documento, as diferenciações de ritmo de crescimento nas sub-regiões são relacionadas ao processo de expansão do pólo agroindustrial no Vale do São Francisco e à crise da produção de algodão no Agreste e no Sertão:
No período de 1970 a 1998, em que o Nordeste, em seu conjunto, expandiu-se a uma taxa de 5,3%, algumas sub-regiões mostraram-se bem mais dinâmicas: o Litoral-Mata cresceu a uma taxa de 5,8%, o Cerrado a 7,5%, Parnaíba a 6,2% e o São Francisco a 5,8%, sendo que a área de Petrolina-Juazeiro, incluída nesta última sub-região, expandiu-se a uma taxa anual de 7,1%. Com dinamismo menor que o da média regional, o Sertão avançou no período a uma taxa de 4,2% e o Agreste a apenas 3,8% (BRASIL. Ministério da Integração Nacional, 2003, p. 25).
O semi-árido também tem sido histórica e socialmente marcado pelas duradouras contradições e injustiças sociais. Os indicadores sociais nas áreas de saúde, educação e renda são os piores em relação à média nacional. De fato, os indicadores divulgados pela Agência de Desenvolvimento do Nordeste (BRASIL. Agência de Desenvolvimento do Nordeste, 2003) revelam que, entre 1970 e 1990, o Produto Interno Bruto (PIB) da região Nordeste praticamente triplicou, enquanto que o PIB per capita regional não acompanhou o mesmo ritmo, tendo passado de US$ 740 para US$ 1.486, no mesmo período. Com isso, segundo a Agência de Desenvolvimento, o produto por habitante do Nordeste continua sendo o mais baixo do Brasil, mesmo tendo melhorado nos últimos anos. Em relação ao Semi-árido, a situação é inversa. No período de 1970 a 1998, houve uma queda do produto per capita que passou de 74,7% para 53,2% em relação ao produto per capita do Nordeste (BRASIL. Ministério da Integração Nacional, 2003, p. 27).
O Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil de 2000 mostra que 81,8% dos municípios do Semi-árido brasileiro, com 61,7% da população, têm baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Estes percentuais estão muito acima da média nacional, que possui apenas 31,6% dos municípios e 15% da população nessa faixa. Nenhum município do Semi-árido está na faixa mais elevada do IDH (entre 0,800 e 1,000).
O que o Índice de Desenvolvimento Humano revela é que os indicadores sociais no Semi-árido (com especial atenção para saúde, educação e renda) continuam abaixo da média nacional. Essa situação ficou ainda mais exposta nos últimos períodos de secas prolongadas ocorridas na década de 1990. Na seca de 1992 a 1993, foram alistadas 2,1 milhões de pessoas nas frentes de
Tabela 1 – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal – Brasil e Semi-árido (2000)
IDH – M
Brasil
Semi-árido Brasileiro
Municípios
População
Municípios
População
Nº
%
Nº
%
Nº
%
Nº
%
Até 0,500
22
0,4
228.038
0,1
7
0,6
77.022
0,4
0,501 a 0,650
1.718
3
1,2
25.117.446
14,8
920
81,2
12.790.961
61,3
0,651 a 0,800
3
.209
58,3
81.123.146
47,8
206
18,2
8.009.942
3
8,3
0,801 a 1,000
558
10,1
63.33 0.540
3
7,3
0
0
0
0
Total
5.507
100
169.799.170
100
1.133
100
20.877.925
100
Fonte: Atlas... (2000).
Re 471 vista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 38, nº 3, jul-set. 2007
emergência criadas pelo Governo Federal e na seca de 1998 e 1999, foram distribuídas 3 milhões de cestas básicas/mês a famílias residentes no Semi-árido brasileiro. Por isso, ao longo da história, a pobreza e miséria no Semi-árido foram relacionadas com a ocorrência das secas. As interpretações desse fenômeno natural e de suas conseqüências para a produção e a população local, omitiram os aspectos estruturais do modo de ocupação do espaço, de exploração dos recursos naturais e de subordinação da população.
Mas não se trata de, mais uma vez, atribuir à seca toda a culpa pelos baixos índices de desenvolvimento humano no Semi-árido. As análises realizadas identificam a persistência das desigualdades sociais que está na base da reprodução secular das condições de miséria que fragilizam as famílias sertanejas, impedindo-as de resistir aos efeitos das estiagens prolongadas. Estimativas recentes sobre os níveis de concentração da renda no Nordeste revelam que o índice de Gini se elevou, passando de 0,596 para 0,61 entre 1970 e 2000 (BRASIL. Agência de Desenvolvimento do Nordeste, 2003). Num país como o Brasil, considerado como um dos países campeões mundiais em concentração de renda, o Semi-árido desponta com uma situação ainda mais grave. Em 2000, o percentual da renda apropriada pelos 10% mais ricos chegava a 43,7%; enquanto a renda dos 40% mais pobres era de apenas 7,7% (ATLAS..., 2000). Conforme os dados do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2000, mais de 32% dos municípios do semi-árido brasileiro têm elevada concentração de renda com o índice de Gini acima 0,60. Este percentual está bem acima da média nacional, que possui apenas 21% dos municípios nessa faixa, e um pouco acima da média regional, conforme a Tabela 2.
Essa situação foi constatada por Josué de Castro ainda na década de 1930, ao lançar seus primeiros documentários que embasariam a sua “Geografia da Fome”. O autor desmistificava as causas dos surtos de fome nas secas como a expressão da concentração fundiária, da renda e do poder. Outra contribuição fundamental para desvendar essa situação foi dada pelo economista Celso Furtado (1959; 1984; 1989), reforçando o diagnóstico de que a explosão de miséria no Semi-árido ocorre quando as chuvas são insuficientes ou irregulares para permitir a produção e a subsistência dos sertanejos que, mesmo em anos normais, vivem em condições de limite da pobreza. Trata-se de um diagnóstico preciso da seca como crise de produção de uma economia débil, marcada pela baixa produtividade e pelo reduzido grau de integração nos mercados, sujeita a crises periódicas nas estiagens prolongadas. Porém, até hoje, reproduz-se o uso político da seca, transformando-a no “cavalo de batalha em cujos costados se põe toda a culpa da miséria nordestina” (CASTRO, 1968, p. 90).
2 – UM PARADIGMA MODERNO: O COMBATE À SECA
A intervenção governamental no Semi-árido brasileiro, em grande parte, tem sido orientada por três dimensões que se combinam no combate à seca e aos seus efeitos: a finalidade da exploração econômica; a visão fragmentada e tecnicista da realidade local; e o proveito político dos dois elementos anteriores em benefício das elites políticas e econômicas regionais.
2.1 – Interesses Econômicos e Políticos do Combate à Seca e aos seus Efeitos
Em relação ao primeiro elemento, do interesse econômico no combate à seca, é possível identificar que as ações emergenciais (de socorro às vítimas com alimentos e nas frentes de trabalho) e de infra-estrutura (hídrica e de transporte) foram e são realizadas em benefício das atividades econômicas implantadas no Semi-árido desde o período colonial até os dias atuais.
