domingo, 27 de maio de 2012

GEOGRAFIA DA FOME (JOSUÉ DE CASTRO)

JOSUÉ DE CASTRO GEOGRAFIA DA FOME (O DILEMA BRASILEIRO: PÃO OU AÇO) 10.ª EDIÇÃO REVISTA antares © Copyright: Glauce Pinto de Castro Capa: AG Comunicação Visual, Assessoria e Projetos Ltda. 1984 Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Castro, Josué, 1908-1973. C351g Geografia da fome : o dilema brasileiro : pão ou aço Josué de Castro. — Rio de Janeiro : Edições Antares, 1984. (Clássicos das Ciências Sociais no Brasil) Bibliografia 1. Brasil — Condições econômicas. 2. Fome. 3. Política nutricional. 4. Subnutrição. S. Subnutrição — Brasil. I. Título. II. Série. CDU — 613.24:308 84-0193 613.24:308(81) 612.391:308 338(81) Direitos desta edição reservados a Rua Nina Rodrigues nº 9 — Jardim Botânico — 22461 — Rio da Janeiro, RJ. A Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, romancistas da fome no Brasil. A memória de Euclides da Cunha e Rodolfo Teófilo, sociólogos da fome no Brasil. SUMÁRIO Prefácio à nona edição André Meyer Prefácio à décima edição Alceu Amoroso Lima Prefácio do autor I — Introdução II — Área amazônica III — Área do Nordeste açucareiro IV — Área do sertão do Nordeste V — As áreas de subnutrição: Centro e Sul VI — Estudo do conjunto brasileiro VII — Glossário Apêndice à oitava edição Biografia Bibliografia 339 PREFÁCIO A NONA EDIÇÃO A fome — eis um problema tão velho quanto a própria vida. Para os homens, tão velho quanto a humanidade. E um desses problemas que põem em jogo a própria sobrevivência da espécie humana, a qual, para garantir sua perenidade, tem que lutar contra as doenças que a assaltam, abrigar-se das intempéries, defender-se dos seus inimigos. Antes de tudo, porém, precisa, dia após dia. encontrar com que subsistir — comer. E esta necessidade, é a fome que se encarrega de lembrá-la. Sob o seu ferrão e para lutar contra ela. a humanidade aguçou seu gênio inventivo. Ninguém o ignora. E todo mundo sabe também que. nesse velho combate contra esta praga permanente, o homem conseguiu apenas uma vitória incerta e precária. Contudo — e é o que nos faz ver o Prof. Josué de Castro logo às primeiras páginas do seu livro a Geografia da Fome — nos países mais adiantados, parece que as gerações passadas preferiram não aprofundar muito esse grande problema. Para quê? No decurso da História, linha havido, sem dúvida, épocas de fome. Mas isso parecia tão remoto! Continuava a haver fome em certos países. Mas isso parecia tão distante! As guerras às vezes acarretavam a fome. Mas isso parecia tão raro! Na realidade, sob essa aparente indiferença, havia algo mais do que simples imprevidência e egoísmo. Havia dois sentimentos mais profundos. O primeiro, oriundo da convicção milenar de que os males provocados por flagelos naturais são inevitáveis: o segundo, da idéia de que a própria organização [pg. 11] das sociedades comporta desigualdades entre os homens e que estas, por sua vez, são inevitáveis. Para que então pensar no irremediável? Essas duas idéias, essas duas atitudes já se tornaram, porém, insustentáveis. Um flagelo só é inevitável quando permanece em mistério. Os males provenientes da falta de alimentos continuam sendo um problema, mas já não são um mistério. Foi este o resultado de cento e cinqüenta anos de trabalho científico. Já hoje sabemos em que consistem as necessidades em alimentos. Já hoje sabemos o que é alimentação. Três etapas foram percorridas nessa conquista de importância capital para a humanidade. Foi no século XVIII que Lavoisier abriu as portas e mostrou o caminho da primeira etapa. Descobriu o que é o fogo, a combustão viva: uma fixação de oxigênio, uma oxidação. A seguir, o que é a calcinação das terras: uma combustão lenta e, por conseguinte, também uma fixação de oxigênio, uma oxidação. E, finalmente, o que é a respiração: uma combustão ainda mais suave, porém, da mesma forma, uma fixação de oxigênio, uma oxidação. E foi assim que demonstrou que a própria vida se assemelha aos grandes processos da Natureza. A vida traduz-se por um encadeamento organizado de acontecimentos físico-químicos. Quando nosso organismo mantém constante sua temperatura, enquanto declina a do meio ambiente ou quando ele desempenha qualquer trabalho muscular — tudo isso se traduz em reações químicas: o gasto das reservas que se faz através da fixação do oxigênio e da emissão de calor. O trabalho do organismo — sua vida — pode, pois. exprimir-se exatamente por essa emissão de calor que permite determinar-se o que ele perde. Determinar a perda significa também determinar as necessidades, uma vez que, para manter-se, o organismo precisa reparar suas perdas. E pela alimentação que fazemos essa compensação, essa restauração. Consumimos fragmentos de seres vivos, que, por sua vez, são combustíveis. Seu valor de reparação, de restauração, seu valor como alimento pode também, por seu lado, ser medido com exatidão, pelo calor que se desprende de sua combustão. Assim, as necessidades alimentares do homem e o valor de sua alimentação podem ser definidos fisicamente, tornando-se calculáveis em termos de calor, em calorias. A segunda etapa teve lugar no século XIX. Seguindo as pegadas de Lavoisier, descobriram os químicos que a Natureza [pg. 12] — e os seres vivos, que nela se encontram — são todos compostos de elementos simples que, segundo supunham, seriam imutáveis e indestrutíveis. O organismo é formado de certo número desses elementos, presentes em determinadas proporções. Uma parte desses elementos se perde no trabalho do organismo. Se essa perda não for reparada, o organismo estará em perigo mortal. Foi levantada a relação desses elementos indispensáveis. Calculou-se o que o organismo gasta e o que necessita para recuperar estes gastos. Pois, tal como ocorria com os químicos do século XIX, mas não com os dos nossos dias — o organismo não sabe fabricar elementos químicos. Precisa encontrá-los todos em sua alimentação. Esta se tornou, desde então, quimicamente definida. Terceira etapa: a do século XX. Acreditava-se até então que, de posse dos elementos, o organismo era capaz de sintetizar todas as moléculas de que ele se compõe, mas isso era um erro. Os seres vivos são químicos incompletos. Descobriu-se que existe toda uma série de moléculas (ácidos aminados, ácidos graxos, vitaminas) que eles não sabem fazer e que precisam encontrar já preparadas, dentro da alimentação. Mas essas moléculas são indispensáveis à vida. Basta faltar alguns miligramas de algumas delas na alimentação cotidiana para sobrevir uma doença grave ou a morte. Os resultados dessas descobertas têm alcance incalculável. Para começar, a palavra fome já não basta. É que o termo evoca simplesmente a insuficiência da quantidade de alimentos, provocando a subnutrição e a “morte pela fome”. Trata-se agora de outra coisa. Viemos a saber que não é apenas quando nossa alimentação é insuficiente que estamos ameaçados. Também o estaremos se ela for mal constituída. Neste último caso, surge uma série de estados de subnutrição. Quando essa subnutrição é grave, pode tornar-se rapidamente mortal: traduz-se por doenças de há muito conhecidas, mas cujas causas permaneciam ignoradas. Se a carência de moléculas indispensáveis for menos pronunciada, determinará o mau funcionamento do organismo, o desenvolvimento defeituoso das crianças, a fraqueza parcial dos adultos, certa desagregação do estado mental e, por fim, a degeneração progressiva terminando por provocar o desaparecimento de grupos humanos. Os efeitos de uma má alimentação são, por conseguinte, muito mais profundos e mais amplos do que se pensava. Influem na duração e na qualidade [pg. 13] da própria vida, na capacidade de trabalho, no estado psicológico das populações. Mas esses males são facilmente curáveis. Quem já tiver assistido à ressurreição de um pelagroso coberto de horríveis lesões, devorado pela doença, demente, moribundo, curando-se em poucos dias pela ingestão de alguns miligramas dessas moléculas que faltavam na sua alimentação e que os químicos fabricam hoje às toneladas, não duvidará dessa verdade. A subnutrição endêmica não se presta, porém, a essas curas espetaculares. Exige intervenção contínua. Pode ser eliminada e pode ser evitada por meios naturais: basta que se garanta às populações uma boa alimentação, suficiente, completa e equilibrada. Sabemos hoje em que consiste tal alimentação. Sabemos calcular em termos de calorias em que deve consistir a massa de alimentos cotidianos. Podemos calcular em gramas, em miligramas, o que essa alimentação deve conter de princípios alimentares, de moléculas indispensáveis. Temos, pois, doravante, noções sólidas, inabaláveis, permitindo determinar com bastante precisão o que deve ser a alimentação de uma criança, de um adulto em descanso ou trabalhando, de uma mãe, de uma família, de uma cidade, de uma população inteira. E isso constitui um acontecimento de importância capital na história da humanidade. A questão é, pois. a seguinte: existem, no nosso planeta, mais de dois bilhões de seres humanos. Como se alimentam eles? Os primeiros inquéritos realizados nos permitem responder: alimentam-se mal. Mais da metade desses seres humanos se encontra, mais ou menos, em estado de subnutrição. E tal estado só tende a agravar-se, uma vez que a população da Terra cresce de ano a ano em cerca de 50 a 60 milhões de indivíduos. Devemos acrescentar que a subnutrição não atinge apenas os países mais atrasados, mas também grupos inteiros de população nos países mais adiantados do mundo. Trata-se, por conseguinte, de alimentar bem essas populações. Ao plano de alimentação traçado deve corresponder um plano de produção agrícola adequado. Os cálculos indicam que esse plano deverá comportar considerável aumento da produção atual. Será tal aumento tecnicamente possível? Neste caso ainda á resposta será bem diferente da que se poderia ter dado há um século atrás. Os progressos [pg. 14] da Ciência e da Técnica têm sido de tal ordem — dispomos hoje de inúmeros meios pura aumentar a produção das plantas e do trabalho humano — que já é possível, querendo, alimentar e alimentar bem todos os homens. Provocar sistematicamente um aumento considerável e ordenado da produção agrícola não é problema de pura técnica agronômica. É um problema econômico. Efetivamente, trata-se de integrar a agricultura no conjunto da economia. Não se pode criar uma agricultura moderna sem considerável despesa de equipamento. Não se pode fornecer esse equipamento sem criar a indústria necessária. Não se pode tornar a indústria e a agricultura fregueses recíprocos, fazê-las interdependentes, sem distribuir metodicamente a população ativa de acordo com certa divisão do trabalho e sem que se organize, entre as diversas partes dessa população, uma distribuição da renda nacional, de modo a permitir o intercâmbio entre elas. E ainda: não basta criar a capacidade aquisitiva, a capacidade de intercâmbio. Faz-se mister aumentar progressivamente essas capacidades, aumentar a renda nacional. Será isso possível? Ainda neste ponto a resposta é positiva: não é impossível uma vez que tal desideratum já foi conseguido nos países mais adiantados. E não é só. Há uma condição indispensável à criação de uma “economia de expansão” e essa condição suscita um problema social. Para multiplicar os bens da Terra, “valorizar o mundo” e obter plena utilização dos recursos naturais é necessário aplicar integralmente as possibilidades da Ciência e da Técnica. Mas essa aplicação completa só se consegue através de um imenso esforço de educação, através de uma elevação progressiva do nível cultural das populações do mundo. E tudo isso depende da instrução que se der às crianças e aos adolescentes e das informações que forem divulgadas entre os adultos. Por outro lado a expansão econômica e a multiplicação do intercâmbio só serão conseguidas pela diversificação das necessidades humanas, fornecendo-se meios para satisfazê-las; aumentando-se ao mesmo tempo sua capacidade aquisitiva e a parte reservada às despesas de civilização. Assim, a “valorização do mundo” só é possível graças à “valorização dos homens”, permitindo-lhes a expansão de suas faculdades. Não basta dizer que a valorização do Homem deveria [pg. 15] constituir o objeto da Economia. Na realidade constitui ela a condição indispensável para a expansão econômica. Essa grande obra que se ergue diante de nós nada tem de irrealizável. Em nenhum ponto está fora do nosso alcance, desde que saibamos querer. O problema da fome é difícil, não há dúvida. Mas pode ser exposto claramente. As condições de sua solução podem ser definidas e a ação a empreender para chegar ao fim já pode ser calculada. Já não podemos, pois, silenciar sobre o assunto. E preciso, pelo contrário, atacá-lo com coragem, no interesse de todos. As cinqüenta e sete nações membros da Organização Internacional de Alimentação e Agricultura (FAO) já o compreenderam. E resolveram agir. É dentro dessa ação de grande envergadura, de tanta amplitude e de importância tão fundamental, que se coloca o livro do Prof. Josué de Castro. E chega em momento oportuno. Uma das primeiras coisas a fazer é levantar um inventário, tão completo quanto possível, da situação atual. É preciso designar as populações, os grupos mais ameaçados e estudá-los. Trata-se, no sentido médico da palavra, de fazer a “observação” de seu estado de nutrição. No sentido geográfico, de um ensaio ecológico dessas populações, estudando o complexo que criou o solo, o clima, as plantas e os animais. E no sentido sociológico, um inquérito econômico-social. Historicamente, trata-se de um estudo da origem e do desenvolvimento da situação atual. O Prof. Josué de Castro estava bem apto para empreender essa difícil tarefa. Não é ele apenas um homem de laboratório — um conceituado fisiólogo. É também um geógrafo, um pesquisador, um historiador. E os resultados que conseguiu através dos métodos de indagação de disciplinas tão diferentes foram por ele ordenados filosoficamente. Seu livro não é apenas uma coletânea sistemática de fatos instrutivos. É uma obra profundamente atraente porque é eminentemente viva. Ninguém poderá esquecer, depois de as ter lido. as páginas em que o autor nos conta a tragédia dos seringueiros alquebrados pelo beribéri, engolidos na voragem da floresta amazônica, nem aquelas em que nos descreve a seca alastrando-se pelo sertão do Nordeste brasileiro, esterilizando as terras, matando os animais, expulsando os homens. Ou então as páginas em que nos narra a história impressionante dos colonos destruindo progressivamente a floresta do mesmo Nordeste, para plantar a cana-de-açúcar e deixando-se iludir pela [pg. 16] atração do lucro, até suprimirem as próprias culturas de sustentação e destruírem aquelas mesmas populações que edificavam sua fortuna. Nesta Geografia da Fome, o problema da subnutrição e da carência alimentar aparece em toda a sua realidade, permitindo ao leitor compreender-lhe os diversos aspectos e a importância primordial. Um livro como este suscita ação e serve-lhe de guia. O leitor verá que é um livro de utilidade imediata e, ao mesmo tempo, um livro inteligente e generoso. Em suma: que é um bom livro. André Mayer Professor da Universidade de Paris ex-Presidente do Conselho Executivo da FAO [pg. 17] PREFÁCIO À DÉCIMA EDIÇÃO Nos dois artigos,* ora transcritos nesta nova edição de uma das obras clássicas de nossa literatura, a Geografia da Fome de Josué de Castro (1956), artigos esses publicados em 1973, tive ocasião de apreciar a atualidade, a originalidade e o sentido profético da sua obra. O regime político ditatorial, que o perseguiu em vida, longe de afetar o valor de sua obra monumental em prospetiva, não fez senão ressaltar seu valor permanente. Passados 25 anos da publicação desse livro-chave, representa ele ainda hoje o retrato mais trágico e igualmente mais fiel de nossa realidade nacional. Comparável a ele, somente Os Sertões de Euclides da Cunha. Durante esses 25 anos nada foi feito para que a carência alimentar do nosso povo fosse atendida. A grande novidade do momento é... a volta à agricultura. Nunca deveríamos ter saído dela. O primado da agricultura, da mineração e da pecuária, em um país de tão vastas dimensões e de natureza tão diversificada, não prejudica em nada, e antes incentiva, a organização de um grande parque industrial. Campo e cidade devem sempre estar intimamente ligados. O que faz a sua separação é a antítese de classes, como é a política de recurso contínuo aos capitais estrangeiros, para promover o progresso nacional. Quando este deve ter sempre, por base, o trabalho e não o capital. Foi o segredo [pg. 19] do Japão. Pois o capital, para ser sólido e não atentar contra a independência nacional, prejudicando outrossim a própria interdependência, deve ter por base o trabalho. A política da primazia do recurso ao capital estrangeiro é, sem dúvida, uma das fontes desse drama da fome, que Josué de Castro foi o primeiro a colocar como o problema básico do Brasil. Hoje se fala muito na primazia do Homem. É bom que se fale, pois a verdadeira filosofia social se baseia nessa primazia. Mas, para que isso não seja apenas uma figura de retórica, é preciso partir do problema da alimentação desse homem, em cujo trabalho reside a riqueza nacional. Foi tudo isso que levou Josué de Castro a levantar esse monumento de sabedoria social, que tanto entusiasmou o Padre Lebret e é, até hoje, como será para sempre, uma das pedras angulares de nosso edifício social. * Os dois artigos a que se refere o prefaciador foram publicados no Jornal do Brasil, em 1973, sob o pseudônimo de Tristão de Athayde. Hoje também se invertem outros valores que Josué de Castro sempre colocou como fundamentais. Procuram, hoje, reduzir artificialmente a população, para melhor alimentá-la. Josué de Castro, pelo contrário, partia do elemento qualitativo e não do elemento quantitativo. Não é preciso reduzir artificialmente a população, para melhor alimentá-la. E sim alimentá-la melhor, para que o seu aumento quantitativo se processe normalmente e não artificialmente. Invertendo a equação, colocando o carro da quantidade adiante dos bois da qualidade, altera-se completamente o equilíbrio da situação homem-alimento, que Josué de Castro coloca numa base racional e moral e não irracional e amoral. Colocaram a pirâmide com a ponta para baixo. Menos habitantes para melhor alimentação. Quando o racional é melhor alimentação (base), para mais habitantes (ponta). Chesterton propôs, com humour, a seguinte fórmula: quando existem 7 crianças e 6 chapéus, ou se arranja mais um chapéu, ou se corta a cabeça de uma criança... Por essas e outras é que a obra clássica de Josué de Castro merece ser relida e aproveitada, pois sua inspiração é, ao mesmo tempo, científica e moral, como deve ser toda fórmula social, para o bem de uma nacionalidade de vasto futuro como a nossa. Josué de Castro pagou caro sua sabedoria. Mas a posteridade lhe faz justiça e há de aproveitar-se de sua ciência. Como a tragédia da fome não é privilégio do Brasil, nem do Sahel, Josué de Castro [pg. 20] deixou, para a posteridade, aquela sua frase famosa, já citada em um dos meus artigos: “Metade da humanidade não come e a outra não dorme com medo da que não come...” Alceu Amoroso Lima Rio, 1980 O ESPECTRO DA FOME Tempos atrás, um surto de sarampo, de tipo violento e infeccioso, que praticamente dizimou uma localidade mineira do vale do Jequitinhonha, revelou, ou antes, confirmou, a situação calamitosa, em matéria de saúde e desnutrição, em toda aquela vasta região. Logo em seguida, ou pouco antes, as cifras enumeradas no documento trágico de 18 altas autoridades eclesiásticas mostravam a mesma situação por todo o Nordeste. E outro documento, talvez ainda mais impressionante, dos bispos do Centro-Oeste (Marginalização de um povo), confirmava o impacto do primeiro e acentuava-o. Ainda outro documento, no mesmo sentido, e talvez ainda mais alarmante, pois se refere à região considerada mais sadia de todo o Brasil: o Rio Grande do Sul, foi referido no O Estado de São Paulo de 12 de agosto: A Revista da Associação Médica do Rio Grande do Sul publicou o resultado de uma pesquisa feita pela entidade, revelando que quase a metade das crianças gaúchas (1 milhão em 2 milhões e 600 mil) são desnutridas (sic). A desnutrição é responsável pela alta taxa de mortalidade infantil e pela evasão escolar: menos de 10% dos alunos matriculados no primeiro ano atingem a oitava série do ensino fundamental. A desnutrição é causada pela falta de alimentos, dificuldades econômicas e desconhecimento dos princípios de alimentação balanceada. Uma criança de quatro anos da classe A (isto é, das camadas ricas da população, lembro eu), diz a revista, é em geral, 9,19 centímetros mais altas que uma da classe B (isto é, das camadas populares, lembro eu) e seu peso é superior. [pg. 21] Isso significa que no Estado mais sadio da federação, a desnutrição está concorrendo, fundamentalmente, para a divisão crescente de nossa terra em dois modelos de população: os tipos biologicamente superiores e os tipos biologicamente inferiores. E como estas estatísticas informam, a proporção entre os exemplarei: bem nutridos e sadios e os desnutridos e enfermiços é praticamente de 50%. Isso na região mais sadia e rica de nossa pátria. Imaginemos então o que ocorre nas regiões que representam uma proporção de mais de 80% da nossa população total. Aliás, há muito que os nossos mais ilustres nutricionistas, como um Rui Coutinho, em obras rigorosamente científicas, sem nenhum bias ideológico ou político, têm chegado a idênticas conclusões. Há muitos anos, aliás, o eminente sociólogo Josué de Castro, prematuramente falecido há pouco e afastado do seu país pelo terrorismo cultural, desencadeado em 64, deu o alarme em sua obra clássica A Geografia da Fome e, como dirigente eventual da FAO, começava anos atrás uma alocução, em um congresso da instituição, com uma imagem impressionante: “Enquanto metade da humanidade não come, a outra metade não dorme, com medo da que não come.” Era, evidentemente, uma imagem literária forjada precisamente para impressionar os espíritos e alertar as consciências. Baseada, aliás, em sentença semelhante lançada em 1950 por Lorde Boyd Orr, então presidenta da FAO, que vejo contestada por outro especialista no assunto, o cientista Colin Clark, da Universidade de Oxford, em artigo transcrito no número de 17 de junho do L’Osservatore Romano. Diz ele: “A situação da fome (no mundo) é muito grave mas ainda não envolve, de nenhum modo, metade da humanidade.” E considera “contraproducente” qualquer exagero, “pois o homem médio reage imaginando que não pode fazer nada.” Penso exatamente o contrário. Justamente porque o homem médio, isto é, todos nós suficientemente bem nutridos, temos a tendência natural a não pensar nos desnutridos e a crer que realmente as cifras e os alarmes são exagerados, é que é preciso despertar as nossas consciências adormecidas para o flagelo que já chegou a introduzir um nome próprio e científico para a moléstia da fome: kwaskiorkor — ora grassando, dramaticamente, [pg. 22] no coração da África. Nem creio que essas imagens sejam exageradas, embora acredite que a verdade é a única mestra autêntica das convicções. Acontece, porém, que a verdade sobre a fome incomoda os governos e fere as suscetibilidades patrióticas e, por isso mesmo, são frequentemente vedadas ao grande público, pelas respectivas censuras políticas. Especialmente nos países que se preocupam exageradamente com a imagem que deles se faça no estrangeiro. E não têm a mesma coragem de dizer as coisas pelos seus nomes como acontece particularmente na Inglaterra e nos Estados Unidos e em todos os países onde existe verdadeira liberdade de informação. Aliás, esse eminente cientista inglês, que subestima o perigo da fome e critica os que exageram as estatísticas, também nesse mesmo artigo declara que “a população mundial aumenta com um ritmo de aproximadamente 2 por cento ao ano”, quando esse ritmo chega, em certas regiões latino-americanas, a ultrapassar 3,5 por cento, sem que a produção de alimentos e especialmente sua distribuição pelo povo seja equitativa. O próprio Clark, aliás, embora subestimando o flagelo da fome, apela para a intervenção imediata dos governos, como único meio de corrigir o desnivelamento desumano entre os bem nutridos e os desnutridos, em conseqüência de fatores políticos e sociais. “Se é verdade que as disponibilidades de alimentos nos países da África, na média, são superiores ao mínimo necessário, também é verdade que uma iníqua distribuição dos rendimentos acaba por deixar uma grande parte da população à margem da fome.” E cita o caso do sistema de castas na Índia, que “significa que muitos milhões de pessoas estão condenadas a uma existência de discriminação e à impossibilidade de progresso econômico.” Entre nós, a situação ainda é mais grave, pois não se traiu da existência, nos costumes — embora não mais nas leis —, de um sistema de “intocáveis” à margem da sociedade e da satisfação das suas mais elementares exigências de sobrevivência. Entre nós está ocorrendo exatamente o mesmo, justamente na medida em que cresce a estrutura industrial e urbanística, mas dentro diurna estrutura social de tipo nitidamente feudal. Acredito que o progresso tecnológico esteja em condições de equilibrar o aumento mundial das populações. Mas para isso é preciso reagir [pg. 23] contra o sistema feudal que entre nós corresponde, analogicamente, ao sistema de castas, na Índia, ou ao sistema tribalístico, na África, onde o flagelo da fome é, neste momento, um pesadelo mundial. Como é preciso que as verdades do desnutricionismo crônico da maioria de nossa população sejam ditas livremente, pois não são as obras faraônicas, nem mesmo os esforços da desanalfabetização, que vão nutrir os famintos e vestir os nus, não apenas pirandelicamente. AS DUAS FOMES A propósito do flagelo da fome, a que ontem aludíamos, o novo diretor da FAO, o técnico holandês A. N. Boehns, declarou recentemente que: “A escassez mundial de alimentos é a pior crise que se registra desde a Segunda Guerra Mundial, pois o crescimento demográfico é de 2% ao ano, enquanto a produção de alimentos e a colheita agrícola do mundo, em 1972, teve 3% de redução.” (Apud ). B., 6.09.73). O crescimento demográfico do Brasil, convém lembrar, é de 3%. Mas essa defasagem entre o dinamismo crescente da vida e o dinamismo decrescente da técnica não pode ser eliminada pela contenção do primeiro e sim pelo incremento do segundo. Como dizia Chesterton, em uma de suas imagens pitorescas, se só temos cinco chapéus para seis crianças, há duas soluções a empregar: ou arranjamos mais um chapéu ou cortamos a cabeça de uma das crianças... O nosso saudoso Josué de Castro, precursor entre nós, e mesmo no plano internacional, dos estudos científicos a respeito desse problema trágico da humanidade, e que afeta de modo tão desastroso e doloroso o nosso país, mostrou bem claramente a interdependência entre o problema sanitário da população, cuja fonte é primacialmente de natureza alimentar, e o problema sócio-econômico da estrutura política da nacionalidade. Josué de Castro faz mesmo remontar as causas originais da subalimentação endêmica em nosso país. ao início de nossa colonização. [pg. 24] “A fome, no Brasil, é conseqüência, antes de tudo, do seu passado histórico, com os seus grupos humanos sempre em lula e quase nunca em harmonia com os quadros naturais. Luta, em certos casos, provocada e por culpa portanto da agressividade do meio, que iniciou abertamente as hostilidades, mas quase sempre por inabilidade do elemento colonizador, indiferente a tudo que não significasse vantagem direta e imediata para os seus planos de aventura mercantil. Aventura desdobrada em ciclos sucessivos de economia destrutiva, ou pelo menos desiquilibrante da saúde econômica da nação: a do pau-brasil, a da cana-de-açúcar, a da caça ao índio, a da mineração, a da lavoura nômade, a do café, a da extração da borracha, e finalmente a da industrialização artificial baseada no ficcionismo das barreiras alfandegárias e no regime da inflação... E o “fique rico” tão agudamente estigmatizado por Sérgio Buarque de Holanda... Em última análise, esta situação de desajustamento econômico e social foi conseqüência da inaptidão do estado político para servir de poder equilibrante entre os interesses privados e o interesse coletivo. A princípio por sua tenuidade e fraqueza potencial diante da fortaleza e independência dos senhores de terras, manda-chuvas em seus domínios de porteiras fechadas... Ultimamente, num contrastante exagero noutro sentido, no excesso centralizante do poder... Conseqüência dessa centralização absurda e da política de fachada da República foi o quase abandono do campo e o surto da urbanização... que não encontrando no país nenhuma civilização rural bem enraizada veio acentuar de maneira alarmante a nossa deficiência alimentar.” (Geografia da Fome, 1946, pág. 293.) Há trinta anos, portanto, um sociólogo da estirpe de Josué de Castro já demonstrava, exaustivamente, a influência dos fatores sócio-econômicos sobre os próprios fatores biológicos de nossa população, através da deficiência alimentar e da primazia dos interesses privados, junto à incapacidade equilibrante das instituições políticas. E como as causas sociais são sempre correlativas, essa “deficiência alimentar”, causada primacialmente por fatores político-sociais, veio afetar indiretamente essas estruturas políticas, sempre intimamente ligadas às subestruturas cconômico-sociais. [pg. 25] Ainda agora, o sociólogo Gláucio Soares publica um estudo do maior interesse científico e social, e, elaborado à luz de uma sociologia analítica, enquanto a obra clássica de Josué de Castro foi elaborada à luz de uma sociologia globalista e sintética, sobre um problema análogo. Esse magnífico trabalho sobre Sociedade e Política no Brasil (Dif. Europeia do Livro, S. Paulo, 1973, pp. 237 e ss.) estuda apenas “o desenvolvimento, classe e política durante a Segunda República”, de 1945 a 1964, mas interessa toda a nossa formação social contemporânea. Embora “partindo de uma orientação sociológica geral marxista, que diz serem os fenômenos supra-estruturais determinados, em última instância. pela infra-estrutura sócio-econômica” (p. 15), na realidade mostra a interdependência das infra e supra-estruturas sociais, comprovando, ao longo de nossa história mais recente, o domínio da “oligarquia”, isto é, das elites instaladas, ricas, poderosas, sobre a poli-arquia, isto é, as maiorias entaladas, isto é, de situação profissional precária, pobres e impotentes. Estudo magnificamente documentado e coincidindo, embora a partir de orientação sociológica diversa, com o de Josué de Castro — na verificação da influência decisiva e recíproca de fatores sócio-econômicos e políticos na constituição da sociedade brasileira. Josué de Castro, estudando a situação sanitária e biológica da população, substancialmente viciada pela Fome Física: Gláucio Soares, estudando a situação política também viciada pela marginalização das maiorias, esmagadas pela Fome Política, isto é, pela passividade e pela imparticipação nos negócios públicos. O prof. Gláucio Soares, examinando as conseqüências da Revolução de 30 e da queda do getulismo em 1945, mostra como a “política oligárquica não foi sucedida por uma política democratizada, com ampla participação de setores e classes menos privilegiadas. Seria ingênuo crer que o colapso da oligarquia foi total (com a queda da Primeira República, lembro eu), e que as estruturas sócio-econômicas que possibilitaram sua existência ruíram e que se abriu o caminho para a participação das classes populares na política, tanto no nível eleitoral quanto no nível de representação. Persistindo a distribuição desigual da propriedade e um sistema de valores claramente classista (isto é, burguês, lembro eu), as pessoas que ocupam posições altas e médias continuam [pg. 26] a gozar de maior prestígio que as demais, sendo de salientar que essa diferenciação é aceita por amplos setores das classes populares” (p. 136). E a propósito do golpe de 64 lembra que: “Não obstante, essa situação não provocaria um golpe de estado (64 não foi propriamente um golpe de estado, isto é, de cima para baixo, mas um golpe contra-estado, isto é, de fora para dentro, — lembro eu) se as classes médias e a sua maior representante, a UDN, paladina da democracia liberal no Brasil, efetivamente acreditassem no princípio democrático... No fundo, seu modelo não era a democracia liberal, mas sim o da democracia com participação restrita, que havia sido proposto pela primeira vez quarenta anos antes pelos tenentes e reiterado nos manifestos do Clube 3 de Outubro. Muitos dos antigos tenentes agora eram generais que, acionados politicamente pelos conservadores e socialmente pelas classes médias, interromperam pela força o Governo Goulart” (p. 234). Durante o decênio corrente o predomínio absoluto do sistema oligárquico só fez aumentar. E as duas misérias, a da Fome Orgânica, denunciada por Josué de Castro, e a da Fome Política, denunciada por Gláucio Soares, explicam os pés-de-barro da estátua de Nabucodonosor, isto é, do famoso “milagre brasileiro” de nossos dias. [pg. 27] PREFÁCIO DO AUTOR 1. O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constituiu num dos tabus de nossa civilização. É realmente estranho, chocante, o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacidade de escrever-se e de publicar-se, haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome, em suas diferentes manifestações. Consultando a bibliografia mundial sobre o assunto, verifica-se a sua extrema exigüidade. Extrema quando a pomos em contraste com a minuciosa abundância de trabalhos sobre temas outros de muito menor significação. Tal pobreza bibliográfica se apresenta ainda mais estranha e mais chocante quando meditamos acerca do conteúdo do tema da fome — de sua transcendental importância e de sua categórica finalidade orgânica. Já outros estudiosos se tinham espantado diante deste inexplicável vazio bibliográfico: não há muito, Gregorio Marañon, recolhendo material para a elaboração de um trabalho sobre a regulação hormonal da fome,1 se surpreendeu com o número insignificante de fichas que conseguiu reunir acerca deste problema fundamental. Registrando o fato, o escritor espanhol, interessado no momento noutra ordem de idéias, não se deu ao trabalho de buscar as razões ocultas que determinaram esta quase que abstenção de nossa cultura em abordar o tema da [pg. 29] fome. Em examiná-lo mais a fundo, não só em seu aspecto estrito de sensação — impulso e instinto que tem servido de força motriz a evolução da humanidade (Espinosa) — como em seu aspecto mais amplo da calamidade universal. Sob este último aspecto, se fizermos um estudo comparativo da fome com as outras grandes calamidades que costumam assolar o mundo — a guerra e as pestes ou epidemias — 1 Marañon. Gregorio, “La Regulación Hormonal del Hambre”, in Estudios de Endocrinología, 1938. verificaremos, mais uma vez, que a menos debatida, a menos conhecida em suas causas e efeitos, é exatamente a fome. Para cada mil publicações referentes aos problemas da guerra, pode-se contar com um trabalho acerca da fome. No entanto, os estragos produzidos por esta última calamidade são maiores do que os das guerras e das epidemias juntas, conforme é possível apurar, mesmo contando com as poucas referências existentes sobre o assunto.2 E há mais, a favor deste triste primado da fome sobre as outras calamidades, o fato universalmente comprovado de que ela constitui a causa mais constante e efetiva das guerras e a fase preparatória do terreno, quase que obrigatória, para a eclosão das grandes epidemias. Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Será por simples obra do acaso que o tema não tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos? Não cremos. O fenômeno é tão marcante e se apresenta com tal regularidade que, longe de traduzir obra do acaso, parece condicionado às mesmas leis gerais que regulam as outras manifestações sociais de nossa cultura. Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu origem a esta espécie de interdição baseia-se no fato de que o fenômeno da fome, tanto a fome de alimentos como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um tanto chocante pura uma cultura racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta humana. Considerando o instinto como o animal e só a razão [pg. 30] como o social, a nossa civilização, em sua fase decadente, vem procurando negar sistematicamente o poder criador dos instintos, tidos como forças desprezíveis. Aí encontramos uma das imposições da alma coletiva da cultura, que fez do sexo e da fome assuntos tabus — impuros e escabrosos — e por isto indignos de serem tocados. Sobre o problema do sexo, foi mantido um silêncio opressor, até o dia em que um homem de gênio, num gesto inconveniente e providencial, afirmou, diante do fingido espanto da ciência e da moral oficiais, que o instinto sexual é uma força invencível, tão intensa que atinge a 2 Waldorf, Cornelius. The Famines of the World, 1878. consciência e a domina inteiramente. Freud demonstrou com tal genialidade o primado do instinto, que é essencial, sobre o racional, que é acessório, no desempenho do comportamento humano, que não houve remédio senão aceitar-se, mesmo a contragosto, a sua teoria e deixar-se abrir os diques com que se procurava ingenuamente afogar as raízes da própria vida. Desde então foi possível debater-se em altas vozes o problema do sexo. Quanto à fome, foram necessárias duas terríveis guerras mundiais e uma tremenda revolução social — a revolução russa — nas quais pereceram dezessete milhões de criaturas, dos quais doze milhões de fome, para que a civilização ocidental acordasse do seu cômodo sonho e se apercebesse de que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo. Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno. É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos — dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses econômicos — e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública. E a dura verdade é que as mais das vezes esses interesses eram antagônicos. Veja-se o caso da Índia, por exemplo. Segundo nos conta Réclus,3 nos últimos trinta anos do século passado morreram de inanição naquele país mais de vinte milhões de habitantes; só no ano de 1877 pereceram de [pg. 31] fome cerca de quatro milhões. E, no entanto, de acordo com a sugestiva observação de Richard Temple — “enquanto tantos infelizes morriam de fome, o porto de Calcutá continuava a exportar para o estrangeiro quantidades consideráveis de cereais. Os famintos eram demasiado pobres para comprar o trigo que lhes salvaria a vida”. É lógico que os grandes importadores, negociantes de Londres, Rotterdam e outras grandes praças européias, que tiravam grandes proventos de suas importações da Índia, faziam o possível para abafar na Europa os rumores longínquos desta fome longínqua, a qual, se tomada na devida consideração, poderia atrapalhar os seus lucrativos negócios. 3 Réclus. Elisée, Nouvelle Géographie Universelle, 1875-94. Também os governos nazistas que se haviam apoderado do poder em vários países e de cuja política fazia parte obrigatória a propaganda intempestiva de prosperidades inexistentes, não podiam ver com bons olhos quaisquer tentativas que viessem mostrar, às claras, aos outros países, em que extensão a fome participava dos destinos de seus povos. A própria ciência e a técnica ocidentais, envaidecidas por suas brilhantes conquistas materiais, no domínio das forças da natureza, se sentiram humilhadas, confessando abertamente o seu quase absoluto fracasso em melhorar as condições de vida humana no nosso planeta, e com o seu reticente silêncio sobre o assunto faziam-se, consciente ou inconscientemente, cúmplices dos interesses políticos que procuravam ocultar a verdadeira situação de enormes massas humanas envolvidas em caráter permanente no círculo de ferro da fome. 2. Hoje, tendo sido possível realizar com a aquiescência oficial4 uma série de pesquisas bem orientadas nas mais diferentes regiões da terra acerca das condições de nutrição dos povos, e tendo-se evidenciado, dentro de um critério rigorosamente científico, o fato de que cerca de dois terços da humanidade vivem num estado permanente de fome, começa a mudar a atitude do mundo. É claro que para essa mudança de atitude muito tem contribuído a pressão de fatos inexoráveis. Há a consciência universal de que atravessamos uma hora decisiva, [pg. 32] na qual só reconhecendo os grandes erros de nossa civilização podemos reencontrar o caminho certo e fazê-la sobreviver à catástrofe. Desses erros, um dos mais graves é, sem nenhuma dúvida, este de termos deixado centenas de milhões de indivíduos morrendo à fome num mundo com capacidade quase infinita de aumento de sua produção e que dispõe de recursos técnicos adequados à realização desse aumento. Mundo capaz de produzir alimentos para cinco e meio bilhões de homens, segundo os cálculos de East, oito bilhões, segundo os de Penk, e onze bilhões, segundo os de Kucszinski; portanto, pelo menos para o dobro da população atual.5 A demonstração mais efetiva da mudança radical da atitude universal, em face do problema, encontra-se na realização da Conferência de Alimentação de Hot 4 Desde 1928 a Liga das Nações inscreveu o problema da alimentação no programa de seus trabalhos, fazendo realizar, sob o patrocínio de sua Organização de Higiene, estudos detalhados em diferentes países e dando publicidade a uma série de valiosos relatórios sobre o assunto. 