segunda-feira, 28 de maio de 2012
MISÉRIA E FOME NO SEMI-ÁRIDO
Contradições territoriais: signos do modelo aplicado na Amazônia 361
18, n. 1/2, p. 339-360, jan./dez. 2003
ENTRE DOIS PARADIGMAS: combate à seca e
convivência com o semi-árido
Roberto Marinho Alves da Silva*
Resumo: Grande parte dos diagnósticos e proposições sobre
o semi-árido brasileiro tem como referência imagens
historicamente construídas sobre um espaço-problema, terra
das secas e da miséria. Na primeira metade do século XX,
surgem olhares críticos sobre as causas estruturais e
conseqüências da miséria regional. Essa perspectiva crítica
volta a ganhar força na década de 1980, com as propostas e
ações para convivência com o semi-árido. Tanto o combate à
seca quanto a convivência com o semi-árido vinculam-se a
visões de mundo que orientam os conhecimentos e práticas
dos atores sociais, influenciando a formulação e execução de
políticas públicas no semi-árido. O presente artigo analisa as
relações entre essas duas perspectivas com os diferentes
paradigmas de desenvolvimento no semi-árido brasileiro.
Palavras-chave: semi-árido brasileiro, paradigmas de
desenvolvimento.
Muito tem sido dito e escrito sobre a realidade do semi-árido
brasileiro e as possíveis alternativas para o seu desenvolvimento.
Geralmente, os diagnósticos e as proposições têm como referência
imagens historicamente construídas sobre um espaço-problema, terra
das secas, região de fome e da miséria, explicação do atraso
econômico e das disparidades regionais. Essas imagens são fruto de
julgamentos superficiais sobre a realidade do semi-árido e dos
interesses políticos das elites locais que explicavam a miséria, a fome
e o atraso como produtos de condições naturais adversas, do clima,
da terra e da formação de sua gente.
* Filósofo, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Artigo recebido em 28 jul. 2003; aprovado em 2 set. 2003.
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No discurso institucional e em parte da literatura regional, o
Nordeste surge como a “terra das secas”, merecedora de atenção
especial do poder público. Conforme os estudos de Albuquerque Júnior
(1999), a institucionalização das secas no final do século XIX, com o
“auxílio aos flagelados” na seca de 1877-1879 e das primeiras “obras
contra a seca”, torna-se um poderoso instrumento regionalista para
unificação do discurso de grupos políticos dominantes do “Norte”,
na conquista de espaços no Estado republicano, comandado pelas
oligarquias do Sudeste. A seca, divulgada nacionalmente como um
grave problema, torna-se um argumento político quase irrefutável
para conseguir recursos, obras e outras benesses que seriam
monopolizadas pelas elites dominantes locais.
Na literatura, na dramaturgia, na música e nas artes plásticas
do início do século XX, o tema da seca também apareceu como um
fenômeno relacionado aos desastres sociais e morais, uma fatalidade
que desorganizava o modo de vida das famílias e da sociedade, sendo
responsabilizada pelos conflitos sociais na região (o cangaço e o
messianismo), naturalizando as questões sociais (Albuquerque Júnior,
1999, p. 121). Os Sertões, de Euclides da Cunha, retrata a área de
domínio do semi-árido como uma realidade hostil ao sertanejo. O
Quinze, de Raquel de Queiroz, também retrata a seca como explicação
da desorganização da vida.
Porém, nesse mesmo período surgem outros olhares críticos
sobre as causas estruturais e as conseqüências da miséria que assola a
região semi-árida. Em sua Geografia da Fome, Josué de Castro
denuncia que a seca foi feita vilã do drama nordestino, acobertando
as formas dominantes da exploração econômica que criaram e
reproduziram a concentração das riquezas e do poder político, gerando
miséria e dependência de milhares de sertanejos. A concentração
fundiária e a exploração da mão-de-obra dos sertanejos têm destaque
na explicação da manutenção da miséria na região semi-árida.
Alguns escritos literários da época também contribuem para
desfazer mitos criados sobre a realidade do sertão nordestino. No
livro Linhas Tortas, Graciliano Ramos denuncia as distorções e abusos
na descrição literária, nas matérias jornalísticas e nos discursos
políticos sobre a seca e suas conseqüências:
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Realmente, os nossos ficcionistas do século passado contaram tantas
cenas esquisitas, derramaram no sertão ressequido tantas ossadas,
pintaram o sol e o céu nordestino com tintas tão vermelhas, que alguns
políticos, sinceramente inquietos, pensaram em transferir da região
maldita para zonas amenas toda a população da região. (Ramos apud
Albuquerque Júnior, 1999, p. 200)
No final da década de 1950, o Grupo de Trabalho para o
Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), coordenado pelo economista
Celso Furtado, confirma que as ações governamentais de combate à
seca, além de ineficazes, contribuíram para reprodução das crenças
difundidas pelas elites locais de que a seca era responsável pelo
subdesenvolvimento regional. O excedente demográfico e as
fragilidades da produção de subsistência também ganham espaços
nos debates sobre a realidade do semi-árido e sobre as alternativas de
desenvolvimento regional.