Deve-se ressaltar inicialmente que a demora para a ocupação do espaço do Semi-árido por mais de um século, após a chegada dos portugueses e o início da
Tabela 2 – Índice de Gini – Brasil, Nordeste e Semi-árido (2000)
Índice
Brasil
Nordeste
Semi-Árido
Municípios
%
Municípios
%
Municípios
%
De 0,30 a 0,40
11
0,2
1
0,1
1
0,1
+ de 0,40 a 0,50
659
12,0
82
4,6
53
4,7
+ de 0,50 a 0,60
3
.672
66,7
1.188
66,5
713
62,9
+ de 0,60 a 0,70
1.089
19,7
477
26,7
3
43
3
0,3
+ de 0,70 a 0,80
79
1,4
3
9
2,2
23
2,0
Total
5.507
100
1.787
100
1.133
100
Fonte: Atlas... (2000).
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colonização, deveu-se à falta de interesse da empresa colonial em ocupar uma terra que não produzia tantas riquezas quanto a Zona da Mata (ALVES, 1982). Com o processo de ocupação dos sertões, com as fazendas de gado, a ênfase da política colonial passou a ser a fixação dos colonos e de suas atividades produtivas. Foi nesse período que surgiram as primeiras interpretações da seca e suas conseqüências danosas à empresa colonial, como o relato de Fernão Cardin, em 1587, sobre a fuga de índios do sertão para o litoral em busca de alimentos .
A seca passou a ser considerada como problema relevante para os governantes somente no século XVIII, com o aumento da população e a expansão da pecuária. Os documentos oficiais passam a se referir às secas acusando os prejuízos econômicos sofridos pela população branca e as fazendas de gado e pelo aumento dos pedidos de ajuda à Coroa para substituir os escravos que eram abandonados por seus senhores nos períodos de seca e morriam de fome. Por isso, a primeira medida adotada pela metrópole foi no sentido de obrigar o cultivo da mandioca como alternativa alimentar.
Durante o Império e os primeiros anos da República, as secas prolongadas eram elementos de desordem em um complexo econômico que se havia formado no Semi-árido, composto pela pecuária, pelo cultivo do algodão e pela agricultura de subsistência. A mortandade dos animais e as perdas das lavouras nem sempre apropriadas ao clima, a dificuldade de acesso à água, a fome e o êxodo da população nos períodos de secas aumentaram à medida que o espaço foi sendo ocupado.
No final do século XIX e início do século XX, aumentou a pressão dos governos locais por socorro durante os períodos de estiagem através das ações emergenciais e das ações hídricas para armazenamento de água. Nesse contexto estavam dadas as condições para a institucionalização das propostas de combate aos efeitos da seca, com a instalação da “Comissão de Estudos e Obras Contra os Efeitos das Secas”, em 1904, e depois com a criação da “Superintendência de Estudos e Obras Contra os Efeitos das Secas”. Alguns anos depois, com a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) , órgão governamental criado em 1909, consolidou-se a política hidráulica para o combate à seca.
Para Medeiros Filho (1988, p. 13), devido à natureza mutável do sertão, os tapuias adotavam um regime nômade e aproveitavam as condições naturais para sobreviver, mesmo nas estiagens prolongadas.
Em 1919, foi transformado em Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (Ifocs), que, em 1945, foi transformado no atual Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs).
Desde as primeiras iniciativas governamentais, pesaram os interesses políticos das oligarquias sertanejas no Nordeste, transformando o combate à seca em um grande negócio: “Esses donos da vida, das terras e dos rebanhos agem sempre durante as secas, mais comovidos pela perda de seu gado do que pelo peso do flagelo que recai sobre os trabalhadores sertanejos, e sempre predispostos a se apropriarem das ajudas governamentais destinadas aos flagelados” (RIBEIRO, 1995, p. 348).
O sociólogo Francisco de Oliveira enfatiza que as instituições criadas no início do século XX para o combate à seca foram capturadas pelas elites dominantes locais, garantindo a manutenção do status quo. Os investimentos estatais significaram um reforço da própria estrutura produtiva, dando fôlego para reprodução das condições sociais e políticas que sustentam as relações de poder no Semi-árido: “expandia a pecuária dos grandes e médios fazendeiros, e contribuía para reforçar a existência do ‘fundo de acumulação’ próprio dessa estrutura, representado pelas culturas de subsistência’ dos moradores, meeiros, parceiros e pequenos sitiantes” (OLIVEIRA, 1981, p. 55). Dessa forma, Francisco de Oliveira conclui que as ações emergenciais constituíam “uma forma típica de acumulação primitiva” das oligarquias sertanejas que usufruíam econômica e politicamente da ação emergencial de combate às secas: “as ‘emergências’ criaram outra forma de enriquecimento e de reforço da oligarquia: não apenas os eleitores reais dos ‘coronéis’ tinham prioridade para engajamento nas frentes de trabalho, como os eleitores-trabalhadores-fantasmas, povoavam as frentes de trabalho das secas” (OLIVEIRA, 1981, p. 55).
As políticas de combate à seca (emergenciais e estruturais) entraram em crise ainda na primeira metade do século XX. Os principais questionamentos sobre os resultados ou eficácia dos órgãos e das ações de combate à seca ocorreram concomitantes às constatações da forte estagnação econômica regional nordestina verificada desde as primeiras décadas daquele século. Em relação às políticas governamentais no Semi-árido, questiona-se o caráter emergencial, fragmentado e descontínuo dos programas desenvolvidos em momentos de calamidade pública que alimentavam a chamada “indústria da seca”. Em 1959, o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) alertou sobre a ineficiência do combate aos efeitos da seca: “por motivos diferentes, nem as medidas de curto prazo nem as de longo prazo contribuíram, até o presente, para modificar fundamentalmente, os dados do problema” (BRASIL, 1959, p. 70).
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A partir do final da década de 1950, ocorrem tentativas de mudanças nas políticas governamentais orientadas para a integração regional no contexto de desenvolvimento nacional (GUIMARÃES NETO, 1989). As políticas oficiais passam a ser orientadas pela busca da “modernização econômica e técnica” das atividades produtivas no Semi-árido, como forma de solucionar o problema das secas. Com isso, na segunda metade do século XX, algumas áreas do Semi-árido experimentaram processos de modernização econômica constituindo um novo modelo produtivo, com uma intensa participação do setor público através dos financiamentos, da infra-estrutura, das pesquisas e dos incentivos fiscais para atração de empresas privadas (ARAÚJO, 1997a; 1997b; 2000).
O desenvolvimento recente de algumas ilhas de modernidade no Semi-árido é fundamentado na crença de que o modelo de agribusiness gera maior agregação de valor à produção local, permitindo incrementos expressivos no nível de emprego e de renda, contribuindo para o desenvolvimento regional. A fruticultura irrigada passou a ser concebida como o “caminho” da redenção regional, como a forma mais eficiente de aproveitamento máximo de vantagens comparativas locais como a luminosidade, o calor e a baixa umidade. As políticas de modernização econômica atendem aos interesses de parte das oligarquias sertanejas (sobretudo com os investimentos na modernização da pecuária) e, principalmente, dos grupos empresariais que passam a investir nos pólos agropecuários na região, sob a orientação técnica e burocrática do Estado autoritário. O semi-árido é visto a partir de uma perspectiva de aproveitamento de seus recursos, conforme a lógica do mercado:
A questão ambiental é considerada como uma variável econômica e não simplesmente ecológica, sendo relacionada à competitividade e à oportunidade de negócios. Não se trata, portanto, de um aspecto restritivo da atividade econômica, mas ao contrário, reflete uma aproximação entre meio ambiente e desenvolvimento, onde o próprio mercado é utilizado para induzir um manejo ótimo e sustentável dos recursos naturais e de aspectos sociais relacionados com a sua exploração (FRANÇA; OLIVEIRA, 1999, p. 112).