5 Ferenczi, Imre, L’Optimum Synthétique du Peuplement, 1938. Springs, a primeira das conferências convocadas peias Nações Unidas para tratar de problemas fundamentais à reconstrução do mundo de após-guerra. Nesta conferência reunida em 1943, e que deu origem à atual Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas — a FAO — quarenta e quatro nações, através dos depoimentos de eminentes técnicos no assunto, confessaram, sem constrangimento, quais as condições reais de alimentação dos seus respectivos povos e planejaram as medidas conjuntas a serem levadas a efeito para que sejam apagadas ou pelo menos clareadas, nos mapas mundiais de demografia qualitativa, estas manchas negras que representam núcleos de populações subnutridas e famintas, populações que exteriorizam, em suas características de inferioridade antropológica, em seus alarmantes índices de mortalidade e em seus quadros nosológicos de carências alimentares — beribéri, pelagra, escorbuto, xeroftalmia, raquitismo, osteomalácia, bócios endêmicos, anemias, etc. — a penúria orgânica, a fome global ou específica de um, de vários e, às vezes, de todos os elementos indispensáveis à nutrição humana. Para que as medidas projetadas possam atingir o seu objetivo, faz-se necessário, no entanto, intensificar e ampliar, cada vez mais, os estudos sobre a alimentação no mundo inteiro; donde a obrigação, em que se encontram os estudiosos deste [pg. 33] problema, de apresentarem os resultados de suas observações pessoais, como contribuições parciais pura o levantamento do plano universal de combate à fome, de extermínio ã mais aviltante das calamidades, uma vez que a fome traduz sempre um sentimento de culpa, uma prova evidente de que as organizações sociais vigentes se encontram incapazes de satisfazer a mais fundamental das necessidades humanas — a necessidade de alimentos. Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao problema da alimentação dos povos reside exatamente no pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, como um complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais. A maior parte dos estudos científicos sobre o assunto se limita a um dos seus aspectos parciais, projetando uma visão unilateral do problema. São quase sempre trabalhos de fisiólogos, de químicos ou de economistas, especialistas em geral limitados por contingência profissional ao quadro de suas especializações. Foi diante desta situação que resolvemos encarar o problema sob uma nova perspectiva, de um plano mais distante, donde se possa obter uma visão panorâmica de conjunto, visão em que alguns pequenos detalhes certamente se apagarão, mas na qual se destacarão de maneira compreensiva as ligações, as influências e as conexões dos múltiplos fatores que interferem nas manifestações do fenômeno. Para tal fim pretendemos lançar mão do método geográfico, no estudo do fenômeno da fome. Único método que, a nossa ver, permite estudar o problema em sua realidade total, sem arrebentar-lhe as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras outras manifestações econômicas e sociais da vida dos povos. Não o método descritivo dá antiga geografia, mas o método interpretativo da moderna ciência geográfica, que se corporificou dentro dos pensamentos fecundos de Ritter, Humboldt, Jean Brunhes, Vidal de La Blanche, Criffith Taylor e tantos outros. Não queremos dizer com isto que o nosso trabalho seja estritamente uma monografia geográfica da fome, em seu sentido mais restrito, deixando à margem os aspectos biológicos, médicos e higiênicos do problema: mas, que, encarando esses diferentes aspectos, sempre o faremos orientados pelos princípios fundamentais da ciência geográfica, cujo objetivo básico é localizar com precisão, delimitar e correlacionar os fenômenos [pg. 34] naturais e culturais que ocorrem à superfície a terra. É dentro desses princípios geográficos, da localização, da extensão, da causalidade, da correlação e da unidade terrestre, que pretendemos encarar o fenômeno da fome. Por outras palavras, procuraremos realizar uma sondagem de natureza ecológica, dentro deste conceito tão fecundo de “Ecologia”, ou seja, do estudo das ações e reações dos seres vivos diante das influências do meio. Nenhum fenômeno se presta mais para ponto de referência no estudo ecológico destas correlações entre os grupos humanos e os quadros regionais que eles ocupam, do que o fenômeno da alimentação — o estudo dos recursos naturais que o meio fornece para subsistência das populações locais e o estudo dos processos através dos quais essas populações se organizam para satisfazer as suas necessidades fundamentais em alimentos. Já Vidal de La Blanche havia afirmado há muito tempo que “entre as forças que ligam o homem a um determinado meio, uma das mais tenazes é a que transparece quando se realiza o estudo dos recursos alimentares regionais”.6 6 Blanche, Vidal de La, Príncipes de Géographie Humaine, 1922. Neste ensaio de natureza ecológica tentaremos, pois, analisar os hábitos alimentares dos diferentes grupos humanos ligados a determinadas áreas geográficas, procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e as causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentação, com suas falhas e defeitos característicos, e, de outro lado, procurando verificar até onde esses defeitos influenciam a estrutura econômico-social dos diferentes grupos estudados. Assim fazendo, acreditamos poder trazer alguma luz explicativa a inúmeros fenômenos de natureza social até hoje mal compreendidos por não terem sido levados na devida conta os seus fundamentos biológicos. Não se deduza daí que, num exagero descabido de especialista obcecado pela importância de seus problemas, iremos tentar a criação de qualquer nova teoria alimentar das civilizações, num novo broto desta escola bissocial de inesgotável fecundidade. Estamos longe desta maneira de ver, de tentativas como a do famoso escritor e jornalista mexicano Francisco Bulnes, que, no fim do século passado, um tanto influenciado pelas idéias das hierarquias sociais, procurou explicar todas as diferenças entre os grupos culturais por seus tipos de alimentação: [pg. 35] “A humanidade, de acordo com uma severa classificação econômica, deve ser dividida em três grandes raças — a raça do trigo, a raça do milho, e a raça do arroz. Qual delas é indiscutivelmente superior?” Com esta pergunta iniciava Bulnes o desenvolvimento do seu raciocínio para demonstrar que só a raça do trigo é capaz de atingir as etapas da alta civilização. No seu livro extraordinariamente interessante, se anotarmos a época do seu aparecimento no século passado — El Porvenir de las Naciones Hispano-Americanas ante las Conquistas de Europa y Estados Unidos (1889) — Bulnes revela-se um paciente investigador e inteligente renovador do panorama mental americano, mas também um apaixonado de suas próprias idéias, capaz de forçar os argumentos para demonstrar a mais absurda das teses. No nosso ensaio não pretendemos provar nada de parecido. Não queremos convencer ninguém de que a fome seja a mola única da evolução social, nem que sejam os alimentos a única matéria-prima para fabricação das tintas com que são coloridos os diferentes quadros culturais do mundo, mas tão-somente destacar desses quadros os traços negros da fome e da miséria que tarjam quase todos eles com um friso mais ou menos acentuado. 3. Acreditamos que já é tempo de precisar bem o nosso conceito demasiado extenso e, portanto, suscetível de grandes confusões. Não constitui objeto deste ensaio o estudo da fome individual, seja em seu mecanismo fisiológico, já hoje bem conhecido graças aos magistrais trabalhos de Schiff, Lucciani, Turró, Cannon e outros fisiólogos; seja em seu aspecto subjetivo de sensação interna, aspecto este que tem servido de material psicológico para as magníficas criações dos chamados romancistas da fome. Escritores corajosos que resolveram violar o tabu e nos legaram páginas geniais e heróicas, como as de um Knut Hamsun, no seu romance Fome — verdadeiro relatório minucioso e exato das diferentes, contraditórias e confusar sensações que a fome produziu no espírito do autor; como as de um Panait Istrati, vagando esfomeado nas luminosas planícies da Romênia; como as de um Felekhov e um Alexandre Neverov, narrando com dramática intensidade a fome negra da Rússia em convulsão social; como as de um George Fink, sofrendo fome nos subúrbios cinzentos e sórdidos de Berlim; e como as de um John Steinbeck, contando, em Vinhas da Ira, a epopéia de fome da “família Joad”, através das mais ricas [pg. 36] regiões do país mais rico do mundo — os Estados Unidos da América. Não é esse tipo excepcional de fome, simples traço melodramático no emaranhado desenho da fome universal, que interessa ao nosso estudo.7 O nosso objetivo é analisar o fenômeno da fome coletiva — da fome atingindo endêmica ou epidemicamente as grandes massas humanas. Não só a fome total, a verdadeira inanição que os povos de língua inglesa chamam de starvation, fenômeno, em geral, limitado a áreas de extrema miséria e a contingências excepcionais, como o fenômeno muito mais freqüente e mais grave, em suas conseqüências numéricas, da fome parcial, da chamada fome oculta, na qual, pela falta permanente de determinados elementos nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias. É principalmente o estudo dessas coletivas fomes parciais, dessas fomes específicas, em sua infinita variedade, que constitui o objetivo nuclear do nosso trabalho. Nos últimos dez anos após a publicação deste nosso livro, este conceito já ganhou foros internacionais. Por toda parte hoje se reconhece a existência desses vários tipos de fome, e se fala sem maior constrangimento na luta universal contra a fome, na batalha da fome etc. Deve-se, em grande parte, a implantação destes 7 Sobre os aspectos fisiológicos da fome. consulte-se a obra recente de Masseyeff. René. La Faim, 1956. conceitos, até bem pouco considerados como revolucionários e heterodoxos, à própria FAO, que, a princípio discreta e reticente em falar em fome, preferindo em seus relatórios referir-se à subnutrição dos povos, acabou por aceitar a nomenclatura de fome, e a usá-la largamente como conceitos ortodoxos, rigorosamente científicos. Visamos com a publicação deste ensaio contribuir com uma parcela infinitesimal para a construção do plano de ressurgimento de nossa civilização, através da revalorização fisiológica do homem. Poderá, à primeira vista, parecer uma desmedida pretensão que o autor de um estudo de categoria tão modesta como este, lhe atribua qualquer interferência — por mínima que seja — nos destinos universais da humanidade. Encontramos, porém, uma explicação e uma justificativa para nossa atitude, [pg. 37] na afirmativa recente do filósofo inglês Bertrand Russell de que “nunca houve momento histórico no qual o concurso do pensamento e da consciência individuais fosse tão necessário e importante para o mundo como em nossos dias”. E mais ainda “que todo homem, qualquer homem comum, poderá contribuir para a melhoria do mundo”.8 É com esta mesma crença na obra de cooperação de cada um, de coparticipacão ativa na busca de um mundo melhor, que planejamos esta obra abordando o tema da fome em sua expressão universal, mostrando com que intensidade e em que extensão o fenômeno se manifesta nas diferentes coletividades humanas. 4. De fato, o conhecimento exato da situação alimentar dos povos, dos recursos de que poderão dispor para satisfazer suas necessidades de nutrição, é absolutamente indispensável para que se leve a bom termo a revolução social que se processa com incrível velocidade nos dias em que vivemos. Revolução que, segundo se vislumbra pelas transformações já processadas, está criando universalmente um novo sistema de vida política, que poderemos chamar, como sugere Julian Huxley,9 a era do homem social, em contraposição a essa outra era que terminou com a Segunda Guerra Mundial, a era do homem econômico. O que caracteriza fundamentalmente esta nova era é uma focalização muito mais intensa do homem biológico como entidade concreta e a prioridade concedida aos problemas humanos sobre os problemas de categoria estritamente econômica no sentido da clássica economia do 8 Russell, Bertrand, Essais Sceptiques, Paris. 9 Huxley, Julian, On Living in a Revolution, 1944. lucro. Realmente, enquanto até a última guerra a nossa civilização ocidental, em seu exagero de economismo, quase esquecera o homem e seus problemas, preocupando-se morbidamente em conquistar pela técnica todas as forças naturais, pondo todo o seu interesse nos problemas de exploração econômica e de produção de riqueza, vislumbra-se hoje o estabelecimento de formas políticas dispostas a sacrificar os interesses do lucro pelos interesses reais das coletividades. É a tentativa cada vez mais promissora de pôr o dinheiro a serviço do homem e não o homem escravo do dinheiro. De dirigir a produção de forma a satisfazer as necessidades dos grupos humanos [pg. 38] e não deixar o homem matando-se estupidamente para satisfazer os insaciáveis lucros da produção. Aparecendo na aurora dessa nova era social, onde a tenebrosa noite do fascismo ainda projeta as suas sombras, este livro pretende ser um documentário científico desta tragédia biológica, na qual inúmeros grupos humanos morreram e continuam morrendo de fome, ao finalizar-se esta escabrosa era do homem econômico. Para que se compreenda bem e se possa perdoar o uso que faz o autor, em certas passagens do seu livro, de tintas um tanto negras, é bom que o leitor se lembre de que esta obra, documentário de uma era de calamidade, foi pensada e escrita sob a influência psicológica da pesada atmosfera que o mundo vem respirando nos últimos vinte anos. Atmosfera abafada pela fumaceira das bombas e dos canhões, pela pressão das censuras políticas, pelos gritos de terror e de revolta dos povos oprimidos e pelos gemidos dos vencidos e aniquilados pela fome. Atmosfera que o sociólogo Sorokin pinta com as seguintes palavras: “vivemos e agimos numa era de grandes calamidades. A guerra, a revolução, a fome e a peste cavalgam novamente em nosso planeta. Novamente elas cobram seu mortífero tributo à humanidade sofredora. Novamente elas influenciam cada momento da nossa existência: nossa mentalidade e nossa conduta, nossa vida social e nossos processos culturais.”10 Devemos confessar honestamente que não nos foi possível fugir na elaboração do nosso trabalho a tão dominadora influência. 5. Várias foram as razões que nos levaram a planejar a realização desta obra 10 Sorokin, Pitirim A., Man and Society in Calamity, 1942. em mais de um volume. A primeira delas é a desmedida extensão do seu campo de observação, abrangendo todos os continentes, investigando as condições de vida nos mais variados recantos da superfície da terra. Por mais impressionista que seja o retrato que tentamos pintar de cada uma das regiões estudadas, não é possível sintetizar os seus traços característicos atém de certos limites. A segunda razão se fundamenta na evidência de que um estudo de tal envergadura, mesmo quando as condições são as mais favoráveis à sua execução, leva vários anos para ser completado e a paciente espera para publicar todo o trabalho em conjunto tornaria um tanto antiquadas [pg. 39] certas indicações bibliográficas e certos aspectos de atualidade do problema em suas manifestações regionais. Considerando que o Brasil constituiu o nosso laboratório natural de observação sobre o problema a cujo estudo nos dedicamos há mais de vinte e cinco anos, achamos de toda a conveniência concentrarmo-nos de início na análise do fenômeno da fome no nosso país, de sua influência como fator biológico na formação e evolução dos nossos grupos humanos. Estudando o fenômeno da fome no nosso meio, daremos um balanço geral das influências de categoria biológica que têm interferido e pesado na modelagem de nossa cultura e de nossa civilização. Buscando essa valorização dos fatores de categoria biológica, não quer dizer que desprezemos a importância dos fatores de natureza cultural, fatores da categoria do latifundismo agrário-feudal que tanto deformou o desenvolvimento da sociedade brasileira. Isto é inegável. O que tentaremos mostrar é que, mesmo quando se trata da pressão modeladora de forças econômicas ou culturais, elas se fazem sentir sobre ò homem e sobre o grupo humano, em última análise, através de um mecanismo biológico: através da deficiência alimentar que a monocultura impõe, através da fome que o latifúndio gera, e assim por diante. Não defenderemos, pois, nenhuma primazia na interpretação da evolução social brasileira. Nem o primado do biológico sobre o cultural, nem o do cultural sobre o biológico. O que pretendemos é pôr ao alcance da análise sociológica certos elementos do mecanismo biológico de ajustamento do homem brasileiro aos quadros naturais e culturais do país.11 11 Sobre a participação do biológico no mecanismo social consulte-se a série de interessantes estudos reunidos pelo eminente antropólogo R. Redfield, no livro Leveis of Integracion in Biological and Social Systems (1942). De grande valia para uma orientação firme nesse campo cientifico é também a obra de G. F. Gause — The Struggle for Exis-tence (1934). Alexander Lipschütz, no seu interessante livro El Indo-americanismo y el Problema Racial en las Américas, apresenta-nos um bom exemplo de aplicação bem orientada dos mais modernos Não temos a pretensão de investigar a fundo, numa sondagem definitiva, a influencia de todos os fatores dessa categoria: raça, clima, meio biótico, etc., que constituem a base orgânica da estrutura social dos nossos grupos humanos. Estudando, porém, [pg. 40] os recursos e os hábitos alimentares de várias regiões, teremos forçosamente que levar em consideração todos esses fatores ecológicos que participam ativamente na interação do elemento humano e dos quadros geográficos brasileiros. Caracterizando o tipo de alimentação e os variados tipos de fome que tem sofrido a nossa gente, estamos certos de que faremos refletir nessas características biológicas, com maior exatidão do que através do estudo de quaisquer outras manifestações de natureza ecológica, o grau de adaptação e ajustamento dos diferentes grupos regionais de nossas populações às variadas zonas geográficas do país. E são exatamente as expressões dessas variadas formas de adaptação que dão relevo à fisionomia cultural de uma nação. É por isso que julgamos ser este volume, até certo ponto, uma tentativa de interpretação biológica de determinados aspectos da formação e da evolução histórico-sociais brasileiras. O nosso projeto inicial era escrever vários volumes sobre o fenômeno da fome universal — um volume sobre cada continente assolado por este flagelo social. A marcha dos trabalhos, a repercussão internacional que provocou o primeiro volume acerca do Brasil e a necessidade um tanto urgente de apresentar um panorama universal da matéria nesta hora grave do mundo, em que a humanidade se confronta com dois trágicos problemas — o da guerra e do medo da guerra e o da fome e do medo da fome — todos estes fatores em conjunto alteraram o nosso plano inicial. Chegamos, pois, à conclusão de que, após apreciar regionalmente o problema da fome no Brasil, seria útil apresentar o panorama do mundo em conjunto, dentro do mesmo método de estudo, embora sem a mesma riqueza de detalhes que um trabalho de categoria universal não poderia comportar. Assim, escrevemos e publicamos a nossa Geopolítica da Fome, que dentro do nosso esquema geral constituiu a segunda parte do nosso estudo do problema da fome em sua significação biológica, econômica e social. conceitos de sociologia, na análise do biológico e do social na organização dos diferentes grupos de população deste continente. A generosa acolhida que recebeu a Geopolítica da Fome no mundo inteiro, sendo traduzida em dezenove línguas e agraciada com o Prêmio Roosevelt, concedido nos Estados Unidos ao melhor livro publicado durante o ano sobre assuntos sociais e de bem-estar humano, e com o Prêmio Internacional da Paz, pelo Conselho Mundial da Paz, dá-nos a impressão de que fizemos [pg. 41] bem em tomar esta decisão de concentrar nossa atenção no estudo do problema em sua expressão universal — correlacionando a crise biológica da fome mundial com a crise política em que o mundo se debate atualmente. E procurando demonstrar que o caminho da paz e da felicidade humana está numa economia de abundância, na luta contra a fome e a miséria e na vitória integral contra o medo tanto da fome como da guerra. Medo que ameaça paralisar a capacidade criadora do homem e. portanto, provocar o desmoronamento de toda a civilização.* * Estes esclarecimentos, escritos para o prefácio à 9.ª edição da Geografia da Fome, foram mantidos nesta edição para que o leitor possa situar-se dentro do nosso plano de estudo e colocar-se a par das razões que determinaram nossa conduta diante do problema em equação. 6. Acreditamos dever ainda ao leitor, principalmente ao leitor estrangeiro, uma explicação e uma última advertência. A explicação visa a esclarecer as razões que levaram o autor a dedicar dois volumes de sua obra ao estudo de um só país, o Brasil, concentrando em dois outros volumes o estudo do mundo inteiro. Não foram razões de ordem sentimental, nem de supervalorização patriótica que nos ditaram essa conduta: foram razões de ordem didática. O Brasil constituiu o nosso campo de observação e de experimentação diretas do problema. De comprovação de inúmeros aspectos doutrinários da questão e de ensaio e verificação de muitas hipóteses que formulamos sob aspectos particulares nesse setor científico. O seu vasto território com diferentes categorias de climas tropicais, desde o equatorial superúmido da Amazônia até o tropical seco e semi-árido do sertão do Nordeste e o subtropical com seus variados tipos de organização econômica, apresenta condições excepcionais para uma larga investigação do problema da alimentação nos trópicos. Nenhum país do mundo se prestaria, tanto quanto o nosso, para funcionar como um verdadeiro laboratório de pesquisa social deste problema. Os resultados das observações e investigações que aqui procedemos durante vinte e tantos anos, e que são apresentados neste ensaio, poderão permitir, pela aplicação do método comparativo, generalizações até certo ponto válidas para inúmeras outras regiões tropicais do mundo. Acentuar, pois, certos detalhes do caso brasileiro, nesse estudo da geografia da fome, significa [pg. 42] procurar ilustrar com exemplos concreto o estudo do fenômeno em diferentes áreas geográficas que apresentem condições naturais ou culturais mais ou menos semelhantes às deste país. Ademais, desenvolvendo neste estudo certos aspectos doutrinários da questão para sua melhor compreensão por parte dos não iniciados na matéria, fomos poupados de voltar ao assunto na Geopolítica da Fome, em que apresentamos em forma mais densa traços e fatos objetivos que caracterizam as inúmeras áreas geográficas analisadas. Há, no entanto, um perigo em publicar separadamente esse estudo das áreas de fome no Brasil, destacado das outras áreas de fome do continente. Perigo de que, por desconhecimento ou por má fé, possa alguém julgar serem as condições de vida no nosso país, na hora atual, mais graves e mais difíceis do que no resto da América. Afirmativa que está longe de ser verdadeira. Na maioria dos países da América Latina, conforme pudemos verificar em visitas locais e através de documentos estatísticos e informes científicos obtidos, as condições de vida são ou idênticas ou ainda mais precárias do que as do Brasil. Temos uma confirmação destas palavras no resumo que, acerca das condições de vida na América Latina, apresentaram George Soule, David Efron e Norman T. Ness, no seu livro Latin America in The Future World (1945). Como se trata de uma publicação que resume os resultados de minucioso inquérito levado a efeito através do continente por notáveis investigadores e peritos, supervisionados pela National Planning Association, cuja idoneidade técnica está acima de qualquer suspeita, parece-nos recomendável transcrever na íntegra os 13 itens em que os autores registram os aspectos mais significativos da vida econômico-social desta larga porção do continente americano: “A necessidade de encarar realisticamente os problemas da América Latina tornou-se urgente depois da guerra. A participação desses povos, na reconstrução do novo mundo, é imprescindível e valiosa. Como, porém, tornar possível essa participação? Quais são as condições existentes entre esses povos? O que se segue ajuda a compreender a situação desses países: 1.°) Dois terços, talvez mais, das populações da América Latina são de subnutridos, apresentando-se mesmo as populações [pg. 43] de certas regiões em estado de fome absoluta. A maioria é mal nutrida, mal vestida e mal alojada. 2.°) Três quartos da população da maior parte dos países da América Latina são de analfabetos; nos países restantes a proporção de analfabetos varia de 20 a 60%. 3.°) A metade da população da América Latina sofre de doenças infecciosas ou carenciais. 4.°) Dois terços da população da América Latina não gozam dos benefícios da assistência social. 5.°) Cerca de um terço das populações trabalhadoras (especialmente milhões de trabalhadores índios) continua sem participação alguma na vida econômica, social e cultural da comunidade latino-americana. O poder aquisitivo do índio é, em muitas áreas, igual a zero. Com exceção do México, ele é politicamente um cidadão de segunda classe. 6.°) Dois terços da população latino-americana vivem em condições semifeudais de trabalho. 7.°) Uma surpreendente maioria da população rural não possui terra. Dois terços, se não mais, dos recursos agrícolas, florestais e o gado pertencem ou são controlados por uma minoria de senhores de terra nacionais e por organizações estrangeiras. 8.º) A maior parte das indústrias extrativas da América Latina pertence ou é controlada por organizações estrangeiras, sendo considerável parte dos lucros desviada dos vários países. Da mesma forma muitas das instituições de produção e distribuição são controladas pelo capital estrangeiro ausente. 9.º) As condições de vida da massa da população latino-americana são particularmente instáveis, dependendo das flutuações do mercado estrangeiro. A concentração numa espécie de indústria extrativa ou a monocultura de produtos de “sobremesa” (café, açúcar, cacau, banana, etc.) para o consumo externo mais que para o consumo interno, arrastaram várias regiões latino-americanas à beira da ruína econômica. [pg. 44] 10.°) O comércio interno e o intercâmbio comercial dos países latino-americanos são essencialmente rudimentares. Existe grande desequilíbrio econômico entre diferentes zonas de um mesmo país, como também entre os vários países. As limitadas oportunidades de intercâmbio comercial nos países latino-americanos são semelhantes às do século XVI, quando a Espanha, por intermédio da Câmara de Contratos de Sevilha, proibia as colônias latino-americanas de negociar entre si. O intercâmbio latino-americano representa apenas 7% do comércio total da América Latina. 11.°) A estrutura semicolonial da economia latino-americana reflete-se nos meios de transporte: as estradas de ferro e a navegação marítima destinam-se, na maior parte, ao transporte de matérias-primas do interior para os pontos de embarque para o estrangeiro e ocasionalmente para o desenvolvimento do mercado interno. Essa deficiência de transportes é fator importante do limitado intercâmbio latino-americano. 12.°) Com exceção da Colômbia, Argentina, Brasil e Uruguai, a percentagem de indivíduos produtivos ou dos bem remunerados é muito mais baixa do que nos Estados Unidos ou na Europa (cerca de 31% enquanto a dos Estados Unidos, no tempo do desemprego, era de 30,8%). Essa alta proporção de população não aproveitada constitui um grande peso para a parte economicamente produtiva. 13.°) A capacidade produtiva do trabalhador latino-americano é muito inferior à do americano ou à do europeu, pelas razões acima expostas — subnutrição, ignorância e falta de aparelhagem adequada.” Pela leitura da Geopolítica da Fome, em que são apresentadas as manchas de fome da América Espanhola, o assunto ficará bem compreendido e afastado o perigo das interpretações errôneas. Não se pode, pois, tirar conclusões de qualquer paralelo entre a situação do Brasil e a de outros países da América, senão tomando por base de comparação trabalhos que apresentem um retrato fiel da realidade social desses países, destacando os seus traços mais significativos, com o mesmo realismo isento de preconceitos, com que estudamos a situação alimentar no Brasil. [pg. 45] Se não são muito abundantes os estudos sobre as condições alimentares na América Latina, há, no entanto, alguns trabalhos que nos permitem ajuizar bem delas, podendo ser considerados documentos absolutamente idôneos. Veja-se, assim, para uma visão de conjunto, o trabalho de Woodbury — Food Consumption and Dietary Surveys in The Americas (1942); E o notável livro de George Soule, David Efron e Norman T. Ness — Latin America in the Future World (1945). Para estudo em separado dos diversos países, consulte-se, entre outros, os seguintes trabalhos: Alfredo Ramos Espinosa — La Alimentación en México, México, 1939; Arturo Guevara — El Poliedro de la Nutrición — Aspectos económico y Social del Problema de la Alimentación en Venezuela, Caracas, 1944; E. Quintana — “El Problema Dietético del Caribe” — in América Indígena — México, abril, 1942; Jorge Bejarano — Alimentación y Nutrición en Colombia — Bogotá. 1941; Pablo A. Suarez — “La Situación Real del índio en Equador” — in América Indígena — México, janeiro, 1942; Salvador Allende — La Realidad Médico-Social Chilena — Santiago, 1939; J. Maudones e R. Cox — La Alimentación en Chile, Estudios del Consejo Nacional de Alimentación — Santiago, 1942; e Francisco A. Montalto — La Nutrición en el Paraguay — 1956. Que a situação alimentar da América Latina pouco mudou nos últimos anos, apesar dos esforços empreendidos por governos e instituições internacionais, pode deduzir-se através dos relatórios das três Conferências Latino-Americanas de Nutrição, convocadas sob o patrocínio da FAO por proposta pessoal nossa, quando delegado do Brasil, em 1947, e que se reuniram, com a colaboração da Organização Mundial de Saúde, respectivamente em julho de 1948 em Montevidéu, em junho de 1950 no Rio de Janeiro, em outubro de 1953 em Caracas. Essa situação se confirma ainda através do bem elaborado relatório da CEPAL (Comissão econômica para a America Latina), publicado em agosto de 1955 sob o título: “A Expansão Seletiva da Produção Agropecuária na América Latina e suas Relações com o Desenvolvimento econômico”. De uma simples referência ali encontrada pode deduzir-se da falta de recursos alimentares para sanar o estado de fome reinante em nosso Continente: “A produção agrícola entre o período de antes da guerra e 1954-1955 cresceu de 35% mas a média de produção per capita caiu de 8%, no mesmo lapso de tempo.” [pg. 46] A verdade é que a América Latina é uma das poucas regiões do mundo onde a produção agrícola não tem acompanhado o aumento da população, quando a produção total do mundo nos últimos anos sobrepujou sensivelmente o aumento populacional. 7. Este livro foi publicado pela primeira vez em 1946. Nele tentou o autor esboçar um retrato do Brasil de cerca de quinze anos atrás. Do Brasil que era então um país tipicamente subdesenvolvido, com sua característica economia de tipo colonial, na exclusiva dependência de uns poucos produtos primários de exportação, entre os quais se destacava o café. Ao retratarmos a fome no Brasil estávamos a evidenciar o seu subdesenvolvimento econômico, porque fome e subdesenvolvimento são uma mesma coisa. Foi esta conjuntura econômico-social com todas suas trágicas conseqüências que inspirou este ensaio. Que nos levou a tentar o levantamento científico de uma geografia da fome. Em sucessivas edições que ocorreram desde então, procuramos sempre reajustar o nosso trabalho à realidade vigente, o que não constituiu tarefa difícil porque o país não mudara muito nestes aspectos de sua estrutura social. Bastaram algumas atualizações dos dados estatísticos e pequenos retoques para que o retrato permanecesse válido e válida, pois, a interpretação apresentada da realidade social brasileira. Nos últimos anos vem entretanto o Brasil sofrendo uma profunda transformação em sua economia, a qual embora nem sempre traduza um autêntico progresso social, capaz de melhorar as condições de vida do seu povo, tem de qualquer forma provocado substancial alteração no quadro da realidade social brasileira. O Brasil inicia com vigor a sua emancipação econômica e fugindo ao círculo de ferro do subdesenvolvimento se projeta na fase construtiva de seu desenvolvimento autônomo. Já não somos um país simplesmente agrícola e de pura economia colonial. A industrialização se vem processando nos últimos anos em ritmo acelerado, deslocando sensivelmente o eixo da nossa economia. Esta transformação substancial da vida econômica brasileira inspirou ao autor deste livro uma revisão mais acurada de alguns dos seus traços mais significativos, das principais tendências de sua dinâmica social para que este ensaio não viesse a perder o seu sentido de um documento interpretativo [pg. 47] desta realidade. E foi o que resolvemos fazer ao prepararmos esta 9.a edição da Geografia da Fome: trazer para o quadro de nossas investigações as incógnitas que se levantam neste momento de transição por que atravessa o Brasil. Principalmente à perplexidade que até certo ponto se cria diante da experiência inédita do nosso desenvolvimento econômico, o qual foge, sob vários aspectos, às regras teóricas da economia clássica. Neste ponto o livro que ora apresentamos representa uma verdadeira inovação sobre as suas edições anteriores. É um livro revitalizado por novas indagações de semiologia econômica para reajustar o primitivo diagnóstico formulado. É quase que um novo livro, utilizando o mesmo método de investigação, a mesma perspectiva de análise dos problemas e muitos dos materiais de base já expostos, mas tudo completado por uma nova formulação da realidade do Brasil atual e da atual conjuntura econômica e social do mundo, bem diferentes das de 1946. Neste sentido nos detivemos principalmente em analisar os efeitos atuais e futuros deste tipo de desenvolvimento econômico que se processa no Brasil de hoje e na necessidade de reajustá-lo em certos pontos para corrigir os desvios, os desequilíbrios e as distorções que poderão criar — que já estão criando — sérios impactos ao verdadeiro progresso e ao bem-estar social a que aspiram as populações nacionais. A experiência brasileira por sua originalidade e por sua extensão constitui mesmo um exemplo significativo para orientação de outros países que se esforçam no momento por vencer o estágio de subdesenvolvimento. Os nossos erros e os nossos acertos merecem, pois, uma análise mais profunda e se possível algumas deduções genéricas que possam conduzir à formulação de uma nova teoria do desenvolvimento das regiões subdesenvolvidas. Uma teoria mais emancipada das formulações livrescas, de uma economia clássica de gabinete e das “utopias de exportação” forjadas nos grandes centros de estudo dos países ricos e bem desenvolvidos para serem impostas artificialmente aos países de economia dependente. O drama atual do Brasil, que é. promover o seu desenvolvimento, com suas escassas disponibilidades, em ritmo acelerado e sem sacrificar as aspirações de melhoria social de seu povo, constitui a pedra de toque da acuidade política dos nossos dirigentes. A consciência nacional despertada acompanha alerta [pg. 48] o desenrolar da odisséia de nossa emancipação econômica, com os seus avanços e recuos, e dela participa de corpo e alma. Nenhum problema se sobrepõe no equacionamento, planificação e na execução de um programa desenvolvimentista, ao da prioridade dos investimentos, de forma a evitar os desequilíbrios graves que depressa se constituem como fatores de estrangulamento de toda a economia. O dilema de apoiar-se mais a economia no setor agrícola ou no setor industrial — o dilema do pão ou do aço — para atender às verdadeiras necessidades do país, se apresenta como o fio da navalha que pode pôr em perigo todos os sacrifícios e esforços despendidos pela coletividade. É nesta contingência que o nosso método de estudo talvez possa trazer alguma luz a este angustiante problema, mostrando até que ponto o progresso econômico realizado tem sido favorável e até que ponto tem ele fracassado no sentido de melhorar as condições de alimentação do nosso povo — alargando as negras manchas de miséria de nossa geografia da fome. E servindo desta forma este nosso ensaio como uma modesta contribuição na reformulação de nossa política econômica ainda bem incipiente em seus métodos de ação. 8. Ao publicar esta. 9.a edição da Geografia da Fome, em forma que julgo de uma edição definitiva, atualizada e ampliada em dois volumes, desejo aproveitar a oportunidade para formular os meus agradecimentos a todos aqueles que prestaram na realização deste projeto sua valiosa cooperação, sem a qual dificilmente seria possível ao autor se aventurar a empreendê-lo. Abrange este agradecimento a toda espécie de ajuda e colaboração, desde os serviços prestados por um Tom Spies, quando atendendo a nosso pedido envia-nos com toda presteza uma série de interessantes subsídios sobre a situação alimentar no sul dos Estados Unidos, até a espontânea colaboração dum simples sertanejo de São João do Cariri, que nos manda amostras de mel de abelha e de farinha de macambira para verificação do seu valor nutritivo. Considerando no entanto que foram inúmeras essas colaborações, limitaremos as referências nominais no momento àqueles que ajudaram a elaboração dos dois volumes sobre o Brasil. Sobre os outros, sobre o envio de valiosos materiais, informes e conselhos referentes ao problema em outras regiões do mundo, [pg. 49] nos reservaremos para apresentar nossos agradecimentos com o aparecimento dos volumes que cuidem diretamente do estudo dessas áreas. Fica aqui consignada a nossa gratidão a todos os nossos colaboradores no extinto Serviço Técnico de Alimentação Nacional, e no atual Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, em cujos laboratórios foram realizadas algumas das pes-quisas referidas neste trabalho. Desses colaboradores destacamos os nomes de Sálvio de Azevedo e Pedro Borges pela coleta de dados estatísticos que levaram a efeito com o fim de fornecer ao autor uma documentação mais objetiva de certos aspectos do problema; de Ítalo Mattoso, Emília Pechnik, Isnard Teixeira e José Maria Chaves pelas análises que realizaram acerca do valor nutritivo de vários alimentos brasileiros e a cujos resultados nos reportamos neste ensaio; de Clementino Fraga Filho pela constante colaboração no esclarecer certos aspectos médicos e higiênicos das carências alimentares em nosso país, e de Firmina Santana pelas tábuas de composição de alimentos que organizou e que nos foram de grande ajuda neste trabalho. Agradecemos à nossa assistente na cadeira de Geografia Humana na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, Professora Lucy de Abreu, pela dedicação e pelo interesse com que realizou buscas bibliográficas de alta valia na execução deste trabalho. Ao nosso prezado amigo, o ilustre antropólogo baiano Thales de Azevedo, e ao eminente nutrólogo Orlando Parahym, pelos valiosos informes que nos prestaram, respectivamente acerca das condições alimentares no recôncavo baiano e nos sertões de Pernambuco, e a este último ainda pelos envios de materiais — alimentos sertanejos — que nos fez várias vezes para análises no Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil. Ao saudoso Professor Jorge Zarur pela prestimosidade com que ajudou a seleção e a inclusão nestes volumes do material ilustrativo retirado dos arquivos do Conselho Nacional de Geografia. Ao higienista Oswaldo Costa, nosso colaborador de há muito, pelas sugestões e dados fornecidos sobre aspectos epidemiológicos do Brasil. Ao nosso estimado colega Dr. Cláudio Araújo Lima por nos ter confiado os originais inéditos de um estudo da autoria de seu saudoso pai, o médico e sociólogo Araújo Lima, acerca da Alimentação da Amazônia — trabalho apresentado ao Congresso [pg. 50] Médico Amazônico, reunido em 1939, em Belém, do qual também participamos, e no qual este grande estudioso de