A partir dos anos 1960, começa a ser construída outra imagem
do semi-árido brasileiro, com a implantação de pólos agroindustriais
que se especializaram em fruticultura irrigada para exportação. A
irrigação ganhou força ao lado da solução hídrica e passou a se
constituir em sonho de redenção regional. Apesar disso, na sua maior
porção, o semi-árido permaneceu uma área tradicional e estagnada.
A situação estrutural de pobreza ainda se transforma em calamidade
nas estiagens prolongadas.
Nesse contexto de inovação e continuidade, surge, na década
de 1980, outro discurso sobre a realidade regional e as alternativas
sustentáveis de desenvolvimento do semi-árido brasileiro. Um
conjunto de organizações não-governamentais (ONGs) que atuam no
semi-árido e algumas instituições públicas de pesquisa e extensão
rural, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)
e a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural
(Embrater), passaram a desenvolver propostas e a experimentar
alternativas baseadas na idéia de que é possível e necessário conviver
com a seca e o semi-árido. Em 1982, a Embrapa divulgou um
documento intitulado convivência do homem com a seca, sugerindo
a implantação de sistemas de exploração de propriedades agrícolas
para assegurar a convivência do homem com a seca.
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No final da década de 1990, cerca de cinqüenta organizações
não-governamentais constituíram a Articulação do Semi-Árido (ASA).
Durante a Terceira Sessão da Conferência das Partes das Nações
Unidas da Convenção de Combate à Desertificação (COP 3), ocorrida
em Recife-PE, em 1999, a ASA lançou a Declaração do Semi-Árido,
afirmando que a convivência com as condições do semi-árido
brasileiro e, em particular, com as secas é possível. O documento
apresenta um conjunto de propostas baseadas em duas premissas: a
conservação, uso sustentável e recomposição ambiental dos recursos
naturais do semi-árido; e a quebra do monopólio de acesso à terra, à
água e aos outros meios de produção.
Nos últimos anos, programas governamentais federais para o
semi-árido, como o Sertão Cidadão (2001/2002) e o Programa
Conviver (2003), incorporaram o discurso da sustentabilidade do
desenvolvimento como um de seus referenciais, embora com enfoques
e diferentes graus de adesão às alternativas de convivência com o
semi-árido brasileiro, propostas pela sociedade civil organizada e os
institutos de pesquisa e extensão rural.
Esses diferentes enfoques e imagens historicamente construídas
influenciam até hoje as propostas de desenvolvimento do semi-árido
brasileiro. Não se trata apenas de opções políticas diferentes quanto
a uma problemática regional. Percebe-se que estas duas perspectivas,
do combate à seca e da convivência com o semi-árido, estão
estreitamente articuladas com diferentes paradigmas1 de
desenvolvimento que informam as percepções sobre aquela realidade,
selecionam os problemas e os seus enfoques específicos e indicam os
modelos válidos de intervenção na superação de seus problemas
específicos.
No presente artigo, busca-se identificar e explicitar as conexões
entre as perspectivas acima citadas com dois paradigmas: o da
modernidade e o da sustentabilidade do desenvolvimento. Para a
presente análise foram realizados estudos em fontes bibliográficas,
recorrendo a autores que tratam da questão do semi-árido brasileiro,
com destaque para as formas históricas de intervenção naquela
realidade, e às obras que analisam as bases dos diferentes paradigmas
ou modelos de desenvolvimento. Também foram realizados estudos
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documentais com acesso a programas governamentais e da sociedade
que foram formulados nas décadas de 1980 e 1990.
O resultado do estudo confirma a existência das conexões entre
do combate à seca com as bases do atual modelo civilizatório de
desenvolvimento: a concepção mecanicista de explicação de
fenômenos naturais, a perspectiva tecnicista de domínio humano sobre
a natureza e a finalidade economicista de exploração e produção de
riquezas como parâmetro de desenvolvimento. Também foram
explicitadas algumas conexões entre a perspectiva de convivência
com o semi-árido com um novo paradigma do desenvolvimento
sustentável que está ainda em construção, com destaque para os
seguintes aspectos: a percepção de complexidade informando o
conhecimento da realidade; a busca do equilíbrio entre meio ambiente
e produção de riquezas; a satisfação das necessidades e renovação
das aspirações humanas como finalidade do desenvolvimento.
O semi-árido brasileiro: espaço de complexidades
As regiões semi-áridas são caracterizadas, de modo geral, pela
aridez do clima, pela deficiência hídrica com imprevisibilidade das
precipitações pluviométricas e pela presença de solos pobres em
matéria orgânica. O prolongado período seco anual eleva a
temperatura local caracterizando a aridez sazonal. Na América do
Sul existem três espaços caracterizados pela semi-aridez. A área de
domínio do semi-árido brasileiro, também conhecida como a grande
região seca dos sertões nordestinos, é, segundo Ab’Sáber (2003), a
mais homogênea delas do ponto de vista fisiográfico, ecológico e
social.