2.2 – O Enfoque Fragmentado e Reducionista do Combate à Seca e aos seus Efeitos
Outra característica da intervenção governamental no Semi-árido é o enfoque fragmentado e reducionista de que a seca, como falta de água, é o principal problema a ser enfrentado. Os relatos históricos mostram que os estudos técnicos e científicos foram incentivados e patrocinados pelo governo desde os fins do século XIX, buscando identificar as causas das secas e apontar as soluções para redução dos seus efeitos. Em 1856, o governo imperial criou uma Comissão Científica formada por estudiosos naturalistas e engenheiros que percorreu os sertões para desvendar as causas e conseqüências das secas e apontar soluções. A Comissão tinha uma composição multidisciplinar, sendo formada por cinco setores: botânica; geologia e mineralogia; astronomia e geografia; etnografia; e narrativa. As secas na área de domínio do Semi-árido despertaram o interesse de estudiosos naturalistas e de engenheiros, que percorreram os sertões nordestinos, e cujo material informativo contribuiu para a formação de uma “[...] mentalidade favorável à pronta execução de obras que pudessem solucionar o problema das secas” (ALVES, 1982, p. 70).
O enfoque técnico de engenheiros e naturalistas e os interesses políticos sobre os problemas regionais, resultaram na chamada “solução hidráulica” do problema das secas. Segundo o historiador Pompeu Sobrinho, quatro soluções aos problemas da seca tinham maior destaque no final do século XIX: a solução hidráulica (açudagem), a solução florestal (reflorestamento), a cultura científica do solo (dry-farming) e a abertura de estradas. A principal delas, a solução hidráulica, pela açudagem e irrigação, era defendida como a capacidade humana de modificar as condições naturais inóspitas, ou seja, como solução direta dos problemas das secas:
O que convém principalmente, como correção da natureza semi-árida do Nordeste, é armazenar água copiosa, que, distribuída irregularmente, se escoa pelo seu solo impermeável e declivoso. Obstar essa perda pela açudagem, em larga escala, é a solução definitiva do problema das secas, visando estabilizar a população sujeita a um desastroso nomadismo e aproveitar terras propícias a todas as culturas agrícolas (POMPEU SOBRINHO, 1982, p. 87).
Hoje, o Semi-árido brasileiro é uma das áreas de domínio de clima semi-árido do mundo que mais possui capacidade de armazenamento de água. Em 2000, a capacidade de acumulação total dos reservatórios existentes na região Nordeste era estimada em 86 bilhões de metros cúbicos de água. As águas represadas em açudes do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) propiciavam a exploração de 82 mil hectares de áreas de vazantes e da produção de 17 mil toneladas de pescado, o aproveitamento com irrigação de cerca de 107 mil hectares, sendo 67 mil hectares em áreas privadas e 30 mil hectares em áreas públicas, e o abastecimento humano de 1,7 milhão de pessoas em
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cidades do Semi-árido brasileiro (VEIGA, 2000). Mesmo assim, a irrupção de estiagens prolongadas provoca crise de abastecimento de água para a população.
Essas observações críticas não devem, no entanto, encobrir as vantagens e resultados alcançados pelas ações governamentais e, principalmente, do Dnocs, no Semi-árido brasileiro. O que se quer chamar a atenção é para o fato de que as obras hidráulicas não podem ser consideradas a única e nem a principal solução ao problema das secas. Mesmo em relação ao abastecimento de água, ainda permanecem grandes desafios. Uma análise detalhada dos dados apresentados revela que o problema de abastecimento de água para a população sertaneja é a má distribuição ou concentração espacial da água acumulada. Conforme o relato de Veiga (2000), do total de 86 bilhões de metros cúbicos de água acumulada no Nordeste, 56 bilhões pertenciam ao setor elétrico. Dos 30 bilhões restantes, 18 bilhões encontram-se em barragens construídas pelo sistema Dnocs, sendo 309 açudes públicos e 622 açudes em cooperação com particulares, subsidiados com recursos da União. Além da má distribuição e da privatização de parte das águas armazenadas no Semi-árido, a açudagem é limitada diante das condições climáticas locais, com temperaturas bastante elevadas durante quase todo o ano.
O que está em questionamento é a visão reducionista e fragmentada das soluções tecnológicas e do utilitarismo economicista do combate à seca. Combater a seca é uma crença na capacidade do progresso, como solução técnica aos problemas. Expressa um paradigma que informa as crenças e atitudes civilizatórias da modernidade. Sua finalidade implícita é modificar a natureza, conhecendo as causas naturais da seca e agindo sobre os seus efeitos para promoção do progresso da humanidade . Reflete uma perspectiva antropocêntrica da afirmação da dominação humana sobre a natureza, “como um ser especial que dispõe da terra como herança reduzindo-a a um objeto de livre manipulação técnica, um reservatório de matéria e energia disponível [...] a serviço da elevação progressiva do bem-estar material do homem” (BARTHOLO JÚNIOR, 1984, p. 75).
O combate à seca também expressa o distanciamento ou o estranhamento entre o ser humano e uma terra e climas amaldiçoados. A título de exemplo, podem-se citar alguns trechos de um relatório de uma comissão de notáveis que viSegundo
Capra (1999), esse paradigma tem os seguintes fundamentos: o método científico como única abordagem válida do conhecimento; a concepção do universo como um sistema mecânico composto de unidades materiais elementares; a concepção da vida em sociedade como uma luta competitiva pela existência; e a crença no progresso material ilimitado, a ser alcançado através do crescimento econômico.sitou as obras governamentais de combate à seca no sertão nordestino, em 1922. O autor do relatório nega a terra: “no Brasil, coube ao Nordeste o pior quinhão das adversidades naturais, pela escassez de chuvas, fator primacial do bem estar e do progresso das populações” (LOPES, 1990, p. 4). E, em seguida, atribui à divindade, a culpa do sofrimento do povo sertanejo que não pode “emparelhar-se, nos efeitos de seu audaz labor, às populações de outras paragens mais acariciadas pela mão divina” (LOPES, 1990, p. 5).
No entanto, esse paradigma está em crise. A visão fragmentada de mundo resultou em profundo desequilíbrio social, econômico, cultural e ambiental. O crescimento tecnológico criou um meio ambiente no qual a vida se tornou física e mentalmente doentia. A miopia ecológica e a ganância empresarial incentivam a exploração desordenada dos recursos e a acumulação das riquezas, promovendo a exclusão social de bilhões de pessoas e colocando em risco o futuro da vida na terra (FURTADO, 1974). A produção e o consumo se aceleram em ritmo febril pondo em risco as reservas naturais. O que confere o status de modernidade é o acesso e uso dos mais avançados produtos da economia e a tecnologia necessária para fabricá-los. Para Cristovam Buarque, a modernidade técnica impõe um padrão consumista predador da natureza e de vidas humanas em beneficio de minorias privilegiadas, sobrepondo a economia a outros valores e finalidades da vida humana: “na modernidade-técnica, o avanço técnico define a racionalidade econômica, subordinando a ela os objetivos sociais e ignorando os valores éticos” (BUARQUE, 2001, p. 224).