problemas brasileiros fixa interessantes aspectos da dieta do homem que habita esta extensa área do país. A Luiz da Câmara Cascudo pelas sugestões que dele recebemos em saborosas conversas ou através de cartas mandadas do Nordeste, tratando principalmente de um projeto que os acasos da vida não nos permitiram realizar, o de escrevermos em colaboração uma história da cozinha brasileira. A Edson Carneiro, sério estudioso dos problemas negros no Brasil, pela amabilidade que teve de nos emprestar os originais do seu livro ainda inédito sobre os Palmares, pondo ao nosso alcance informações de primeira ordem sobre a agricultura dos negros fugidos dos engenhos do Nordeste e acantonados nos Quilombos. Ao meu saudoso amigo João Alberto Lins de Barros, conhecedor profundo dos problemas rurais do Brasil, através da experiência viva e direta de suas realidades singulares, pelos reparos que sugeriu a certos trechos deste livro e pelos relatos que nos fez de observações pessoais de inestimável valia. Ao amigo Queiroz Lima, pelo interesse quase que diário no desenvolvimento deste trabalho, trazendo sempre estímulos e sugestões. Ao eminente sociólogo norte-americano Lynn Smith não só por ter permitido a inclusão, neste livro, de. um sugestivo mapa de sua autoria sobre a evolução demográfica do Brasil, como por conselhos valiosos e oportunos reparos que fez, na leitura de alguns capítulos. Ainda um nome deve ser mencionado com gratidão entre os dos que estimularam o autor na realização deste ensaio: o do meu amigo J. Barboza Mello que se propôs inicialmente a editar este trabalho, pelos constantes apelos que nos fez para que terminássemos quanto antes este estudo, a seu ver não inteiramente destituído de significação social, neste momento que atravessa nosso país, buscando atingir sua maioridade política. Somos também profundamente gratos à magnífica contribuição que nos trouxe o nosso ilustre colega Prof. Tomaz Coelho, catedrático de Geologia na Faculdade Nacional de Filosofia, dando-se ao trabalho de organizar e traçar um mapa de tipos de solo no Brasil, especialmente para ilustrar este livro, servindo para demonstrar de maneira mais viva a íntima correlação existente entre solos regionais, tipos de alimentação e organizações sociais dos diferentes grupos humanos. A José Honório Rodrigues [pg. 51] por sua amável cooperação facilitando enormemente as nossas consultas bibliográficas na Biblioteca Nacional. A João Carlos Vital por ter permitido a inclusão neste livro de um mapa da incidência da tuberculose no país, organizado sob sua orientação pelo Instituto de Serviços Sociais do Brasil. Agradecimentos idênticos merecem o Dr. Gallotti, ex-diretor do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, por ter permitido a reprodução de mapas e de fotografias deste departamento na ilustração de nosso trabalho. A Percy Lau e M. Medina somos gratos pelo interesse que puseram em ilustrar de maneira inteligente este livro, com desenhos e mapas que muito recomendam os seus méritos pessoais de desenhista e cartógrafo. À nossa então secretária, Diva Maria Guerra, e à Senhorita Jacqueline Hermann pelo trabalho que tiveram em datilografar e rever cópias deste estudo. Sinceros agradecimentos são também devidos a João Farias da Silva pelo carinho com que se aplicou ao árduo trabalho de revisão das provas tipográficas e de organização dos índices deste nosso ensaio em sua primeira edição. Deve ser associado a este livro o nome de minha esposa, Glauce de Castro, que entre todos os nossos colaboradores foi o que mais se esforçou e mais ajudou na sua elaboração. Merece um agradecimento muito especial o editor Arquimedes de Mello Netto, da Casa do Estudante do Brasil, que se empenhou há algum tempo em lançar uma edição popular desta obra, tornando-a mais acessível às classes trabalhadoras do país. Iniciativa que me proporcionou satisfação maior do que as edições estrangeiras que este livro alcançou. É que quando o escrevi sempre tinha em mente o fato de que só com a colaboração ativa das massas trabalhadoras, esclarecidas pelo conhecimento exato de nossas realidades econômicas e sociais, seria possível resolver-se, em nossa terra, problemas de tão tremenda complexidade, como é o nosso problema alimentar. E tendo a impressão de que no momento essas massas trabalhadoras estão realmente ansiosas por conhecer os nossos problemas de base, entre os quais se insere, com indiscutível prioridade, o da alimentação. Ou melhor, o da subalimentação e o da fome no Brasil. Enquanto alguns apregoam que para salvar o país se faz necessária a reeducação das elites, aparentemente tão desviadas de seus deveres cívicos, de dirigir a vida pública, eu sou [pg. 52] daqueles que acreditam que a nossa salvação está muito mais na educação adequada das massas, no seio das quais se encontram enormes reservas humanas até hoje deixadas à margem da ação política e social pela falta de recursos educacionais adequados e melhor distribuídos. Nenhuma outra missão me parece, pois, mais nobre do que a de integrar na consciência cívica do país estas populações marginais que pressentem os perigos e as angústias da hora presente, mas se sentem incapazes de agir na busca de um caminho seguro, pela falta de uma visão clara de nossos problemas fundamentais. Nenhum convite poderia ser mais tentador para mim do que o de utilizar este livro como instrumento de captação do interesse do povo, para solução de um dos mais graves e trágicos problemas do próprio povo: o problema da carestia da vida e das conseqüências funestas da subalimentação. O último dos agradecimentos dirige-se ao nosso colaborador, o Engenheiro Agrônomo Alarico da Cunha Júnior, que se tem dedicado com excepcional desvelo ao trabalho de revisão geral de várias edições deste livro, e à minha secretária, D. Thaly Vásquez, que se ocupa da tarefa de datilografá-lo. J.C. Rio de Janeiro, outubro de 1960 [pg. 53] I. INTRODUÇÃO 1. Quando se lê ou se ouve falar sobre fomes coletivas, sobre angustiadas massas humanas atacadas de epidemias de fome, definhando e morrendo à falta de um pouco de comida, as primeiras imagens que assaltam a nossa consciência de homens civilizados são imagens típicas do Extremo Oriente. Imagens evocativas das superpovoadas terras asiáticas com seus enxames humanos se agitando numa estéril e perpétua luta contra o ameaçador espectro da fome. Massas pululantes de esquálidos coolies chineses. Manchas compactas de ascéticos indianos envolvidos em suas longas túnicas, lembrando uma procissão de múmias. Desesperadas multidões comprimidas nas sinuosas ruelas das cidades orientais, atoladas na lama imunda dos arrozais, asfixiadas de poeira nas estradas da China, estorricadas pelas secas periódicas. Multidões famintas que revelam em seus rostos, em seus gestos e em suas atitudes fatigadas a marca sinistra da fome. Tais são os cenários e os personagens a que nossa imaginação sempre recorreu para dar vida aos dramas da fome coletiva. Hoje, àquelas clássicas imagens se vêm juntar outras de maior atualidade. Imagens dos campos de concentração e das cidades e dos campos europeus devastados pela tirania nazi durante a última guerra mundial. Imagens de homens, mulheres e crianças perambulando como fantasmas num mundo perdido, com os olhos esbugalhados flutuando fora das órbitas e com os molambos de vestuários balançando grotescamente sobre a armação dos esqueletos saltando à flor da pele. [pg. 55] Para o leigo, para aqueles que têm conhecimento da fome apenas através do noticiário dos jornais, reduzem-se a estas duas grandes regiões geográficas — o Oriente exótico e a Europa devastada — as áreas de distribuição da fome, atuando como calamidade social. Infelizmente esta é uma impressão errada, resultante da observação superficial do fenômeno. Na realidade, a fome coletiva é um fenômeno social bem mais generalizado. É um fenômeno geograficamente universal, não havendo nenhum continente que escape à sua ação nefasta. Toda a terra dos homens tem sido também até hoje terra da fome. Mesmo nosso continente, chamado o da abundância ç simbolizado até hoje nas lendas do Eldorado, sofre intensamente o flagelo da fome. E, se os estragos desse flagelo na América não são tão dramáticos como sempre foram no Extremo Oriente, nem tão espetaculares como se apresentaram nos últimos anos na Europa, nem por isso são menos trágicos, visto que, entre nós, esses estragos se fazem sentir mais sorrateiramente, minando a nossa riqueza humana numa persistente ação destruidora, geração após geração. É preciso que se confesse corajosamente que a terra da promissão, para a qual foram atraídos, só no século passado, cem milhões de imigrantes europeus, que procuravam fugir às garras da pobreza, também é uma terra onde se passa fome, onde se vive lutando contra a fome, onde milhões de indivíduos morrem de fome. A pouca gente que habita continentes distantes poderia ocorrer a idéia de que a América, com suas enormes reservas naturais, na maior parte inexploradas, com tanta terra à disposição de tão pouca gente e com uma larga faixa do território ocupada pelo povo mais industrioso e ativo do mundo — os americanos do norte — não dispõe do mínimo indispensável de alimentos para satisfazer as necessidades de cada um dos seus 350 milhões de habitantes. No entanto, a verdade é que estamos muito longe deste ideal. Os inquéritos sociais e os levantamentos estatísticos levados a efeito em diferentes zonas do continente vieram mostrar que por toda parte as populações americanas continuam expostas às conseqüências funestas da subnutrição e da fome. Se até quase aos nossos dias o fenômeno não produziu eco é porque as populações da América não se conheciam. A América vivia como ilustre desconhecida, muito mais preocupada pelas coisas dos outros continentes, principalmente da fascinante [pg. 56] Europa, do que pelos seus próprios problemas. Cada país do continente americano vivendo sua vida fechada, isolando-se uns dos outros, econômica e culturalmente: ignorando-se cordialmente uns aos outros como bons vizinhos discretos e presumidos. Que país americano ousaria confessar que suas populações andavam passando fome, quando seus vizinhos bancavam ares de abundância e de riqueza? Nesta atitude de mascarados, os países da América continuaram escondendo suas misérias, enquanto puderam. Hoje, com a predominância cada vez mais efetiva das idéias universalistas, da política de portas abertas, estas misérias acabaram por transparecer. Por se apresentarem com inegável evidência, nos dados estatísticos das respectivas produções nacionais e nos diferentes índices reveladores das condições de vida das populações. Uma das mais graves misérias das terras da América é o estado de fome em que vegetam as populações deste continente. E não só das que vivem na parte mais pobre, ainda não suficientemente explorada, na América Latina: mas também na parte mais rica e civilizada, na América Inglesa. Como veremos oportunamente, numa extensa área dos Estados Unidos da América, no seu velho Sul agrário, continua muita gente a morrer de fome, continuam a manifestar-se entre as populações locais graves doenças, causadas unicamente pela falta de uma alimentação adequada. Na parte do continente que corresponde à América Latina, o fenômeno ainda é mais grave. Mais de dois terços da população desta área passam fome, sendo que em algumas zonas a fome alcança três quartas partes da população. Todas as carências alimentares têm sido encontradas nas diferentes áreas deste continente. Carências proteicas, carências minerais, carências vitamínicas. Cerca de 120 milhões de latino-americanos sofrem de uma ou mais destas carências alimentares que os inferiorizam e os predispõem a outras muitas doenças intercorrentes. Tal se apresenta, em traços um tanto duros, mas realistas, o retrato do continente da abundância. Das terras que pareciam, a princípio, o cenário mais impróprio, para que nele se representassem os dramas vividos da fome. Mas este drama existe. Milhões de seres humanos o têm vivido durante séculos, silenciosamente, com uma resignação que aproxima, sob este aspecto, os povos americanos dos povos do Oriente. Ambos os continentes [pg. 57] — a America nova e a Ásia milenar — têm sofrido resignadamente as suas tragédias de fome. Pretendemos realizar o estudo das diferentes áreas de fome do mundo, iniciando-o com o estudo da fome no Brasil, nosso campo de experiência direta. 2. A alimentação do brasileiro tem-se revelado, à luz dos inquéritos sociais realizados, com qualidades nutritivas bem precárias, apresentando, nas diferentes regiões do país, padrões dietéticos mais ou menos incompletos e desarmônicos. Numas regiões, os erros e defeitos são mais graves e vive-se num estado de fome crônica; noutras, são mais discretos e tem-se a subnutrição. Procurando investigar as causas fundamentais dessa alimentação em regra tão defeituosa e que tem pesado tão duramente na evolução econômico-social do povo, chega-se à conclusão de que elas são mais produto de fatores sócioculturais do que de fatores de natureza geográfica. De fato, com a extensão territorial de que o país dispõe, e com sua infinita variedade de quadros climato-botânicos, seria possível produzir alimentos suficientes para nutrir racionalmente uma população várias vezes igual ao seu atual efetivo humano; e se nossos recursos alimentares são até certo ponto deficitários e nossos hábitos alimentares defeituosos, é que nossa estrutura econômico-social tem agido sempre num sentido desfavorável ao aproveitamento racional de nossas possibilidades geográficas. A enorme extensão territorial, com seus diferentes tipos de solo e de clima, com seus múltiplos quadros paisagísticos, nos quais vêm trabalhando, há séculos, grupos humanos de distintas linhagens étnicas e de diferentes tintas culturais, não poderia permitir que se constituísse, em todo o território nacional, um tipo uniforme de alimentação. O país está longe de constituir uma só área geográfica alimentar. As variadas categorias de recursos naturais e a predominância cultural de determinados grupos que entraram na formação de nossa etnia nas diferentes zonas tinham que condicionar forçosamente uma diferenciação regional dos tipos de dieta. O país abrange pelo menos cinco diferentes áreas alimentares, cada uma delas dispondo de recursos típicos, com sua dieta habitual apoiada em determinados produtos regionais e com seus efetivos humanos refletindo, em muitas de suas características, [pg. 58] tanto somáticas como psíquicas, tanto biológicas como culturais, a influência marcante dos seus tipos de dieta. Cinco áreas bem caracterizadas e assim distribuídas: 1) Área da Amazônia; 2) Área da Mata do Nordeste; 3) Área do Sertão do Nordeste; 4) Área do Centro-Oeste; 5) Área do Extremo Sul.1 Felizmente, destas cinco áreas nem todas são a rigor áreas de fome, dentro do conceito que serve de roteiro a nosso trabalho. Consideramos áreas de fome aquelas em que pelo menos a metade da população apresenta nítidas manifestações carenciais no seu estado de nutrição, sejam estas manifestações permanentes (áreas de fome endêmica), sejam transitórias (áreas de epidemia de fome).2 Não é o grau de especificidade carencial que assinala e marca a área, mas a extensão numérica em que o fenômeno incide na população. As áreas culturais, sob quaisquer aspectos em que sejam encaradas, só poderão ser classificadas à base da verificação dos traços predominantes que lhes dão expressão típica, e não de seus traços excepcionais, por mais gritantes que eles se apresentem em sua categoria de exceção. Para que uma determinada região possa ser considerada área de fome, dentro do nosso conceito geográfico, é necessário que as deficiências alimentares que aí se manifestam incidam sobre a maioria dos indivíduos que compõem seu efetivo demográfico. Das cinco diferentes áreas que formam o mosaico alimentar brasileiro, três são nitidamente áreas de fome: a Área Amazônica, a da Mata e a do Sertão Nordestino. Nelas vivem populações [pg. 59] que em grande maioria — quase diria na sua totalidade — exibem permanente ou ciclicamente as marcas inconfundíveis da fome coletiva. Nas outras duas regiões, a do Centro-Oeste e a do Extremo Sul, embora os hábitos alimentares estejam longe de ser perfeitos, não se apresentam, contudo, deficiências alimentares tão pronunciadas, a ponto de arrastarem a maioria da coletividade aos estados de fome. É verdade que também se manifestam nestas áreas os desequilíbrios e as carências alimentares, sejam em suas formas discretas, subclínicas, sejam mesmo em suas exteriorizações completas, mas sempre como quadros de exceção, atingindo grupos reduzidos, representantes de determinadas 1 Os limites e a caracterização destas diferentes áreas já foram por nós estabelecidos e publicados em trabalhos anteriores: “As Áreas Alimentares do Brasil” — Resenha Clínico-Científica. S. Paulo, abril 1945. e republicada pela América Indígena, volume 5 n.º 3. México, junho de 1943. Veja-se também Josué de Castro — ‘‘The Food Problems in Brazil” — Nutrition Reviews, volume 2, n.° 2. março de 1944. Ainda sobre a caracterização das áreas alimentares brasileira, consulte-se o mapa de “Economia Alimentar no Brasil”, organizado por Sálvio Mendonça e incluído no seu livro Noções Práticas de Alimentação, 1938. 2 Os termos “endêmica” e “epidêmica” são aqui empregados em seu sentido mais lato, dentro do moderno conceito de epidemiologia admitida por W. H. Frost. Posta assim de lado a definição clássica de C. O. Stallybrass. podemos falar de epidemiologia de fome. do mesmo modo que da do diabetes ou do câncer, defendidas por Wilson G. Smillie em Preventive Medicine and Public Health, Nova Iorque. The Macmillan Company, 1946. classes, e não massas inteiras de populações, quase sua totalidade, como ocorre nas três outras áreas alimentares do país. Num rigorismo tecnológico, que se faz necessário, são estas áreas do Centro e do Sul áreas de subnutrição e não propriamente áreas de fome. Dentro do plano geral de nossa obra, que visa à análise das áreas de fome do mundo, só cabe, pois, o estudo circunstanciado das três primeiras áreas brasileiras, daquelas em que o fenômeno da fome se manifesta numa categoria de calamidade coletiva. Como no estudo da Argentina limitamo-nos à análise da região de fome do nordeste andino e subandino, e nos Estados Unidos, ao da área do Sul, da monocultura do algodão, também no caso brasileiro concentraremos maior interesse na caracterização dessas zonas, onde o fenômeno da fome vem exercendo uma ação despótica, quase determinante, na ronceira evolução social dos grupos humanos que ali vivem. [pg. 60] II. ÁREA AMAZÔNICA 1. A região da Amazônia representa, sob o ponto de vista ecológico, um tipo unitário de área alimentar muito bem caracterizado, tendo como alimento básico a farinha de mandioca. Os limites geográficos desta área são bem nítidos. Com as suas terras atravessadas de lado a lado pela linha equatorial, estende-se para o norte até o sistema montanhoso das Guianas e para o sul até alcançar a região semi-árida do Nordeste brasileiro, onde seu revestimento florestal se transforma em vegetação de campo aberto do tipo xerófita. Os contrafortes orientais da cadeia dos Andes constituem-lhe os limites a oeste. Suas terras, banhadas pelo gigantesco sistema fluvial do Amazonas e recobertas na quase totalidade por um espesso manto de floresta, abrangem uma extensão territorial de cerca de 5 milhões de quilômetros quadrados. Nesta região florestal vivem disseminados seis milhões de pessoas.1 Geograficamente esta paisagem natural é a [pg. 61] mais vasta área de floresta equatorial do mundo. Demográfica-mente, representa um dos mais extensos desertos 1 A Lei n.° 1.806, de 6 de janeiro de 1953, estabelece nova conceituação da Amazônia brasileira, para fim de valorização econômica, e criou, para tal objetivo, a Superintendência do Plano de Valorização econômica da Amazônia. Consoante o novo diploma legal, considera-se como Região Amazônica não só a Amazônia clássica, como também a ela foram acrescentadas outras zonas adjacentes. Abrange, assim, a Amazônia legal, não apenas a bacia do Rio Amazonas, em território nacional, mas ainda um pequeno trecho da bacia do Rio Paraguai, no norte do paralelo de 16° de latitude sul, no Estado de Mato Grosso, a bacia dos Rios Tocantins e Araguaia, ao norte do paralelo 13° sul, e mais as bacias dos rios que desaguam no Oceano Atlântico, ao norte da embocadura do Rio Amazonas, até à fronteira com a Guiana Francesa, ao sul da mesma embocadura até o meridiano 44° oeste, no Estado do Maranhão. Inclui, por isso, a floresta hileana típica, uma grande parte da região dos Cocais do Maranhão e Goiás, e extensas zonas de cerrados e campos cobertos e abertos ao norte de Mato Grosso, Goiás, Pará e Territórios do Amapá e Rio Branco. A área total da região passou a ser de 5.057.490 km2, o que equivale a 59,38% da área do Brasil. Em 1950, sua população era de 3.549.589 habitantes, correspondendo a apenas 6,80% do efetivo demográfico nacional. Consoante a estimativa apresentada no “Primeiro Plano Quinquenal”, editado em 1955 pela SPVEA, e de onde foram ex-certadas estas notas, a região teria, nesse ano, 5.958.209 habitantes, à base dos coeficientes verificados nos últimos recenseamentos. do planeta, com uma raleza de população só comparável ã dos desertos tropicais da África e da Austrália ou à dos desertos gelados da Groenlândia e de outras terras árticas. Na alarmante desproporção entre a desmedida extensão das terras amazônicas e a exigüidade de gente, reside a primeira tragédia geográfica da região. Região com uma população de tipo homeopático, formada de gotas de gente salpicadas a esmo na imensidade da floresta, numa proporção que atinge em certas zonas à concentração ridícula de um habitante para cada quilômetro quadrado de superfície. Dentro da grandeza impenetrável do meio geográfico, vive este punhado de gente esmagado pelas forças da natureza, sem que possa reagir contra os obstáculos opressores do meio, por falta de recursos técnicos, só alcançáveis com a formação de núcleos demográficos de bem mais acentuada densidade. Núcleos que pudessem realmente atuar por sua força colonizadora, como verdadeiros fatores geográficos, alterando a paisagem natural, modelando e polindo as suas mais duras arestas, amaciando os seus rigores excessivos a serviço das necessidades biológicas e sociais do elemento humano. Sem forças suficientes para dominar o meio ambiente, para utilizar as possibilidades da terra, organizando um sistema de economia produtiva, as populações regionais têm vivido até hoje, no Amazonas, quase que exclusivamente num regime de economia destrutiva. Da simples coleta dos produtos nativos, da caça e da pesca. Da colheita de sementes silvestres, de frutos, de raízes e de cascas de árvores. Do látex, dos óleos e das resinas vegetais. [pg. 62] Desde os primeiros tempos de ocupação do vale amazônico que o reino de Portugal começou a incentivar nesta região da colônia “a colheita da droga” para compensar o seu desapontamento comercial com a colheita da especiaria do Oriente, dificultada em extremo pela concorrência de outros povos também navegadores e traficantes; a coleta de plantas de temperos medicinais e de vícios que abundavam na floresta amazônica. Não é sem razão que um grande conhecedor da história da Amazônia, Artur Ferreira Reis, afirma que, “amparada assim tão carinhosamente a colheita de drogas, o colono fez de sua exploração um dos seus fundamentos de vida no vale. O maior de todos. Quase que o único”.2 E daí em diante nunca a Amazônia conseguiu sair de sua economia de colheita de produtos de floresta, dessa enganosa 2 Ferreira Reis, Artur, Política de Portugal no Vale Amazônico, 1940. sedução da riqueza do verde. Riqueza que fez a miséria do Amazonas, como o verde da cana a do Nordeste, e como o amarelo do ouro das minas, a do país inteiro. Já nos fins do século XVII, José de Sousa Ferreira clamara contra a falta de agricultores na região, apontando que eram “as drogas do Estado as que lhe dão estimação mas que são a ruína dele”. Apenas em zonas limitadas e utilizando processos rudimentares se estabeleceu uma cultura primitiva de certos produtos de alimentação, como a da mandioca, do milho, do arroz e do feijão. Culturas insignificantes, em pequenas áreas conquistadas à floresta pelo processo das queimadas, de uso pré-colombiano, sendo as sementes lançadas ao solo mal preparado, ainda entulhado de troncos, de galhos e de garranchos meio carbonizados. “Herdamos do índio o sistema vampírico das derrubadas e das queimadas inclementes, sem as quais o lavrador não acredita que o milho possa deitar espigas bem granadas”, afirmou Daniel de Carvalho.3 Somente nos últimos anos, e nas proximidades dos centros mais populosos, como Belém, estão sendo realizados outros trabalhos agrícolas objetivando a horticultura e a avicultura em bases mais ou menos racionais. Um exemplo dessas iniciativas é a Cooperativa de Tomé Açu, cujos associados, na sua quase totalidade de origem nipônica, dedicam-se ao cultivo de plantas hortícolas, além de cobrirem grandes extensões de [pg. 63] terras com o plantio de pimenta-do-reino e juta. Na região do baixo Guamá, e no aproveitamento das várzeas que ali se formam, foi instalado, em 1954, um Núcleo Colonial do Instituto Nacional de Imigração e Colonização, cujo objetivo primordial é o abastecimento de Belém em gêneros de primeira necessidade, inclusive produtos hortigranjeiros. 2. Com estes parcos recursos constitui-se o tipo de alimentação do homem da Amazônia. Alimentação pouco trabalhada e pouco atraente, apresentando até hoje em suas características uma predominância manifesta da influência cultural indígena sobre a das outras culturas, a portuguesa e a negra, que também participaram de sua formação. A participação negra na formação amazônica foi em verdade bem insignificante. Em seu povoamento inicial, o elemento negro era raríssimo e a 3 Carvalho, Daniel de, Discursos e Conferências, Rio, 1941. política de colonização que aí se exerceu durante largo tempo sob a influência do Marquês de Pombal determinou enérgicas medidas para preservar o caldeamento amazônico do sangue africano. Na recente onda povoadora que, a partir dos fins do século passado, se abateu sobre a Amazônia, atraída pelo rush da borracha, também o negro esteve quase ausente, desde que seu elemento predominante fora o sertanejo nordestino, tipo étnico também quase isento de contatos sanguíneos recentes com os povos africanos. Bertino Miranda, em seu estudo — A Cidade de Manaus — Sua História e Seus Motins Políticos — faz referências a decretos régios declarando infames todos aqueles, brancos ou índios, nesta área, que se casassem ou se juntassem com negro ou negra. Já vimos que o alimento básico da dieta é a farinha de mandioca, produto da mandioca amarga (Manihot utilíssima), preparada nesta zona por processos especiais que proporcionaram ao produto maior riqueza em polvilho e, portanto, maior valor calórico do que o da farinha produzida em outras áreas mais para o Sul. Tal tipo de farinha, regionalmente chamado de farinha dágua, constitui um complemento obrigatório de quase tudo que se come na região — e foi por isso que Teodoro Peckolt o chamou de “Pão dos Trópicos”.4 O seu uso mais abundante se fazia sob a forma de farofas, mingaus, beijus e [pg. 64] bebidas fermentadas (como o caium). Tipo de mingau muito característico da região é o chibé, preparado com farinha de mandioca e às vezes adoçado com rapadura, o qual constitui alimento predominante do trabalhador de uma extensa área amazônica, sendo dado tanto aos adultos como às crianças. O seu preparo é de técnica indígena e se assemelha muito ao preparo do atolé de milho, da área do México, mingau feito de milho com que a população indígena do planalto mexicano alimenta as crianças logo que lhes é cortada a amamentação materna. Segundo Araújo Lima,5 em certa região do baixo Amazonas — região do Lago Andirá — os trabalhadores se alimentam dias seguidos exclusivamente com mingau de mandioca. Com a massa da mandioca bem amassada, preparam uma infinita variedade de pastas, conhecidas pelo nome de beijus, variando em sua forma, tamanho, consistência, tempero e gosto, tomando em cada caso um nome diferente de beiju- 4 Peckolt, Theodoro, “Chácaras e Quintais”, setembro de 1939. 64 5 Lima, Araújo, Amazônia, a Terra e o Homem, 2.ª edição, 1937. açu, beiju-cica, beiju-membeca, beiju-peteca, beiju-toteca e muitos outros, conforme se encontra documentado em trabalho de Nunes Pereira6 sobre a alimentação amazônica. Também os beijus apresentam em seu preparo fortes analogias com certos métodos culinários indígenas da área do milho da América Central e do México. As tortillas, ou bolos de milho, achatadas e torradas ao fogo, não são mais do que tipos de beijus, na qual o milho substitui a pasta de mandioca. Apenas variam as matérias-primas, sendo, no entanto, semelhantes os processos de manipulação. Se bem que a farinha de mandioca constitua o alimento básico do regime, ela não é consumida pura, num exclusivismo que seria funesto e que tornaria o regime local, por sua deficiência, idêntico ao de certas áreas de fome da China7 e da Indochina,8 onde a alimentação consiste quase que exclusivamente de arroz, sem misturas nem variações — terrível monotonia alimentar que rebaixa em extremo o índice de nutrição dessas populações do Oriente. Na Amazônia mistura-se a farinha [pg. 65] a outros produtos: sejam da incipiente agricultura regional, sejam produtos silvestres, frutos ou sementes da floresta equatorial, sejam elementos da fauna regional, principalmente da fauna aquática, visto como a terrestre é muito limitada em animais que possam servir como recursos alimentares. A terra é quase que inteiramente açambarcada pelas plantas, restringindo-se a vida animal sobre o solo às formigas e outros insetos, às cobras e aos macacos e a variadas espécies de pássaros. São, pois, limitadas as possibilidades da caça para abastecimento alimentar. A pesca rende muito mais e contribui para a dieta local com elementos mais ricos e variados. Sejam peixes de água doce, dos quais o Amazonas possui infinita variedade,9 sendo os mais comuns o piracuí e o peixe-boi, sejam crustáceos ou moluscos, camarões, siris, aviús, caranguejos e ostras. Do que também fazem abundante uso os nativos para sua alimentação é das tartarugas, das quais consomem tanto a carne como os ovos. 6 Pereira, Nunes, “Panorama da Alimentação Indígena”, in Espelho, número de junho de 1945, Rio. 7 Thomson, James Claude, The Food Problems of Free China”, Nutrition Reviews, vol. 1, n.° 9, julho de 1943. 8 Lecoq, Raoul, Avitaminoses et Déséquilibres, Paris, 1939. 9 Agassiz avaliou em cerca de dois mil o número de espécies ictiológicas existentes nas águas amazônicas — número duas vezes superior ao das espécies da bacia do Mediterrâneo e mais alto que os das espécies existentes no Atlântico. Só num pequeno lago nas proximidades de Manaus, o lago Januari, com uma superfície de 500 metros quadrados, encontrou o naturalista mais de 200 espécies diferentes (A Journey in Brazil. 1868). A enorme riqueza em quelônios do Amazonas vem infelizmente decrescendo muito pela devastação que a espécie tem sofrido. Conta Bates que a sua abundância era impressionante. Em certas épocas, os bancos de areia das margens do rio ficavam pejados de seus ovos. Cada fêmea põe de 100 a 150 deles e várias delas fazem a postura na mesma cova, acumulando-se assim massas compactas de 400 a 500 ovos. A colheita intempestiva dessas posturas e a mortandade dos adultos pegados na viração estão acabando com esses úteis representantes da fauna amazônica. Idêntica conduta destrutiva tem sido mantida para com várias espécies de peixes da região. A destruição inconseqüente dos filhotes vem diminuindo de maneira alarmante a riqueza piscícola da região amazônica.10 São de um grande conhecedor da Amazônia, Raimundo de Morais, as seguintes palavras: “...Por esses documentos militares, fradescos, científicos, literários e civis, verificou-se também quanto a falta de disciplina [pg. 66] e de critério na pescaria vem despovoando dos melhores e mais fecundos exemplares a vasta bacia hidrográfica. A tainha, muito diminuída agora, já foi tão numerosa que o governo da metrópole pagava com ela, depois de salgada e empacotada, nos pesqueiros oficiais, a tropa, o clero e o funcionalismo público do Pará.”11 Nestes produtos da fauna aquática resume-se toda a fonte de que dispõem para abastecimento de proteínas animais desde que a criação doméstica é muito exígua na região. A floresta é um obstáculo à criação de gado. As árvores frondosas, com as copas cerradas impedindo completamente a penetração da luz, não permitem o crescimento da vegetação rasteira que forma as pastagens. Por outro lado, o clima local, com seu excesso de umidade, predispõe o gado à ação maléfica dos insetos transmissores de doenças que o afetam duramente. Georges Hardy, falando da colonização da floresta equatorial escreve: “...os homens espalhados nesta região levam uma vida singularmente miserável. Não podem criar gado porque a umidade da floresta anemiza e faz morrer os bois, os carneiros e os cavalos.”12 A pecuária está praticamente limitada a essas pequenas áreas de campos abertos, uma situada na Ilha de Marajó, na foz do rio, outra no alto Amazonas, na região do Rio Branco, além das de Mato Grosso e Goiás. O gado da Ilha de Marajó 10 Nash, Roy, A Conquista do Brasil, 1939. 11 Morais, Raymundo de. Na Planície Amazônica. 1936. 12 Hardy, Georges, Géographie et Colonisation, 1933. vive nos pantanais, terras inundáveis quase que periodicamente pelas enchentes que dizimam muitas vezes a maior parte dos rebanhos e obrigam os criadores a longas caminhadas com suas boiadas em busca dos campos mais altos ou à imobilização do gado em grandes jiraus — as marombas — que ficam flutuando como verdadeiras arcas de Noé, com bois, carneiros, porcos e galinhas, nos extensos alagados em que a ilha se transforma. Como reflexo da maneira como é levada a pecuária nesse ponto, basta dizer que o desfrute dos rebanhos é de cerca de 6%, enquanto que o peso morto do gado abatido não ultrapassa 140 quilos, ou seja, 100 quilos menos do que aquele encontrado como média para o Brasil. Segundo cálculos dos técnicos da SPVEA, a Amazônia dispõe, hoje, de apenas dois quintos do rebanho ideal capaz de [pg. 67] fazer alimentar convenientemente suas populações. Esse rebanho, no entanto, como já se viu, encontra-se estrategicamente concentrado em pontos de difícil acesso para o abastecimento dos maiores centros populacionais da Amazônia, e cerca de metade da população bovina está localizada em Goiás e Mato Grosso. Apenas recentemente, através do Instituto Agronômico do Norte, foi introduzido em Marajó o búfalo africano, animal rústico e de relativas possibilidades de adaptação econômica nesse meio hostil a raças selecionadas e de alta produção, seja de carne, seja de leite. Ainda assim, e contrariando o esforço de racionalização da pecuária, essa rusticidade do búfalo está sendo explorada no sentido de não lhe ser prestada qualquer espécie de assistência zootécnica, e as adaptações a que o meio o obriga nem sempre são favoráveis aos interesses econômicos e aos fins sociais. Não seria exagero dizer-se que não existe na Amazônia qualquer tipo zootécnico definido de gado, e o exame das aptidões que possuem não fornece indicações de que tais tipos possam estabilizar-se em curto prazo, malgrado os serviços que hoje, com a colaboração da SPVEA, o Instituto de Zootecnia realiza em Marajó, objetivando o melhoramento do gado através de práticas de inseminação artificial e controle de epizootias. O grande obstáculo, no entanto, continuará sendo a precariedade dos pastos e o regime das águas, aliados à forma de exploração extensiva em grandes latifúndios. A distribuição da população bovina na Amazônia, assim concentrada, como não o é a população humana, cria o sério problema do transporte, que, na região, é um dos obstáculos sérios a serem contornados. Enquanto a parte amazônica de Goiás dispõe de 5 cabeças de gado bovino por habitante, o Estado do Amazonas apenas pode contar em seus limites com um quarto de boi. Se, no Território do Rio Branco há, estatisticamente, 9 bois para cada habitante, no Pará só é possível conseguir-se 2/3 por pessoa. E o que acontece é que tais rebanhos estão concentrados em poucas mãos. Já em Rio Branco a zona é menos úmida, formada de savanas que escapam às inundações. Estas limitações que a natureza impõe à pecuária, a falta de transporte entre zonas de criação e o resto da região amazônica, não facilitam o seu [pg. 68] abastecimento nem de carne nem de leite. Estes são produtos que não entram praticamente na alimentação habitual desta zona. Carne, só seca e salgada. O charque é importado de outras regiões e isto mesmo em pequenas quantidades. O leite existe apenas em algumas poucas cidades importantes, que contam com abastecimento embora reduzido e sem controle sanitário. Assim, em Belém, que é a mais importante cidade da Amazônia, o consumo diário de leite era em 1950 de cerca de 20 gramas por pessoa. Trinta vezes menos que o consumo médio dos Estados Unidos da América. Os derivados do leite, tais como a manteiga e o queijo, quase nunca são vistos nesta zona. As dificuldades da criação de galinhas, nestes terrenos alagáveis, fazem também dos ovos alimentos de luxo. De carne fresca resta somente o recurso da caça — carne de anta, de pato bravo, de macaco —, ou a do peixe, cujo consumo está limitado às populações que vivem nas margens dos rios, dos igarapés e das lagoas que as enchentes formam e as chuvas mantêm. É verdade que aí vivem quase todos os habitantes da Amazônia, pouca gente se aventurando a afastar-se da beira da água, desde que não há, afora os rios, outro meio de penetração na floresta, e ainda porque é na água dos rios que se concentram as maiores riquezas econômicas para sua subsistência. Cerca de 60.000 quilômetros quadrados da Amazônia são constituídos por terras baixas e inundáveis e é nesta área de planície aluvional que se concentram 80% das populações e a maioria dos campos de agricultura. É que só aí a terra é realmente fértil. Se a inundação destrói muitas vezes o duro trabalho agrícola, também traz dissolvida nas águas das cheias o sedimento rico em elementos minerais e orgânicos que ficarão depositados sobre o solo quando as águas baixarem.13 As inundações periódicas dos rios, quando vão além de certos limites, as “enchentes grandes”, como são chamadas, representam um dos mais graves fatores de desequilíbrio social da região. Há quem compare seus flagelos com os da seca dos [pg. 69] sertões nordestinos. Flagelados por falta dágua. Flagelados por excesso dágua. “O Nordeste durante as secas e a Amazônia durante as inundações constituem desgraçadamente modelos incontrastáveis no catálogo das grandes tragédias coletivas.”14 As populações da Amazônia sempre classificaram os rios da região em dois grupos: os rios negros e os rios brancos.15 Os negros tendo as águas translúcidas, carregadas apenas dos reflexos profundos das sombras escuras da floresta, e os brancos com as suas águas turvas, barrentas, ricas de materiais de aluvião. São as águas dos rios brancos as que fertilizam o solo equatorial do Amazonas.16 Solo que, fora desta faixa inundável, está longe de ser fértil, apesar de sustentar o mais espesso revestimento florestal do mundo. A verdade é que o excesso de chuvas lavando permanentemente este solo, aliado a outros fatores de intemperismo regional, o empobrece de maneira alarmante, e a agricultura sem a adubação das enchentes esgota as suas reservas numa rapidez assustadora. Esta é uma das razões que sempre obrigaram as populações indígenas a viver nesta região num regime de agricultura seminômade, derrubando a floresta num ponto,17 semeando um pouco de milho, de arroz e de mandioca, colhendo a seguir o produto e abandonando a roça para abrir outra clareira mais adiante. É que o rendimento de uma segunda plantação já não compensaria o trabalho nem permitiria o abastecimento suficiente do grupo, expondo-o aos perigos da fome aguda. A farinha de mandioca e um pouco de feijão e de arroz produzidos nessas áreas inundáveis ou importados de outras regiões do país, peixes, crustáceos, carne e 13 “Em muitos trechos a planície está coberta por aluviões modernos, que as enchentes depositam em grandes áreas e que vão formando camadas sucessivas de um solo mais rico em húmus, pouco consistente e ainda sujeito às transformações microbianas, resultantes da transformação da matéria orgânica que nele entra em grande proporção.” (Sylvio Fróis Abreu. “O Solo da Amazônia”, in Amazônia Brasileira, 1944.) 14 Viana Moog, O Ciclo do Ouro Negro, 1936. 15 Denis, Pierre, “Amérique du Sud”, in Géographie Universelle. 1927. 16 Sioli, Haroldo, “Alguns Problemas da Limnologia Amazônica”. Bol. do Instituto Agronômico do Norte, Belém, 1954. 