Da mesma forma, já faz algum tempo, constata-se a frustração das políticas de combate à seca. Nesse início do século XXI, as situações de emergência e calamidade continuam a se repetir no semi-árido brasileiro que ainda concentra elevados percentuais de pobreza e miséria. Buscam-se alternativas para a região, considerando que “o desenvolvimento não é apenas um processo de acumulação e de aumento de produtividade econômica, mas principalmente uma via de acesso a formas sociais mais aptas para estimular a criatividade humana e para responder às aspirações de uma coletividade” (FURTADO, 1984, p. 8).
3 – UM PARADIGMA EMERGENTE: A CONVIVÊNCIA COM O SEMI-ÁRIDO
3.1 – Sustentabilidade do Desenvolvimento
A problemática do desenvolvimento tem provocado o surgimento de vários movimentos de tomada de consciência sobre os seus impactos ambientais e sociais. Esses
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movimentos procuram alternativas que permitam satisfazer, de forma adequada, as necessidades e aspirações das populações presentes sem comprometer o bem–estar das gerações futuras. A Conferência de Estocolmo (1972) e o Simpósio de Cocoyok (1974) são marcos na construção do debate sobre as relações intrínsecas entre meio ambiente e desenvolvimento, resultando na formulação de estratégias para harmonizar as necessidades básicas da humanidade com as capacidades limitadas dos recursos naturais. Que são, segundo Ignacy Sachs (1986), as bases do ecodesenvolvimento.
Esse movimento expressa a emergência de um novo paradigma, “uma mudança profunda no pensamento, percepções e valores que formam uma determinada visão da realidade” (CAPRA, 1999, p. 29). Essas mudanças estão relacionadas a novos conceitos científicos que expressam a passagem da concepção mecanicista para uma visão holística e ecológica, rompendo com o antropocentrismo, reconciliando ser humano e natureza. A consciência holística tem por base a concepção de que a inter-relação e interdependência são elementos essenciais em todos os fenômenos físicos, biológicos, culturais e sociais.
Apesar de permanecerem até hoje, as divergências sobre os conteúdos e significados de um desenvolvimento sustentável, existem avanços significativos na formulação de alguns princípios e critérios de sustentabilidade (SACHS, 1986; 2000; 2004). Pode-se considerar que a sustentabilidade do desenvolvimento tem por base a transformação das relações entre as pessoas e a natureza, buscando a harmonia entre o bem-estar do ser humano e o meio ambiente, fruto de uma consciência ecológica. A dimensão social da sustentabilidade expressa a perspectiva includente do desenvolvimento como estratégia de redução das disparidades de renda e de riqueza, com um patamar razoável de homogeneidade social. Submetida a essa orientação sociocultural e ambiental, a sustentabilidade econômica é a promoção do crescimento das forças produtivas e da produtividade ambientalmente equilibrada, com a construção de novas dinâmicas de geração e de redistribuição social das riquezas, incentivando atividades produtivas adaptadas às condições ecológicas de cada território, baseando-se na utilização racional dos recursos naturais e na valorização do trabalho humano. A sustentabilidade política é explicitada num processo contínuo e participativo de conquista da cidadania, com a democracia definida em termos de apropriação universal dos direitos humanos, incluindo a capacidade de participação na formulação e implementação de projetos de desenvolvimento.
Articuladas à emergência de um novo paradigma de sustentabilidade, ocorrem mudanças nas concepções e perspectivas de intervenção no Semi-árido brasileiro, como um espaço onde é possível construir ou resgatar relações de convivência com base na sustentabilidade ambiental, na qualidade de vida das famílias sertanejas e no incentivo às atividades econômicas apropriadas. O protagonismo na afirmação desse novo paradigma não pertence aos governos e nem aos grupos dominantes regionais. Os novos formuladores da proposta da convivência são organizações da sociedade civil e alguns órgãos públicos de pesquisa e extensão que atuam no Semi-árido. Esses atores vêm se colocando o desafio de influenciar e disputar os processos de formulação de políticas públicas na região.
Nessa perspectiva, diversas organizações não-governamentais vêm formulando e realizando projetos de manejo sustentável dos recursos naturais, de uma produção apropriada e da melhoria das condições socioculturais da população sertaneja. A Articulação do Semi-Árido (ASA), um espaço de articulação política da sociedade civil organizada, tem como princípios: contribuir para a implementação de ações integradas para o Semi-árido; a conservação, o uso sustentável e recomposição ambiental dos recursos naturais; a quebra do monopólio do acesso à terra, à água e outros meios de produção; apóia a difusão de tecnologias apropriadas que contribuam para a convivência com o Semi-árido (ENCONTRO..., 2001). Embora venha tendo mais espaço entre organizações da sociedade civil, a perspectiva da convivência com o Semi-árido começa a perpassar programas governamentais (assunto que trataremos adiante), rompendo com a perspectiva do combate à seca.
3.2 – Fundamentos e Significados da Convivência
Parte das proposições e práticas de convivência com o Semi-árido tem origem em análises críticas e propostas para a região formuladas em meados do século XX. É importante resgatar, por exemplo, a atualidade do pensamento e as premissas analíticas de Celso Furtado, Josué de Castro e Guimarães Duque, entre outros. Esses autores são representativos da percepção que considera a complexidade da região, apontando a influência dos fatores estruturais na reprodução das condições socioeconômicas locais.
Em Josué de Castro, pode-se encontrar uma perspectiva interdisciplinar na interpretação das proRevista
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blemáticas e soluções para o Semi-árido, articulando estudos das ciências da saúde com aspectos culturais e geográficos e com elementos da estrutura socioeconômica. É essa articulação que permite elevar a discussão da problemática a patamares que, certamente, nunca foram percebidos anteriormente, desfazendo equívocos. A explicação da fome não se encontra nas condições naturais, mas nos sistemas econômicos e sociais:
Mais do que a seca, o que acarreta esse estado de coisas é o pauperismo generalizado, a proletarização progressiva do sertanejo, sua produtividade mínima, insuficiente, que não lhe permite possuir nenhuma reserva para enfrentar as épocas difíceis [...] Mesmo quando chove, sua produtividade é miserável, sua renda é mínima, de maneira que ele está sujeito a viver na miséria relativa ou na miséria absoluta, segundo haja ou não inverno na região do sertão (CASTRO, 1968, p. 86).
No caso de Celso Furtado, além da sua atuação ativa nas políticas de desenvolvimento nacional e regional (FURTADO 1959; 1989), destaca-se a sua contribuição como estudioso da realidade do Semi-árido. O documento “Uma Política de Desenvolvimento Econômico para o Nordeste”, elaborado em 1959, indica que a base da sustentabilidade do desenvolvimento no Semi-árido brasileiro é o reconhecimento de que as estiagens prolongadas são parte daquela realidade e de que, portanto, a economia local deveria ser mais bem adaptada à realidade ecológica regional. Celso Furtado afirma a sua convicção de que era necessário e possível transformar a economia da zona semi-árida para torná-la mais resistente ao impacto das secas. Por isso, o autor sugere dotar a região de uma estrutura agrária capaz de viabilizar o seu desenvolvimento, reconstruindo o seu setor agrícola e ampliando a oferta de alimentos com o fortalecimento da agricultura familiar: a única com “aptidão para criar uma agricultura ecologicamente adaptada à região semi-árida e absorvedora de mão-de-obra” (FURTADO, 1984, p. 10).
Na sua longa trajetória de pesquisador e engenheiro do Dnocs, por mais de trinta anos, José Guimarães Duque dispôs-se a estudar e interpretar a região, em seus aspectos fundamentais de solo, água e clima. Em seus estudos destaca a necessidade de mudança da concepção e da orientação das políticas de combate à seca: “o conceito de seca era aquele de modificar o ambiente para o homem nele viver melhor. A ecologia está nos ensinando é que nós devemos preparar a população para viver com a semi-aridez, tirar dela as vantagens” (DUQUE, 1996, p. 9). Como estudioso apaixonado do fenômeno do xeromorfismo das plantas originárias no sertão nordestino, dotadas de extraordinária capacidade de resistência às secas, ressaltou a possibilidade de uma economia agrícola local baseada no reflorestamento da caatinga para o aproveitamento das lavouras xerófilas: “As plantas nos estão indicando o caminho para a lavoura xerófila no Nordeste” (DUQUE, 2004, p. 16).
A convivência com o Semi-árido também vem sendo construída com base nas críticas ao atual padrão civilizatório de desenvolvimento e na formulação do pensamento do desenvolvimento sustentável. Ignacy Sachs (1986; 2000) chama a atenção para a necessidade e a possibilidade de convivência com os ecossistemas frágeis a partir de processos participativos de resgate e construção cultural de alternativas apropriadas. Esses processos requerem uma abordagem negociada e contratual de identificação de necessidades, de capacidades locais e do aproveitamento dos recursos potenciais para a melhoria das condições de vida das populações locais:
Estabelecimento de um aproveitamento racional e ecologicamente sustentável da natureza em benefício das populações locais, levando-as a incorporar a preocupação com a conservação da biodiversidade aos seus próprios interesses, como um componente da estratégia de desenvolvimento (SACHS, 2000, p. 53).
Outra relação que deve ser estabelecida é entre o discurso da convivência com o Semi-árido e a valorização do local, da diversidade cultural, da recomposição e afirmação de identidades e territórios. Essa perspectiva é fundamental para compreensão da convivência, considerando que as questões e as soluções devam ser formuladas, antes de tudo, no próprio lugar, valorizando e resgatando os conhecimentos locais, como propõe Zaoual (2003, p. 95), com o conceito de sítio simbólico de pertencimento:
Um espaço de crenças e práticas ajustado às circunstâncias locais. Sua transversalidade articula a cultura dos atores da situação, com a sociedade e o meio ambiente. Contrariamente à exclusiva visão de mercado que subtrai o homem do seu ambiente social, o sítio o inclui e o vincula a suas raízes (ZAOUAL, 2003, p. 95).
A valorização do espaço territorial para convivência requer, portanto, novas formas de pensar, sentir e agir no ambiente no qual se está inserido. Nessa perspectiva cultural, a convivência é um reaprendizado da comunhão intrínseca entre os sujeitos e a realidade do Semi-árido através das experiências vividas. A mudança de percepção sobre a realidade local e a experimentação de alternativas de produção apropriada pela população
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sertaneja é a principal garantia da convivência: uma “coexistência regida pelos princípios da reciprocidade, da aceitação e do cuidado com o outro reconhecido em sua legitimidade enquanto outro da partilha, aquele com quem cada uma das partes da convivência estabelece laços de complementaridade e interdependência” (PIMENTEL, 2002, p. 193).
Para Otamar de Carvalho, como princípio, a convivência com a semi-aridez é um processo permanente de aprendizagem que vem desde os tempos da colonização, cujo principal ator é a população sertaneja. No entanto, a continuidade do aprendizado e da promoção da convivência:
Requer instrução e educação para todos, por métodos formais (para os mais jovens) e processos menos ortodoxos (para os de mais idade). Exige mudança de mentalidade dos beneficiários diretos dos processos de inovações, dedicação dos que vierem a ser responsáveis por essas mudanças e muito compromisso social das elites dirigentes e formadores de opinião (CARVALHO; EGLER, 2003, p. 164).
Não se trata, portanto, de um processo exógeno, protagonizado exclusivamente por alguns setores iluminados da sociedade para ensinar às famílias residentes no Semi-árido a conviver com a seca. Aziz Ab’Sáber considera uma falácia “ensinar o nordestino a conviver com a seca”, pois os sertanejos conhecem as potencialidades produtivas do Semi-árido que são interrompidas nas secas prolongadas. A convivência com o Semi-árido não significa conviver com a seca numa postura de passividade e acomodação. As condições de vida da população sertaneja que depende diretamente de uma agricultura inapropriada à semi-aridez são extremamente desfavoráveis: “mesmo perfeitamente adaptados à convivência com a rusticidade permanente do clima, os trabalhadores das caatingas não podem conviver com a miséria, o desemprego aviltante, a ronda da fome e o drama familiar profundo criado pelas secas prolongadas” (AB’SÁBER, 2003, p. 85).
A justificativa social da convivência com o Semi-árido deve ser a possibilidade de construção de alternativas apropriadas de trabalho e melhoria de renda, principalmente para a população sertaneja que vive de atividades agrícolas. A construção de novas perspectivas de desenvolvimento junto a populações marcadas pela condição de pobreza exige a articulação das medidas de gestão ambiental sustentável com as iniciativas sociais que resultem em melhoria das condições de vida. Caso contrário, o discurso da convivência tornar-se-á vazio, sem dar respostas à grave problemática da miséria que permanece na região. Implica e requer políticas públicas permanentes e apropriadas que tenham como referência a expansão das capacidades humanas, sendo necessário romper com as estruturas de concentração da terra, da água, do poder e do acesso aos serviços sociais básicos.
Pode-se, portanto, definir a convivência com o Semi-árido como sendo:
Uma perspectiva cultural orientadora da promoção do desenvolvimento sustentável no Semi-árido, cuja finalidade é a melhoria das condições de vida e a promoção da cidadania, por meio de iniciativas socioeconômicas e tecnológicas apropriadas, compatíveis com a preservação e renovação dos recursos naturais (SILVA, 2006, p. 272).
Considera-se que é essa a orientação de um novo paradigma civilizatório, articulando as diversas dimensões de intervenção na realidade:
• Social – A base da superação da pobreza é o acesso a bens e serviços públicos fundamentais (educação, saúde, moradia, saneamento, assistência social e previdenciária, lazer etc), como direitos de cidadania. Significa também empreender mudanças nas atuais relações de dominação sociais, étnicas, de gênero e de geração.
• Cultural – a convivência cultural está relacionada à forma de conceber, compreender, difundir e inovar a realidade. Valoriza a reconstrução dos saberes locais como forma de convivência. O caminho é a educação contextualizada, ou seja, a contextualização dos processos de ensino-aprendizagem à realidade local.
• Econômica – prioridade à geração de trabalho e renda através de alternativas de produção apropriadas às condições edafoclimáticas do Semi-árido. Além de sustentáveis, as iniciativas de produção e distribuição das riquezas devem ser includentes, com a democratização do acesso aos meios necessários à produção.
• Ambiental – implica a recuperação e conservação dos ecossistemas presentes no Semi-árido. As tecnologias e práticas de manejo de recursos naturais devem ser apropriadas, considerando as potencialidades e fragilidades ambientais.