17 Sobre a “derrubada” da floresta, seus métodos e processos de brocar e de roçar o mato, consulte-se o Dicionário da Terra e da Gente do Brasil, de José Bernardino de Souza. ovos de tartaruga e tracajá, além de algum jabuti morto por ocasião das queimadas, compõem a dieta local. A castanha-do-pará, por outro lado, só faz parte da dieta amazônica por ocasião da colheita, empreitada temerária onde o homem se embrenha floresta adentro, durante meses, e onde tudo lhe falta. [pg. 70] É preciso não esquecer que na elaboração destas comidas entram certos molhos preparados com sucos de ervas locais e de pimentas, das quais as populações nativas fazem um largo consumo. Os indígenas sempre foram grandes comedores de pimenta — não só o consumo da pimenta ralada dando sabor picante aos molhos, às pastas e às carnes, como as pimentas inteiras comidas como fruta, aos punhados. O consumo de verdura e de legumes verdes sempre foi muito baixo nesta região. O complicado cultivo da horta está muito acima da técnica agrícola local e a possível importação de seus produtos, bem acima dos recursos, tanto econômicos como técnicos, de transporte desta zona. As frutas também, com exceção do açaí, entram em muito pouca quantidade no regime alimentar habitual. A banana, que é um produto típico da zona equatório-tropical, e é largamente consumida na área da floresta do Congo, contribui em regular proporção para a alimentação amazonense. A riqueza natural em outras frutas é muito escassa, sendo mais lenda que realidade a abundância frutífera da floresta equatorial. O excesso dágua dificulta a concentração do suco das frutas e seu amadurecimento, sendo as frutas locais raras e pouco saborosas. A falta de penetração da luz solar na espessura da floresta torna também o teor vitamínico dessas frutas mais baixo que o de outras regiões geográficas. Como exceção temos apenas a considerar o caso de certas frutas oleaginosas, de variadas espécies de palmáceas, que concentram espantosa riqueza em betacaroteno, ou seja, em pró-vitaminas A, nos seus óleos. Como exemplo destes óleos vegetais citamos o do buriti, produto da palmácea Mauritia flexuosa, que contém cerca de 5.000 unidades de vitamina A para cada centímetro cúbico. Também o óleo de açaí é extremamente rico em vitamina A.18 [pg. 71] . 18 Sobre a riqueza em vitamina A desses óleos, consultem-se os se-guintes trabalhos da autoria dos nossos colaboradores no Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, Emília Pechnik e José Maria Chaves: “Composição Química e Valor Alimentício do Buriti”. in Rev. Quint. Ind.. n.º 4. 1946: “O Açaí. um dos Alimentos Básicos da Amazônia”, in Anais da Ass. Quim. Bras., 169, IV. 1945. Consulte-se. também, o trabalho de Paula Souza e A. Wancolle. “Sobre o Teor em Pró-vita-mina A de Alguns Óleos Brasileiros”, in Rev. da Ass. Paul. de Medi-cina, vol. IV. n.° 3. 1939 Fruto da região que merece também um destaque especial por seu extraordinário valor nutritivo é a castanha-do-pará, produto da Bertholletia excelsa, fruto oleaginoso, contendo uma proteína com uma riqueza em ácidos animados idêntica à da carne; donde o epíteto, que deu Bolazzi a este fruto, de “carne vegetal”. Infelizmente, essa proteína completa, a única de origem vegetal até hoje conhecida, encontra-se associada a uma proporção demasiado alta de gordura.(68% de gordura e 17% de proteína), o que torna o fruto indigesto, com baixo coeficiente de digestibilidade, portanto de uso pouco aconselhável numa zona de clima quente e úmido como o da Amazônia. Aí a razão pela qual a castanha-do-pará, constituindo uma das riquezas desta região, não é absolutamente um produto de sustentação regional, mas de simples exportação para as zonas frias e temperadas.19 Sem esquecer os caracteres de ordem genética, encontra-se uma explicação para o fato de que nessa região de frutas pobres, apresentem-se as palmáceas e a castanheira com tal riqueza nutritiva: por frutificarem essas plantas sob a influência da insolação direta; as palmeiras, vegetando em certas várzeas pantanosas ou dominando as mais ciliares; a castanheira conseguindo, por seu gigantesco porte, furar a cúpula de vegetação da floresta e receber no alto a incidência direta dos raios solares. Deve-se, portanto, aos milagres da fotossíntese a magnífica concentração nutritiva desses frutos de existência excepcional numa região típica equatorial. A análise biológica e química da dieta amazônica revela um regime alimentar com inúmeras deficiências nutritivas. Tem-se logo a impressão da sua impropriedade na extrema pobreza, ou mesmo ausência, de alguns dos alimentos protetores, da carne, do leite, do queijo, da manteiga, dos ovos, das verduras e das frutas. Tem-se outra imagem da insuficiência na sua exigüidade quantitativa. É uma alimentação parca, escassa, de uma sobriedade impressionante. O que um homem come durante um dia inteiro não daria para uma só refeição dos habitantes de outras áreas climáticas, condicionadoras de hábitos diferentes. No entanto, este homem parece satisfeito da sorte, conseguindo [pg. 72] com um pouco de farinha e de café e com um gole de cachaça matar a gosto a sua fome. Mas a verdade é que se trata de populações de apetite embotado, em estado de anorexia crônica, conseqüência natural da falta de vitaminas e de determinados aminoácidos no seu regime 19 Castro, Josué de, e outros, Proteínas para a América Latina. Publicação da ASCOFAM, alimentar.20 Araújo Lima, em seu magnífico estudo sobre a Amazônia — livro que abriu novos horizontes à geografia humana no Brasil —, fala-nos em “anorexia habitual” e escreve sobre o assunto as seguintes palavras: “A parcimônia alimentar dos nossos caboclos reduz, num paralelo que se impõe, o mérito da sobriedade japonesa: o nipônico come pouco, mas fá-lo regularmente; o nosso caboclo, que é capaz de comer despropositadamente, em geral come pouco e irregularmente, jejuando por dias e semanas.”21 Não é este o único caso de grupos humanos que acabam por perder a força do seu instinto alimentar, por ter o seu apetite quase que apagado. Para comer qualquer coisa é preciso mesmo que o nativo incite esse apetite esquivo com aperitivos, com pimenta, com estimulantes de toda ordem. Alfredo Ramos Espinosa notou fenômeno idêntico entre as populações subnutridas do México, as quais, para comer alguma coisa, “têm que vencer sua inapetência, cauterizando a boca e o estômago com pimenta [pg. 73] para produzir uma secreção reflexa de saliva, que possa simular a provocada pelo bom apetite”.22 Também o hábito de mascar betel de certas populações da Índia, hábito que acarreta uma abundante secreção de saliva e de outros sucos digestivos, tem, entre outras finalidades, esta de estimular o apetite também embotado desses párias do Oriente.23 Para bem compreendermos quais os principais defeitos deste tipo de alimentação da Amazônia, precisamos analisá-la de acordo com os modernos 1960. 20 “É possível que tenha cooperado neste embotamento do apetite, o hábito de certos grupos nativos mastigarem folhas de coca. Reduzindo-as a pó e misturando-as com polvilho de mandioca e a casca ralada da própria planta, fabricam uma pasta conhecida pelo nome de ipadu. (Renato Sousa Lopes, A Ciência de Comer e de Beber.) O ipadu. consumido durante as viagens, serve para abolir as sensações de fome e de sede, mas acaba como vício, extinguindo o apetite individual”. Sobre a correlação entre vitaminas e apetite, consulte-se o trabalho de F. de Moura Campos “Vitaminas do Apetite”, Rev. Terapêutica, n.° 2, junho de 1942. Realizamos há alguns anos, no Instituto de Nutrição, experiências demonstrativas de que ratos alimentados com uma dieta à base de uma proteína incompleta, desfalcada em certos aminoácidos. perdiam por completo o apetite, e que bastava acrescentar-se à mesma dieta uma dose milesimal de metionina para que o apetite voltasse com rapidez. (Veja-se Castro, Josué; Luz, Hélio de Sousa; e Pechnik, Emília; “Novas Pesquisas sobre a Mucunã”, separata de Trabalhos e Pesquisas, vol. II, Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, 1949.) Hoje se sabe que tanto os aminoácidos como a vitamina B-12 têm uma extraordinária influência na regulação do apetite. 21 Araújo Lima, Amazônia, a Terra e o Homem, 1937. 22 Espinosa. Alfredo Ramos. La Alimentación en México. 1939. conhecimentos de nutrição e de acordo principalmente com as variantes fisiológicas que o clima impõe ao metabolismo nas condições de vida tropical. Variantes que dão ao metabolismo do homem dos trópicos um ritmo especial e alteram inteiramente os limites quantitativos de suas necessidades nos diferentes princípios alimentares. 3. Qualquer tipo de regime alimentar, para ser considerado racional, quaisquer que sejam as substâncias alimentares que entrem em sua formação, deve ser suficiente, completo e harmônico. Deve conter um total de energia correspondente às despesas do organismo, a fim de ser julgado suficiente. Deve encerrar os diferentes elementos de que o organismo necessita para seu crescimento e equilíbrio funcional, para ser completo. Só será harmônico se estes diferentes elementos entrarem em sua composição em determinadas proporções. Vejamos como se apresenta, dentro destas exigências fisiológicas, o regime alimentar da área amazônica. A falta de variedade de seus componentes, a sua visível exigüidade dão logo a idéia de que se trata de um regime insuficiente, com um total calórico muito abaixo das necessidades do metabolismo básico e do metabolismo de trabalho. Em cálculos que realizamos há alguns anos sobre o regime das classes pobres da cidade de Belém, encontramos um total energético oscilando entre 1.800 a 2.000 calorias diárias. A leitura universal sobre nutrição afirma serem necessárias 3.000 calorias diárias para grupos humanos ocupados em trabalhos de intensidade média. Encarando o problema sob este aspecto unilateral, conclui-se haver um tremendo [pg. 74] déficit calórico, de quase 50% em relação ao total, nesta dieta do homem amazônico. Mas a situação não é assim tão extrema. É preciso levar em consideração, na análise do problema regional, certas condições geográficas locais: a influência do clima sobre o metabolismo, sobre o ritmo das trocas energéticas e, consequentemente, sobre as necessidades calóricas do homem, habitante dos climas trópico-equatoriais. Enquanto a vida vegetal se acelera sob a ação desses climas, vivendo as plantas uma orgia de vitalidade, a vida animal se retarda, havendo uma diminuição nítida de suas combustões orgânicas. Há cerca de vinte e cinco anos que inúmeros fisiologistas vêm demonstrando uma baixa 23 Ohman, Fia. Sous le Ciel de l’Inde. Paris. constante do metabolismo basal, nos habitantes das regiões tropicais. Os estudos que realizamos no Brasil nos levaram à conclusão, experimentalmente comprovada, de que esta baixa do metabolismo é conseqüência direta do clima atuando através da ação conjunta dos fatores temperatura e umidade relativa do ar, e não só da temperatura como até então julgavam os fisiologistas. Com esta verificação podemos explicar o fato de que nos climas quentes e úmidos o metabolismo se apresente muito mais baixo do que nos climas quentes e secos, podendo mesmo em certos climas quentes, porém muito secos — tais como os climas dos desertos tropicais — apresentar-se o metabolismo idêntico ou mesmo mais elevado do que nos climas temperados.24 O clima amazônico de tipo quente e superúmido, com uma umidade relativa do ar que anda quase sempre pela casa dos 90%, alcançando a todo momento o ponto de saturação do ar em umidade, condiciona forçosamente o organismo humano a uma sensível baixa do seu metabolismo. Quem conhece o mecanismo da formação e da perda de calor nos seres vivos compreende logo que esta diminuição do organismo em suas combustões internas representa um processo de adaptação funcional, um processo prático de evitar a sua destruição por superaquecimento, [pg. 75] diante das dificuldades que o meio ambiente opõe às perdas do calor animal. No excesso de temperatura e de umidade reinantes, o organismo não dispõe de outros meios para se desfazer do seu calor interno senão o de diminuir a sua formação, isto é, baixar o seu metabolismo. Esta baixa do metabolismo na região amazônica é representada por cerca de 20% do total calórico das cifras do stand-ard universal. Sob a ação moderadora do clima, baixam não só as despesas fundamentais, o chamado metabolismo basal, mas também as despesas de trabalho. Tanto o ritmo da vida vegetativa, como o ritmo da vida neuromuscular diminuem de intensidade, acomodando-se num torpor funcional compatível com as contingências do meio ambiente. Um total de 2.400 calorias é, pois, suficiente para as necessidades fisiológicas de quem é obrigado a viver neste ritmo ronceiro da vida animal nos trópicos. Ora, esta baixa do metabolismo e, 24 Voltaremos ao assunto para referir, com mais minúcia, as nossas experiências, realizadas em sua maior parte na região do Nordeste brasileiro, ao estudarmos esta área geográfica, quando dispusermos de maiores elementos para o estudo comparativo entre uma área quente e úmida e uma área quente e seca. Antecipamos que estas experiências se acham resumidas em nosso trabalho anterior — La Alimentacián en los Trópicos. Fondo de Cultura econômica, consequentemente, das necessidades energéticas em alimentos, representa não só uma adaptação vantajosa na luta contra o rigor climático como também uma salvação contra os perigos da fome de energia a que o organismo ficaria exposto pela falta de uma alimentação suficiente. Este tipo regional de alimentação, que em sua manifesta insuficiência seria mortal em pouco tempo, conduzindo o organismo à morte num clima frio ou temperado, permite a sobrevivência do indivíduo, embora em condições precárias, nas contingências do clima tropical. Com as duas mil calorias que cada indivíduo ingere diariamente, consegue cobrir as suas despesas básicas e realizar um pouco de trabalho. É bem verdade que em ritmo um tanto descansado e com produtividade um tanto limitada. Ritmo e produtividade retardados, que representam, no entanto, recursos salvadores para que os nativos não morram de fome logo de uma vez. Na insuficiência alimentar quantitativa e na forçada adaptação orgânica a esta situação permanente, residem as explicações da apregoada preguiça dos povos equatoriais. A preguiça no caso é providencial: é um meio de defesa de que a espécie dispõe para sobreviver, e funciona como o sinal de alarma numa caldeira que diminui a intensidade de suas combustões ou pára mesmo automaticamente, quando lhe falta o combustível. 4. Os defeitos qualitativos deste tipo de alimentação são ainda mais graves. Trata-se de uma alimentação incompleta, [pg. 74] com deficiências de elementos nutritivos das mais variadas categorias. Deficiências em proteínas, em sais minerais e em vitaminas. O déficit protéico resulta da quase que ausência absoluta, no regime alimentar desta gente, das fontes de proteínas animais: carne, leite, queijo e ovos. Proteínas completas capazes de fornecer ao organismo os diferentes ácidos aminados de que ele necessita para a formação de seu próprio protoplasma vivo.25 Já vimos que destas fontes de proteínas completas as populações locais apenas dispõem da carne de peixe, e isto mesmo de maneira irregular e em quantidade insuficiente. Há uma México, 1946. 25 Dos diferentes ácidos aminados são considerados absolutamente indispensáveis para o equilíbrio orgânico os seguintes: a lisina, a argi-nina, a histidina, a metionina, a cisteína e a prolina, necessários ao crescimento do indivíduo; e a tirosina, a fenilamina, o triptófano, os ácidos aspártico e glutâmico essenciais para a renovação dos tecidos. Ver sobre o assunto: grande riqueza de peixes nos rios, nos igarapés, nas lagoas do Amazonas, mas não existe a pesca organizada que aproveite racionalmente tal riqueza natural. Seria necessário não só pescar em quantidade bem maior do que se faz atualmente, como industrializar o produto da pesca sob a forma de peixe seco, salgado ou desidratado para contar com essa alimentação o ano inteiro e não somente nas ocasiões propícias à pesca, como acontece por enquanto. É bem verdade que o indígena já utilizava seus métodos de conservação do pescado, tais como o preparo da mixira, ou seja, da conserva do peixe em azeite de tartaruga ou de peixe-boi, produto louvado por Couto de Magalhães como alimento notável, e da piracuí, de alto valor nutritivo, representada pela farinha de peixe ralado.26 Quase que só dispondo de fontes de proteínas vegetais, o regime local é deficiente em certos ácidos aminados. Deficiência que se revela de logo pelo crescimento insuficiente, pela estatura abaixo do normal que apresentam os componentes da população amazônica — estatura das mais baixas do continente sul-americano, segundo as medidas antropológicas levadas a [pg. 77] efeito por Steggaerda.27 Muitas outras conseqüências decorrem desses déficits protéicos, as quais não chegam, contudo, a se exteriorizar tão abertamente como ocorre na Indochina ou mesmo em outras áreas do continente americano — no México ou no Salvador, por exemplo — zonas onde a carência de proteína é completa. Surgem, nestes casos, os edemas de fome com sua marca típica, os indivíduos inchando nuns lugares e murchando noutros; grotescas figuras, de pernas inchadas como mãos-de-pilão, arrastando corpos mirrados, lembrando bonecos de pano mal costurados. Não se observam comumente casos de edemas ou anasarcas de fome na região amazônica. É verdade que o beribéri se apresenta muita vezes na região acompanhado de edemas em sua forma chamada úmida,28 e é provável que no mecanismo dos edemas julgados de carência vitamínica haja também a participação da deficiência protéica. A freqüência destes casos é pequena, contudo, e está longe Josué de Castro, O Problema da Alimentação no Brasil, 1939. 26 Pinheiro, Aurélio, À Margem do Amazonas, 1937. 27 Steggaerda, Morris, “Statures on South American lndians”, in Amer. Jour. of Physical Anthropology (New Series), vol. 1, n.° I, março, 1943. 28 Fortes, A. Borges, “Doenças por Falta de Vitamina B1”, in A Folha Médica, n.° 11, 15 de abril de 1939. de alcançar as cifras impressionantes que observamos no México,29 principalmente entre as crianças alimentadas exclusivamente com milho. É que a proteína do milho é muito incompleta, faltando-lhe diversos ácidos aminados indispensáveis ao crescimento e ao equilíbrio orgânico. Mas também a mandioca é muito pobre em proteínas, mais pobre mesmo do que o milho, e qualitativamente inferior. O que salva o amazonense é que ele não come farinha pura, como o mexicano se alimenta, dias e dias, exclusivamente de milho. Um pouco de feijão, de arroz ou de batata e vez por outra o seu peixe, ou seu tracajá ou jabuti, sempre o homem da Amazônia obtém para variar o seu regime, diminuindo desta forma a deficiência protéica da farinha. São também raras as diarréias de fome, que resultam das grandes carências protéicas e que têm sido observadas com freqüência nas grandes epidemias de fome, como a da Espanha [pg. 78] durante os anos da guerra civil,30 ou como as de certas épocas de seca no Nordeste do Brasil. 5. Ao lado das deficiências protéicas ocorrem certas deficiências em sais minerais de efeitos bem graves para as populações amazônicas. O primeiro fator dessas carências minerais é a pobreza do solo regional nesses elementos, à qual já tivemos ocasião de aludir. As chuvas contínuas, tão freqüentes nessa zona, agindo paralelamente à temperatura elevada, estimulam a ação de microorganismos do solo, decompondo com extrema velocidade a matéria orgânica e o humo ali existentes, e finalmente trazendo para as camadas mais profundas grande parte da riqueza mineral existente antes do reflorestamento. Se, por outro lado, nos lembrarmos de que em regiões onde a precipitação, temperatura, umidade, e outros fatores do intemperismo, atuaram incessante e abusivamente sobre as formações geológicas, dando em resultado solos que dentro da classificação zonal, podem ser considerados como lateríticos, compreenderemos a pouca tendência de suas argilas a manterem absorvidos seus elementos minerais, de que tanto necessitam as plantas para cumprirem seu ciclo vital. A um observador avisado não passarão despercebidas formações lateríticas denunciando um tipo de solo onde predominam o ferro e o 29 Angulo, Alfredo Diaz, Formas Edematosas en los Niños Someti-dos a Regimenes Insuficientes, México, 1936. 30 Pedro-Pons, que observou inúmeras carências alimentares durante a guerra civil espanhola, em Barcelona, refere que a diarréia acompanhava com extrema frequência os casos de edema e de anasarca, vindo a piorar de muito as condições de higiene das populações esfomeadas. alumínio, em suas formas insolúveis, quando não afloram à superfície, em blocos de hematia compacta ou pequenas concreções ferruginosas típicas. E desse tipo de solo, ácido e espoliado ao extremo em seus elementos minerais mobilizáveis e apresentando, a profundidades variáveis, zonas impermeáveis de floculação de argilas de sesquióxidos de ferro e alumínio, que é formada grande parte da planície amazônica. Apenas algumas faixas já conhecidas, como na região de Santarém, Alenquer e Monte Alegre, no Pará, apresentam constituição, textura e estrutura diferenciadas. São as decantadas “terras pretas” do Tapajós, e as “terras roxas” de Alencar e Monte Alegre. Como explicar que este solo, com características químicas que estão longe da fertilidade, possa apresentar-se recoberto [pg. 79] por uma vegetação tão luxuriante como a da floresta amazônica? Com uma tão espantosa massa vegetal formada de uma infinidade de plantas, todas com as suas exigências específicas de inúmeros elementos minerais? Pelo menos de quatorze deles que são hoje considerados como absolutamente indispensáveis à vida de qualquer vegetal superior.31 É que as condições climáticas, maravilhosamente propícias na região à vida vegetal, por seu excesso constante de temperatura e de umidade, contrabalançam a precariedade das condições desfavoráveis do solo. Em ecologia, o equilíbrio resultante para a vida da planta é sempre produto de um jogo complicado de compensações. De dependências mútuas entre os fatores climáticos, do solo e do meio biótico. O clima equatorial, de um lado acelerando a vida vegetal, intensificando ao extremo o seu crescimento e o seu ciclo vegetativo, e de outro lado condicionando a decomposição rápida da (Enfermidades por Insuficiência Alimentícia, 1940.) 31 O problema da correlação entre a riqueza mineral do solo e a vida, tanto animal como vegetal, de uma região, é da mais extraordinária importância, merecendo uma atenção especial em qualquer estudo dos problemas de nutrição. Consultem-se, pois, sobre o assunto os seguintes trabalhos: Beeson, Kennett C., The Mineral Composition of Crops with Particular References to the Solls in which They Were Grown, 1941. Winifred E., Brenchley, “The Essential Nature of Certain Minor Elements for Plant Nutrition”, Botanic Rev., 2-173, 1936. Winifred E. Brenchlek, “Some Deficiency Diseases of Crop Plants”, in Min. Agr. and Fisheries Jour., 44, 1932. Orr, J. B., Elliot, Walter, and T. B., Wood, “Investigations on the Mineral Content of Pasture Grass and its Effect on Herbivora”, Jour. Agr. Frcº 16, 1936. Homès, M. V. L’Alimentation Minérale des Plantes et le Problème des Engrais Chimiques, Masson & Cie., Editeurs, Paris, 1953. Balfour, H., The Living Soil, Faber and Faber Ltd. 7.a edição, Londres, 1947. Nutrition of Plants, Animais, Man, Centennial Symposium, Fevereiro, 14-16, Michigan State University, East Lansing, 1955. vegetação morta, pela ação desagregadora dos microrganismos, reintegrando os elementos minerais ao solo, acaba por equilibrar a economia nutritiva da região. Equilíbrio que é produto desta vida furiosamente devastadora da floresta, com plantas nascendo e morrendo ao mesmo tempo, matando-se umas às outras, numa terrível concorrência vital, numa ânsia de se apoderarem de sua herança de sais minerais. [pg. 80] Um estudioso destes problemas do solo explica a desproporção entre a pobreza da terra e a riqueza da vegetarão com as seguintes palavras: “Nestas regiões equatoriais o capital do solo é pequeno, mas sua circulação é rápida.”32 Na verdade, é através deste ritmo desadorado que a floresta mantém a sua vida vegetal espantosamente rica à base de um capital de minerais bem limitado. A espetacular variedade de espécies existentes na floresta equatorial representa, por sua associação, também um fator de economia do solo que se esgotaria muito mais depressa se fosse recoberto por uma ou por umas poucas espécies vegetais.33 O que acontece, porém, como resultado destas condições locais, é que os vegetais nativos ou plantados neste solo possuem quase sempre um teor mineral mais baixo do que o teor médio das espécies congêneres que vegetam em outros tipos de solos mais ricos, e aí reside o primeiro fator condicionante da pobreza em sais minerais da alimentação regional. Poderia parecer paradoxal que, existindo no solo tão abundantes quantidades de ferro, não contivessem os alimentos ali produzidos, um teor relativamente alto desse mineral. Tal fato, no entanto, se explica facilmente se nos lembrarmos da maneira em que se apresentam aqueles compostos, quase sempre sob forma de óxidos insolúveis principalmente em pH baixos (solos ácidos), dificultando tremendamente a sua assimilação pelas plantas e a síntese de compostos de que o ferro participe. Quando a este fator — a pobreza mineral dos alimentos — se juntam erros de dietética, como é o caso da região amazônica, aumentam as probabilidades de incidência das carências minerais no homem. Destas carências, as mais acentuadas 32 Kellog, Charles E., The Solte that Support Us, Nova Iorque, 1943 33 Ellworth Huntington, Principies of Economic Geography, Nova Iorque, 1940. nesta zona são as de cálcio, ferro e cloreto de sódio. O solo é pobre em cálcio. As águas e os alimentos aí produzidos são também pobres em cálcio. As fontes alimentares mais abundantes neste elemento mineral, tais como o leite e o queijo, quase que não entram nos hábitos alimentares desta gente. Não há, portanto, por onde escapar ao déficit deste elemento na nutrição do amazonense. A sua alimentação está longe de possuir a taxa de 1 grama diária de cálcio preconizado pelos [pg. 81] nutricionistas como uma boa dose de sustentação.34 Talvez não alcance mesmo um terço desta dose. O que é de admirar, à primeira vista, é que com tal exigüidade de cálcio em sua alimentação, não sofram de raquitismo endêmico os habitantes desta área, com crianças de pernas tortas e de “tórax de pombo”, de cabeças deformadas com seus ossos amolecidos à falta de cálcio que lhes dê consistência. Nada disso existe na região do Amazonas. O raquitismo típico constitui uma raridade. Se a estatura das populações é, como afirmamos, baixa, e o crescimento relativamente lento, os ossos se apresentam, no entanto, com seu aspecto e estrutura normais. A explicação do fato encontra-se na extraordinária riqueza de insolação regional, que é fonte de vitamina D, em cuja presença se torna difícil o aparecimento do raquitismo. Esta carência é quase que inexistente nas áreas trópico-equatoriais, como vem sendo demonstrado por inúmeros investigadores. Em zonas tropicais de extrema pobreza, da mais avançada miséria alimentar, com manifestações de carências de toda ordem, falta quase sempre o raquitismo. Foi o que observou a Dra. Lydia Roberts,35 em Porto Rico, que é uma das zonas de mais fome do continente americano. Aí se encontram todas as carências minerais e vitamínicas: das anemias alimentares ao beribéri, da pelagra ao escorbuto, da arriboflavinose à xeroftalmia; e, no entanto, não existe raquitismo comprovado. Um grande pediatra, entusiasmado pelos problemas de nutrição de outra área tropical, no México, o Dr. Rigoberto Aguillar,36 encontrou 34 Na verdade, a taxa de cálcio a fazer parte de um regime não pode ser fixada de maneira absoluta, mas depende da proporção em que nele entrem outros elementos, principalmente a de fósforo, a cujo metabolismo está tão preso o do cálcio. Variam também as necessidades de cálcio em função do abastecimento em vitamina D, elemento regulador do metabolismo deste mineral. 35 Roberts, Lydia J., “Nutrition in Puerto Rico”, in Jour. Amer. Diet. Ass., vol. 20, n.° 5, maio de 1944. 36 Os resultados das pesquisas do Dr. Rigoberto Aguillar encontram-se concentrados em Estudios sobre las Avitaminosis y las Perturbaciones del Crescimiento en los Niños Avitaminásicos, México, 1944. em 10.000 crianças examinadas cinco mil casos de carências das mais variadas naturezas e nem um só caso de raquitismo. Contra este ponto de vista da raridade do raquitismo nas regiões equatório-tropicais, apresentam-se os estudos do Dr. [pg. 82] Aguillar Nietto, da Venezuela, cujas observações compendiadas na sua tese El Raquitismo en Venezuela. 1940, demonstram, conforme palavras do próprio autor, quanto é “falsa a opinião de grande parte dos nossos médicos, de que o raquitismo não existe em nosso meio”. Na verdade, em mil crianças observadas encontrou o Dr. Aguillar Nietto 91 com manifestações raquíticas. Devemos acrescentar que estes resultados se contrapõem aos de outros pediatras do mesmo país, que estudaram anteriormente o problema, como os Drs. Manoel de los Rios e Emílio Uchoa, os quais são partidários da raridade desta carência em suas formas típicas. Assim, afirmava o Dr. de los Rios: “apesar da multiplicidade de causas debilitantes que atuam em nosso país, especialmente na classe pobre, submetida a más condições de habitação, de alimentação e de vestuário, o raquitismo é aqui relativamente raro. Pouquíssimos casos se têm apresentado nesta clínica, não obstante o número de anos de sua instalação e do crescido número de enfermos que a têm freqüentado” (Lecciones Orales sobre Enfermedades de la Infancia), Caracas, 1900. Verifica-se, assim, que o problema em Venezuela se apresenta ainda obscuro e necessita estudos mais detalhados, que mostrem onde se encontra a razão. Se na Amazônia não há o raquitismo típico, exteriorizando a carência em cálcio, há, no entanto, uma grande incidência de cáries dentárias (principalmente nas áreas urbanas de populações mestiçadas de índios com brancos, sendo bem menor a incidência nas populações rurais mais puras e de alimentação mais natural e até certo ponto mais variada), assim como outras manifestações pouco estudadas que devem correr por conta do déficit em cálcio. Por conta do déficit em ferro apresenta-se na região um tipo característico de anemia, que durante muito tempo foi atribuído à ação direta do clima. Os tropicalistas do começo do século chamavam a esse distúrbio hematológico hipoemia intertropical e o consideravam uma fatalidade climática. Uma condição inerente à vida humana em tais climas. Hoje se sabe que essa anemia é apenas uma conseqüência da fome específica em ferro, necessário para fabricação dos glóbulos vermelhos. Os trópicos não exigem mais ferro nem destroem maior número de glóbulos que os climas de tipo temperado ou frio. A alimentação nas várias áreas tropicais é que não subscreve, em geral, uma taxa [pg. 83] de ferro adequada às necessidades normais do organismo. Sem carne, sem ovos, sem certos vegetais como espinafre, boa fonte do mesmo mineral, a alimentação desta área está longe de possuir os 15 miligramas de ferro que são exigidos diariamente para formação da hemoglobina que o organismo requer para seus gastos. Além disto, são os trópicos infestados de vermes que espoliam o organismo humano do pouco ferro de que ele dispõe. Vermes que vão sangrá-lo ao nível do intestino, que vão atrapalhar a absorção do ferro ao nível deste órgão e que vão agravar, portanto, por todos os meios, a sua anemia alimentar em ferro. Como o déficit mineral não se limita à área amazônica, nós voltaremos a seu estudo na análise de outras áreas, não só para aprofundar o estudo do seu mecanismo, como para correlacionar este tipo de carência com um fenômeno de causa bastante discutida: o fenômeno da geofagia ou geomania, o hábito ou mania de comer terra. Hábito que a nosso ver traduz quase sempre um tipo de fome específica, não sendo mais que a reação do organismo, buscando no barro do solo os elementos minerais de que se sente desfalcado. Principalmente o ferro que existe, sob a forma de hidróxido de ferro, no barro vermelho das terras tropicais,37 nos cacos de moringas e nos pedacinhos de tijolos com que se empanturram a gosto os comedores de terra das várias regiões do mundo. Regiões todas elas de fome crônica em elementos minerais. A anemia tropical não é, portanto, uma fatalidade climática; não é um produto direto do clima agindo sobre o organismo humano num determinismo inexorável, É, quando muito, um produto de sua ação indireta sobre o meio vivo — o clima agindo sobre a vida vegetal, limitando a produção de plantas que sejam fontes de ferro e sobre a vida animal, restringindo a criação do gado cuja carne seria fonte animal de ferro, e finalmente oferecendo condições propícias ao desenvolvimento dos vermes ou dos hematozoários que trabalham para intensificar a sintomatologia anêmica. Anemia de fundo alimentar, mas intensificada desta forma pela verminose 37 “Consideráveis extensões de Cuba, do Brasil e do Nordeste da Austrália possuem solos vermelhos, alguns deles contendo tanto ferro que podem ser usados como minério”. (E. Huntington, Principies of Economic Geography. Nova Iorque, 1940. parasitária, ou pelo paludismo crônico. [pg. 84] Sobre esta associação de fatores nutritivos e parasitários, inferiorizando o homem amazônico pela degradação ou espoliação do seu sangue, escreveu Araújo Lima: “Na Amazônia, a condição habitual do homem aberra da fisiologia e da normalidade. O homem é um enfermo, cujo metabolismo incide naquela síndrome hemática de inaptidão regeneradora: verminótico ou impaludado, seguramente, verminótico e impaludado muitas vezes, no homem amazônico debate-se o organismo na angústia de ser empobrecido pela alimentação e agredido pelas enfermidades espoliadoras, invalidando-se o seu ser na impotência para reagir contra as contingências mesológicas, do meio interior e do meio ambiente.”38 O déficit em cloreto de sódio é bastante acentuado e resulta tanto de fatores naturais como culturais. O fator natural que entra em jogo neste caso é o próprio clima. Clima equatorial que, acarretando uma transpiração excessiva, espolia o organismo em extremo das suas reservas de cloreto de sódio. Basta lembrar que cada litro de suor contém 2 a 3 gramas de sal e que nos dias quentes e abafados um indivíduo chega a suar 8 a 10 litros, perdendo, portanto, através da pele, cerca de 20 gramas deste elemento mineral. Para compensar tamanha perda de cloreto de sódio seria necessário ingerir alimentos excessivamente salgados ou contendo em sua composição química altas doses deste princípio nutritivo. E é aí que os fatores cultu-rais se vêm associar aos fatores naturais para agravar a situação, para intensificar as probabilidades de carência em sal. Fatores culturais que atuam através dos hábitos alimentares estratificados nesta região. A alimentação amazônica, na qual ainda hoje predominam intensamente os hábitos e tradições indígenas, é uma alimentação com pouco ou nenhum sal. O tempero que o índio sempre admirou foi a pimenta, não ligando muita importância ao sal, comendo carne ou peixe insosso mas sempre embebidos num bom molho de pimenta. “O índio em geral se acostuma à falta de sal, mas nunca à de pimenta”, diz Nunes Pereira, com a convicção de quem conviveu com várias tribos amazônicas e partilhou muitas vezes de seu menu exótico. [pg. 85] O mesmo informa-nos Von Martius: “Muitos índios desconhecem por completo o sal de cozinha. Só as tribos já algum tanto civilizadas do Jauru, em Mato 38 Araújo Lima. “O Problema Alimentar na Amazônia”, trabalho apresentado ao 1.° Congresso Grosso, onde o sal sai em eflorescências da terra, usam dele há muito tempo... A única especiaria vegetal que os brasis conhecem são as pimentas espanholas.”39 É este um dos poucos casos em que um grupo primitivo se mostra inábil para defender o organismo contra os perigos de uma carência específica, até certo ponto sanável com os recursos do meio. O que se vê em regra, por toda parte, é o grupo lançar mão instintivamente de recursos singulares para escapar às carências a que a alimentação habitual o expõe.40 É o caso dos esquimós roendo os ossos das caças e comendo as suas cartilagens para escaparem à fome de cálcio a que o seu regime estritamente carnívoro lhes pode conduzir, ou comendo mesmo as fezes da rena para conseguir produtos vegetais que sirvam de correção ao exclusivismo de sua alimentação carnívora. É o caso dos índios mexicanos comendo pimenta em quantidade impressionante para escapar desta forma aos perigos do escorbuto, ou seja, da carência de vitamina C. Mesmo os animais são instintivamente atraídos pelos alimentos que contêm as substâncias nutritivas que mais escasseiam no seu regime habitual. São galinhas que picam a cal das paredes para arranjar cálcio suficiente à fabricação das cascas dos ovos. São cachorros atacados de avitaminoses por falta de alimentos frescos e que se fazem herbívoros, dando para comer grama. São gatos de casas ricas que abandonam o regime excessivo e artificial com que os empanturram as suas donas, para comerem bichos crus — lagartixas, calangos e insetos — reequilibrando, com esta selvageria instintiva, a sua nutrição doméstica e defeituosa. São os bois dos campos de Rio Branco, nesta mesma Amazônia, que tanto sofrem da falta de sal e que vão procurar nos barreiros este elemento, devorando bolões de terra salgada, espécie de sal negro, encontrado em certos pontos da região. À exceção do homem, todos os outros animais da Amazônia são instintivamente orientados para lutar contra a fome [pg. 86] específica de sal e procuram este elemento no solo. “Abrem enormes covas na superfície da terra, escavada a garras, a bicos, a patas, a unhas, a focinhos e abarrotam-se da matéria cristalizada e apetecida.”41 Assim se constituem os barreiros ou lambedouros, onde Médico Amazônico em 1939. 39 Von Martius, Natureza. Doenças, Medicina e Remédios dos Índios Brasileiros, 1939. 40 Sobre o mecanismo fisiológico destas fomes específicas consulte-se a interessante obra de R. Turró: La Base Trófica de la Inteligencia, 1918. 41 Nash. Roy. A Conquista do Brasil. 1939. “os bichos todos, desde os voláteis aos quadrúpedes, vão comer cantando, grasnando, uivando, fungando, chiando, numa confraternização que reflete a abundância daquele elemento mineral. A ferida aberta no chão pardo-vermelho, granulado de tanto bico e de tanta garra que o revolvem, recorda a unhada do gigante donde se encontrassem aves e pássaros de penas verdes, amarelas, azuis, cinzentas, pretas, a contrastarem com o fulgor malhado da onça, com o glauco-aço do tapir, com o mel tabaco do veado, com o negro dourado do cágado”.42 Só o índio amazônico, com seu instinto de nutrição embotado, não lança mão de nenhum recurso para escapar à fome de sal. Quase não o come, ou quando o faz é de um tipo obtido com a cinza de certas plantas queimadas, sal que por sua composição química está longe de melhorar a sua deficiência em sódio, porque é muito mais rico em potássio, que tem funções fisiológicas antagônicas às do sódio, como em seguida veremos. Assim procediam os Tupinambás, na observação de Hans Staden, temperando suas comidas com as cinzas alcalino-terrosas de certas madeiras. Noutras zonas tropicais observa-se o mesmo fato. Assim, na zona de Ogué do Congo Francês, os Pauins usam, em lugar do sal, as cinzas das cascas das palmeiras e da banana torrada, e na região de Bambueolo, no Congo Belga, as cinzas de certas plantas chamadas árvores do sal.43 O déficit em sódio se traduz por uma baixa permanente deste mineral no sangue e nos humores, baixa que Sundstroem.44 já havia observado nos climas tropicais da Austrália e de que nossos estudos confirmaram a existência em várias regiões do Brasil. Enquanto os livros europeus e norte-americanos falam em taxas médias de 340 a 380 miligramas de sódio por litro de [pg. 87] sangue, nos climas tropicais temos encontrado taxas de 260 a 320 miligramas apenas.45 Acontece que o organismo, para manter a tensão osmótica de seus humores, havendo falta de sódio, lança mão do potássio, cujas taxas se apresentam sempre altas. Esta baixa de sódio e esta subida vicariante do potássio representam um grave desequilíbrio iônico, sendo uma das causas do esgotamento neuromuscular e da fadiga rápida nos climas tropicais. 42 Morais, Raimundo. Na Planície Amazônica, 1936. 43 Pierre Deffontaines. L’Homme et la Forêt. Paris. 1933. 44 Sundstroem. V.. S., A Summary of Some Studies in Tropical Accli-matization, 1926. 