• Política – A convivência com o Semi-árido requer o fortalecimento da sociedade civil e a participação
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cidadã na formulação e conquista de políticas públicas apropriadas, rompendo com o clientelismo e a manipulação eleitoral da miséria.
Em síntese, a convivência com o Semi-árido expressa uma nova perspectiva do desenvolvimento sustentável que possibilita a satisfação das necessidades fundamentais como condição para expansão das capacidades humanas: “se o desenvolvimento funda-se na realização das capacidades humanas, é natural que se empreste a esta idéia um sentido positivo. As sociedades são desenvolvidas na medida em que nelas mais cabalmente o homem logra satisfazer suas necessidades e renovar suas aspirações” (FURTADO, 1980, p. 9).
4 – TRANSIÇÕES PARADIGMÁTICAS E POLÍTICAS PÚBLICAS NO SEMI-ÁRIDO NO LIMIAR DO SÉCULO XXI
Os primeiros sinais dessa disputa aparecem no início da década de 1980, no contexto de crise do regime ditatorial militar, responsável pela implantação do modelo de “modernização econômica conservadora” no Semi-árido (ANDRADE, 1984; CARVALHO, 1988). Diante da calamidade social vivida no Semi-árido no início dos anos 1980, com a ocorrência de mais uma grande seca, multiplicavam-se as críticas e denúncias dos movimentos sociais sobre o abandono da maioria da população rural e a continuidade das práticas emergenciais, fragmentadas e clientelistas, favorecendo os grupos políticos dominantes locais. Além das denúncias, o processo de reorganização da sociedade civil proporcionou a criação e expansão de organizações não-governamentais que passaram a desenvolver e difundir tecnologias alternativas e a apoiar os chamados projetos alternativos comunitários no Semi-árido brasileiro10.
É nesse contexto que, em 1982, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Empresa Brasileira de Assistência Técnica (Embrater) divulgaram um documento intitulado Convivência do Homem com a Seca. Trata-se de uma proposta tímida que surge no interior de órgãos do governo federal, sugerindo uma orientação governamental inovadora de implantação de sistemas de exploração de propriedades agrícolas para assegurar a convivência do homem com a seca. A linha básica de ação do programa era a criação de infra-estrutura de captação e armazenamento da água de pequeno
10 Trata-se do incentivo a iniciativas locais de organização para implantação de projetos produtivos e de infra-estrutura comunitária de abastecimento de água, saúde alternativa, educação etc. porte em propriedades dos pequenos agricultores para utilização apropriada a cada situação particular.
Na seca de 1992/93 houve uma mudança qualitativa na reação da sociedade civil organizada, pressionando o governo federal por ações imediatas e cobrando a elaboração de um plano de ações permanentes no Semi-árido11. Com a criação do Fórum Nordeste, composto por mais de trezentas organizações da sociedade civil da região, foi elaborada uma proposta de Ações Permanentes para o Desenvolvimento do Nordeste Semi-árido Brasileiro. As organizações sugeriram ao governo federal:
Promover um processo permanente e auto-sustentado de desenvolvimento no meio rural do Nordeste/Semi-árido brasileiro que permita: a) melhorar efetivamente o nível de renda das famílias, até patamares que garantam a segurança alimentar; b) promover o acesso aos serviços básicos, na qualidade e quantidade compatíveis com a dimensão da população rural do Nordeste/Semi-árido; c) fortalecer o processo de organização da população rural, de modo a efetivar um real exercício da cidadania (FÓRUM..., 1993, p. 5).
A resposta governamental veio ainda em 1993/94, com a formulação do Projeto Áridas: uma proposta de desenvolvimento sustentável para o Nordeste. Elaborado 35 anos após o documento do GTDN, manteve a mesma proposta de reordenamento do espaço e da economia do Semi-árido. Além da reestruturação fundiária, propõe um conjunto de medidas para a ocupação demográfica e produtiva compatível com a capacidade de suporte dos recursos da terra e da água. Influenciado pela Conferência Mundial do Meio Ambiente e Desenvolvimento, que ocorreu no Brasil em 1992, o Projeto Áridas expressa a preocupação com o meio ambiente e com a melhoria da qualidade de vida no Semi-árido. As propostas apresentadas no documento visam:
Estimular a pesquisa e a experimentação, bem como sua extensão aos produtores rurais, com vistas à diversificação das lavouras do Semi-árido [...] para reduzir a vulnerabilidade e elevar a capacidade de resistência às secas das populações e atividades produtivas no Semi-árido (BRASIL, 1995, p. 118).
Em 1999, durante a Terceira Sessão da Conferência das Partes das Nações Unidas da Convenção de Combate à Desertificação (COP 3), ocorrida em Recife/PE,
11 Em março de 1993, trabalhadores rurais organizados pelo movimento sindical rural, associações, cooperativas e organizações não-governamentais realizaram ato público em Recife e ocuparam a sede da Sudene, exigindo providências imediatas na situação de seca e ações permanentes para desenvolvimento do Semi-árido.
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sessenta e uma organizações não-governamentais constituíram a Articulação do Semi-Árido (ASA) e divulgaram a Declaração do Semi-árido, afirmando que a convivência com as condições do Semi-árido brasileiro é possível. Fruto dessa articulação foi formulado e está sendo implementado o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-árido - Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC). Trata-se de uma iniciativa que pretende garantir o acesso de um milhão de famílias a equipamentos de captação e armazenamento de água de chuva para o consumo humano. Além das cisternas, o Programa pretende estabelecer um processo de capacitação, abordando a questão da convivência com o Semi-árido, os aspectos de gerenciamento de recursos hídricos, construção de cisternas, cidadania e relações de gênero. No final do governo Fernando Henrique Cardoso, na estiagem de 2001/2002, foi lançado o Programa Sertão Cidadão: convívio com o Semi-árido e inclusão social. Além de ações imediatas de atendimento à população sertaneja, foi proposta a criação de um Sistema de Planejamento e Gestão do Semi-árido, com a finalidade de monitorar a dinâmica espacial e temporal de sistemas ecológicos e socioeconômicos no Semi-árido. Outra proposta foi a de implementação do Programa de Disseminação de Tecnologias Apropriadas para o Semi-árido, visando à promoção de mudanças no padrão tecnológico e alternativas de inserção no mercado. O Programa expressava mais o interesse governamental com a racionalização dos custos e a integração de programas governamentais na região do que com a efetiva implementação das ações inovadoras propostas.
Em abril de 2003, foi lançado o Programa Conviver – Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido, como prioridade do governo federal, propiciando a convergência territorial de ações voltadas para melhoria da vida dos agricultores familiares da região, tendo como principais ações: o seguro-safra (renda mínima aos produtores); a compra de alimentos pelo governo federal, garantindo renda aos agricultores da região; o acesso ao crédito para ações de manejo e captação de recursos hídricos, investimento em culturas forrageiras e manejo da caatinga; o Cartão Alimentação para compra de alimentos; a assistência técnica e educação para desenvolvimento de metodologias e tecnologias de convivência com o Semi-árido.
O governo federal tem buscado coordenar e integrar as suas diversas ações no Semi-árido brasileiro, por meio da Câmara de Políticas de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional, criada em 2004. Essa Câmara elaborou em 2005, uma Agenda de Compromissos, assumida por dezesseis ministérios do governo federal, para atuação articulada em nove subespaços do Semi-árido, totalizando cento e quarenta e dois municípios (12% do total de municípios do Semi-árido)12. Uma análise da agenda possibilita uma visão amostral sobre alguns dos focos de interesse e atenção governamental, conforme a Tabela 3.