45 Sobre este problema da baixa do sódio no sangue dos habitantes dos trópicos, apresentamos os resultados de nossos estudos sob a forma de nota prévia em sessão da Já os clínicos e os patologistas europeus tinham notado que, em casos de uma doença que provoca uma fadiga aniquilante — a insuficiência supra-renal — sempre se apresenta um desequilíbrio sódio-potássio neste mesmo sentido. É por isto que nós afirmamos ocorrer nos trópicos uma espécie de insuficiência supra-renal climática, pelo menos em sua síndrome humoral, que só pode ser combatida com uma alimentação muito rica em sal. Vemos assim que, se nos casos do déficit em ferro, a ação do clima é remota, fazendo-se sentir indiretamente, no caso do sódio é imediata, é direta. Estes dois exemplos mostram como é complexo o fenômeno da aclimação. Como é ingênuo afirmar-se ou negar-se em bloco, sem maiores discriminações, a ação dos climas sobre o homem, em obediência a escolas sociológicas, limitadas a pontos de vistas unilaterais. Para bem compreender o complicado mecanismo da aclimação, ou seja, do ajustamento biológico dos grupos humanos sob a ação dos variados tipos de clima, tem-se que analisar um mundo de detalhes. Alguns que à primeira vista parecendo insignificantes são, no entanto, capazes de esclarecer definitivamente pontos obscuros quando bem interpretados em seus fundamentos científicos. É o caso destas variações do metabolismo do sódio e do potássio nos climas tropicais. Estudando o seu mecanismo, chegamos a uma interpretação mais racional da apregoada superioridade biológica das raças pigmentadas sobre as de pele branca nos climas tropicais. Superioridade que se evidenciaria na colonização de regiões deste tipo de clima. Todos sabemos que as populações brancas sempre tiveram grande dificuldade em realizar um trabalho intensivo nas áreas [pg. 88] tropicais. A maior parte dos colonos europeus, principalmente os dos países nórdicos, sempre viveram nos trópicos uma vida sedentária, de simples administração burocrática, baseando os seus lucros na exploração do trabalho do nativo, do negro ou do índio, que são capazes de um duro esforço nestes climas excessivos.46 Sociedade Brasileira de Alimentação — 1945. 46 Price, Grenfell, “White Settlers in the Trópico”. Nova Iorque. 1939. Já vimos que um dos fatores desta fadiga rápida a que o organismo está exposto nas regiões tropicais é a espoliação em sódio pelo suor, cuja secreção se intensifica durante a realização do trabalho. Qual a razão pela qual o branco se fadiga mais depressa do que o negro ou o índio? Pode haver várias razões explicativas, mas o que não resta dúvida é que um dos fatores desta diferença fundamental reside no fato de que o índio e, principalmente, o negro perdem muito menor quantidade de cloreto de sódio através da sudação do que o branco. E perdendo menos sódio as populações nativas se fadigam muito menos com a realização de um mesmo tipo de esforço muscular. Qual o mecanismo que explica esta diferença? Trata-se realmente de uma superioridade biológica? Não. Primeiro, que não existem superioridades ou inferioridades raciais, à luz dos modernos conhecimentos antropológicos e genéticos. O que existe são diferenciações biológicas, condicionadas por diferenças do meio. O que é superioridade nas regiões polares pode constituir uma inferioridade nos trópicos e vice-versa. Segundo, que no caso em apreço não se trata nem mesmo de diferenciações, mas de simples processos técnicos de aclimatação, de diferentes hábitos de vida destes grupos humanos. Os negros e os índios perdem menor quantidade de sal pela sudação por conservarem a sua pele nua, não recoberta pelo vestuário. Talberg47 mostrou que o suor produzido por ação do trabalho muscular é muito mais rico em sódio do que o suor resultante da ação exclusiva do calor ambiente e mostrou também que o suor secretado pela pele vestida é quase duas vezes mais rico em sal do que o da pele nua. É este um argumento decisivo contra o uso do vestuário nos trópicos, afirmou Graham Lusk.48 Aquelas observações de Talberg nos [pg. 89] trazem a explicação de complexos fenômenos ligados à aclimatação e à colonização das regiões tropicais. O primeiro ponto esclarecido é o da maior resistência do negro ao trabalho nos trópicos. É que o negro sempre trabalhou quase despido. Seja nas plantações de cana das Antilhas, seja nos algodoais norte-americanos, seja na área do açúcar do Nordeste brasileiro, sempre o encontramos com o menos de roupas possível, às vezes com uma simples tanga, evitando deste modo a desmineralização pela sudação excessiva e concentrada em sais minerais. Ainda em 1818, Koster encontrava os negros dos engenhos trabalhando com uma simples tanga, com o torso e as pernas nuas, conforme gravura que incluiu em seu livro Travels in Brazil. Alfred Russel Wallace escrevia, em 1853, sobre o vestuário no Pará, o seguinte: “Os brancos vestem geralmente roupas de linho muito limpas, sem mancha. O traje do negro ou do índio se reduz a calças de algodão branco ou listrado, a que juntam, às vezes, uma 47 Talberg. G. A., in American Jour. Physiology. 25-350, 1922. 48 Lusk, G., The Elements of Science of Nutrition, 1928. camisa da mesma fazenda... Os meninos andam nus até oito ou dez anos.”49 Este hábito de manterem as crianças despidas até ficarem já bem grandinhas, tendo sua base na pobreza local, era extremamente favorável à sua saúde, não só facilitando a aclimatação e diminuindo a perda de sal, mas também evitando o raquitismo nesta quadra da vida em que as suas conseqüências são as mais graves. E por que os brancos não tentaram esta mesma técnica? Primeiro, por ignorarem suas vantagens; segundo, porque seria perigosa a exposição direta de suas peles ao sol. Peles pouco pigmentadas, sem nenhuma defesa, deixando-se, portanto, penetrar facilmente por todos os tipos de raios solares, tanto os benéficos como os nocivos, os ultravioleta e os infravermelhos. Já o negro, com a sua pigmentação acentuada, se sentia bem defendido. Na verdade, mesmo despido de qualquer espécie de vestuário, o negro nunca se expunha diretamente aos perigos da insolação, porque ficava sempre abrigado, protegido à sombra da sua própria pele... Os índios, usando pouco ves-tuário, levavam também sobre o branco uma grande vantagem. Para defesa contra o excesso de insolação usavam eles o processo da urucuização ou embixamento, que consistia em untar o corpo com uma mistura de corante das sementes de urucu (Bixa [pg. 90] orelana), com gordura de jacaré, de capivara, de peixe ou com resinas vegetais.50 Ramón Pardal demonstrou que este processo era usado fora do Brasil numa larga área equatório-tropical tanto da América do Sul como do Centro e do Norte, visando, além da defesa contra o sol, a outras muitas supostas vantagens. Os únicos colonos europeus que se aclimataram realmente nos trópicos, podendo concorrer nos trabalhos musculares com os nativos, foram os portugueses. E a primeira coisa que fizeram foi desvencilhar-se das roupas, ficando nus da cintura para cima, como os negros dos engenhos com os quais se misturaram. Os colonos de outras raças, franceses, ingleses ou holandeses, querendo não só manter nos trópicos os seus vestuários, mas impor seu uso aos nativos, procediam de maneira a mais errada possível. E com este lamentável erro, não só dificultavam a sua aclimatação nestas terras mas também provocavam ou apressavam a decadência e, em certos casos, o extermínio dos nativos, atacados de inúmeros mates, logo que mantinham 49 Wallace, A. R., Travels in the Amazon and Rio Negro. Londres. 1853. 50 Azevedo, Thales de, O Vegetal como Alimento e Medicina do Índio, separata da Revista do Arquivo de São Paulo, n.° 76, 1941. suas peles recobertas à maneira européia.51 Assim desapareceram grupos inteiros de polinesianos, habitantes das Ilhas Marianas, Taiti, Guam e outras, os quais, antes da chegada dos europeus, se apresentavam fortes e vigorosos, e começaram a definhar logo que os missionários recobriam pudicamente com roupas exóticas seus magníficos corpos nus. O problema da fome de sódio é, portanto, um problema da mais alta importância na vida tanto econômica como social dos grupos humanos que habitam as regiões equatoriais e tropicais. Através dele se fazem sentir influências decisivas do tipo de alimentação, do vestuário,52 e do regime de trabalho. Problema de raça, de clima e de hábitos culturais. [pg. 91 6. Como faltam a esse regime regional quantidades adequadas de sais minerais, também faltam, as mais das vezes, doses apropriadas de vitaminas. É verdade que se trata raramente de carências totais, de absoluta ausência desses princípios, acarretando o que se chama de avitaminoses típicas. São muito mais freqüentes os estados de deficiência parcial, chamados de hipoavitaminoses ou de avitaminoses latentes e frustas. Só em certos períodos e em contingências excepcionais têm surgido na Amazônica os dramas das avitaminoses em caráter epidêmico e alarmante. Das carências vitamínicas as mais generalizadas são as dos elementos componentes do complexo B. A ausência de cereais integrais que representem boas fontes destas vitaminas na alimentação regional dificulta o seu abastecimento adequado. O teor em vitaminas do complexo B na mandioca, que constitui o alimento básico do regime, é muito inferior ao dos cereais, do arroz e do trigo, cujos envoltórios estão impregnados destes elementos. Ademais, no preparo da farinha, as pequenas quantidades existentes são praticamente destruídas. Isto explica que em vários continentes as áreas de mandioca sejam áreas de beribéri — doença causada 51 Interessantes sobre este assunto são as observações de Alain Ger-bault apresentadas nos seus livros: À la Poursuile du Soleil, 1929; Sur la Route du Retour, 1932, e L’Evang le du Soleil. 1932. Consulte-se, também, o livro de André Missenard, L’Homme et le Climat, 1937, no qual ele demonstra que a proteção excessiva da pele dos nativos pelo vestuário faz gerar “um enfraquecimento de todos os sistemas orgânicos preparando a cama para a mortífera tuberculose, destruidora de populações inteiras”. 52 “Tem sido notado com frequência — assim se manifesta Étienne Dennery — que, entre os povos acostumados a trabalhar seminus, o uso regular do vestuário tem causado mais vítimas do que as epidemias e a fome” (Foules d’Asie, Paris, 1930). pela carência de vitamina B1, também chamada tiamina: a área amazônica, na América, a área da bacia do Congo, na África. Na Índia, embora o beribéri se estenda por quase todo o território nacional, a sua zona de maior incidência é a província de Travancore, onde a demasiada pressão demográfica regional conduziu os grupos humanos que aí vivem a cultivar a mandioca, de maior rendimento que o arroz, e a basear sua alimentação na farinha.53 Na Amazônia têm sido notadas manifestações de deficiência de vários elementos do complexo B, sendo a mais comum a da vitamina B1. Decorre de sua deficiência uma série de fenômenos gastrointestinais e nervosos: anorexias, palpitações, cãibras, irritabilidade, perda de memória, insônia, etc. A anorexia, ou falta de apetite, a que já fizemos alusão anteriormente, é uma das conseqüências obrigatórias da carência de vitamina B1. A ausência desse elemento estimulante do apetite, na alimentação habitual, leva a um estado de embotamento desta sensação [pg. 92] interna. Várias das formas de gastroenterites rotuladas, de maneira genérica, de colites tropicais, têm sua etiologia ligada à deficiência desse princípio vitamínico. No mecanismo de certas anemias não é estranha a deficiência de tiamina. Contudo, as manifestações predominantes desta carência se assentam sobre o sistema nervoso. São as paresias e paralisias que constituem o eixo sintomático dessa doença conhecida no Oriente desde a mais remota antiguidade e denominada beribéri. O beribéri é uma típica doença de carência, e foram mesmo os estudos experimentais visando a esclarecer sua etiologia que marcaram o ponto de partida das grandes descobertas no campo da vitaminologia. O beribéri típico, tanto em sua forma hidrópica, acompanhado de edemas e de graves fenômenos circulatórios, como em sua forma seca. predominantemente paralítica, é hoje uma raridade na Amazônia. Tendo assolado a região com grande intensidade há anos, o mal se extinguiu quase que totalmente com as mudanças de natureza econômico-social que ali se processaram a partir do começo do século atual. Até então, a área amazônica constituía uma das zonas de mais devastadora atuação desta doença. Nos mapas nosográficos da famosa obra de Young J. Pettlang sobre doenças tropicais, publicada em 1889. figura a Amazônia, juntamente com a Índia, a China e o Japão, como uma 53 Aykroyd, W. R., Human Nutrition and Diet, 1937. das grandes áreas de beribéri no mundo. De fato, durante o chamado ciclo da borracha amazônica, que durou de 1870 a 1910, com esta região brasileira mantendo o monopólio mundial do produto, foi a zona assolada por tremenda epidemia de beribéri. Durante essa fase econômica, na qual a borracha chegou em certo período a representar 28% do valor da exportação total de todo o país,54 foi atraída para a Amazônia uma corrente de imigrantes. Levas de aventureiros seduzidos pela miragem de enriquecerem da noite para o dia, com a exploração do “ouro branco”, do látex valioso que jorrava como sangue das seringueiras feridas em todo o vale amazônico. A floresta virgem cobrou caro a ousadia desses pioneiros que tentavam arrancar a riqueza maldita do seio da selva tropical. E a sua vingança predileta fora exatamente o beribéri. [pg. 93] A maior parte dos desbravadores da borracha que ali chegavam, atraídos pelo rush do produto, foi derrubada pela terrível doença. Chegavam dispostos e cheios de entusiasmo, vindos a maior parte deles das terras secas do Nordeste e deslumbrados com a abundância de água da região. Metiam-se mato adentro pelas estradas dos seringais. Sangravam as seringueiras e recolhiam o seu precioso leite. Defumavam a borracha. Vendiam o produto por preço fabuloso. E quando estavam se sentindo donos do mundo, começavam a sentir o chão fugindo debaixo dos pés, a sentir as pernas moles e bambas, a dormência subindo dos pés até à barriga. Uma cinta apertando-lhes o peito como uma garra. Era o beribéri chegando, tornando-lhes conta do corpo, roendo-lhes os nervos, acabando com a vitalidade do aventureiro nordestino. O nômade que tinha atravessado léguas e léguas a pé, distâncias intermináveis por picadas, rios, igarapés e paranás, vencendo como um bravo todos os obstáculos, tinha que se entregar sem resistência ao golpe terrível do beribéri. Daí em diante ou vinham as inchações, as terríveis hidropisias, ficando os membros com a pele esticada e brilhante, porejando linfa — pernas de cristal — ou murchava tudo, dessecando-se as massas musculares, fundindo-se a carne por encanto como se estivesse sendo comida com violência pela própria doença. Não existem estatísticas que nos dêem, com precisão, o número de vítimas do terrível mal — o número exato dos que deixaram sua pobre carcaça enterrada nos pantanais amazônicos, nem dos que voltaram incapacitados, carregados em 54 Dutra. Firmo. “Borracha”, in Brasil, 1939-1940. Ministério das Relações Exteriores do Brasil. cadeirinhas pelo rio abaixo, até atingirem terras mais brandas, climas mais doces onde curassem o seu beribéri e esquecessem melancolicamente os seus malfadados sonhos de riqueza. Mas, das crônicas da história da borracha se pode concluir que pelo menos 50% da população flutuante da Amazônia foram atingidos por esse tipo de carência alimentar. Essa epidemia que custou tantas vidas, que foi um dos fatores da falta de consolidação da economia amazônica durante o ciclo do outro branco, teve origem em fenômenos econômico-sociais bem caracterizados. Como a borracha, a partir da descoberta dos processos de vulcanização, alcançara preços fabulosos nos mercados mundiais, elevando-se cada dia a sua cotação, as populações amazônicas — as nativas e as alienígenas ali chegadas — não cuidaram mais de outra coisa, concentrando toda a sua atividade na colheita do látex precioso. [pg. 94] Araújo Lima, num interessante estudo sobre “O Problema Alimentar na Amazônia”, apresentado ao 1.º Congresso Medico Amazônico, em 1939, escreveu: “índice de uma manifestação de nomadismo, nos seringais dos altos rios. o homem do interior amazônico não tem o hábito de plantar uma árvore: arma o seu desconfortável lupiri e apresenta-se, aguerrido, para assaltar os paus de leite (seringueiras): provido do rifle, do querosene, da farinha, do sal para alguma caça e de conservas para alimentação. Da verdura, do legume fresco, do leite, da manteiga, da fruta, não se apercebe. Ali falta o pequeno pomar, que deveria dar sombra, alegria e perfume ao lar. No Baixo-Amazonas, também não se percebe a preocupação de cultivar frutos e legumes. O homem amazônico não tem esse hábito, salvo em zonas raras, limitadas e excepcionais.” Com a paralisação da pesca e com os rebanhos abandonados, afogando-se à míngua nas enchentes, com a agricultura parada por falta de braços, enfim, com todas as fontes de riqueza local se desmoronando, a alimentação regional sofreu tremenda crise. Passou a ser constituída quase que exclusivamente de alimentos secos, de conservas importadas de terras distantes. O regime alimentar do seringueiro era composto de carne-seca ou charque, corned-beef, feijão empedrado ou bichado, farinha dágua, arroz sem casca, conservas em latas, doce, chocolate e bebidas alcoólicas, importadas diretamente da Europa. Regime impróprio, carente de 1940. alimentos frescos e muito semelhante ao dos antigos barcos veleiros, onde o beribéri grassou à solta, não é de admirar que desse lugar ao surto do mal que deu. Surto que depois de fazer horrores, parecendo indiferente a todos os recursos médicos e higiênicos de que se lançou mão, se extinguiu a partir de determinado momento, sem motivos aparentes que pudessem explicar sua desaparição, principalmente diante das idéias de então, de que se tratava de uma moléstia infectuosa e transmissível. A partir do momento em que se acabou o monopólio da borracha, em que o produto da planta cultivada no Extremo Oriente concorreu e sobrepujou o da planta nativa do Vale Amazônico, com a crise econômica que então surgiu, com os preços da borracha caindo assustadoramente, os negociantes do produto abrindo falência, a economia da região em colapso, o beribéri, como se fosse alimentado por esta própria economia, também começou a declinar. E quando o ciclo da borracha [pg. 95] se encerrou, o produto vindo a representar menos de 1% do volume da exportação brasileira, o beribéri desapareceu da região da borracha. É que, sem o excesso de dinheiro para queimar à toa, para comprar bebidas finas e corned-beef inglês, o homem da Amazônia teve que voltar a seus antigos misteres da era de antes da borracha. A sua caça, à sua pesca, à sua colheita de raízes e frutos silvestres, à sua agricultura incipiente. Agricultura rudimentar, mas capaz de fornecer alguns produtos frescos: milho, feijão verde, favas e legumes que, com os produtos da colheita nativa, melhoram muito seu padrão de dieta, anulando a carência e exterminando, deste modo, o beribéri. Assim se fechou o ciclo da terrível doença, ciclo que tem suas analogias com o do escorbuto no Alasca durante a febre do ouro. O escorbuto fazendo parte da sintomatologia desta febre do ouro enterrado nas terras geladas do Alasca. O beribéri fora também um dos sintomas da febre do ouro negro — do látex coagulado nas terras do Amazonas. Passada a febre desta riqueza que tinha desorganizado tão profunda-mente toda a economia agrária nascente da região, o beribéri também desaparece. E hoje um fato histórico de triste recordação da época de valorização da borracha e de desvalorização do homem da Amazônia. Ou melhor, de desvalorização e degradação do homem brasileiro. O regime alimentar magro, quase sem gorduras animais, sem leite, sem manteiga e com poucas folhas verdes é, sem nenhuma dúvida, pouco abundante em vitamina A. É verdade que alguns óleos de peixe constituem fontes apreciáveis deste princípio nutritivo, mas é preciso não esquecer que o peixe é um alimento incerto. Incerto fica, portanto, o abastecimento regional desta vitamina. Contudo, não é comum se observarem casos de carências completas, com seu cortejo clássico de fenômenos oculares e cutâneos. Com a sua , cegueira noturna, com a xeroftalmia e a querotomalácea. Com as conjuntivites e as blefarites, as córneas opacas levando à cegueira incurável. Tais avitaminoses tão comuns em outras áreas de fome. como na Índia, por exemplo, onde vive o maior número de cegos do mundo, que cegaram por falta de vitamina A,55 como no México, onde ò número de crianças com [pg. 96] xeroftalmia é enorme, não se apresentam no Amazonas, senão em casos esporádicos. O que é comum nessa área é a hipovitaminose relativa, denunciada pela falta de crescimento, pela visão até certo ponto deficiente e, principalmente, pelas perturbações cutâneas. Pelas manchas escuras da pele, pelo aumento de suas rugosidades que a transformam num couro grosso e áspero com espículos em torno dos folículos pilosos. São grupos humanos com a pele lembrando o couro do jacaré, seu companheiro da fauna amazônica. Foram Frazier e Wu os que primeiro observaram estes fenômenos cutâneos em certas populações da China e deduziram a sua causa nutritiva, mostrando como esta pele grossa e áspera fica fina e macia, transformando-se da noite para o dia, quando seus portadores são alimentados com boas doses de vitamina A. O consumo habitual dos molhos apimentados, dos sucos de ervas fermentadas e misturadas com pimenta, como o tucupi, o tacacá e o arubê, molhos que constituem o sal e o tempero comum do peixe, da caça e dos bolos de mandioca da Amazônia, afasta estas populações dos perigos das carências completas em vitamina C. Da doença que dela resulta — o feio escorbuto — que faz apodrecer as gengivas e sangrar as mucosas de suas vítimas, de maneira impressionante. Sob esse aspecto, a área amazônica confirma a regra da quase inexistência do escorbuto epidêmico nos climas equatório-tropicais. É uma doença dos climas temperados ou frios, com 55 Esta assustadora incidência da carência por avitaminose A, na Índia, foi denunciada na publicação feita em 1935 pelo notável médico R. E. Wright que, na qualidade de superintendente do hospital oftalmológico de Madras, teve oportunidade, como acentua Aykroyd, “de lidar com maior número de casos graves de avitaminoses A. do que qualquer outro medico no mundo”. (W. R. Aykroyd. Human Nutrition and Diet. 1937.) invernos gelados crestando toda a vegetação e deixando, durante uma parte mais ou menos longa do ano, as populações sem alimentos frescos, sem verdes em suas paisagens, em seus pratos e em suas cozinhas. Nas áreas tropicais surgem, às vezes, as formas larvadas, principalmente nas crianças, por seu regime monótono e escasso. Os adultos encontram sempre uma maneira de se suprir deste princípio nutritivo com os recursos da natureza, em regra ricos em ácido ascórbico, nas áreas equatório-tropicais, A vida primitiva nas florestas conduz mesmo à cura do escorbuto avançado, parando a marcha mortífera da doença. [pg. 97] Contam os historiadores do século XVI que durante as grandes viagens transatlânticas o escorbuto matava à larga. Camões56 refere a sua sanha destruidora nas viagens de Vasco da Cama: “E foi, que de doença, crua e feia, A mais que eu nunca vi, desampararão Muitos a vida e em terra estranha e alheia Os ossos para sempre sepultarão. Quem haverá que sem o ver o creia? Que tão disformemente ali lhe incharão As gengivas na boca, que crescia A carne e juntamente apodrecia. Apodrecia c’um fétido e bruto Cheiro que o ar vizinho infecionava. Não tínhamos ali médico astuto, Cirurgião sutil menos se achava; Mas qualquer neste ofício pouco instructo Pela carne já podre assim cortava Como se fora morta; e bem convinha Pois que morto ficava quem a tinha.” 56 Camões,Luis de. Os Lusíadas, Canto V. Pois bem, conta-se igualmente que vários marinheiros da frota de Colombo, atacados certa vez durante a travessia pelo mal terrível e condenados irremediavelmente à morte, solicitaram ao comandante que os deixassem numa ilha deserta que se mostrava à vista do navio para que aí morressem tranquilamente e não fossem deste modo os seus corpos jogados ao mar e devorados pelos peixes. Tendo o comandante acedido ao pedido, foram aí abandonados à sorte e enquanto esperavam a morte se foram alimentando de folhas, frutos e brotos silvestres encon-trados na ilha. Anos depois, regressando o barco pela mesma rota. viram-se sinais de vida na ilha deserta. Abordada a costa, verificou-se que lá estavam todos os moribundos ali deixados, [pg. 98] mas agora em estado de perfeita saúde. A ilha onde se processou o milagre dessa ressurreição era uma terra tropical situada a 12° de latitude norte e que hoje é conhecida pelo nome de Curaçau, deturpação do nome inicial dado pelos portugueses em memória deste episódio, de “Ilha da Curação”, ou seja, da cura do terrível mal do escorbuto. Verifica-se, assim, que os climas equatório-tropicais, seja por qualquer ação direta ainda pouco conhecida, seja agindo indiretamente pelos recursos vegetais que fornecem, estão longe de constituir um fator de aparecimento do escorbuto, mas, muito ao contrário, de cura deste mal. Estudando a vitamina C e as suas carências na Venezuela, o Dr. Guillermo Tovar Escobar57 chegou à evidência da extrema rareza da síndrome escorbústica, entre as crianças do país, apesar da sua alimentação inadequada e supostamente pobre em vitamina C. Uma das conclusões do estudo desse especialista é que não é possível determinar a causa exata que impede o aparecimento dos sintomas clínicos do escorbuto nestas crianças. Já vimos que o raquitismo é também raro na região amazônica. Não quer isto dizer que não apareçam uma vez ou outra alguns casos esporádicos, mas estamos muito longe do raquitismo em massa, com as crianças todas exibindo os seus rosários raquíticos e as suas pernas arqueadas, como ocorre em certas áreas da Inglaterra, fato que levou essa doença a ser conhecida no mundo pelo nome de doença dos ingleses. Na floresta equatorial, a insolação relativamente abundante o ano inteiro, embora menos rica em raios ultravioleta do que nas regiões tropicais 57 Escobar, Guilhermo Tovar, La vitamina C en los niños de Caracas, tese apresentada à secas, evita o raquitismo pela produção de vitamina D ao nível da pele, suprindo deste modo a sua deficiência na alimentação habitual. O sol é a grande fonte de vitamina D nos trópicos, sol que é um luxo em certos climas temperados ou frios, como os da Inglaterra, da Dinamarca e da Islândia, onde o raquitismo grassa à solta, como uma carência de sol. Já não é hoje considerada apenas uma expressão leiga, esta de se falar em carência de sol, mas de absoluto rigorismo técnico. Estes países sofrem de carência de sol, como outros de carência de cálcio ou carência de vitamina C. Missenard fala em carência e em imunidade solares, num sentido fisiológico integral.58 [pg. 99] 7. Com estes defeitos mais graves, com suas reservas umas bem, outras mal aproveitadas, a região amazônica fornece subsistência às suas populações ralas e qualitativamente inferiorizadas, com suas deficiências alimentares já apontadas e com suas características antropofisiológicas um tanto precárias. Por conta da subnutrição, ou seja, da fome específica de numerosos princípios essenciais, correm, em grande parte, os altos coeficientes de mortalidade da região. Principalmente da mortalidade infantil. Em Manaus, capital do Amazonas, essa mortalidade atinge a cifra impressionante de 239 por mil. É verdade que há coeficientes piores na América Latina. Na Bolívia esta mortalidade alcança 267 por mil e nas províncias de Salta e Jujuy no Norte da Argentina atinge a cifra de 335 por mil, ou seja, de uma criança que morre sempre antes do primeiro ano de idade para cada três que nascem. Isto ocorre, no entanto, em áreas de fome ainda mais intensas do que a Amazônia, muito mais pobres em recursos naturais. Compare-se, porém, estas cifras com as da mortalidade infantil média nos Estados Unidos, de 46 por mil, ou com as da Noruega, de 36 por mil, ou com as da Nova Zelândia, de 32 por mil, e a sua expressão de tragédia ressalta violentamente. Também a mortalidade por certas doenças infectuosas como a tuberculose tem sido um fator de alta importância na deficiência alimentar. O coeficiente é bastante alto nos pontos em que se encontram populações concentradas, como em Belém, onde atinge a cifra de 250 por 100.000. Ou seja, cinco vezes mais alta do que a de Nova Iorque. Nas zonas da hinterlândia Universidad Central de Venezuela em 1943. 58 André Missenard, L’Homme et le Climat, 1937. amazônica a incidência da tuberculose é menor por falta de contágios, mas pelos estudos realizados nos últimos tempos verifica-se que o mal se vai alastrando vertiginosamente, aumentando dia a dia a sua expressão nosográfica em toda a região. Das conclusões de um inquérito realizado pelo Dr. Ary Lage sobre a tuberculose na Amazônia destacamos as duas seguintes: “a) a tuberculose está em fase epidêmica na capital paraense; b) realizando o primeiro cadastro tuberculino torácico por via fluvial, verificamos que a cidade de Belém está disseminando a tuberculose pelas zonas rurais da Amazônia.”59 No mapa de incidência da tuberculose no país, organizado pelo Instituto de Serviços Sociais do Brasil, verifica-se este fato: [pg. 100] não só Belém constitui um dos focos de alta incidência do mal, como este foco se estende uniformemente por toda a zona rural atravessada pela estrada de ferro de Bragança, tendo a peste branca penetrado e sido disseminada no campo pelo trem de ferro e tendo infestado em massa estas populações nativas sem nenhuma defesa imunológica. Tem havido entre nós inúmeros desses dramas coletivos, de violentas epidemias de tuberculose varrendo populações inteiras da hinterlândia. Observação demonstrativa deste fato nos foi dada pelo Dr. Edmundo Blundi, médico da Fundação Brasil-Central, sobre o ocorrido com os índios Bororós do núcleo de Meruri, em Mato Grosso. Viviam nesta zona saudavelmente seis mil Bororós, até o dia em que aí apareceu um civilizado atacado de tuberculose. Em pouco tempo, quase toda a tribo fora dizimada por esta infecção.60 Todos estes handicaps desfavoráveis ao homem, condicionados pela subnutrição e pela fome, muito têm contribuído para o relativo marasmo demográfico em que permanece a região. Para a estagnação na marcha de suas populações. O abandono da região que se seguiu à crise da borracha, o centrifugismo pela atração das zonas industrializadas do Sul com maiores horizontes de trabalho, associados aos alarmantes índices de mortalidade, dão-nos a explicação completa deste fenômeno, um tanto chocante, de uma população jovem entrando em decadência demográfica muito antes de ter alcançado a maturidade de seu ciclo 59 Lage, Ary, “O primeiro recenseamento tuberculino-torácico por via fluvial”, trabalho do Serviço Nacional de Tuberculose, 1940. 60 Blundi. Edmundo. Uma Cidadela de Ciência no Brasil Central. evolutivo, abortada em suas potencialidades biológicas por fatores econômico-sociais que lhe amesquinharam e lhe destruíram o élan de vida. Porque a verdade é que se as riquezas da região amazônica não são tão fabulosas como suas lendas, nem o seu clima dos mais acolhedores do mundo, seria no entanto possível vencer tais dificuldades e desenvolver o povoamento da região desde que sua colonização fosse realizada dentro de um plano de aproveitamento racional e não de intempestiva destruição. Destruição da riqueza vegetal com as seringueiras sangradas até a última gota do seu látex, com os peixes e as tartarugas destruídos sem discernimento, quase até o extermínio das espécies. Sem nenhuma preocupação de melhorar os processos de agricultura primitiva nem de ampliar a sua área de cultivo. [pg. 101] 8. Para melhorar as condições alimentares da área amazônica faz-se necessário todo um programa de transformações econômico-sociais na região. As soluções dos aspectos parciais do problema estão todas ligadas â solução geral de um método de colonização adequada à região. Sem alimentação suficiente e correta a Amazônia será sempre um deserto demográfico. Sem um plano de povoamento racional e de fixação colonizadora do elemento humano à terra nunca se poderá melhorar os recursos da alimentação regional. O Instituto Nacional de Imigração e Colonização, autarquia criada em 1953 para gerir os destinos da política imigratória e colonizadora do país, iniciou, sob financiamento da Superintendência do Plano de Valorização econômica da Amazônia, e através de equipes técnicas, os primeiros estudos racionalizados sobre a colonização daquela região, sendo de esperar uma estruturação compatível com a magnitude do problema colonizador da Amazônia. São estudos que visam à escolha de novas glebas para o estabelecimento de núcleos coloniais, a análise da situação dos que já existem, o levantamento das potencialidades geoeconômicas dessas áreas, além de uma análise sócio-econômica das comunidades implicadas. Mas até agora os resultados obtidos têm sido bem minguados. A conquista de qualquer tipo de terra pela colonização é sempre o resultado de uma luta lenta e tenaz entre o homem e os obstáculos do meio geográfico. Entre a força criadora do elemento humano e as resistências dos fatores naturais. Na paisagem virgem, o homem é sempre um intruso que só se pode manter pela força. O geógrafo francês Pierre Déffontaines,61 tratando da dinâmica da colonização, dos ajustamentos dos grupos humanos aos diferentes quadros naturais, fala-nos sempre em lutas. Em luta do homem contra a montanha. Em luta do homem contra a água. Em luta do homem contra a floresta. Assim se apresenta o caso da conquista econômica da Amazônia: luta tenaz do homem contra a floresta e contra a água. Contra o excesso de vitalidade da floresta e contra a desordenada abundância da água dos seus rios. Água e floresta que parecem ter feito um pacto de natureza ecológica, para se apoderarem [pg. 102] de todos os domínios da região. O homem tem que lutar de maneira constante contra esta floresta que superocupou todo o solo descoberto e que oprime e asfixia toda a fauna terrestre, inclusive o homem, sob o peso opressor de suas sombras densas, das densas copas verdes dos seus milhares de espécimes vegetais, do denso bafo de sua transpiração. Luta contra a água dos rios que transbordam com violência, contra a água das chuvas intermináveis, contra o vapor dágua da atmosfera, que dá mofo e que corrompe os víveres. Contra a água redonda das lagoas paradas, dos igapós e dos igarapés. Contra a correnteza. Contra a pororoca. Enfim, contra todos os exageros e desmandos da água fazendo e desfazendo a terra. Fertilizando-a e despojando-a de seus elementos de vida. Criando ilhas e marés interiores numa geografia de perpétua improvisação, ao sabor de suas violências. Para vencer a força desadorada da natureza ainda em formação, para abrir algumas brechas nesses cerrados batalhões de árvores inexpugnáveis, seria necessária uma sábia estratégia do elemento humano.62 Seria preciso, antes de tudo, que ele concentrasse as suas forças. Que se agrupasse em zonas limitadas e desencadeasse nesses pontos estratégicos a luta contra a floresta.63 Infelizmente isto não se fez. O povoamento amazônico foi conduzido de maneira dispersiva, sem nenhuma tática para a luta a ferir-se e, portanto, previamente condenado ao fracasso. “Numa região em que a natureza se concentrou para resistir, o homem se dispersou 61 Déffontaines, Pierre, “Qu’est-ce que la Géographie Humaine?” prefácio de Géographie et Colonisation, de Georges Hardy, 1933. 62 Gourou, Les Pays tropicaux, 1947. 63 Sobre a técnica de colonização das regiões de floresta tanto tropical como temperada, sobre essa necessidade de concentração humana para que se processe o desflorestamento produtivo, consultem-se as seguintes obras: Pierre Déffontaines, L’Homme et la Forêt. 1933; C. Hardy, Géographie et Colonisation, 1933, e Gordon East, A Historícal Geography of Europe, 1948. para agredi-la”, diz Viana Moog com muita penetração. De fato, o homem amazônico, longe de formar grupos, tentou penetrar na floresta como indivíduo, isolado, num heroísmo individual sem precedente na história das colonizações. Numa louca aventura solitária, vivida no silêncio da floresta.64 [pg. 103] Deve ser posto em destaque que o ocorrido na Amazônia não foi mais que uma exaltação desse espírito de iniciativa privada que caracterizou toda a colonização portuguesa no Brasil, neste aspecto semelhante à espanhola no resto da América. Colonização, em sua dinâmica desordenada, tão diferente da de Roma, planejada, dirigida e realizada pelo Estado, em contraste com a aventura da América, que os povos ibéricos levaram a efeito através da “ação dispersa e desconcertada do povo, sempre desprovido da orientação eficaz de suas minorias dirigentes e quase abandonado pelo Estado”, aluando de uma maneira “pletórica de individualismo”, como destaca Claudio Sanchez Albornoz, em seu estudo La Edad Media y la Empresa de América (La Plata, 1934). Com este tipo de colonização, de tão acentuada marca medieval, formou-se a nossa estrutura social com esse caráter ganglionar e dispersivo, de extrema rarefação, de que nos fala Oliveira Viana, esparramando-se o organismo social, ralo e superficial, por extensões que não podiam ser alcançadas pelo organismo político, sem capacidade de irradiação. Ficavam, assim, os colonos sustentados quase que exclusivamente por sua força e iniciativas próprias, com as suas conquistas defendidas muito menos pela ação oficial do que pelo braço e pela espada dos particulares. Se por toda a América Ibérica o privatismo campeou, no caso da conquista da Amazônia, por seu excessivo isolamento territorial, ele se extremou até os limites máximos do individualismo. Enquanto na exploração agrária do Nordeste açucareiro e no latifúndio pastoril das zonas de criação, a unidade colonizadora fora a família, segregada em seus núcleos territoriais, na Amazônia esta unidade ainda minguou mais, ficando reduzida ao indivíduo. Ao indivíduo perdido na floresta e quase sempre esmagado pela áspera hostilidade do meio. Atraído pelo mistério do desconhecido e penetrando pelo largo caminho natural aberto no seio da floresta — o Rio Amazonas, seus afluentes e caudatários 64 Veja-se sobre o problema das correlações entre o espaço geográfico e o espaço social, na formação da sociedade brasileira, o trabalho de J. F. Normando, Evolução econômica do Brasil, e de Max Fleiuss, História Administrativa do Brasil, contendo este último uma carta de Castro — os colonos se foram espalhando pelas margens numa extensão de vários milhares de milhas. Com o advento da valorização da borracha, o fenômeno da dispersão se acentuou ainda mais, penetrando o homem mais longe, avançando pelos afluentes do grande rio até as cabeceiras e se infiltrando pelas estradas dos seringais de mato adentro. Cerca de 90.000 aventureiros assim se espalharam pelo alto sertão do Acre. Sempre dispersos, sempre numa raleza demográfica impressionante. A exceção de Manaus, que concentra [pg. 104] uma população urbana apreciável, em todo o alto Amazonas o homem se apresenta como um traço quase apagado, perdido na paisagem natural. Depois do fracasso da chamada civilização da borracha com o crack da economia local e o êxodo da maior parte das populações adventícias, o panorama do deserto humano se acentuou ainda mais. Hoje. para recomeçar a exploração econômica da região, qualquer programa só poderia ter possibilidades de sucesso se baseado na utilização de massas humanas apreciáveis. Já o General Kundt, que sonhara com a colonização da Amazônia e sua transformação num celeiro para o mundo, através de gigantesco plano de povoamento, salientava não se tratar de uma região a ser confiada ao povoador individual mas à organização colonizadora sistemática. O homem perdido na Amazônia é engolido irremediavelmente pela floresta. No entanto, para que se proceda à implantação de densas massas humanas nessa região fazem-se necessárias várias medidas preliminares. Que se disponham de reservas alimentares para sua subsistência e de recursos higiênicos para defendê-las das endemias locais, principalmente do impaludismo e da verminose. Já não resta dúvida de que é sempre possível conseguir-se o saneamento de zonas deste tipo. Na luta contra os insetos transmissores de febres, o homem dispõe hoje de armas admiráveis, de inseticidas, de repelentes e de medicamentos imunizantes de efeito seguro, e já não é uma utopia pensar na completa higienização de todo o Vale Amazônico. Preston James65 insiste no fato de que se as plantações de Belterra e Fordlândia não constituíram um argumento demonstrativo do valor econômico de iniciativas Rebêlo com preciosos e originais conceitos sobre o assunto. 65 James, Preston, E., Latin America, 1959. desse gênero, representaram, no entanto, uma demonstração eloqüente das possibilidades biológicas de aclimação humana em tais regiões. Realmente, ultrapassado o período da última guerra mundial, e com o advento e incremento da indústria da borracha sintética, houve o desinteresse dos concessionários de Belterra e Fordlândia, tendo revertido, mediante vultosa indenização, o patrimônio da Companhia Ford ao Governo Federal. Verificou-se, depois, que houve vários vícios de origem na planificação dos seringais, inclusive a escolha de tipo de solo e o descuido [pg. 105] relativo nos processos técnicos de seleção de linhagens e suas respectivas enxertias, para lograr-se um rendimento econômico indiscutível. Passaram, assim, Fordlândia e Belterra à órbita dos empreendimentos deficitários, com os quais o Estado anualmente despende consideráveis somas. A par dos problemas de ordem técnica, e a partir da encampação pelo Governo da União, iniciou-se naqueles locais o desenvolvimento doentio de uma mentalidade paternalista defeituosa, onde tudo deve ser resolvido pelo Estado, e a população, principalmente composta de operários agrícolas pagos pelos cofres públicos, burocraticamente, não se organizou em uma verdadeira comunidade rural. As fórmulas clássicas de associativismo e até mesmo de agricultura regional foram desprezadas, pois a própria farinha de mandioca era trazida de Santarém pela Administração. Não havia, como ainda hoje não há, produção significativa de gêneros alimentícios, e a monocultura da borracha, como toda monocultura, é o maior obstáculo anteposto à organização racional de uma comunidade agrícola progressista. Esse fato se reflete inclusive na pequena produção hortícola caseira, pois muito raros são os trabalhadores rurais que têm ou podem dedicar-se àqueles trabalhos, ainda que em Belterra ocorra com freqüência a presença de manchas da tão decantada “terra preta” do Tapajós, de qualidades extremamente favoráveis à agricultura, não só pelo seu teor de matéria orgânica como também de nitrogênio e cálcio, elementos de que tanto carecem os solos amazônicos. O grande mérito, porém, desse empreendimento, se não foi a demonstração da capacidade econômica de Ford, ou mesmo da administração pública, foi o de representar uma corajosa experiência nos trópicos, em escada ampla e com recursos financeiros consideráveis. Antes desta experiência, já Earl Parker Hanson66 tinha observado o ótimo estado sanitário dos padres salesianos da zona de S. Gabriel e de Barcelos, assim como o das populações brancas dos criadores da Ilha de Marajó. Os padres salesianos escapavam à epidemia de beribéri e mantinham-se hígidos, executando esforços físicos que pareciam impróprios à vida numa zona tropical. Hanson explicava o fato dizendo que estes padres, em sua maioria espanhóis das Astúrias, praticavam [pg. 106] o cultivo da horta e do pomar, dispondo o ano inteiro, em sua alimentação, de abundância de frutas, verduras e legumes verdes que lhes tornavam a dieta saudável e a saúde magnífica. A superioridade dos brancos de Marajó sobre os de outras zonas da Amazônia, também Hanson atribui a seus hábitos de criadores e a sua alimentação mais rica em produtos animais, em leite, queijo e carne. Vejamos diante deste quadro se seria possível obter na região amazônica recursos alimentares para o abastecimento de núcleos demográficos que viessem multiplicar muitas vezes a sua atual população. O problema está preso a alguns pontos fundamentais, dentre os quais se destacam: produção insuficiente (decorrência natural de uma intrincada gama de fatores negativos), dificuldades na conservação dos alimentos em condições climáticas desfavoráveis, absoluta falta de transportes regulares e baixa capacidade aquisitiva das populações. Todos esses aspectos se ligam uns aos outros de forma indissolúvel, não sendo possível resolver o problema sem atacá-lo em todos esses pontos. O aumento da produção local é um objetivo inteiramente ao alcance da realidade. Com a organização de núcleos coloniais estabelecidos, consoante planos econômicos e técnicos bem elaborados, pela exploração racional da pesca em grande escala, pelo melhoramento das raças existentes na pecuária local, pela introdução de modernos e adaptados métodos agronômicos de uso e conservação do solo, pela introdução da avicultura em bases de exploração doméstica, pelo aproveitamento dos frutos silvestres e industrialização caseira ou rural de frutas e hortaliças cultivadas, os recursos alimentares da Amazônia dariam de sobra tanto para suas atuais populações como para manter boas levas de imigrantes. O eixo do programa é a utilização racional das terras da região. É verdade que como já vimos, não se trata de solos muito férteis, mas, tampouco, de solos estéreis. 66 Hanson, Earl. “Social Regressions in the Orinoco and Amazon Basins”. in Georg. Rev., vol. C. F. Marbut,67 grande especialista no assunto, que fez parte da missão oficial norte-americana de estudos do Vale Amazônico, em 1923 e 1924, afirma que 70% dos solos da Amazônia permitem alguma espécie de cultivo agrícola. [pg. 107] Estudos mais recentes procedidos pelo Instituto Agronômico do Norte e por especialistas em problemas ligados à edafologia parecem vir confirmando, de certa forma, esse conceito. O principal problema técnico da agricultura das zonas equatório-tropicais está na justa medida de aplicação dos métodos específicos, em consonância com as exigências locais. Fracassos estrondosos já foram anotados na África Equatorial, pela utilização de técnicas agrícolas européias naqueles tipos de solo e sob as condições de clima reinantes. A Estação Experimental de Yangambi, por exemplo, nos dá conta de que após a derrubada da mata, com a erradicação dos tocos, cobertura e plantio de leguminosas, além de outros cuidados comuns à agricultura européia, o arroz, que no primeiro ano produziu uma média de 2.341 quilos, passou para 365 quilos por hectare, no terceiro ano de cultura. Ampliando as culturas de milho, feijão, arroz e mandioca estarão afastadas as crises de alimentos básicos. Pelo maior consumo de feijão, diminui-se a deficiência em ferro. Com o arroz sem ser polido, as deficiências em vitaminas do complexo B, e com o milho do tipo amarelo, o déficit em vitamina A. Déficit esse que também pode ser combatido pelo uso de certos óleos vegetais como o de buriti ou dendê, enriquecendo as gorduras que fazem parte da alimentação habitual. Cultivando ao lado da mandioca amarga os tipos de mandioca doce, e consumindo-os como verduras ou saladas, na forma como o fazem os habitantes do Congo Belga e faziam antigamente os nossos indígenas e negros escravos, serão reforçadas as taxas de vitamina B1 do regime local. O consumo não só dá raiz mas também dos brotos das folhas das diferentes variedades de mandioca constituía um hábito salutar que servia para melhorar a riqueza vegetal do regime, aumentando o seu teor em minerais e vitaminas. Era hábito dos grupos primitivos negros e índios, que os portugueses imitaram e até os holandeses, tão pouco plásticos, sempre desconfiados dos costumes da terra, também seguiram com entusiasmo. No livro de Joan Nieuhof, um dos agentes da Cia. das Índias Ocidentais, que viveu no Brasil durante vários anos de ocupação holandesa, 23. 1933. e “Are lhe Tropics Unhealthy?”. in Harper’s Mag., vol. 187. 1933. 67 Marbut, C. F. “The Soils of the Amazon Basin in Relation to Agricultural Possibilities”, in Geog. Rev., vol. 16, 1926. no Nordeste, encontra-se a seguinte referência a esses hábitos, infelizmente hoje esquecidos: “Os negros e os brasileiros trituram as folhas em um pilão e depois de cozê-las adicionam-lhe gordura ou manteiga e delas se servem como nós do espinafre. Os portugueses e até os holandeses [pg. 108] às vezes usam este prato: preparam também uma espécie de salada com essas folhas.”68 Industrializada a castanha-do-pará e retirado do produto o seu excesso de óleo — muito bom para exportação — poderia ser obtida uma pasta notavelmente rica em proteínas e, portanto, de uso bem indicado na alimentação (de teor protéico tão baixo) desta gente. Frutas como a banana, tão tipicamente equatorial, cultivada em maior escala, muito contribuiria para o levantamento do padrão dietético da região. As zonas circunvizinhas aos núcleos urbanos deveriam ser destinadas ao cultivo de verduras e legumes verdes para o abastecimento das cidades, conforme experiência já feita, com relativo sucesso, pelos habitantes das áreas de Cachoeira Esperança e Riberalta, nas cabeceiras do Rio Beni no alto Amazonas. E mais recentemente em Tomé-Açu, relativamente perto de Belém, onde vivem imigrantes de nacionalidade japonesa que se dedicam à produção de hortaliças, aves e ovos, além de pimenta-do-reino, juta e outros produtos. Os SUÍÇOS e bolivianos que ali vivem sé abastecem largamente de verduras e legumes plantados nas terras circunvizinhas pelos colonos japoneses, que se dedicam intensivamente a este tipo de agricultura, obtendo ótimo rendimento de suas plantações. É claro que, para se processar esta reforma estrutural, seria necessário muito maior número de braços do que dispõe atualmente a agricultura regional. Mas também haveria comida para muito maior número de bocas e se restabeleceria, deste modo, o equilíbrio econômico da região. Certas culturas só poderiam mesmo desenvolver-se com populações rurais mais densas.69 É o caso do arroz. O clima [pg. 109] amazônico poderia permitir uma 68 Nieuhof, Joan, Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil, tradução de Moacyr N. Vasconcellos, com introdução e notas de José Honório Rodrigues, São Paulo, 1942. 69 Em qualquer empresa agrícola de envergadura da região, o primeiro obstáculo que se apresenta é o da falta de braços. Num depoimento de Gastão Cruls, visitando a concessão Ford no Estado do Pará, lê-se o seguinte: “O maior óbice com que vem lutando a empresa é a falta de braços. Desde o início dos seus trabalhos, o máximo de homens que a concessão já pôde ter a seu serviço foi, na Fordlândia. em 1931, de 3.100. Esse número, entretanto, que mesmo agora precisaria ser mantido e até aumentado, caiu logo, e hoje não vai além de uns 1.700 trabalhadores rurais, assim distribuídos pelas duas plantações: 1.200 em Belterra e 500 na Fordlândia”. alta produção deste cereal, desde que se dispusesse de elemento humano suficientemente habilitado para seu laborioso cultivo. Para construção das bacias rizícolas, dos canais de irrigação, dos diques de proteção, enfim, de todas estas obras hidráulicas que os povos cultivadores de arroz se engenharam em criar para satisfazer as exigências biológicas da planta. Assim trabalhadas, as várzeas amazônicas poderiam produzir arroz numa escala semelhante ao delta do Tonquim na Indochina, que é das áreas rizícolas mais produtivas do mundo. Na realidade, nas várzeas do Guamá, na área experimental no Instituto Agronômico do Norte, já foi conseguido maior rendimento do que o de várias regiões do sul do país, onde aquele índice raramente é atingido. E não seria necessário dispor da alta densidade demográfica daquele delta do Oriente, com cerca de 380 habitantes por quilômetro quadrado, mas pelo menos com 10% deste número, o que está ainda muito acima da atual densidade amazônica. Além de braços, é indispensável equipamento — máquinas agrícolas adequadas àquela espécie de serviço, inclusive escavadeiras e valetadeiras tipo “Buldozzers” — para permitir o controle do regime de águas ou a drenagem do excedente desta, desde quando se fizer necessário. Um dos processos atualmente experimentados pelo Serviço Nacional de Pesquisas Agronômicas, através de seu Instituto especializado do Norte é o da colmatagem de igapós, através de uma rede de canais dispostos de tal maneira que a água do rio que vem ter ao igapó, enriquecida em sedimentos, dali se escoa após deixar depositado boa parte daquelas substâncias sedimentáveis. A colmatagem experimental do Maicuru, no entanto, parece processar-se muito lentamente, mas ainda assim é provável que chegue a resultados satisfatórios. Foi com alguns desses recursos técnicos que os colonos franceses conseguiram abrir enormes clareiras em florestas de tipo idêntico, a floresta da Costa do Marfim, e desenvolver nessa área grandes culturas, não só de cacau e de açúcar, mas também de mandioca, milho, batata-doce e outros produtos alimentícios. No caso da Amazônia, a SPVEA traçou um Plano Quinquenal para recuperação da região através da aplicação racional de recursos técnicos e humanos capazes de mudar a paisagem econômica da região. Infelizmente os resultados práticos obtidos estão longe de falar em sucesso, notadamente quanto à melhoria dos níveis de vida e de alimentação das populações locais. [pg. 110] Apesar dos investimentos feitos e dos esforços despendidos, continua a Amazônia a ser uma região marginal no conjunto da economia nacional, apresentando níveis de renda proporcionalmente tão baixos em relação aos níveis nacionais quanto no inicio da execução do Plano, o que só pode se explicar pela falta de capacidade e de idoneidade dos dirigente.» deste plano de recuperação regional. [pg. 111] III. ÁREA DO NORDESTE AÇUCAREIRO 1. Poucas regiões do mundo se prestam tão bem para um ensaio de natureza ecológica como a do Nordeste açucareiro, com sua típica paisagem natural, tão profundamente alterada, em seus traços geográficos fundamentais, pela ação do elemento humano. Com seu revestimento vivo quase que completamente arrasado e substituído por um outro inteiramente diferente: região de floresta tropical, transformada pelo homem em região de campos abertos, teve o Nordeste a vida do seu solo, de suas águas, de suas plantas e do seu próprio clima, tudo mudado pela ação desequilibrante e intempestiva do colonizador, quase cego às conseqüências de seu atos, pela paixão desvairada que dele se apoderou, de plantar sempre mais cana e de produzir sempre mais açúcar. Quatro séculos de ação tão extremada, a serviço de um só objetivo, deram ao processo de transformação econômico-social do Nordeste o sentido de uma dramática experiência sociológica, servindo às mil maravilhas para demonstração viva de uma infinidade de pontos de vista fundamentais em ecologia. Na paisagem nordestina a expressão geográfica é tão rica de significação e tão impregnada de história que os seus traços componentes se destacam sempre bem ordenados, em função do elemento criador de sua vida econômica — a cana-de-açúcar. Da cultura desta planta. Da indústria açucareira e do comércio. E esta zona geográfica, com cor local tão característica e com tão definida unidade cconômico-social, que constitui a segunda área alimentar a ser estudada em nosso ensaio. Geograficamente, [pg. 113] abrange uma estreita faixa de terrenos de decomposição e de sedimentação, estendendo-se ao longo de todo o litoral do Nordeste brasileiro, do Estado da Bahia até o Ceará. Faixa com a largura média de 80 quilômetros, ora se estreitando entre o mar e os tabuleiros da zona agreste, ora se alargando em várzeas, brejos e colinas ondulantes, sem nunca ultrapassar, no entanto, a largura máxima de 30 quilômetros. Zona de solo rico e profundo e com uma relativa abundância de chuvas, era primitivamente recoberta por um revestimento de floresta do tipo tropical, não tão luxuriante e cerrada como a floresta úmida amazônica, mas por isto mesmo muito mais fácil de se deixar penetrar e conquistar pelo homem. Quando se estudam as condições de alimentação dessa área, o que logo surpreende o investigador é o contraste marcante entre as aparentes possibilidades geográficas e a extrema exigüidade dos recursos alimentares da região. Que a região amazônica seja uma região de fome justifica-se até certo ponto, pela luta desigual entre o homem desarmado e as forças extremamente agressivas do meio geográfico pobre em recursos alimentares. A fome na Amazônia decorre principalmente da pobreza natural da floresta equatorial em alimentos. Já no Nordeste o fenômeno é chocante porque não se pode explicá-lo à base de razões naturais. As condições tanto do solo quanto do clima regionais, sempre foram as mais propícias ao cultivo certo e rendoso de uma infinidade de produtos alimentares. O solo da região, em sua maior parte do tipo massapê — terra escura, gorda e pegajosa, que recobre em espessa camada porosa os xistos argilosos e os calcários do Cretáceo — é de uma magnífica fertilidade. Solo originariamente de qualidades físico-químicas privilegiadas, com uma grande riqueza de humo e de sais minerais. O clima tropical, sem o excesso de água da região amazônica, com um regime de chuvas, de estações bem definidas, também contribui favoravelmente para o cultivo fácil e seguro de cereais, frutas, verduras e leguminosas de uma grande variedade. A própria floresta nativa tinha uma excepcional abundância de árvores frutíferas, e outras, trazidas e transplantadas de continentes distantes, se aclimataram muito bem, inteiramente a gosto do novo quadro ecológico, e aí continuaram produzindo, como em suas áreas naturais. [pg. 114] É o caso da fruta-pão, trazida das distantes ilhas da Oceania; do coco, da manga e da jaca, transplantados do Oriente longínquo e integrados na paisagem nordestina, como se fossem plantas nativas, produzindo frutos excepcionalmente valiosos para a alimentação humana. Tudo brotava com tamanho ímpeto e produzia com tanta exuberância nessas manchas de terra gorda do Nordeste que não se pode acusar de descabido exagero a famosa frase do verboso escritor Pero Vaz de Caminha — de que “a terra é em tal maneira dadivosa que em se querendo aproveitar dar-se-á nela tudo”. Infelizmente não se quis... não o quis o coloniza-dor português. De nada valeram as grandes possibilidades naturais que foram malbaratadas e inteiramente desaproveitadas em sua capacidade de fornecer alimentos às populações regionais. O geógrafo Preston James, analisando a ação do homem como fator geográfico, faz uma afirmação que representa, até certo ponto, grave restrição à inteligência humana. Afirma este cientista que “o homem, em sua ação modificadora do meio ambiente, atua às vezes com inteligência, mas na maioria dos casos de maneira cega, sem nenhuma premeditação, satisfazendo apenas os seus interesses imediatos”1 Parece à primeira vista ser deste tipo de imediatismo cego a conduta colonizadora dos portugueses no Nordeste. 2. Descobrindo cedo que as terras do Nordeste se prestavam maravilhosamente ao cultivo da cana-de-açúcar, os colonizadores sacrificaram todas as outras possibilidades ao plantio exclusivo da cana. Aos interesses da sua monocultura intempestiva, destruindo quase que inteiramente o revestimento vivo, vegetal e animal da região, subvertendo por completo o equilíbrio ecológico da paisagem e entravando todas as tentativas de cultivo de outras plantas alimentares no lugar, degradando ao máximo, deste modo, os recursos alimentares da região. Mas, se em verdade essa conduta colonizadora acarretou, como veremos mais adiante, graves prejuízos para a estrutura biológica dos grupos humanos que aí se fixaram e se desenvolveram, por outro lado deu estabilidade econômica à nova sociedade em [pg. 115] formação e permitiu a sua estruturação num regime agrário bem fixado e enraizado na nova terra.2 Aparentemente a cana constitui até um elemento de proteção da terra contra os perigos da erosão. Recobrindo o solo com o revestimento vegetal de sua abundante 1 James. Preston. no Prefácio ao livro de Josué de Castro, Geografia Humana, Editora Globo. 1939. 2 “A agricultura, iniciada regularmente na América portuguesa ao tempo das capitanias, marca a fixação definitiva do colono à terra. A economia agrícola. atividade sedentária por excelência, aqui também foi o esteio da conquista e da colonização. Mais tarde, quando se vai cruzar o país em todos os sentidos — nos arrancos das bandeiras, na cata do ouro, na. caça ao índio, na busca de terras para a criação — isto se faz sempre partindo daquele ponto de apoio que eram os latifúndios agrícolas, núcleos da sociedade colonial, pontos de irradiação dos mo-vimentos todos que. no tempo, traçaram os lineamentos sobre os quais ia se erguer a nação.” L. A. Costa Pinto. “Lutas de Família no Brasil”. in Revista do Arquivo Municipal de São Paulo. n.° 88. 1943. folhagem e consolidando sua estrutura com suas raízes intrincadas, a cana tem sido mesmo apontada por alguns como uma planta indicada na luta contra a erosão dos solos tropicais. Indicação pouco feliz porque hoje se sabe que a perda da fertilidade é um fator importante no mecanismo da erosão e a cana esgota rapidamente a fertilidade dos solos, alterando sua estrutura e diminuindo sua resistência às forças de desagregação. Contudo, mais destrutiva do que esta ação direta da cana sobre o solo é a sua ação indireta, através do sistema de exploração da terra que a economia açucareira impõe: exploração monocultora e latifundiária.3 Deve-se, sem nenhuma dúvida, ao desenvolvimento da cana-de-açúcar, com todos os seus nocivos exageros de planta individualista, com sua hostilidade quase mórbida por outras espécies vegetais, grande parte do trabalho de enraizamento e consolidação da colonização portuguesa nos trópicos, a qual já há cerca de um século vinha ensaiando outros processos menos frutíferos, sem conseguir, no entanto, estabelecer nada de mais firme do que simples feitorias comerciais nas costas da África, da América e do Oriente. [pg. 116] Trazendo a cana-de-açúcar para as terras do Brasil, já o português, conhecia bem essa planta, com as suas exigências específicas, desde que havia utilizado as ilhas atlânticas da Madeira e do Cabo Verde como verdadeiras estações experimentais. E conhecia também os segredos do comércio açucareiro, que se apresentava, no momento, o mais promissor do mundo. Com esta experiência da agricultura e do comércio do açúcar, o português sabia que este produto só poderia constituir uma atividade econômica compensadora se produzido em grande escala, com terra suficiente para o cultivo extensivo da planta, com mão-de-obra abundante e barata para o trabalho agrário e com dinheiro bastante para o estabelecimento da sua indústria em bases de um verdadeiro monopólio do produto. Por isto organizou ele capitais os mais abundantes dos até então trazidos para estas bandas, impulsionou a vinda dos escravos da costa d’África e se assenhoreou de terra boa e 3 Sobre a intima correlação entre erosão e fertilidade do solo consulte-se o notável trabalho de G. V. Jacks — “Soil” — 1954, e sobre a experiência portuguesa do cultivo da cana nas ilhas atlânticas, o livro de Victor Viana — Formação Econômica do Brasil. Sobre a erosão no Nordeste Brasileiro veja-se Soil Erosion Survey — The Conservation Foundation and F.A.O. — 1954. suficiente ao empreendimento ousado. Lançado na aventura açucareira, o colonizador sabia que se tinha de entregar de corpo e alma à cana-de-açúcar, sob pena de fracassar em sua empresa. E a cana se mostrou mais uma vez, como já se tinha mostrado antes, capaz de dar muito lucro, mas de exigir sempre muita coisa em compensação. De exigir uma escravidão tremendamente dura, não só do homem mas também da terra a seu serviço. Homem e terra que se tiveram de despojar de inúmeras prerrogativas para satisfazer o apetite desadorado da cana. Apetite insaciável de terras bem preparadas e bem drenadas para o crescimento da planta. Já afirmou alguém, com razão, que a exploração da cana-de-açúcar se processa num regime de autofagia: a cana devorando tudo em torno de si, engolindo terras e mais terras, consumindo o humo do solo, aniquilando as pequenas culturas indefesas e o próprio capital humano, do qual sua cultura tira toda a vida. E é a pura verdade. A história da economia canavieira no Nordeste, como em outras zonas de monocultura da cana, tem sido sempre uma demonstração categórica desta capacidade que tem a cana de dar muito no princípio para devorar depois quase tudo, autofagicamente. Donde a caracterização inconfundível das diferentes áreas geográficas açucareiras, com seu ciclo econômico do açúcar, com as fases de rápida ascensão, de esplendor transitório e de irremediável decadência. Ciclo este que se processa tanto mais rapidamente [pg. 117] quanto menores os recursos de terra disponíveis. Daí a semelhança de aspectos entre áreas geográficas diferentes como o Haiti, Cuba, Porto Rico, Java e o Nordeste brasileiro. Numa dessas áreas de monocultura açucareira. por seu caráter de pequena ilha, este processo de transformação econômico-social se processou com tal rapidez e com tamanha nitidez em suas diferentes fases, que pode servir como ilustração viva para caracterização sociológica das áreas açucareiras do mundo: é o caso da pequena ilha de Barbados, nas Antilhas. Ramiro Guerra y Sanchez,4 em estudo sobre a influência do açúcar no povoamento do mar das Caraíbas, põe em destaque, logo no começo do seu trabalho, o caso de Barbados, com suas 160 milhas quadradas de extensão e seus 195.000 habitantes, como uma espécie de laboratório experimental de sociologia onde a introdução da cana provocou uma série de intempestivas 4 Guerra y Sanchez, Ramiro, Azúcar y Poblacion en las Antillas. terceira edição. Havana. 1944. reações econômicas e sociais facilmente identificáveis pelo investigador. Gilberto Freyre,5 quando estudou o Nordeste açucareiro, invocou também o paralelo entre Barbados e Pernambuco desde que a economia dessa ilha foi como um broto derivado da nossa. influenciada que foi pelos processos técnicos usados estão no Nordeste do Brasil. De fato, referem os historiadores que foram marinheiros ingleses voltando de Pernambuco para a Europa, que, de passagem em 1625 por Barbados, verificaram as condições extremamente favoráveis da ilha ao cultivo da cana e ai introduziram o seu plantio. A pobreza da técnica por eles utilizada não permitiu, no entanto, uma produção em base econômica e foi só a partir de 1655 que os holandeses e portugueses expulsos do Brasil introduziram melhor técnica e deram grande impulso à indústria açucareira de Barbados, segundo nos informa Von Lippman.6 Onde se encontra maior riqueza de detalhes sobre a evolução histórica da economia do açúcar nessa ilha é na obra magistral de Vincent T. Harlow.7 publicada em Oxford, em [pg. 118] 1926. Através dos dados e da documentação que Harlow apresenta, verifica-se que a princípio a colônia de Barbados se fizera à base da policultura, divididas as suas terras em pequenas propriedades produtoras de algodão, tabaco, frutas cítricas, gado vacum e suíno e outros produtos de sustentação. Nesta primeira fase de sua história, compreendida entre 1625 e 1645. a população de raça inglesa cresceu bastante, subindo nas seguintes proporções: 1.400 habitantes em 1628, 6.000 em 1656, e 37.000 em 1643. Com o desenvolvimento da cana-de-açúcar. que se processou nos meados do século XVII, a policultura foi sendo asfixiada, as pequenas propriedades agrícolas engolidas pelo latifúndio, as reservas alimentares da ilha ficando cada vez mais difíceis. Esta revolução econômica tão desfavorável deu lugar ao êxodo em massa, para outras terras, dos habitantes de raça branca. Começou então a descida da curva demográfica: em 1667 só havia 20.000 brancos na ilha, em 1788, 16.000. em 1807. 15.500 e atualmente cerca de 15.000. O braço escravo veio substituir o do branco, constituindo a base do trabalho agrário. Assim se desenvolveu essa economia latifundiária e escravocrata, com um esplendor transitório que durou de 1650 a 1685. 5 Freyre. Gilberto. Nordeste. 1937. 6 Lippman. Edmund O. Von. História do Açúcar. Rio. 1941-42. 7 Harlow. V.. A History of Barbados. Oxford. 1926. entrando a seguir em decadência. Já nesta época estava a ilha esgotada. Suas florestas, que a princípio eram tão densas que fora difícil achar espaço para a fundação da colônia,8 estavam inteiramente devastadas, todas as culturas de sustentação estagnadas e o açúcar economicamente arruinado por não ser mais possível produzi-lo a preços capazes de agüentar a terrível concorrência internacional. Esta é a história fugaz do açúcar em Barbados, contada por Harlow e confirmada em seus traços mais característicos por outros historiadores idôneos. Em Jamaica, em Trinidad, em Cuba e noutras Antilhas açucareiras, o processo seguiu as mesmas diretrizes, apenas num ritmo menos acelerado, como se pode verificar através dos estudos de um Law Mathieson,9 de um Ragatz,10 de um Cundall,11 [pg. 119] e de outros historiadores da colonização inglesa no mar das Caraíbas. A digressão que fizemos para o processo evolutivo da economia açucareira em outras zonas teve por fim evidenciar que a fraqueza do colono português diante do ímpeto avassalador da cana não foi específica deste colonizador.12 Nenhum outro colono, nem o inglês de Barbados, nem o francês do Haiti, nem o espanhol de Cuba pôde escapar à sua esmagadora influência. Ao contrário, deixaram-se dominar até certo ponto ainda mais do que o português. Porque, como teremos ocasião de ver mais adiante, se na luta para adaptar-se ao meio tropical, o português cedeu com bastante plasticidade às contingências de certas forças naturais, soube também, por outro lado, escapar tecnicamente a muitas delas, através do uso inteligente de certos fatores de aclimatação que os colonos de outras raças e de outras culturas não souberam manejar com tanta precisão, fracassando por isso em suas tentativas de levar a efeito uma colonização de enraizamento em terras tropicais. “Enquanto os trabalhadores enfrentam condições de vida e de trabalho que levam as mais das vezes ao fracasso, as classes altas têm mostrado uma calamitosa 8 Lippman. Edmund O. von. op. cit., 1932. 9 Mathieson, Law. British Slavery and its Abolition. Londres, 1926. 10 Ragatz. L. J., The Fall of the Planter Class in the British Caribbean, Nova Iorque, 1938. 11 Cundall, F., Historie Jamaica, Londres, 1915. 12 Dentro do método geográfico que norteia o nosso trabalho, teremos que lançar mão várias vezes desses estudos comparativos de regiões com traços naturais ou culturais semelhantes em obediência ao princípio da geografia geral entrevisto por Ritter e expresso mais claramente por Vidal de La Blanche nos seguintes termos: “O estudo geográfico de um fenômeno pressupõe a preocupação constante de fenômenos análogos que se apresentem em outras partes do globo.” Este princípio tão fecundo nos estudos de geografia social nos levará a lançar mão de inúmeras comparações entre diferentes áreas de cultura. incapacidade para se adaptarem ao meio tropical, através dos recursos vitais da habitação, vestuário e regime alimentar”; assim fala sobre os colonizadores ingleses nos trópicos um dos mais profundos e bem informados estudiosos dos problemas coloniais, A. Grenfell Price, em “White Settlers in the Trópico” (American Geog. Society, special publication n.° 23, Nova Iorque, 1939). No estudo da fracassada tentativa de colonização holandesa no Nordeste, numa serena interpretação histórica da guerra que aí se travou entre o invasor batavo e os portugueses já senhores da terra, terminada pela derrota e expulsão do holandês, devemos levar em alta conta este importante fator — a inabilidade do colono nórdico para [pg. 120] dominar os ásperos rigores do clima tropical, para se ajustar às suas exigências, para tolerar as suas injunções. O fator aclimatação foi decisivo nestas batalhas travadas no Nordeste pela posse das terras do açúcar, funcionando o “General Calor”, nesta guerra, com a mesma decantada eficiência com que atuou o “General Inverno” na invasão da Rússia pelos malogrados exércitos de Napoleão e pelas hordas nazistas de Hitler. Vimos há pouco como, à força das contingências do meio natural e cultural, os ingleses foram expulsos de Barbados, ficando reduzidos a um punhado de administradores, de exploradores do trabalho nativo num tipo de colonização de simples exploração administrativa, enquanto que o português do Nordeste brasileiro, ao plantar a cana no solo de massapê, também se plantou definitivamente na região, num tipo de colonização de enraizamento tropical da raça, sem paralelo em nenhuma outra zona do mundo, à exceção talvez, e em escala bem menor, de algumas Antilhas colonizadas pelos espanhóis. 3. O processo de transformação e de desvalorização que a cana realizou no Nordeste começou pela destruição da floresta, abrindo com as queimadas as clareiras para seu cultivo, alargando depois estes claros para extensão de seus canaviais por terras sem fim. No Nordeste, se até os meados do século passado o relativo atraso dos processos fabris do açúcar, com sua produção por unidade, limitada por seus mecanismos rotineiros, não levou a extensão das culturas a ocupar inteiramente toda a área da mata, deixando algumas reservas, embora escassas, de terra, a partir de 1870, com o estabelecimento dos chamados “engenhos centrais”, precursores das grandes usinas atuais, a absorção das terras pelo latifundiarismo progrediu assustadoramente, acentuando a miséria alimentar nesta zona. Nestes últimos cinqüenta anos as condições de alimentação da zona açucareira chegaram ao grau mais acentuado de pobreza, e as medidas tomadas até hoje para remediar a situação quase nada têm conseguido. Sobre o papel ainda mais absorvente desta nova etapa da indústria açucareira, assim nos fala Caio Prado Júnior: “A remodelação dos velhos engenhos se fazia difícil, não só porque na crise em que se debatiam não lhes sobravam recursos suficientes para isto, como porque as áreas que ocupavam eram insuficientes para manter uma unidade fabril do vulto exigido [pg. 121] pelas novas necessidades técnicas. Recorreu-se então aos chamados engenhos centrais, grandes unidades destinadas a moer a cana de um conjunto de propriedades... A maior parte dos engenhos se instalou com todos os aperfeiçoamentos da época. Apesar disto, não foi grande seu sucesso. Atribuiu-se isto, e provavelmente com razão, à irregularidade do fornecimento da cana. As antiquadas e rotineiras lavouras não mantinham um ritmo de produção compatível com as necessidades do processo industrial. Isto tanto na quantidade como na qualidade da cana fornecida. Não tardou, portanto, que os engenhos centrais começassem a suprir as falhas do fornecimento com a produção própria... Iniciava-se assim o processo de concentração que liquidaria com o tempo os antigos engenhos.”13 A destruição da floresta alcançou tal intensidade e se processou em tal extensão que, nesta região chamada da mata do Nordeste, por seu revestimento de árvores quase compacto, restam hoje apenas pequenos retalhos esfarrapados deste primitivo manto florestal. No Estado de Pernambuco, onde a devastação alcançou o máximo, a área atualmente recoberta pelas florestas não atinge, conforme avaliação de um estudioso do assunto, o agrônomo Vasconcelos Sobrinho,14 a 10% da superfície total do estado. Resta apenas um resíduo da mata primitiva já sem nenhuma expressão econômica.15 Com a destruição da floresta contribuiu também a monocultura para o empobrecimento rápido, o esgotamento violento do solo, 13 Prado Júnior, Caio, História econômica do Brasil. 1945. 14 Vasconcelos Sobrinho, Ensaio de Fotogeografia de Pernambuco, Recife, 1936. 15 Gileno De Carli calcula que para a produção de açúcar de Pernambuco se faz necessário um consumo anual de lenha de cerca de 1 milhão de toneladas. Lenha obtida pela devastação das matas do Estado.. (Aspectos Açucareiros de Pernambuco, 1940). diminuindo de um lado a renovação do seu húmus formado pela decomposição da matéria orgânica vegetal e, de outro lado, facilitando ao extremo seus processos de lavagens exageradas do solo e sua conseqüente erosão. Erosão que constitui um perigo tremendo, uma verdadeira ameaça de fome progressiva na região, representando um fenômeno de proporções mais alarmantes do que possam pensar os menos avisados. Alarmantes principalmente por seu caráter de processo irreversível, [pg. 122] não dispondo o homem de nenhum recurso para refazer a riqueza do solo que a água arrasta para o mar, nem mesmo lançando mão dos dispendiosos processos de fertilização. A verdade é que o fertilizante representa para a vida da planta apenas um complemento de sua nutrição. Como não é possível alimentar o ser humano apenas com preparados de vitaminas e sais minerais, que constituem complementos alimentares, também o adubo não pode refazer inteiramente o solo que foi dissolvido e arrastado pelas águas. Pode apenas corrigir algumas deficiências desse solo. Em síntese, para que o fertilizante seja eficiente, é preciso haver solo para ser fertilizado e a conseqüência final irremediável da erosão é a extinção de todo o solo arável, do top-soil, ficando apenas no local a rocha estéril. Um grande especialista nestes assuntos de solo, Ward Shepard, do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, querendo chamar a atenção dos norte-americanos para essa calamidade, cujos efeitos nocivos ele compara aos das guerras,16 afirma que só nas zonas agrícolas do seu país é arrastada pela erosão, para os rios e para o mar, a tremenda massa de três milhões de toneladas de solo por ano. Dez anos de cultivo intempestivo do continente americano tornaram estéreis 40 milhões de hectares outrora cultivados, uma área correspondente à da França. É esse mesmo especialista, sempre tão preocupado pelos estragos da erosão, que afirma terem sido intensificados de maneira alarmante os seus efeitos no continente 16 Comparando os efeitos da erosão aos da guerra, Shepard escreveu: “O homem moderno aperfeiçoou dois inventos capazes de aniquilar por completo a civilização. Um deles é a guerra total, o outro é a erosão mundial do solo. Dos dois, o mais insidioso e fatalmente destrutivo é. sem nenhuma dúvida, a erosão. A guerra desequilibra ou destrói o meio social que é matriz da civilização; a erosão do solo destrói o meio natural que constitui o seu fundamento. A guerra é mais espetacular porque faz ruir cidades, tronos e potências. Mas estas coisas podem ser refeitas. A erosão do solo que, virtualmente, vai destruindo ou arrasando as terras, das quais dois bilhões de indivíduos dependem para seu pão de cada dia. alcança uma etapa irreversível na qual o homem e as suas obras serão enterrados sob as areias amontoadas do esquecimen-to”. (Food or Famine — The Challenge of Erosion, 1945). americano pela introdução dos tipos de agricultura comercial, desenvolvidos pelos colonos europeus: agricultura do algodão, do fumo e do açúcar. E refere-se às terras do Nordeste do Brasil como das [pg. 123] mais sacrificadas e de mais crítica situação em face do fenômeno erosivo. De fato, os pequenos rios que atravessam a região nordestina e que a princípio se haviam mostrado tão dóceis e serviçais, ajudando sobremodo o colono a conquistar a terra, a desenvolver aí a economia agrária da cana. como acentua Gilberto Freyre,17 logo que sentiram as suas margens desprotegidas de árvores, pelo desflorestamento abusivo, e despidos de vegetação os seus vales, transformaram-se, da noite para o dia, em rios devastadores, rios ladrões de terra, arrancando o solo tímido das planícies e levando, com as águas das enxurradas, os elementos minerais dissolvidos, transformando-se, enfim, num bárbaro fator de empobrecimento do solo. E não é só no Nordeste que a erosão degrada o solo brasileiro. Também nos cafezais paulistas, considerados como a cultura que tem as maiores possibilidades de empregar boas técnicas agrícolas, a erosão ameaça aniquilar em poucos anos extensas áreas hoje cobertas de café. Avelar Marques, no seu trabalho Conservação do Solo em Cafezal, assevera mesmo que “os prejuízos causados pela erosão acelerada do solo nos cafezais brasileiros indevidamente protegidos são de tal extensão que afetam diretamente o patrimônio e a segurança da coletividade, refletindo-se nefastamente na estabilidade econômica e social do país”. Outras culturas, como a. do algodão, proporcionam, segundo dados da Seção de Conservação do Solo do Instituto Agronômico de Campinas, uma perda anual de solo da ordem de 34 toneladas por hectare cultivado. Weston Price18 considera este tipo de empobrecimento regional dos solos um sério problema para o mundo futuro quando afirma: “O mais sério problema a enfrentar pelas gerações futuras é o irremediável handicap da pobreza qualitativa dos alimentos causada pela pobreza de minerais do solo.” O antropólogo baseia tal afirmação numa série de estudos e observações que demonstram a íntima correlação 17 “Muito deve o Brasil agrário aos rios menores, porém mais regulares: onde eles docemente se prestaram a moer as canas, alagar as várzeas, a enverdecer es canaviais, a transportar o açúcar” (Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala. 1933). 