Destaca-se o elevado percentual de recursos destinados à área social. Os programas de transferência de renda (Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada e Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) respondem por cerca 65% do total dos recursos aplicados. Em seguida, vêm os investimentos em educação, recursos hídricos para abastecimento da população, gestão ambiental e saúde. Em relação ao principal programa de transferência de renda do governo federal, o Boletim do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome divulgou, em novembro de 2005, que o Bolsa Família repassava mensalmente cerca de R$ 126 milhões
12 Os subespaços no Semi-árido são os seguintes: microrregião de São Raimundo Nonato, no Piauí; Médio e Baixo Jaguaribe, no Ceará; Vale do Açu, no Rio Grande do Norte; microrregião de Souza e Piancó, na Paraíba; Sertão do Moxotó, em Pernambuco; Microrregião de Santana do Ipanema, em Alagoas; Sergipana do Sertão do São Francisco, em Sergipe; Microrregião de Brumado, Bom Jesus da Lapa e Guanambi, na Bahia e Serra Geral, em Minas Gerais.
Tabela 3 – Distribuição de Investimentos Federais no Semi-Árido (2005)
Tipo de Ação
Valor (R$)
%
Infra-estrutura social (programas sociais)
576.767.448,00
75,54
Dinamização econômica
146.063.893,00
19,13
Infra-estrutura econômica
37.988.821,00
4,98
Organização social e institucional
2.659.934,00
0,35
TOTAL
763.480.096,00
100
Fonte: Brasil. Câmara de Políticas de Integração Nacional (2005).
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a famílias que residem no Semi-árido (BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2005).
Em relação ao abastecimento hídrico, o que há de novidade é uma diversificação dos investimentos com a prioridade dada às adutoras que distribuem a água acumulada em açudes e barragens para o abastecimento de cidades do Semi-árido. Destaca-se também a construção de cisternas no Semi-árido como uma das ações prioritárias de segurança alimentar no âmbito do Fome Zero. Até maio de 2006, o governo federal investiu R$ 239 milhões na construção de 143 mil cisternas, beneficiando 715 mil pessoas nos municípios do Semi-Árido.
Quanto aos investimentos econômicos (dinamização e infra-estrutura), ressalta-se que o apoio à agricultura irrigada tem participação destacada com quase 25% dos recursos aplicados pelo governo federal na dinamização econômica nesses 142 municípios. Em relação aos investimentos em infra-estrutura econômica, as ações hídricas de construção e recuperação de barragens, açudes, adutoras, poços e cisternas correspondem a 11% do total de infra-estrutura. Esses percentuais indicam que a agricultura irrigada ainda é uma grande aposta governamental para o desenvolvimento regional. Cerca de 15% do total dos recursos são para as ações de reforma agrária, de regularização fundiária e para os assentamentos rurais. No que se refere à reforma agrária e ao fortalecimento da agricultura familiar, estão sendo implementadas algumas iniciativas específicas no Semi-árido:
a) Lançada em 2003, uma linha de crédito especial do Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf) para o Semi-árido tem por finalidade apoiar as atividades dos agricultores da região, por meio do financiamento de tecnologias de convivência, como a construção de obras hídricas (cisternas, barragens) para consumo humano e produção.
b) O Seguro-Safra é direcionado a agricultores familiares do Semi-árido que são beneficiários do Pronaf e que perderam 50% da produção. Além do seguro do financiamento agrícola, os beneficiários têm acesso a uma renda mensal durante cinco meses.
c) O Programa Nacional do Biodiesel deverá concentrar sua atuação no incentivo à produção da mamona na região. A expectativa era de que, em 2005, cerca de 45 mil famílias de agricultores familiares do Semi-árido estariam participando do programa.
d) O Projeto Dom Helder Câmara desenvolve um conjunto de ações referenciais para o desenvolvimento sustentável do Semi-árido, buscando garantir a inserção competitiva, não subordinada, e o empoderamento de agricultores familiares na formação, implementação e controle social de políticas públicas. O projeto desenvolve ações de segurança hídrica, segurança alimentar, produção e comercialização, gestão social e acesso ao crédito.
e) O Programa de Aquisição de Alimentos também tem concentrado parte significativa dos seus recursos no Semi-árido, incentivando a produção de alimentos pela agricultura familiar, por meio da compra, sem licitação, de produtos, até o limite de R$ 2.500 (dois mil e quinhentos reais) por agricultor em um ano. As aquisições destinaram-se à formação de estoques e à distribuição de alimentos para pessoas em situação de insegurança alimentar.
As áreas como menor volume de investimentos financeiros na Agenda Governamental ainda são as de gestão ambiental (cerca de 1,5% do total) e para o desenvolvimento da ciência e tecnologia (cerca de 2% do total). Na área de gestão ambiental, destacam-se os investimentos em ações de revitalização da bacia do Rio São Francisco. Também foram criados programas e aprimoradas iniciativas governamentais que já existiam de preservação ambiental do Bioma Caatinga:
a) O Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) lançou edital específico para seleção e financiamento de projetos de Formação de Agentes Multiplicadores e Assessoria Técnica e Extensão Florestal a Agricultores Familiares do Bioma Caatinga.
b) O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) implantou Projetos de Conservação e Manejo do Bioma Caatinga com o objetivo de conservar e ordenar o uso sustentável dos recursos naturais. Está sendo realizado um estudo de representatividade ecológica com objetivo de delimitar as ecorregiões da Caatinga.
c) O subprograma Proágua/Semi-árido, vinculado à Agência Nacional das Águas e ao Ministério da Integração Nacional, visa garantir a ampliação da oferta de água de boa qualidade para o
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Semi-árido brasileiro, com a promoção do uso racional desse recurso, com ênfase na gestão participativa. A prioridade é o fornecimento de água potável à população do Semi-árido por meio da construção de barragens e adutoras.
d) O Projeto Água Doce lançado pelo Ministério do Meio Ambiente apóia a implantação de pequenas usinas de dessalinização, viabilizando abastecimento de água doce para consumo humano em regiões que têm grande quantidade de água salobra. A novidade do Projeto é o aproveitamento do rejeito na produção de alimentos para animais, reduzindo os impactos ambientais decorrentes dos processos de dessalinização de águas.
Na dimensão da produção e disseminação de conhecimentos em ciência e tecnologia, destaca-se a prioridade para os Centros Vocacionais Tecnológicos, articulados ao desenvolvimento dos chamados Arranjos Produtivos Locais. O Ministério da Ciência e Tecnologia e o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas estão criando o Centro de Documentação do Semi-árido, em Fortaleza/CE, que permitirá a recuperação e a documentação do acervo técnico-científico do Semi-árido. Em 2003, foi criado o Instituto Nacional do Semi-árido – Celso Furtado, em Campina Grande/PB, com a finalidade de promover a execução e divulgação de estudos e pesquisas na área do desenvolvimento científico e tecnológico para o fortalecimento do desenvolvimento sustentável da região. Em relação à valorização da cultura local, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, através do Programa Arca das Letras, está documentando e registrando aspectos singulares do universo cultural do Semi-árido, com destaque para o lançamento da série Cantos do Semi-árido.