18 Price, Weston A., Nutrition and Physical Degeneration, 1939. entre a composição química dos produtos agrícolas e a riqueza mineral [pg. 124] do solo, assim como em estudos antropológicos que revelam a decadência progressiva de inúmeros grupos humanos submetidos a esta também progressiva degradação de seus recursos alimentares.19 Dessas observações, a mais expressiva é a que resulta dos importantes achados antropológicos do Professor Hooton, da Universidade de Harvard, o qual, estudando esqueletos de um grupo — o grupo dos Pecos — que habitou as planícies ocidentais americanas, verificou que através de centenas de anos se foram intensificando as deformações esqueléticas, as artrites e as cáries dentárias nesse grupo, assim como se pronunciando a redução na sua estatura, tudo ligado a um progressivo empobrecimento do solo que o grupo ocupava. Outra conseqüência funesta do desflorestamento da região tem sido a intensificação do seu progressivo dessecamento com as terras privadas do importante trabalho de regularização e fixação da umidade do solo, que a floresta sempre desempenha. Se o revestimento arbóreo não modifica o regime das chuvas, como afirmam com certo exagero alguns agrologistas, influi, no entanto, de maneira decisiva, na formação das reservas subterrâneas de água. Água que é indispensável ao equilíbrio da vida regional, evitando que a região entre em decadência. Já hoje as terras nordestinas estão a exigir, por toda parte, a irrigação constante, a fim de que a cana continue a produzir em forma compensadora. Autores como o botânico Alberto Loefgren e o geógrafo francês Dessoliers acreditam na capacidade da floresta em regular o grau de precipitação pluviométrica de uma região. São de Loefgren as seguintes palavras: “é conhecida a grande im-portância das matas nas condições ecológicas e climatológicas de uma região e na sua qualidade de reguladoras das precipitações” (Notas Botânicas, 1923). Dessoliers, no livro Le Refoulement du Sahara, atribui a aridez progressiva de certas áreas da África à destruição de massas florestais na região. Estes pontos de vista não foram, no entanto, confirmados pelos estudos de categoria experimental realizados mais recentemente, [pg. 125] levando os modernos geógrafos a considerarem a interferência da floresta sobre as precipitações pluviométricas mais como um fato de 19 Consulte-se o trabalho Nutrition of Plants, Animais, Man — in Centennial Symposium, Fevereiro 1955 — Michigan University. superstição popular do que de comprovação científica.20 Mas não foi só atuando sobre as condições edáficas da região, sobre a riqueza e qualidade do solo, que o desflorestamento se constituiu em fator de degradação do Nordeste, mas também fazendo minguar os recursos da fauna regional, cuja vida estava tão intimamente ligada à própria vida da floresta.21 Recursos representados pelas caças que aí se encontravam e que eram importantes fontes de abastecimento do índio e mesmo do colono, nos seus primeiros tempos de vida na nova terra. Pero de Magalhães Gandavo22 afirmou que “uma das coisas que sustenta e abasta muito os moradores desta terra do Brasil é a muita caça que há nestes matos, de muitos gêneros e de diversas maneiras”. E falava nos veados e porcos selvagens, coelhos e antas, pacas e tatus. Estes e outros elementos da fauna nordestina foram sendo pouco a pouco dizimados, afugentados pelas coivaras, se escondendo nas nesgas de mata cada vez mais ralas, mais limitadas, até quase se extinguirem de vez. O que é mais grave é que não foi apenas destruindo o que havia de aproveitável para a alimentação regional — riquezas da fauna, da flora e do próprio solo — que a cana foi prejudicial, mas também, e principalmente, dificultando e hostilizando em extremo a introdução de recursos outros de subsistência, que encontraria nessas terras tropicais condições as mais propícias ao seu desenvolvimento. A monocultura é uma grave doença da economia agrária, comparada por Guerra y Sanchez à gangrena que ameaça sempre invadir o organismo inteiro, e por Grenfell Price ao câncer, [pg. 126] com o desordenado crescimento de suas células se estendendo impunemente por todos os lados.23 4. De fato, os primeiros colonos portugueses que aportaram às costas do 20 Déffontaines, Pierre, L’Homme et la Forêt, 1933. 21 “Não se transforma uma floresta em savana sem graves alterações na fauna regional. Não se pode abrir estradas, nem cultivar campos sem aniquilar ou rechaçar inúmeras espécies animais. Estas são perseguidas e destruídas, ou se retiram da região. assustadas e desorienta-das pela presença do homem.” (Françóis Picard, Les Phenomènes So-ciaux chez les Animaux. Paris, 1933.) 22 Gandavo, Pero de Magalhães. Tratado da Terra e Gente do Brasil, edição da Academia Brasileira de Letras, Rio, 1924. 23 Sobre o desequilíbrio ecológico que o homem pode provocar, agindo sobre o meio ambiente como se fosse um parasita patogênico, um agente de doença do solo — man as disease organism — consultem-se duas obras fundamentais: Edward Hyams — Soil and Civilisation. 1952 e B. Frank e A. Nethoy — Water. Land und People. 1950. Nordeste brasileiro traziam consigo a tradição de um bom tipo de regime alimentar. Tipo de alimentação ibérica, caracterizado principalmente por sua riqueza e variedade de vegetais — de frutas, legumes e verduras — produtos do cultivo intensivo, fino e delicado da horta e do pomar, cultivo introduzido na península pelos invasores árabes e transmitido através de séculos a portugueses e espanhóis. Com a invasão da Península Ibérica pelos árabes, no começo do século VIII, iniciou-se em terras européias um novo tipo de agricultura, baseado na policultura rotativa, intensiva e com irrigação. Gordon East, em sua Historical Geography of Europe, acentua o fato de que na parte muçulmana da Espanha, país dos Ândalos — donde se derivou o nome de Andaluzia —, os invasores se organizaram com “notável habilidade para explorar o potencial agrícola da Espanha meridional... as tamareiras, as laranjeiras, as granadinas, as amendoeiras, enchiam os seus jardins”. Quando o domínio árabe atingiu o apogeu, nos meados do século X, a agricultura ibérica não tinha rival na Europa. Através da tradução francesa, feita por Dosy em 1873, do texto árabe de um calendário de Córdoba do ano de 961, resumido no livro de Levi-Provençal, Espagne Muçulmane, verifica-se a riqueza dos métodos agrícolas e a variedade de culturas que ali se desenvolviam com sucesso. Até a era das grandes descobertas, Portugal e Espanha eram essencialmente agrícolas. Portugal, como uma “monarquia agrária”, lavrando a terra pobre com o seu arado.24 Infelizmente, este tipo ibérico de alimentação tão equilibrado e principalmente tão bem adaptado às condições de vida tropical, constituindo, até certo ponto, um verdadeiro fator técnico de aclimatação, não se conseguiu manter no Brasil. [pg. 127] Dentre os fatores técnicos essenciais ao mecanismo da aclimatação, e que são a habitação, o vestuário e a alimentação, o português utilizou com inteligência os dois primeiros, mas quase não deu importância ao último.25 De fato, em matéria de habitação o português agiu nos trópicos com manifesta superioridade sobre os colonos de outras raças quando transplantou para as terras quentes da América o tipo de casa grande, com largas janelas, varandas e pátios, num arranjo arquitetônico em que transparecem, associadas, influências árabes e romanas. Quando construiu casas 24 Azevedo, J. Lúcio de. Épocas de Portugal econômico, 1947. 25 Sobre os fatores técnicos de aclimatação e sua utilização pelo português, leia-se o capítulo “Alimentação e Aclimatação” do nosso livro Alimentação e Raça, publicado em 1936. frescas que ajudaram na luta contra o calor, com a mesma eficiência das casas mouriscas levantadas nos desertos do norte da África pelos colonizadores árabes. A sua capacidade de identificar-se com os povos nativos, imitando-lhes certos hábitos, levou também o português a se despojar dos excessos de vestuário no trabalho tropical, facilitando-lhe muito a aclimatação. O trabalho realizado nu da cintura para cima ou com uma simples camisa de algodãozinho, vestida por fora das calças, constituiu um elemento de grande valor na regulação energética sob a ação do novo clima. Tais tipos de habitação e de vestuário contribuíram, pois, largamente, para a conquista dos trópicos e permitiram que se constituísse nestas terras baixas e, portanto, sem o privilégio da altitude que sempre ameniza os rigores do calor, um tipo de colonização de enraizamento, de completa identificação do homem com a terra. Se estes fatores ajudaram na formação da sociedade agrária do Nordeste, o fator alimentar, descuidado e mal utilizado, contribuiu muito para sua desintegração, para a decadência precoce dessa sociedade, com seus senhores amolecidos por um regime com excessos de açucarados, mas deficiente em seus princípios essenciais, e com a massa de escravos e depois de camponeses e de operários definhando a olhos vistos, morrendo de fome quantitativa e qualitativa. O primeiro obstáculo à transmissão e fixação de hábitos alimentares sadios ao novo grupo humano em formação foi a impossibilidade de encontrar ou de produzir nestas terras quentes dos trópicos o trigo, alimento básico da área alimentar mediterrânea, de clima temperado, e a sua substituição forçada [pg. 128] pela mandioca indígena. Assim se procedeu ao primeiro rebaixamento no valor nutritivo do regime alimentar do Reino. A farinha de mandioca, que um político nordestino chamou uma vez demagogicamente de pão dos pobres, é muito inferior, tanto em seu teor protéico, como mineral e vitamínico, à farinha de trigo de que é fabricado o pão dos ricos. Procurando se ajustar às novas contingências naturais, o colonizador não só incentivou de início o cultivo da mandioca e de outras plantas nativas como o aipim, o amendoim, e o ananás, mas procurou introduzir no Nordeste outras plantas que sua experiência de conquistadores de terras tropicais lhe fazia saber propícias ao novo quadro geográfico. Lê-se no Tratado da Terra do Brasil escrito por Pero de Magalhães Gandavo por volta de 1570: “quantos moradores há na terra tinham roças de mantimentos e vendem muita farinha de pau, uns aos outros de que também tiram muito proveito.” Isto mostra que, enquanto durou o ciclo de exploração de pau-brasil, se desenvolveu na terra uma cultura de sustentação. Entre os papéis desempenhados pelo português da Renascença e de decisiva influência na mudança de costumes do mundo moderno, destaca-se o de reformador da estética do paladar. Papel que este povo desempenhou através da transplantação de plantas alimentares de um continente para outro, da aproximação de cozinhas até então inteiramente desconhecidas e da universalização das especiarias e dos sabores orientais. Sobre esta influência reformadora de Portugal no panorama alimentar do mundo, leia-se o capítulo “Genialidade e Mediocridade”, do interessante livro de Fidelino de Figueiredo, Últimas Aventuras. Assim se fez, de início, uma tentativa de policultura, a qual, ajudada pela colheita das frutas silvestres e pela caça dos animais da terra, dava de sobra para manter um regime sadio dos primeiros colonos da Terra de Santa Cruz. Mas como ocorreu em Barbados, a policultura iniciada tão promissoramente foi logo estancada pelo furor da monocultura da cana: as roças de mandioca abandonadas aos cuidados primitivos do indígena, sem o amparo e o interesse do colono, as plantações de laranja, de manga, de fruta-pão abandonadas à sua sorte ou apenas limitadas aos pequenos pomares em torno das casas grandes dos engenhos, para regalo exclusivo da família branca do senhor. [pg. 129] Com este relativo abandono das roças, a farinha de mandioca foi escasseando cada vez mais, e a tal ponto que no período da ocupação holandesa, nos meados do século XVII, houve verdadeira fome da farinha. Conta Joan Nieuhof (op. cit.): “Desde a guerra de 1645, o preço da farinha subiu para seis, sete, oito, nove, dez ou onze florins por alqueire, e, como essa situação levaria à ruína os engenhos, o Grande Conselho baixou ordens rigorosas para que cada habitante da zona rural de acordo com as suas possibilidades, plantasse — sob penalidades severas — cerca de mil covas de mandioca por ano. Assim foi que o preço da farinha caiu a ponto de ser vendida no Recife à razão de quatro schelingen por alqueire, e por menos ainda no interior.” Foi esta uma das poucas medidas que os holandeses tomaram de efeito salutar para a alimentação coletiva da região, e na aparência contrária aos interesses da monocultura açucareira. Na aparência apenas. No fundo, do maior interesse, desde que sem alimentos fundamentais para a gente dos engenhos não seria possível manter as atividades açucareiras, e com a farinha em maior abundância continuaria tranquilamente a produção do açúcar para exportação. Assim se desfez toda a influência benéfica que a cultura peninsular deveria ter trazido ao tipo de dieta do Nordeste brasileiro. 5. A influência do índio foi bem mais favorável, embora quase que se limitando, como insiste Manoel Quirino,26 “em nos dar a conhecer a matéria-prima, por assim dizer, de que se serviam no preparo das refeições”, sem impor os seus há-bitos e os seus processos rudimentares de cozinha, muito distanciados dos hábitos europeus. Acerca desta influência, desta contribuição do indígena na constituição da dieta e da cozinha do brasileiro, escreveu o Prof. Nélson de Senna, em seu trabalho “A Influência do índio em Linguagem Brasileira” — 1946, as seguintes palavras: “A mesa brasileira recebeu a contribuição alimentar do aipim, da batata-doce, da batatinha, do cará, da carimã, da caratinga, do caruru, do mangarito, da taioba, do jerimum, do mandumbim, da castanha-do-pará, do mel-da-jataí, da mobuca e da uruçu, da pacova, da mandioca, das espigas de milho verde [pg. 130] assado, do churrasco, do mingau, da paçoca, da mixira e dos molhos, picantes do tacacá e tucupi, com o ardor das pimentas cumari e murupi; o processo da conserva da carne no moquém; as variadas e deliciosas muquecas de pescado; o nutritivo pirão de farinha-de-mandioca; pipocas-de-milho, as fritadas-de-siris, o casquinho-de-muçuã, os ovos-de-tracajá, as postas de pirarucu (verdadeiro bacalhau amazônico), os lambaris fritos, as peixadas famosas do tambaqui e do tucunaré, e do piau e do surubim, do jaú e das tainhas, das traíras e dos mandis, das piabas e da piracanjuba, das finíssimas iguarias da garoupa e do bijupirá, todos eles guisados em molhos e caldos apimentados — sem esquecermos ainda: a paçoca de “carne de vento”, socada no pilão; a macaxera ou aipim; os beijus de farinha de mandioca torrada; os grelos da cambuquira e de samambaia; os frutos mais delicados da nossa flora riquíssima (o abacate, o abacaxi, o abio, o abricó, o ananás, as várias anonas, como os araticuns e biribás; o aracari, ou acri da Bahia, os variadíssimos araçás; a bacaba, 26 Quirino. Manoel, Costumes Africanos no Brasil. 1938. o bacupari e o bacuri; a batinga, o cajá-manga, o cajá-mirim, o caju e o cajuí; o cambucá, o cambuí, o cupuaçu; os cocos, açaí, babaçu, bacaba, buriti, jeridá, indaiá, licuri, macaúba, da pupunha e do tucum; a guabiroba ou guabiraba, o gravatá e os juás doces, o jenipapo, as goiabas branca, roxa e vermelha; a grumixama, as jabuticabas; a bixirica e a mexirica-de-campo; o mamãozinho — jacacatiá, a mangaba, os diversos maracujás, o murici; a pitanga, as mangas — goiana, de Ubá, e de Itamaracá; a pacova-inajá, a marangaba, o marimari, o mandapuçá e o mucujê; pequi, a pitomba, o sapoti, a sapota, o jatobá; as castanhas de sapucaia t: do Pará; o taperebá, o uixi, o umbu, a uvaia, o tarumã, o trapiá, etc.” Nem se esqueçam bebidas de nomes indígenas, como a caiçuma, o caium, a xixa; os licores de cacau, de jenipapo e de pequi; os vinhos de buriti, de caju ou de jabuticaba; a ardente tiquira, a nutritiva tipuca (o leite), o xibé, o mocoronô, a garapa de cana-de-açúcar, o delicioso e tonificante guaraná-dos-Mauês, o mate-chimarrão gelado, os refrescos de cajuada, etc. Dos seus processos culinários poucos se fixaram no panorama da cozinha regional, afora o preparo da pamonha, da canjica de milho, do beiju, da farinha de mandioca e da paçoca. Quando se quer desvalorizar a influência do indígena, a sua contribuição na obtenção de recursos alimentares abundantes, [pg. 131] acusa-se este elemento racial de rebelde ao trabalho agrícola, à disciplina do trabalho nas fazendas, mas não se esclarece que o trabalho que os feitores exigiam dele era o da agricultura comercial, o plantio da cana para fabricação do açúcar. Agricultura pela qual não podia o indígena sentir a menor atração por lhe faltar todo espírito mercantil. Esquivando-se a este tipo de trabalho, resistindo desta forma à pressão da monocultura, o índio foi mais benéfico do que nocivo ao equilíbrio da região. Fazendo da floresta o seu reduto e defendendo-a com arcos e flechas, o índio moderou a expansão da monocultura e suas funestas conseqüências. 6. Outra influência favorável — a mais expressiva e valorizadora dos hábitos alimentares desta região — foi, sem nenhuma dúvida, a do negro. A do escravo negro importado da África, em cuja área natural tinha obtido, pelo cultivo de variadas plantas, um regime alimentar dos mais saudáveis. Regime que permitiu a formação de magníficos exemplares humanos com uma compleição atlética verificável em inúmeros desenhos da época e na impressionante resistência física do negro desafiando os fatores mórbidos que o atacavam durante as viagens mortíferas nos navios negreiros, desafiando os maus tratos, o trabalho exaustivo no eito dos canaviais, os agentes patogênicos da fauna da nova região — insetos, vermes e protozoários — que se encarniçavam em atacar sem trégua estes gigantes pretos vindos da área do Golfo da Guiné. Num magnífico estudo acerca das condições de alimentação no Congo Belga, Bigwood e Trolli mostram como, antes da colonização europeia, o negro se alimentava bem, à base dos recursos que desenvolvera na região, e como a economia mercantilista do colono europeu foi nociva às condições de vida desse povo. São destes grandes pesquisadores, — um deles, Bigwood, verdadeiro pioneiro dos estudos da alimentação nos trópicos — as seguintes palavras: “Tem havido uma tendência progressiva ao despovoamento desde o começo da ocupação européia. Segundo os autores, a população indígena leria diminuído de 25 a 50%. Atualmente ela se estabiliza. A julgar pelas descrições concordantes feitas pelos primeiros exploradores, a população relativamente densa do Congo Belga era robusta antes da colonização. Era bem nutrida, segundo se pode deduzir pela variedade de suas plantações [pg. 132] de subsistência. Os produtos da caça e da pesca também participavam em grande parte da alimentação do indígena. Num relatório apresentado em 1919 pela Comissão de Proteção ao Indígena era atribuído o despovoamento às modificações que a colonização branca impôs nas condições de vida do nativo, pelas exigências do comercio e da indústria. O governador-geral da colônia, M. E. Lippens, escrevia em 1920: antes da chegada dos brancos, os indígenas não cultivavam senão os víveres necessários aos habitantes de sua aldeia, mas desde o desenvolvimento do comércio, as necessidades alimentares se tornaram maiores e mais difíceis de ser satisfeitas com grande número de braços empregados em trabalhos diversos, inclusive para os transportes dos víveres, muitas vezes a grandes distâncias. As necessidades alimentares tornaram-se enormes e a diminuta produção agrícola tornou-se ainda mais escassa. Hoje o Congo vê sua população desaparecer numa rapidez tremenda, e isto porque abandonamos a salada verde pela borracha e pelo marfim.”27 27 E. Bigwood, e G. Trolli, “Alimentation au Congo Belge”, in La Science de l’Alimentation en Como povo de tradição agrícola, de tipo de agricultura de sustentação, o negro reagia contra a monocultura de forma mais produtiva do que o índio. Desobedecendo às ordens do senhor e plantando às escondidas seu roçadinho de mandioca, de batata-doce, de feijão e de milho. Sujando aqui, acolá, o verde monótono dos canaviais com manchas diferentes de outras culturas. Benditas manchas salvadoras da monotonia alimentar da região. Que o negro nunca perdeu esse instinto policultor, esse amor à terra e às plantações, apesar da brutalidade com que fora arrastado de sua terra, com todas as suas raízes culturais violentamente arrancadas, é o que podemos verificar através do estudo da organização econômico-social dos quilombos, dos núcleos de negros fugidos e escondidos no mato. Palmares, o mais significativo dos núcleos de libertação negra da tirania monocultora, se apresenta como uma demonstração decisiva da absoluta integração do negro à natureza regional, aproveitando integralmente seus recursos e desenvolvendo, a favor de suas possibilidades, recursos novos. Na paisagem cultural de Palmares, com os traços naturais da terra tão bem ajustados às necessidades do homem, [pg. 133] vamos encontrar um regime de policultura sistemática.28 Uma das principais atividades dos negros Palmarinos era a agricultura, afirma Edson Carneiro29 depois de consultar extensa documentação sobre a vida na república negra: “os homens do quilombo lavravam e disciplinavam a terra, beneficiando-se da experiência que traziam como trabalhadores do eito nas fazendas e nos canaviais dos brancos”, diz o autor de República dos Palmares, e da experiência ainda mais larga deles e dos seus antepassados nas savanas e nas florestas tropicais africanas, acrescentamos nós. Cultivavam milho, batata-doce, feijão, mandioca, bananas (pacovas) e outras plantas alimentares. Também plantavam algodão e cana-de-açúcar.30 “O número de roças era enorme... num só dia os holandeses incendiaram mais de 60 casas em roças e em plantações.”31 Tal era a importância da lavoura dos 1937, Paris, 1937. 28 A fonte mais pura de documentações autênticas de que dispomos sobre Palmares é, sem nenhuma dúvida, como acentua Afonso Arinos de Mello Franco, A História da América Portuguesa, de Rocha Pita. Pela leitura de observações aí contidas verifica-se que os Palmares traduziam “o mais forte exemplo de reintegração do homem na natureza para realização da liberdade, fator fundamental da vida”. (Afonso Arinos de Mello Franco, Conceito de Civilização Brasileira, 1936.) 29 Carneiro, Edson, La República de Palmares, Fondo de Cultura econômica, México). 30 “Faziam agricultura regular plantando cereais e algodão, cujos excessos comerciavam com as populações vizinhas.” (João Dornas Filho, A Escravidão no Brasil, 1939.) 31 Carneiro, Edson, op. cit. negros de Palmares que a guerra contra os quilombos se desenvolveu estrategicamente baseada na destruição prévia do seu roçado de subsistência. É ainda Edson Carneiro quem nos informa que, em relatório, o ex-governador João de Sousa considerava que o mais sensível mal de que os negros sofriam era a destruição de suas lavouras, propondo o estabelecimento de dois arraiais de tropas para estorvar-lhes a plantação de mantimentos, a maior opressão de que eles padecem. Infelizmente, a ação restauradora do negro foi limitada, não adquirindo uma consistência e extensão capazes de atuar decisivamente na economia do país, como aconteceu na Ilha de Jamaica, onde o negro rebelado contra a ganância dos plantadores contribuiu para melhorar sensivelmente o regime alimentar da ilha. [pg. 134] Conta Law Mathieson32 que os colonos ingleses latifundiários do açúcar, mesmo depois da abolição da escravatura da Jamaica, tentaram por todos os meios entravar o trabalho dos negros fora das plantações de cana e chegaram ao extremo de fixar descabidos impostos sobre as terras destinadas à produção de alimentos, obrigando, desta forma, os negros libertos a continuarem escravos dos miseráveis salários estabelecidos pelos senhores de engenho. Os negros resistiram; embrenha-ram-se nas matas, fundaram em pouco tempo cerca de 200 colônias negras, nas quais se desenvolveu uma variada produção agrícola que perdura até o momento. A interferência do negro no sentido de melhorar o padrão de nutrição do Nordeste fez-se sentir ainda, mais do que no campo da produção em escala econômica, através da introdução feliz de certas plantas africanas e do uso de certos processos culinários que se mostraram excelentes no aproveitamento dos recursos alimentares da região. É a contribuição da cozinha africana, dos processos culinários desenvolvidos pelas cozinheiras negras do Nordeste, principalmente do recôncavo da Bahia, dando lugar à hoje tão famosa cozinha baiana. Famosa não somente pela excelência dos seus temperos, pelo sabor dos seus quitutes, mas também, como demonstraremos mais adiante, pelos corretivos que as suas criações culinárias encerram, capazes de entravar o aparecimento de várias avitaminoses a que estariam irremediavelmente expostas as populações locais, pelo uso dos alimentos preparados exclusivamente à maneira européia. Esta ação corretiva da cozinha baiana, até pouco 32 Mathieson,Law, British Slavery and its Abolition. Londres. 1926. tempo elogiada pelos epicuristas, mas ferozmente atacada pelos higienistas sem sólidas bases científicas, será melhor compreendida um pouco mais adiante, depois que tenhamos estudado as características bioquímicas da dieta regional. 7. No Brasil, a resistência dos índios abstencionistas e dos negros rebeldes dos quilombos, e mesmo dos colonos brancos e mestiços mais pobres desprovidos de terras, não deu para vencer a força opressiva do latifundiarismo. Para vencer as proibições contra a agricultura de outras utilidades e a criação de quaisquer espécies — proibições estabelecidas em cartas- [pg. 135] régias33 e reforçadas ao máximo pela autoridade ilimitada dos senhores de engenho, onipotentes em seu regime de vida escravocrata e patriarcal. Homens com um ciúme de suas terras maior do que de suas mulheres e horrorizados com o perigo de que estas terras se rebaixassem devassamento a produzir qualquer outra coisa que não fosse cana. Qualquer coisa menos nobre, seja de cultura índia ou negra — mandioca, milho, amendoim, feijão. Assim subjugados pela forte pressão dos fatores de natureza econômica cederam às influências tanto naturais como culturais, e todo o complexo alimentar da região se fixou em torno da farinha de mandioca, de cultivo fácil e barato, sem grandes exigências nem de solo nem de clima, nem de mão-de-obra. Complexo de alimentação muito pobre que arrastou o Nordeste à condição de uma das zonas de mais acentuada subalimentação do país. Mais do que isto, zona de fome quase tão grave quanto a da região do Extremo-Norte. A princípio, e enquanto a densidade de população se mantinha baixa, procuravam os senhores mais abastados compensar a escassez de suas dietas importando víveres de Portugal. Mas as grandes distâncias a vencer, os transportes lentos e precários da época dificultando em extremo sua conservação e a infestação dos barcos pela peste devastadora dos ratos,34 tornavam os gêneros de baixo valor nutritivo, chegando ao Brasil a maior parte já mofada ou bichada. O domínio pelos ratos, dos antigos barcos veleiros, constituiu durante o período colonial um dos mais graves fatores de degradação alimentar das colônias, 33 No século XVII foi baixada uma carta-régia proibindo sob ameaça de duras penalidades a criação de gado a menos de 60 quilômetros da costa (Roberto Simonsen, História econômica do Brasil. 1937). 34 R. Goffin, Le Roman des Rats, Paris, 1937. pela destruição que provocavam os roedores nos víveres importados. Eram avaliados em cerca de dez mil francos os prejuízos correspondentes aos estragos provocados pelos ratos em cada viagem que um barco realizava entre a Europa e a América. Além disto, com o crescimento das populações, que se fez rápido, condicionado pela fome de braços para o cultivo da cana, não foi mais possível importar do Reino quantidades suficientes de gêneros alimentícios e foram os colonos se acostumando à [pg. 136] comida rude da terra, com sua dieta rotineira de feijão com farinha. É preciso não esquecer que nesta zona como em todas as outras em que se foi diferenciando a economia monocultora da cana na América, a fome de braços sempre imperiosa condicionou rapidamente uma alia concentração demográfica. Ainda neste sentido o açúcar veio agravar a situação alimentar, aumentando o número de bocas e amarrando os braços desta gente ao trabalho exclusivo da cana. Ainda hoje representa o Nordeste açucareiro uma das zonas rurais de mais alta densidade demográfica do país. Nos municípios da área da mata, no Estado de Pernambuco, a densidade é de cerca de 137 habitantes por quilômetro quadrado, enquanto que a densidade dos municípios do sertão nordestino é de apenas 7 habitantes e a densidade média do país, de 6 habitantes por quilômetro quadrado. Em toda a América Latina as zonas de mais alta concentração da população são exatamente as zonas açucareiras: Barbados, com seus 624 habitantes (quase todos negros) por quilômetro quadrado, concorrendo nos quadros estatísticos mundiais com os enxames humanos do Oriente, Porto Rico, com 311 habitantes, Haiti, com 175, e Jamaica, com 145 (dados estatísticos de 1950). São todas estas áreas de monocultura da cana, zonas de fome, das mais acentuadas manchas de miséria orgânica de toda a América Latina. O trigo importado nos primeiros séculos de colonização era de tão má qualidade, chegando ao consumidor em tão mau estado de conservação, que todos acabaram por preferir o pão da terra — a mandioca — ao pão de trigo mofado e rançoso. Até os holandeses, tão presos a seus hábitos europeus, tão impermeáveis aos costumes da terra, se foram habituando ao uso da mandioca, conforme nos deixou relatado Joan Nieuhof (op. cit.): “A raiz de mandioca é originária do Brasil; daí transplantada para outras regiões americanas e para a África. É com sua farinha que os brasileiros bem como portugueses, holandeses e negros crioulos fazem pão, que depois do trigo, é de todos o melhor. Tanto assim que os nossos soldados preferiram receber em nossos celeiros sua ração em pão de mandioca a recebê-la de trigo.” É desta alimentação, sempre pobre em vegetais, frutas e verduras, em carne e leite por falta de culturas agrícolas e de criação de extensa zona nordestina que nos vêm falando os [pg. 137] periódicos relatos de antigos historiadores e viajantes que por aí viveram ou passaram. São quase todos unânimes — à exceção de uns poucos mais apressados ou mais superficiais, que viam nos banquetes de hospitalidade com que eram recebidos, uma expressão de fartura do passado regular da gente da terra — em afirmar que a alimentação da região era muito escassa e muito pouco saudável. Através de escritos como os do Padre Fernão Cardim, das cartas do Padre Vieira, das impressões de viagens de ingleses e franceses, que por ali passaram, dos estudos com certo ar científico dos doutores da época e de outros documentos, verifica-se a constante precariedade da alimentação regional. Apoiados nas suas afirmativas, as mais das vezes empíricas mas, mesmo assim, denunciadoras de um estado de coisas bem patente, e em outras mais bem fundamentadas como as de um Inbert, Antônio José de Sousa, José Rodriguez Duarte, Antônio de Sousa Costa e Francisco dos Santos Sousa, pode-se concluir que, desde quase o início da colonização brasileira até hoje, a alimentação do nordestino foi sempre de má qualidade. O período de ocupação holandesa não alterou fundamentalmente este panorama. Apenas acentuou alguns dos seus males, provocando uma maior concentração urbana, no Recife, sem zona de abastecimento adequada, e atenuou outros poucos, com medidas como a já apontada, do plantio obrigatório da mandio-ca, e com o exemplo de uma dieta um pouco mais variada, pelo uso mais freqüente das saladas. Mas isto tudo foi transitório como o próprio domínio holandês e não deixou marca definitiva nos hábitos da região. Dos traços que compõem o complexo regional, apenas um, que teve sua origem neste período, não só se conserva até hoje, mas se difundiu por outras áreas do país e, mesmo, pelo mundo inteiro. Foi o hábito de se misturar o café com leite, criando esta mistura já tão banalizada — a média — que só com dificuldade se pode fixar o seu ponto de origem. Mistura alimentar das mais felizes porque compõe uma bebida do mais alto valor nutritivo e de magníficas propriedades tanto organolépticas como fisiológicas. Segundo se lê em José Honório Rodrigues, foi o próprio Joan Nieuhof que inventou a notável mistura: “A Nieuhof devem os brasileiros um hábito alimentar nacional: a média, isto é, o café com leite. Segundo as pesquisas realizadas por estudiosos da história do café, foi Nieuhof quem inventou a mistura. Modernamente, Padberg Drenkpol e, também, Afonso de E. Taunay registram a crença antiga de que [pg. 138] para a tísica nada havia como café com leite. Nieuhof, inventor da mistura, imitara neste particular os chins, que aos seus tuberculosos ministravam chá com leite.” (Introdução de José Honório Rodrigues à edição de 1942 da obra já citada de Joan Nieuhof.) Depois da ocupação holandesa continuou a alimentação a ser de má qualidade, mantendo seus mais graves defeitos. O que não se sabia com exatidão era quais esses defeitos mais graves e as suas principais conseqüências. Procurando esclarecer e precisar cientificamente estes aspectos da questão, levamos a efeito em 1932 um inquérito sobre as condições alimentares do povo na cidade do Recife,35 que pode ser considerada como a capital do Nordeste açucareiro. O inquérito que abrangeu quinhentas famílias, num total de 2.585 pessoas, pelo fato de ser o primeiro levado a efeito no país, veio revelar certos aspectos entrevistos por alguns, mas até então não afirmados de maneira definitiva por ninguém, e foi olhado por muitos com certas reservas e suspeitas. Reservas contra o alarma das cifras apresentadas. Suspeitas de que houvesse exagero nos seus resultados. Outros inquéritos realizados posteriormente vieram, no entanto, confirmar as nossas conclusões e remover a desconfiança ingênua, em face de nossas afirmações, dos que viviam até então mergulhados no seu ponto de vista lírico — de que não havia em nenhuma parte do Brasil gente morrendo de fome. O inquérito viera demonstrar exatamente o contrário: que, pelo menos naquela região do Nordeste açucareiro, do que mais se morria era de fome. Das conseqüências da fome crônica em que vivem há séculos as populações regionais. O primeiro grave defeito, evidenciado por nosso inquérito, no tipo de dieta estudado, foi a sua terrível monotonia, a falta de variedade das substâncias 35 Castro, Josué de, Condições de Vida das Classes Operárias no Recife. 1935. alimentares que entram em sua composição;36 dieta quase exclusivamente formada de farinha com feijão, charque, café e açúcar. Tudo o mais participando dela apenas incidentalmente ou em quantidades insuficientes. [pg. 139] Basta ver que só l9% das famílias recenseadas consumiam leite e apenas 16% faziam uso de frutas, e isso mesmo em quantidades irrisórias. Leite na proporção de 126 gramas diárias per capita, e as verduras representadas por um tomate murcho ou algumas folhas tostadas de alface. Esta evidência de que 80% da massa das populações não consumiam praticamente nenhum alimento protetor do grupo do leite, dos ovos, das verduras ou das frutas, marca o primeiro traço negro do perfil nutritivo daquela gente. O segundo desses traços e representado pela insuficiência calórica do regime, que se apresentou com um teor energético médio de 1.645 calorias diárias, mais baixo ainda do que o da região amazônica, quando as condições climáticas desta área do Nordeste condicionam um metabolismo um pouco mais alto do que o metabolismo dos habitantes da floresta equatorial.37 Noutro inquérito realizado seis anos depois na mesma zona, Antônio Freire e A. Carolino Gonçalves38 encontraram um teor calórico diário de 1.625 calorias, quase igual, portanto, ao do nosso inquérito. 8. Sob o ponto de vista qualitativo, o regime local se revelou em nosso inquérito com um excesso proporcional de hidrocarbonados, como quase sempre ocorre nas regiões tropicais do mundo, e com uma deficiência patente em proteínas. O seu teor médio protéico se fixou em 62 gramas diárias, na maior parte representado por proteínas incompletas de origem vegetal, proteínas do feijão, do milho e da farinha de mandioca. [pg. 140] 36 Sobre as graves consequências que decorrem para um grupo humano da falta de variedade em seus recursos alimentares, isto é, em sua monotonia, consulte-se a erudita obra de Alberto Cassinelli — Alimentación de Tiempo y Lugar, Montevidéu, 1941. 37 As medidas do metabolismo basal que realizamos na cidade do Recife, ponto de partida para a criação de nossa teoria da predominância do fator umidade relativa do ar sobre o fator temperatura absoluta no condicionamento das trocas energéticas individuais, revelaram-nos que o metabolismo basal nestas zonas é apenas 12% mais baixo do que nos climas frios e temperados, correspondendo dentro destas cifras uma necessidade energética total diária de cerca de 2.640 calorias para um adulto normal. Vede. para maiores detalhes, os nossos trabalhos: “Metabolismo Basal e Clima”, in Revista Médica de Pernambuco. n.° 11. e Problema da Alimentação no Brasil (Seu Estudo Fisiológico). 3.° edição. São Paulo. 1939. 38 Freire. Antônio, e Gonçalves, A. Carolino. Sondagem sobre o Custo de Vida nas Classes Trabalhadoras no Recife, publicação da Di-retoria Geral de Estatística do Estado de Pernambuco, 1938. A taxa também muito baixa de gordura, correspondendo a cerca de 13 gramas diárias, constitui um índice bastante expressivo da deficiência desse regime em vitaminas do grupo lipossolúvel. Das cotas de sais minerais se revelaram muito insuficientes as de cálcio e as de ferro, com teores, respectivamente, de 400 e de 5 miligramas, menos da metade das taxas indicadas pelos nutricionistas como racionais. Das vitaminas hidrossolúveis, as deficiências dos elementos do complexo B e da vitamina C são inegáveis, dada a ausência ou exigüidade dos cereais integrais ou das frutas frescas na dieta habitual da maioria da população. Este regime alimentar insuficiente e carenciado das populações do Recife exprime, até certo ponto, em sua típica constituição, os hábitos alimentares de toda a região. É verdade que na cidade novos fatores interferem para um maior rebaixamento do padrão da nutrição local. Deve-se tomar em consideração, ao se caracterizar as falhas do padrão alimentar de uma larga zona do Nordeste açucareiro, o fato de ter-se aí desenvolvido prematuramente um núcleo demográfico de atitudes e interesses predominantemente urbanos, que foi o da cidade do Recife, reagindo contra os interesses agrários regionais. Dizemos desenvolvido prematuramente porque, enquanto no resto do Brasil continuava um violento contraste entre a pujança da vida rural e a mesquinhez urbana, com cidades sujas e desleixadas, neste Nordeste agrário surgiu, levantada pelas mãos dos holandeses, em pleno século XVII, a cidade do Recife. Este traço excepcional de nosso panorama cultural é assim comentado por Sérgio Buarque de Holanda: “População cosmopolita, instável, de caráter predominantemente urbano, esta gente se apinhou no Recife ou na Mauritsstad que crescia na Ilha Antônio Pais, estimulando assim de modo prematuro a divisão clássica entre o engenho e a cidade, entre o senhor rural e o mascate, divisão que encheria mais tarde toda a história pernambucana.”39 Se o surto de urbanização, de predominância das atividades urbanas sobre as rurais, com o rebaixamento, que se processou intensivamente no século passado, das atividades agrícolas, foi motivo de grave degradação de nosso panorama alimentar, no Nordeste açucareiro este fator se [pg. 141] antecipou de dois séculos numa precocidade terrivelmente prejudicial. Recife é uma cidade que sempre atraiu um excesso de população formado de elementos adventícios que 39 Buarque de Holanda, Sérgio, Raízes do Brasil, 1936. fugiram da zona rural acossados por dois grupos de causas de expulsão: as secas periódicas do sertão nordestino e os salários miseráveis das zonas das usinas. Estes elementos tecnicamente mal equipados subsistem as mais das vezes à margem da economia urbana, vegetando num tipo de vida extremamente precário, de recursos os mais limitados. Dos 700 mil habitantes que o Recife possui, 230 mil vivem em habitações do tipo de mocambos, plantados nos mangues e nos arredores da verdadeira cidade. Sobre esta população marginal escreve Mário Lacerda de Mello: “Assim, de acordo com informações oficiais, construía-se em nossa capital quase duas vezes mais mocambos do que casas de alvenaria e taipa. E a população das áreas onde se levantam aquelas habitações miseráveis que cercam a cidade sobe a cerca de 165.000 almas. É população superior à de qualquer cidade brasileira, exceto uma meia dúzia: Rio, São Paulo, Recife, Salvador, Porto Alegre e Belém. Se separássemos imaginariamente esta parte da população do Recife em uma “mocambópolis” à parte, teríamos uma cidade tão grande que estaria em sétimo lugar entre as cidades brasileiras. Para rivalizá-la em população, só encontraríamos um centro urbano na Amazônia, um no Nordeste, dois no Brasil oriental e dois no Brasil meridional. No Brasil central, nenhum.” É claro que as condições de vida dessa parte da população, dos habitantes da “mocambópolis”40 são bem inferiores aos dos habitantes das 25.000 vivendas de padrão mais elevado, de alvenaria ou de taipa que completam a paisagem urbana do centro. No nosso inquérito não discriminamos este aspecto: ao contrário, ele se fundamenta em sua maior parte na zona dos mocambos. Mesmo assim, as condições aí reveladas são apenas acentuadas em certos traços, sem alterá-los substancialmente em sua essência. Tal é o panorama alimentar de toda a zona açucareira, apenas com leves diferenças de coloridos locais. [pg. 142] Num inquérito que realizou o antropólogo baiano Tales de Azevedo41 na 40 Lacerda de Mello, Mário. Pernambuco. Traços de sua Geografia Humana, 1940. 