Entre as iniciativas governamentais na esfera estadual, destaca-se o Programa Permanente de Convivência com o Semi-árido (PPCSA), do Governo do Estado do Piauí. O objetivo do Programa é promover o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza no Semi-árido piauiense através da formulação e articulação de políticas públicas apropriadas que favoreçam o acesso à infra-estrutura e serviços básicos de abastecimento de água, produção agrícola e não-agrícola, melhoria de renda, educação, saúde, segurança alimentar e nutricional para a população sertaneja13.
13 Informações sobre o PPCSA podem ser encontradas no endereço: www.pi.gov.br/ppcsa
A agenda 21 brasileira, elaborada entre 1997 e 2001, internalizou a convivência com o Semi-árido em suas proposições. Especificamente para o bioma caatinga, propõe “capacitar o homem do campo para a convivência com a seca, incentivando o uso de tecnologias já comprovadas e difundidas por centros de pesquisa e organizações não-governamentais com experiências no manejo dos recursos naturais em regiões semi-áridas” (BRASIL, 2002b, p. 78). O documento brasileiro propõe a combinação de atividades ambientais com iniciativas socioeconômicas. A estratégia seria incentivar ações de educação e de conscientização das populações locais para a preservação e recuperação do bioma caatinga, ao mesmo tempo que oferece opções de subsistência e oportunidades de plantio de espécies comerciais para melhoria da renda da população sertaneja.
A preocupação com o desenvolvimento sustentável do Semi-árido também está presente na proposta de recriação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). No documento referencial encontramos análises e proposições tendo por referência a constatação da dinâmica diferenciada dos espaços regionais. Os três problemas fundamentais a serem enfrentados no Semi-árido são a sua extrema fragilidade ambiental, a escassez de recursos de água e o seu declínio relativo no contexto da economia regional. A alternativa apresentada na nova política de desenvolvimento regional é a promoção da integração cooperativa das sub-regiões e dos espaços locais. O Semi-árido deverá ser um dos espaços intra-regionais prioritários:
No caso do Semi-árido, a estratégia de desenvolvimento sustentável será estruturada a partir das evidências de que, diante da sua heterogeneidade quanto a recursos (naturais, humanos e materiais) e a atividades econômicas, as ações programáticas terão que ser também distintas em relação aos seus múltiplos espaços, atividades, tempo e demandas. Tal estratégia terá em vista atender a dois tipos de exigências: as de desenvolvimento e as de convivência com a semi-aridez (BRASIL. Ministério da Integração Nacional, 2003, p. 44).
Apesar dos avanços acima citados, em alguns programas governamentais, a compreensão da sustentabilidade do desenvolvimento continua subordinada a sua dimensão econômica. É o caso, por exemplo, do Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável do Semi-árido (PDSA), cujo objetivo é “[...] o crescimento regional sustentável, com inclusão social e redução das desigualdades entre o Nordeste Semi-árido e o restante do país” (BRASIL. Câmara de Políticas de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional, 2005, p. 72).
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Apesar de apresentar um conjunto de estratégias organizadas em dois eixos, social e econômico, o Plano confere prioridade “[...] às ações inovadoras ou associadas a empreendimentos de grande porte, territorialmente identificadas com o Semi-árido” (BRASIL, 2005, p. 82). As prioridades para incentivar o desenvolvimento na região são: a) a revitalização da Bacia do Rio São Francisco, como base para a integração de bacias hidrográficas; b) a hidrovia do São Francisco; c) a Ferrovia Transnordestina; d) a agricultura irrigada, dinamizando o agronegócio; e) a produção de energia alternativa (biodiesel, gás natural); e f) mineração e refinaria de petróleo. Ao mesmo tempo, setores da sociedade civil organizada, com aliados governamentais ligados às áreas social e ambiental, buscam avançar nas propostas de convivência, apresentando alternativas, enfatizando os aspectos da inclusão social, da cultura e da identidade sertaneja e da preservação dos recursos naturais.
A disputa política concentra-se hoje, principalmente, no debate sobre a implementação do Projeto de Integração da Bacia do Rio São Francisco às Bacias do Nordeste Setentrional que tem sido apresentado como a redenção do Semi-árido. Além dos questionamentos ao projeto – de ordem técnica, econômica, política e ambiental – são apresentadas alternativas eficazes e de baixo custo para o abastecimento de água para consumo humano e para a produção apropriada. Enquanto há amplo consenso em torno do Programa de Revitalização da Bacia do São Francisco, o dissenso em relação à proposta de interligação das bacias perpassa os partidos de sustentação do governo, os órgãos governamentais e os movimentos sociais que atuam na região. Não se trata apenas de um conflito em torno de recursos hídricos. É a própria concepção de desenvolvimento do Semi-árido que está em disputa na sociedade.
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos realizados indicam que realmente ocorreram mutações significativas nas formas de intervenção no Semi-árido, no que foi e está sendo feito para superação das suas problemáticas socioeconômicas e ambientais. Os processos de mudanças têm sido caracterizados por inovações e continuidades, ou seja, há um processo de transição, com a concorrência entre os diversos tipos e formas de intervenção naquela realidade.
O levantamento realizado sobre esse processo de disputa permite as seguintes conclusões: a) a concepção do “combate à seca e aos seus efeitos” encontra-se em crise, não obtendo adesão nos discursos das organizações da sociedade, da comunidade acadêmica e da maioria dos governantes; b) a concepção de “solução dos problemas da seca” através da “modernização econômica e tecnológica” vem renovando seus discursos, inserindo a questão ambiental e dando uma maior atenção às questões sociais, interpretando a sustentabilidade como sendo a durabilidade do desenvolvimento com base na eficiência tecnológica e na racionalidade produtiva; e c) permanece e se renova o “pensamento crítico” sobre o Semi-árido, interpretando a sustentabilidade como sendo a necessária e possível “convivência com o Semi-árido”. Essas disputas em torno de alternativas e prioridades para o desenvolvimento do Semi-árido indicam uma transição paradigmática.
É necessário ter presente que as mudanças políticas e culturais, enquanto transições paradigmáticas, envolvem disputas que somente são resolvidas em longo prazo: “A definição da transição paradigmática implica a definição das lutas paradigmáticas, ou seja, das lutas que visam aprofundar a crise do paradigma dominante e acelerar a transição para o paradigma ou paradigmas emergentes. A transição paradigmática é um objetivo de muito longo prazo” (SANTOS, 2001, p. 19). Nesse sentido, deve-se reconhecer a importância dos processos culturais de resgate e construção de novos referenciais de pensamento (consciência) e do agir (comportamento) dos seres humanos. É essa a nova orientação que tem sido construída para o desenvolvimento sustentável no Semi-árido brasileiro com base na convivência.
Abstract
A large amount of the diagnoses and proposals on the Brazilian semi-arid region have as a reference images that were historically built upon a problematic space, a land of drought and poverty. In the first half of the twentieth century, critical views emerged about the structural causes and consequences of regional poverty. This article analyzes the relationships between these two perspectives and the different development paradigms in the Brazilian semi-arid. It concludes that, despite the advances, it remains the reduction and fragmented perspective of combat to the droughts and its effect with great hidro buildings and the guided irrigation for the external market. The conception of living with the Semi-arid was not still internalized enough in the programs and governmental actions.
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key words
Semi-arid; Drought combat; Water; Public Polices; Paradigmatic Transition; Sustainable Development.
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Recebido para publicação em 13.06.2005
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