41 Azevedo, Thales de, Padrão Alimentar da População da Cidade do Salvador, trabalho apresentado ao Primeiro Congresso Brasileiro de Problemas Médico-Sociais, Bahia, 1942. Este pesquisador apresenta as seguintes conclusões sobre as condições de alimentação na capital da Bahia: “A análise dos dados desta pesquisa, conquanto não nos dê elementos quantitativos que nos conduzam a um juízo sobre a composição bioquímica das dietas, revela-nos a reduzida variabilidade das refeições, e a ausência, na maioria dos informantes, de artigos que forneçam elementos nutritivos essenciais como protídios, sais minerais e vitaminas, tudo fazendo ainda acreditar no pequeno valor energético das dietas dos grupos sócio-econômicos cidade do Salvador, os dados encontrados coincidem em quase todos os pontos com os nossos. Apresentou-se o regime na Bahia também com insuficiência energética, com escassez de alimentos protetores e com uma terrível monotonia dos seus componentes habituais. O regime alimentar em plena zona rural se apresentou, no inquérito levado a efeito por Vasconcellos Torres,”42 com características muito semelhantes aos regimes da área urbana. Na zona açucareira do recôncavo baiano encontrou este pesquisador, em 98% das famílias inquiridas, deficiências calóricas que variavam de 5 a 57% do seu total energético. Os componentes da ração usual eram o feijão, a farinha de mandioca, o charque, o açúcar, a carne de gado e o toucinho. Tais hábitos alimentares do campo se estendem mesmo por certa zona, transbordando da área açucareira e se prolongando por toda a faixa de terra aproveitada pela monocultura do cacau. O fenômeno faz com que, sob o ponto de vista alimentar, a zona do cacau e a zona do açúcar constituam um só tipo de área de alimentação. Sendo que, conforme observou aquele investigador, a carne entra na ração em quantidade insignificante, apenas para dar gosto à comida. E não poderia ser de outro modo, em vista dos salários extremamente baixos que aquela gente recebe pelo trabalho e com todo o abastecimento de carne se fazendo à custa de gado vindo de outras zonas ou de charque também importado de regiões distantes. [pg. 143] No inquérito que realizamos na capital pernambucana encontramos em 1932 um salário médio diário de Cr$ 3,60 o qual, estudado à luz da capacidade aquisitiva do nosso dinheiro naquela época, se revelava como um salário de fome. Pois bem: na zona rural, Gilêno De Carli, levando a efeito em 1939 um inquérito em oito usinas pernambucanas, encontrava para o trabalhador do campo, que constitui o grosso da população, salários que variavam entre 2 e 3 cruzeiros e meio. A falta de opção com outras espécies de trabalho obrigava o trabalhador rural a se submeter irremediavelmente à terrível exploração ou a emigrar para as cidades ou para outras zonas econômicas do país. Atualmente estes salários foram sucessivamente majorados por lei, mas em compensação o custo da vida subiu de tal forma que a inferiores.” 42 Torres, Vasconcellos, Condições de Vida do Trabalhador na Agro-indústria do Açúcar, 1945. Trabalho louvável e de interesse pelo largo campo que o autor estudou, mas infelizmente um tanto falho em seus métodos de indagação, sentindo-se, no capítulo referente à alimentação, a imprecisão a que a falta de conhecimentos especializados no assunto conduz o autor. carne, o leite e os ovos continuam inacessíveis à capacidade aquisitiva do trabalhador rural da zona açucareira. Há ainda outro fator de ordem econômica a ser tomado em consideração. É a periodicidade com que se trabalha na indústria do açúcar. Durante o período da safra amplia-se o horizonte de trabalho e surge uma prosperidade relativa, mas na entressafra vem o desemprego e se acentua a miséria dessa população, que não tem possibilidade de acumular reservas na fase de produção. Minneman observou o mesmo fato em Cuba, salientando a nítida diferença da dieta e dos hábitos de vida nos dois diferentes períodos — no período de zafra e no de tiempo muerto.43 Mais recentemente, a Comissão Nacional de Política Agrária, num inquérito que realizou em 1952 em colaboração com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, através de seus Agentes em todos os municípios brasileiros, chegou a conclusões idênticas, que confirmam os baixos níveis de alimentação e saúde das populações do Nordeste. 9. Desta alimentação precária resultam graves conseqüências para as populações nordestinas: umas específicas, presas em relação de causa e efeito às diferentes carências que a dieta acarreta; outras inespecíficas, refletindo, porém, a miséria orgânica a que o meio social reduziu o homem da bagaceira. As primeiras manifestações diretas da deficiência alimentar são as que resultam de sua insuficiência calórica, de sua pobreza [pg. 144] energética. Por sua conta decorre, em grande parte, a reduzida capacidade de trabalho dessa gente que se cansa ao menor esforço, que não é capaz de acompanhar o ritmo muscular do trabalhador das regiões de melhor alimentação do sul do país. Ou mesmo dos habitantes da zona do sertão. O sertanejo sempre se sentiu superior ao brejeiro, tachando-o de preguiçoso, pela pequena capacidade de trabalho que ele demonstra. Gilberto Freyre afirmou que os mais bem alimentados na região sempre foram os representantes dos dois extremos econômicos: o senhor de engenho e o escravo; o senhor alimentando bem o escravo para que ele produzisse mais. Que os escravos não eram “uns bem alimentados”, com suas trocas metabólicas bem equilibradas, conclui-se facilmente verificando o número enorme 43 Minneman, P. G., The Agriculture of Cuba, 1942. 144 de doenças da nutrição que eles apresentavam. Ruy Coutinho, num estudo muito bem documentado acerca da alimentação dos negros escravos, depois de concordar, de início, com a afirmativa de Gilberto Freyre, de que o escravo tinha sido “o elemento melhor nutrido em nossa sociedade”, exibe, logo a seguir, baseado em fontes seguras, uma alarmante seqüência de afecções nutritivas e carências assolando sempre as senzalas que torna desconcertante a sua concordância inicial com o sociólogo de Casa Grande & Senzala.44 A rigor, o sociólogo não deveria escrever “os mais bem alimentados”, mas, os que comiam maiores quantidades de alimentos, o que é bem diferente. São afirmações como esta destituídas de todo fundamento, ao lado de uma impropriedade vocabular que denuncia o desconhecimento, o mais completo, do autor, dos assuntos de alimentação, que tornam a obra de Gilberto Freyre uma obra destituída de qualquer valor científico. Quando um sociólogo ignora que proteína e albuminóides vêm a ser a mesma coisa e cai na pachecada de escrever que a nutrição da família colonial brasileira é de má qualidade “pela pobreza evidente de proteínas e possível de albuminóides”, (Casa Grande & Senzala, 1.ª edição, p. 63) não se pode mais levar a sério a sua obra científica. Porque a verdade é que esta ignorância lapidar daria para reprovar qualquer aluno secundário que estivesse [pg. 145] fazendo seu exame de história natural, de química ou mesmo de economia doméstica. Quando o senhor fornecia ao negro uma dieta mais abundante de feijão, farinha, milho ou toucinho, não melhorava o seu regime alimentar, senão num único aspecto: no de abastecê-lo de maior potencial energético sem minorar nenhuma das suas deficiências qualitativas, agravando mesmo algumas delas, como demonstraremos oportunamente. Dava-lhe maiores quantidades de combustível, sem nenhum cuidado pelos reparos necessários na máquina de combustão. É certo que essa maior carga de carvão fazia com que a máquina, enquanto não caísse minada pelas avitaminoses, pela tuberculose e por tantos outros males habituais, fosse um bom animal de trabalho, com um rendimento compensador de tantos gastos feitos com feijão, milho e farinha de mandioca. Dando maior quantidade de comida ao negro, o senhor de engenho estava pensando em alimentar a própria cana, em 44 Coutinho, Ruy, “Alimentação e Estado Nutricional do Escravo no Brasil”, ín Estudos Afro- transformar o feijão e a farinha barata em açúcar de muito bom preço, vendido a peso de ouro, num processo muito semelhante ao dos criadores de porcos que, alimentando esses animais com muito milho, vendem depois o milho por bom preço, transformado em carne e ensacado na própria pele do porco. Com a abolição da escravatura, os negros e os mestiços saídos das senzalas, ficando com a alimentação a cargo dos seus salários miseráveis, começaram por diminuir as quantidades de alimentos de sua dieta, e já não dispunham nem de combustível suficiente para produzir o trabalho que antes realizavam. Diminuíram, então, o seu rendimento para equilibrar o déficit orgânico, sendo esta diminuição tomada pelos patrões mais reacionários como um sinal de preguiça consciente, de premeditada rebeldia do negro liberto contra o regime feudal da economia açucareiro. A verdade é que a moleza do cabra de engenho, a sua fatigada lentidão não é um mal de raça, é um mal de fome. É a falta de combustível suficiente e adequado à sua máquina, que não lhe permite trabalhar senão num ritmo ronceiro e pouco produtivo. 10. Outra conseqüência específica e das mais graves desse tipo de dieta é sua carência permanente de proteínas — a falta de ácidos aminados em quantidades adequadas ao perfeito desenvolvimento e equilíbrio do indivíduo. Não se poderia [pg. 146] mesmo esperar a obtenção desses princípios essenciais com fontes protéicas quase que exclusivamente vegetais. Com as proteínas incompletas do feijão e da farinha que entram na composição do regime local. A primeira manifestação clara de carência protéica é o crescimento lento e precário do homem do brejo nordestino. São as populações desta zona, na maioria, formadas de indivíduos de estatura abaixo do normal, rapazes de quinze anos parecendo meninos de oito. Num estudo biotipológico bem orientado que realizaram os Drs. Álvaro Ferraz e Andrade Júnior,45 foi verificada a predominância nítida dos tipos brevilíneos naquela área do país. Embora se possa atribuir tal polarização biotipológica a fatores de várias categorias, desde os hereditários, ligando o fato à fixação racial do tipo negróide, de descendentes de negros atarracados, baixos e Brasileiros, 1.° volume, Rio de Janeiro, 1935. 45 Ferraz, Álvaro, e Lima Júnior. Andrade, A Morfologia do Ho-mem do Nordeste. Rio de Janeiro, 1939. fortes, escolhidos a dedo na costa d’África para o árduo trabalho dos engenhos, até o da seleção condicionada pelo gênero de vida, não resta dúvida de que a falta de proteínas colabora nesta tendência ao aparecimento de indivíduos de estatura insuficiente,46 à hipotrofia geral, à fixação antropológica desse tipo mirrado na população, chamada impropriamente de raquítica. Quando mais acentuada a carência protéica, surgem as perturbações trófícas, com tendência aos edemas. Um especialista nordestino, nosso antigo colaborador na Faculdade de Medicina do Recife, Luiz Ignácio de Andrade Lima,47 investigando os índices de nutrição dos escolares da cidade do Recife, índices baseados principalmente na correlação entre o peso e a altura, verificou o fato, na aparência paradoxal, de que as crianças das classes mais pobres, portanto mais mal alimentadas, apresentavam em média um índice melhor do que as crianças das classes mais abastadas. Indagando mais detidamente [pg. 147] as causas do desconcertante fenômeno, chegou o investigador à conclusão de que o fato resulta de as crianças dos grupos mais necessitados apresentarem graves sinais de carências protéicas, revelados biologicamente pelos desequilíbrios de suas taxas de globulina e serina no sangue, carências que acarretam certo edema dos tecidos, aumentando, à custa da água retida, o peso das crianças. Verifica-se, deste modo, que a carência protéica com sua tendência edemaciante, pode à primeira vista dar a ilusão de que se tratam de indivíduos bem nutridos e não de subalimentados. Entre as doenças mais comuns dos engenhos no período colonial destacam-se, nas referências dos médicos da época, as chamadas hidropisias, os casos de negros aparentemente sadios que de repente começavam a inchar, a se encher de água, ficando com a pele lisa e esticada, porejando linfa pelas rachaduras. É quase certo que na etiologia de muitos desses casos de hidropisias tenha entrado o fator alimentar com suas acentuadas carências protéicas. Escapam às carências dessa natureza, pela obtenção de proteínas completas no seu regime, os habitantes das praias que vivem à beira-mar ou à beira dos mangues, 46 Acerca das repercussões da nutrição sobre a constituição biótipo-lógica, consulte-se o trabalho de Sílvio de Candia, Alimentazione e Constituzione, 1931. e o de Nicola Pende, “Alimentation et Biotype Habituel”, in Nutrition, tomo 5, n.° 3, Paris, 1935. Sobre a correlação entre estatura e nutrição, consulte-se o capítulo 4.° do livro de Ruy Coutinho. Valor Social da Alimentação, 1937. 47 Lima. L. I. Andrade, Um Aspecto Regional de Antropologia Escolar, Recife, 1941. nos deltas dos rios e nas lagunas que existem em relativa abundância nestas terras baixas do litoral nordestino. Lançando mão dos recursos da fauna aquática — dos peixes, dos siris, dos caranguejos, das ostras, dos mariscos, dos camarões, dos pitus e dos sururus que infestam águas salgadas ou doces, o homem do litoral dispõe de muito melhor teor de proteína em sua dieta do que o que vive distante das águas, nas terras mais enxutas onde o mar verde dos canaviais inunda toda a paisagem com o seu manto ondulante de vegetação. Vivem os habitantes destas áreas aluvionais dos mangues ou das lagoas nordestinas numa estrita dependência da fauna da lama, identificados com o ciclo do caranguejo, do marisco ou do sururu. Sobre o “ciclo do caranguejo” já nos ocupamos longamente noutro trabalho de nossa autoria — Documentário do Nordeste — e aí mostramos como deste crustáceo depende a vida de milhares de famílias que vivem atoladas nas margens da cidade do Recife. Também o “ciclo do marisco” é uma realidade social nos dias atuais. Até hoje, quem disponha de pachorra para rondar as margens do Capibaribe, nos arredores do Recife, verá nas marés- [pg. 148] baixas, quando ficam descobertas as coroas de areia e lodo, um verdadeiro exército de gente pobre desenterrando mariscos para sua alimentação. É um verdadeiro formigueiro humano arrancando da lama a sua subsistência. Em Alagoas vivem as populações pobres de extensa área do estado o seu ciclo do sururu. Em ensaio crítico que escreveu acerca deste livro, quando apareceu em 1946, em sua primeira edição, J. Fernando Carneiro chamou a nossa atenção para a importância do sururu na alimentação de uma extensa área do Estado de Alagoas e advogava mesmo a necessidade de se considerar uma subárea alimentar do sururu no estudo da alimentação do Nordeste. Em resposta a esta crítica penetrante e construtiva, escrevemos em 1948 as seguintes palavras em apêndice à segunda edição deste livro: “O estudo mais aprofundado da subárea do sururu, obedecendo à mesma orientação metodológica, só poderá enriquecer, com certas singularidades locais, o panorama alimentar do Nordeste. Meditando um pouco sobre o assunto, chegamos mesmo à conclusão de que merece uma indagação sistemática o problema das possíveis correlações existentes entre a dieta daquelas populações que vivem nas margens das lagoas salgadas, infestadas de sururu (Mytilus alagoensis) e o seu biótipo constitucional. Nada conhecemos acerca do valor nutritivo desse molusco que constitui o alimento básico daquelas populações, mas levando em conta as mais recentes análises realizadas em outros países, que demonstraram a extraordinária riqueza alimentícia da fauna aquática, é de presumir que seja ele uma fonte nutritiva de valor inestimável. A sugestão de J. Fernando Carneiro tomou ainda maior consistência quando há poucos dias procedemos à leitura de um interessante trabalho de Mr. Maurice Fontaine — “Les Océans et les Mers, Sources de Vitamines”, publicado em 1945, mas que as dificuldades de comunicação com a Europa não nos permitiram conseguir senão recentemente. Nesse trabalho, demonstra o naturalista francês que, em teores iguais de vitaminas, os alimentos de origem marinha beneficiam muito mais do que os de origem terrestre. Esse trabalho, um outro de Billings e colaboradores sobre o conteúdo em vitaminas de complexo B de certos peixes e os recentes estudos acerca das antivitaminas, nos levaram a pensar numa revisão do problema de abastecimento em vitaminas das populações das praias e das margens das lagoas nordestinas. Posteriormente, por nossa sugestão, [pg. 149] nossos colaboradores no Instituto de Nutrição, Drs. Rubens de Siqueira, Emília Pechnik e Otílio Guernelli, levaram a efeito um trabalho experimental determinando a composição química do sururu alagoano através do qual se confirmaram as nossas suposições. O sururu representa um alimento de alta riqueza protídica, não só pelo teor de proteína que encerra, como pela ótima qualidade desta proteína revelada através da análise que foi procedida dos seus ácidos aminados. Representa também este molusco uma apreciável fonte de ácido nicotínico e de ferro.48 Já na zona dos engenhos e usinas escasseiam estes recursos da fauna aquática. É verdade que as terras dos engenhos e das usinas são quase sempre atravessadas pelos rios e riachos, muitos deles com peixes e crustáceos, carapebas, camorins, jundiaís e pitus que os índios utilizavam para suas muquecas. Mas infelizmente também esses recursos alimentares foram devastados pela sanha destrutiva das usinas. As suas caldas, ou sejam, os dejetos de suas engrenagens, com os resíduos de fabricação do açúcar despejados nas águas, têm sido uma causa terrível de matança de tudo quanto é peixe, ficando os rios quase que despovoados.49 48 R. de Siqueira, Emília Pechnik, Nabuco Lopes. Ottílio Guernelli — “Pesquisas sobre o Sururu Alagoano” — Arquivos Brasileiros de Nutrição — tomo 10, número 4, 1954. 49 “Chama-se calda ao dejeto proveniente da água utilizada nos aparelhos de fabricação do açúcar e do álcool. A calda é a água suja das usinas. Ela é sempre lançada no riacho ou no rio mais próximo. Um dos efeitos deste despejo é a matança do peixe, já observada por um nosso As populações costeiras têm a sua vida tão intimamente ligada à vida do mundo aquático que vivem quase dentro dágua, nos deltas dos rios, nos mangues das marés e nas margens das lagoas. São verdadeiras populações anfíbias, nem da terra nem da água, mas de uma zona de solo instável, formado pela permanente mistura dos dois elementos. Destas populações fazem parte os famosos jangadeiros do Nordeste, pescadores que passam a maior parte do seu tempo em alto mar, mantendo nas praias simples tendas de folhas de coqueiro que lembram as dos nômades pastores da Ásia, mostrando, através desse característico geográfico, [pg. 150] tratar-se também de um povo nômade, de um tipo muito especial de nomadismo — de nômades marinhos, pastoreadores de peixe. A riqueza proteica de sua alimentação, assim como o maior teor de sais minerais que os alimentos marinhos lhes fornecem, constituem fatores importantes na diferenciação antropológica desse tipo de homem da praia, biometricamente superior ao do homem do brejo. Predominam nas praias os longilíneos altos e magros, porém bem proporcionados, tendo a estatura elevada e sua longitipia condicionadas em parte pela riqueza de iodo dos alimentos marinhos e do próprio ar da praia, excitando permanentemente a sua tireóide, que é a glândula impulsionadora do crescimento longitudinal dos ossos. Não foi só através da fauna aquática que o homem da praia pôde melhorar seu regime local, mas também lançando mão de dois produtos vegetais de alto valor nutritivo: do coco e do caju. Dos frutos de duas árvores tipicamente praieiras, adaptadas aos solos arenosos. O coqueiro (Cocus nucifera) foi trazido da Índia e se aclimatou tão bem nas praias nordestinas que a sua silhueta constitui hoje o traço mais típico da paisagem vegetal da região. É uma árvore tão providencial que no Ceilão afirmam ser o indígena proprietário de 12 coqueiros um homem independente e haver para os frutos destas árvores tantos usos quantos são os dias do ano.50 Na cozinha nordestina, o coco entra numa infinidade de manjares, tendo sido seu uso ampliado grandemente pelo negro,51 em tal proporção que, segundo alguns estudiosos, o coco escritor, em tão grandes proporções que lhe evocou a visão de uma praga do velho testamento”, Mário Lacerda de Mello, Pernambuco, Traços de sua Geografia Humana, Recife, 1940. 50 Magalhães, Eduardo de, Higiene Alimentar, 1908. 51 “Fora o africano o introdutor do azeite-de-cheiro, do camarão seco, da pimenta-malagueta, do leite de coco e de outros alimentos no preparo das variadas refeições da Bahia”. Quirino, deve ser considerado um ingrediente típico da chamada cozinha baiana, mais que o próprio azeite-de-dendê e a pimenta.52 Com o coco se prepara feijão de coco, peixe de [pg. 151] coco, arroz de coco, vatapá, canjica, pamonha, mungunzá, doce de coco, cocada, e uma infinidade de outros pratos e doces característicos desta cozinha, de tão justificada fama universal. Usam-se no preparo desses pratos a polpa, tanto verde como madura, do coco, assim como o seu leite e às vezes o azeite. Com o uso do coco em tal abundância o nordestino do litoral aumenta a cota de gordura (a polpa do coco encerra 25% de gorduras) e de sais minerais de sua dieta. Não são as proteínas do coco de alto valor biológico, mas consumidas de mistura com as dos peixes e dos camarões da região tornam-se excelentes. Quanto ao cajueiro (Anacardium occidentale) é árvore nativa na região, primitivamente utilizada pelo indígena em sua alimentação habitual. Dos quinhentos milhões de cajueiros existentes no país 350 milhões estão localizados no Nordeste.53 O seu verdadeiro fruto é a castanha, que comida assada é muito saborosa e entra como tempero no preparo do vatapá e de outros quitutes regionais. Possui a castanha um teor de cerca de 20% de proteínas, as quais se revelaram, em testes biológicos realizados por F. A. Moura Campos, de um alto valor nutritivo.54 Mais do que a castanha, que é exportada hoje em escala regular, faz-se localmente uso do caju, que passa por ser o fruto da árvore, mas é apenas uma excrescência carnosa e aguada oriunda do pedúnculo floral anexo à castanha. O alto valor nutritivo do caju está em sua extraordinária riqueza, em ácido ascórbico. É tão alto o teor vitamínico da fruta que se lhe empresta um verdadeiro poder curativo. Muito antes de serem descobertas as vitaminas e conhecidas as suas propriedades, já o caju era apregoado pelos curandeiros como uma fruta milagrosa, curadora de inúmeros males. Fala-se muito no Nordeste nas curas de caju, nos doentes que vão para as praias limpar o sangue Manoel, Costumes Africanos no Brasil, 1938. 52 “Qualquer dos que aqui vivem e estudam um pouco os nossos costumes sabe que o mais característico de nossa culinária, sendo comum a estados litorâneos vizinhos em direção ao Nordeste, são muito menos os pratos de origem e inspiração africana, condimentados com o famoso azeite-de-dendê do que aqueles em que participam o leite de coco”. Azevedo, Thales de. Padrão Alimentar da População da Cidade do Salvador. 53 Mota, Mauro, O Cajueiro Nordestino, contribuição ao seu estudo biográfico, 1954. 54 Veja-se sobre o assunto o seguinte trabalho desse ilustre fisiolo-gista: “Valor da Proteína da Castanha do Caju”, ín Revista Médica Brasileira, ano 4.°, tomo 1, n.° 1, 1941, e também “Valor Nutritivo da Castanha do Caju”. ín Revista Médica-Cirúrgica, S. Paulo. n.° 1 e 2, 1941. Veja-se também o trabalho de Carvalho Nogueira. “Valor Biológico da Proteína da Castanha do Caju”, O Hospital n.° 1, 1941. com os banhos de mar e o regime de cajus e cajuadas. [pg. 152] Em seu livro publicado em 1908, Higiene Alimentar, Eduardo de Magalhães faz a apologia do caju: “Fala-se em cura de uvas, cura de mangas, de laranja, de limão, de cerejas e também de figos, maçãs e tâmaras. Bem, serão todas eficazes, não contesto, mormente a primeira, a cura de uvas; nenhuma, porém, competirá com a cura de caju. Indivíduos fracos, magros, eczematosos, reumáticos, enfastiados, diarréicos, sifilíticos, recolhendo-se no verão a uma das belas praias de Sergipe, onde os cajueiros amarelos e vermelhos são uma bela floresta, e atirando-se aos cajus cujo caldo ingerem chupando-os ou em cajuadas, de lá voltam nutridos, nédios, nem parecem os mesmos que para lá foram. Do caju se pode dizer que o próprio abuso é proveitoso.” No uso tão abundante do coco e do caju e de outras frutas da costa baseia-se uma das superioridades da alimentação litorânea sobre a da zona propriamente da mata, ou melhor, da cana. É verdade que nesta também dão os mesmos frutos, o próprio coqueiro se estende pelos vales adentro, indo alcançar e proliferar em pleno sertão,55 mas as condições econômico-sociais da zona da cana fazem uma pressão muito desfavorável ao seu uso. Enquanto nas terras litorâneas as árvores frutíferas são quase silvestres (o caju nasce espontaneamente, formando matas, e o coco se estende pelas praias com seus frutos e sementes carregados pelas marés e correntes marinhas), na zona dos canaviais essas árvores são concentradas nos pequenos pomares, ao lado das casas grandes. Pomares ridiculamente insuficientes, quase que decorativos, servindo só para inglês ver, ou quando muito para proveito exclusivo dos senhores ricos, interditados por todos os meios, antigamente, aos escravos das senzalas e hoje aos moradores das redondezas. Pensando bem, essa interdição é hoje quase desnecessária, porque o homem do povo no Nordeste açucareiro já perdeu o gosto e o hábito de comer fruta. Considera a fruta uma gulodice, como considera folha e verdura comida de lagarta. Comida de homem para essa gente é mesmo feijão, carne e farinha. [pg. 153] 55 Orlando Parahim, no livro O Problema Alimentar no Sertão, refere que no município de Salgueiro, no interior de Pernambuco, a 600 quilômetros do litoral, existem 2.200 coqueiros que produzem tão bem como nas praias distantes. E o que é mais curioso, como observamos pessoalmente, é que no sertão o coqueiro frutifica com metade do tempo com que o faz na praia. 11. Muito contribuíram para esse desamor — mais do que desamor, desprezo mesmo — do camponês pelas frutas do Nordeste, os tabus, as interdições de toda ordem criadas contra as mesmas e hoje enraizadas na alma do povo. Num estudo que realizamos há tempo sobre os tabus alimentares no Brasil56 recolhemos no Nordeste grande número dessas superstições alimentares, proibições, restrições ao uso de certos alimentos em determinados períodos, tudo sem nenhum fundamento biológico, puras sobrevivências culturais das interdições dos senhores a seus escravos e moradores. A verdade é que esses tabus se constituíram como uma espécie de policiamento moral que os proprietários mantinham para defesa dos seus bens. Não resta dúvida que foram os fundamentos econômicos a mola impulsionadora destes tabus. Veja-se o caso do próprio açúcar. Pernambuco, sendo o primeiro Estado produtor, está colocado na lista dos consumidores, per capita, no 14.° lugar do país. Por quê? Por que se consome tão pouco açúcar numa zona onde ele existe em tal abundância? É que o senhor de engenho, temeroso de que o apetite um tanto aguçado dos escravos os levasse a comer muito do seu rico açúcar, reservado com tanto zelo para a exportação, apregoou com tal vigor os seus perigos, os supostos malefícios que o açúcar traz — quando comido de manhã dando lombriga e quando comido a qualquer hora estragando os dentes — que assustou o pobre negro. Embora a cozinha regional seja abundante em doces e bolos, este consumo é exclusivo dos abastados, os mais pobres ainda hoje mantendo-se escabriados do açúcar, proibindo os meninos de chuparem balas, de comerem doces para não criar bicho na barriga. Afirmando e fazendo crer aos negros escravos, e depois aos moradores de suas terras, que não se deve misturar nenhuma fruta com álcool, que melancia comida no mato logo depois de colhida dá febre, que manga com leite é veneno, que laranja só deve ser comida de manhãzinha, que fruta pouco madura dá cólica, que cana verde dá corrimento, os senhores e os patrões diminuíam ao extremo as possibilidades de que os [pg. 154] pobres se aventurassem a tocar nas suas frutas egoisticamente poupadas para seu exclusivo regalo. Os tabus assim constituídos e propagados se tornaram verdadeiras barreiras 56 Castro, Josué de. Fisiologia dos Tabus, edição Nestlé. Rio. 3.a edição, 1938. psicológicas contra o uso das frutas — de frutas saudáveis e nutritivas, como a manga, a jaca, o abacaxi, a melancia, o abacate e a laranja —, frutas que, longe de serem nocivas, seriam do maior proveito para a saúde daquela gente. Seria um verdadeiro antídoto contra a alimentação monótona e principalmente desequilibrada pelo excesso de feculentos. Estes tabus, além de perturbarem de maneira nociva os hábitos alimentares locais, fizeram com que aquela gente perdesse todo o gosto pela fruta e se desinteressasse por completo do seu cultivo. Muitas culturas vegetais tiveram no mundo as suas áreas modificadas e a sua produção entravada ou mesmo extinta por influência de interdições de natureza religiosa. Assim cita Pierre Déffontaines o caso da vinha, que tinha sua área natural na África do Norte, mas que, diante dos preceitos de abstinência alcoólica do Alcorão, teve sua produção extinta em seguida à expansão do império maometano, através da África, vindo a se desenvolver numa nova área de produção, nas terras temperadas da Europa. Assim desapareceram as famosas vinhas de Cartago e Alexandria e surgiram as de Bordeaux e de Champagne, com suas produções estimuladas pelo cristianismo, que utilizava o vinho em suas oferendas. Esta falta de frutas acentua sobremodo as conseqüências do excesso proporcional de hidrocarbonados da dieta. Excesso habitual entre os mais abastados, pelo consumo de maior variedade de comidas, todas elas, porém, fontes quase que exclusivas de açucarados. São o aipim, o cará, o inhame, a batata-doce, o pão doce, os grudes, o mel, os beijus, os bolos, as pamonhas que fazem parte dos cafés, dos lanches, das ceias e das sobremesas das casas ricas e que enchem o organismo de amiláceos. Conseqüência deste excesso é a grande incidência do diabete em certas famílias de senhores de engenhos, as quais são dizimadas em sucessivas gerações por essa doença do metabolismo. Doença de exagero do uso de um princípio alimentar, rompendo a harmonia do regime. O açúcar em excesso de sua dieta desequilibrando as trocas metabólicas, como a cana desequilibrou de maneira tão nociva o metabolismo econômico da região. É como se a terra se vingasse do homem, fazendo-o [pg. 155] sofrer de uma doença semelhante à sua — o organismo todo saturado de açúcar. São também esses ricaços mal alimentados, com seus excessos de massas açucaradas, bem mais expostos que os pobres, com sua falta de tudo, aos perigos das avitaminoses B, das carências em tiamina, sempre insuficiente para metabolizar toda aquela sobrecarga de hidrocarbonados. Muita prisão de ventre, dispepsia e neurastenia de senhor de engenho tem seu fundo patogênico na avitaminose B frusta, não declarada em quadros patogênicos completos. Sofriam de avitaminose B, mesmo ingerindo boas doses dessa vitamina. Boas em condições normais, porém, insuficientes pelo vício alimentar, pelo desmedido excesso de açucarado na sua dieta habitual. Bigwood e Trolli57 fizeram observações no Congo Belga que confirmam esse mecanismo etiológico das avitaminoses B, desde as suas formas frustas até o beribéri declarado, pelo excesso proporcional de açúcar nas dietas. Verificaram que os negros da zona equatorial do Congo, vivendo de uma agricultura de mandioca e de banana, embora não disponham, em sua alimentação, do total energético necessário para cobrir as suas despesas calóricas totais, não apresentam sinais nem de avitaminoses nem de carências minerais francas. Quando, porém, esses nativos vêm trabalhar nas grandes empresas industriais, onde a alimentação fornecida é mais abundante, com um teor calórico mais elevado, à custa dó maiores cotas de farinha de mandioca, de milho e de arroz, começam logo engordando, mas são atacados em poucos dias pelo beribéri. O mecanismo que conduz ao aparecimento dessa manifestação de avitaminose é bem claro. Em sua vida primitiva o negro se mantém num déficit latente de vitamina B1, mas, como em seu regime alimentar não há excesso de hidrocarbonados a metabolizar, consegue manter-se em equilíbrio instável com sua avitaminose oculta. Logo, porém, que lhe é administrado um aumento de hidrocarbonados, sem haver um acréscimo proporcional de vitaminas, rompe-se definitivamente o equilíbrio e a avitaminose se torna aparente. É este um dos aspectos em que a alimentação dos ricos é ainda pior que a dos pobres, em que a alimentação dos senhores e a dos escravos, longe de ser das melhores, tornava-se [pg. 156] das mais carenciadas do país por seu excesso de hidrocarbonados em desproporção ao teor vitamínico da ração. 12. Das carências minerais, a mais generalizada e patente é a carência de ferro, manifestando-se sob a forma de anemia alimentar. Anemia que faz dos brejeiros uns tipos pálidos, chamados pejorativamente de amarelos pelos habitantes de outras 57 Bigwood e Trolli. “Alimentation au Congo Belgpe”. in La .Science de l’Alimentation en 1937. zonas, principalmente pelos sertanejos de sangue, mais rico, com melhores cores na cara; e que constitui um verdadeiro característico antropológico dessa gente, com sua pobreza de hemoglobina por falta de ferro e com seu sangue já ralo, espoliado pela verminose e pelo paludismo, que são endêmicos nessa região. Para se dar uma idéia da freqüência desse tipo de anemia basta referir os resultados da interessante pesquisa levada a efeito na Bahia por Tales de Azevedo e A. Galvão58 entre os escolares daquela cidade, e na qual foi encontrada uma percentagem de 40% das crianças com anemia declarada. Confirmando a sua origem alimentar estão os resultados dos exames hematológicos realizados após o uso, durante quatro meses, de um complemento alimentar, sob a forma de comprimidos, contendo ferro, cálcio e vitaminas59. A proporção de anêmicos havia baixado de 40 para 3,5%, apresentando-se a taxa de hemoglobina em 90% dos casos com um teor de 90 a 100%. Esta situação hematológica observada na capital baiana se apresenta ainda mais acentuada em outras zonas da área açucareira e contribui enormemente para o estado de apatia e depressão física em que vegeta o Jeca-Tatu nordestino. 13. Como conseqüência inevitável dessa fome crônica de ferro e, certamente, de alguns outros elementos minerais, decorre a grande incidência, nessa zona, do fenômeno da geofagia, [pg. 157] ao qual já nos referimos no estudo da área amazônica. Nos tempos coloniais, os viajantes estrangeiros que passavam pela zona do açúcar se impressionavam muito com aquele mau hábito dos meninos de engenho — de comerem terra — e atribuíam o fato ao contato maléfico dos meninos brancos com os moleques das senzalas que lhes transmitiam o feio vício africano60. É verdade que os negros africanos da Costa do Marfim, da Guiné e do Congo sempre foram bons comedores de terra. Mas também é verdade que, antes da chegada dos Paris. 58 Azevedo. Thales de e Galvão. Alfredo. Uma Pesquisa sobre a Su-plementação Nutritiva em Escolares. trabalho apresentado ao Primeiro Congresso Médieo-Social Brasileiro. Bahia. 1945. 59 Quando estivemos â frente do Serviço Técnico da Alimentação Nacional, preconizamos, como medida de emergência contra as carências minerais e vitamínicas, acentuadas de maneira alarmante no país pelas dificuldades de abastecimento que a guerra acarretou, o uso de complementos alimentares na nutrição de coletividades escolares, militares, hospitalares, etc. Desses complementos alimentares foram fabricados. segundo fórmula daquele Serviço Técnico, comprimidos contendo ferro, cálcio e vitaminas, tanto sintéticas como obtidas da farinha de alfafa, da casca do arroz e do óleo do cação. Com esse tipo de complemento fornecido ao governo do Estado da Bahia e aí usado por nossa sugestão, é que foram realizadas as pesquisas a que fizemos alusão. negros no Nordeste, já o índio tinha o vício da geofagia, atribuído com razão à verminose, por Schiafino. Tanto lá na África como aqui no Brasil, negros e índios se atiravam à terra com apetite, sob a pressão da fome específica, da necessidade imperiosa de ingerirem os sais minerais, negados ao seu organismo por dietas incompletas. Quando os molequinhos do Nordeste e os anêmicos senhorzinhos brancos comiam às escondidas seus bolõezinhos de barro estavam corrigindo instintivamente as deficiências minerais de uma alimentação incompleta, imposta pela monocultura da cana. Estavam eles a merecer, em lugar de reprimendas e castigos, elogios pela presteza com que se medicavam, ou melhor ainda, um bom regime alimentar que os livraria depressa desse “vício” com mais eficiência do que as horríveis máscaras de Flandres que eram afiveladas a suas carinhas magras, como mordaça em boca de cachorro mordedor ou os intermináveis castigos de dias e dias a fio, pendurados dentro de um balaio até que largassem o hábito abominável de comer terra. Ainda há pouco em certas zonas, como a do Pontal da Barra, em Alagoas,61 vendiam-se nas bodegas, ao lado do bacalhau e do sabão, tijolinhos de barro de massapé bem cozidos, para regalo dos viciados. São em geral terras ricas em ferro, [pg. 158] em cálcio ou em fósforo62. Se uns comem o barro assim elaborado, como um verdadeiro produto alimentar, a maioria se contenta em ingeri-lo incorporado naturalmente a certos alimentos da região. Assim, os moradores das lagoas em torno de Maceió, quando comem o seu sururu mal lavado, estão a ingerir grandes quantidades da lama que esta espécie de marisco guarda em seu organismo. A taxa bem baixa de cálcio que o regime encerra faz prever graves perturbações no metabolismo desse mineral. Mas a verdade é que suas exteriorizações manifestas constituem uma raridade. Não há praticamente o raquitismo na região pelas razões já anteriormente apresentadas. É esta uma das regiões de piores dentes do país e certamente o déficit em cálcio trabalha para esta decadência. 60 Koster. Henry. Travels in Brazil. Londres. 1816. 61 Lima. Jorge de. Calunga. 62 Veja-se sobre o assunto o trabalho de Maurice Uzin, “Geophagie” in La Medicine Chez Lui, fevereiro, 1938, onde se lêem referências aos exames feitos em terras comestíveis por Cobert na Tunísia, por Remlin-ger em Marrocos, por Batz no Congo e por outros pesquisadores no território de Quénia e de Tanganika. Não nos consta que até hoje se tenha realizado algum trabalho acerca da composição de terras comestíveis no Brasil. 14. No que diz respeito às manifestações de avitaminoses, não são elas tão abundantes como seria de esperar tomando-se em conta apenas a análise dos elementos que entram na composição da dieta básica. As avitaminoses A, em suas formas extremas de xeroftalmia e de queratomalácia, cegando grande número de indivíduos como ocorre na Índia,63 são relativamente raras na zona da mata. Mais raras do que era de supor, pela análise do regime pobre em gorduras, fontes desses princípios essenciais e mais raras do que antigamente, no tempo da escravidão, quando a queratomalácia assolava entre os pobres negros escravos em proporções muito mais altas. O notável médico patrício, Dr. Manoel da Cama Lobo,64 fazia, em 1865, uma comunicação à Academia de Medicina sobre uma doença dos olhos que chamava “oftalmia brasileira”, comum entre os negros escravos e que não é outra coisa que [pg. 159] a xeroftalmia carencial. Já naquele tempo compreendera o ilustre clínico a origem dessa doença, quando afirmou: “a causa desta oftalmia é a falta de nutrição conveniente e suficiente a que estão submetidos os escravos dos fazendeiros... o organismo pobre de princípios vitais não pode fornecer os princípios necessários para nutrição da córnea.” É extraordinária a intuição científica de Gama Lobo, nestes recuados tempos em que não se falava, nem mesmo se suspeitava, da existência das vitaminas. Devemos anotar, também, a notável intuição científica daquele que primeiro registrou tais tipos de oftalmias em terras americanas — Wilhelm Pies. O célebre médico de Maurício de Nassau, mais conhecido pelo nome latinizado de Piso, em sua notável obra De Medicina Brasilensi, publicada na Holanda em 1648, faz referência à existência, entre os soldados e a plebe, da hemeralopia e atribui o mal à má alimentação: “os pobres e os soldados comem alimentos corrompidos”, afirma o notável médico holandês.65 Os negros escravos, com sua alimentação fornecida pelo senhor, alimentação quase que exclusiva de feijão com farinha e angu de milho com toucinho, ficavam 63 Aykroyd, W. R., op. cit. 64 Lobo, M. da Gama, “Da Oftalmia Brasiliana”, in Ann. Bras. Me-dic., n.° 1, junho de 1865. 65 Para conhecimento mais detalhado do assunto, consulte-se o trabalho de Hermínio de Brito Conde — “Evolução da Oculistica no Brasil”. Hora Médica, julho de 1939, no qual este oftalmologista COPYRIGHT JOSUÉ DE CASTREO

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