O semi-árido brasileiro é o maior do mundo em termos de
extensão e de densidade demográfica. Segundo a última delimitação
feita pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
(Sudene), a área de domínio do semi-árido abrange 895.931,3 km2
(10,5% do território nacional), corresponde a 86% da região Nordeste,
nos estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba,
Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia; e mais a região setentrional
de Minas Gerais. Uma atualização da área de abrangência do semi366
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árido, realizada em 1999 pela Sudene, identificou 1.031 municípios,
com uma população total de 21 milhões de pessoas (cerca de 13,5%
da população brasileira).
A insuficiência e irregularidade na distribuição de chuvas, com
médias anuais entre 268 e 800 mm, a temperatura elevada e a forte
taxa de evaporação são características que se refletem no modelamento
da paisagem predominante. A hidrologia e a vegetação são totalmente
dependentes do ritmo climático. O longo período seco, com alta
evaporação, leva a uma desperenização generalizada dos rios, riachos
e córregos endógenos. Trata-se, portanto, de um conjunto de fatores
hidrológicos e ecológicos relacionados ao clima semi-árido regional,
“muito quente e sazonalmente seco, que projeta derivadas radicais
para o mundo das águas, o mundo orgânico das caatingas e o mundo
socioeconômico dos viventes dos sertões” (Ab’Sáber, 2003, p. 85).
Um dos fatores marcantes da paisagem do semi-árido é a
vegetação de caatinga, que na língua indígena quer dizer mata branca.
Trata-se de um bioma caracteristicamente brasileiro, com alta
biodiversidade, onde se destaca a formação vegetal xerófila (adaptada
à seca) com folhas pequenas que reduzem a transpiração, os caules
suculentos para armazenar água e as raízes espalhadas para capturar
o máximo de água durante as chuvas. Além das cactáceas, destacamse
espécies arbóreas, herbáceas e arbustivas, sendo algumas endêmicas.
Ao caírem as primeiras chuvas, a caatinga perde seu aspecto rude e
torna-se verde e florida, inspirando o poeta sertanejo: “Chegando o
tempo do inverno, tudo é amoroso e terno, sentindo o Pai Eterno sua
bondade sem fim. O nosso sertão amado, estrumicado pelado, fica
logo transformado no mais bonito jardim” (Patativa do Assaré. A festa
da natureza).
Apesar dessas características gerais, o semi-árido brasileiro é
uma realidade complexa, tanto no que se refere aos aspectos geofísicos,
quanto à ocupação humana e à exploração dos seus recursos naturais.
A complexidade é percebida também nas atividades econômicas, com
a coexistência de áreas tradicionais ou estagnadas de plantios de
sequeiro e as áreas de modernização intensa de plantios irrigados.
Aziz Ab’Sáber (2003) destaca, com base em trabalho realizado
por George H. Hargreaves para a Sudene no início da década de 1970,
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a existência de quatro faixas regionais de clima seco no interior do
semi-árido: as faixas semi-áridas acentuadas ou subdesérticas
(conhecidas popularmente como “sertão bravo”); as faixas semi-áridas
rústicas ou semi-áridas típicas (os “altos sertões”); as faixas semiáridas
moderadas (caatingas agrestadas); e as subáreas de transição
ou faixas subúmidas (os agrestes).
O desconhecimento da complexidade do semi-árido conduziu
à introdução de práticas agropecuárias inadequadas, provocando ou
agravando desequilíbrios ambientais. Estudos realizados pelo
Ministério do Meio Ambiente (2002) indicam que 68% da área está
antropizada, sendo 35,3% extremamente antropizada. Além disso,
as maiores áreas brasileiras que sofrem processo de desertificação2
estão localizadas nessa região.
A introdução de práticas econômicas e tratos culturais nem
sempre adequados aos ecossistemas locais é fruto do processo de
ocupação do semi-árido. Segundo Manuel Correia da Andrade (1999),
a pecuária foi a primeira forma de ocupação do espaço semi-árido no
período colonial. A pecuária extensiva exigia amplas áreas de terras,
transformando-se na base produtiva do latifúndio e do poder dos barões
e dos coronéis, tendo por pressuposto a expulsão dos povos indígenas
(Ribeiro, 1995; Ab’Sáber, 2003) e, conseqüentemente, a destruição
de estilos de vida dos povos indígenas, primeiros habitantes da região.
Já a agricultura de subsistência, base do minifúndio, foi sendo
desenvolvida largamente através das “roças de matuto”, que
produziam gêneros alimentícios (mandioca, feijão, milho) para o autoabastecimento.
3
Nos dois casos, prevaleceram atividades e tratos culturais
agropecuários inapropriados (queimadas, desmatamentos nas margens
dos mananciais, implantação de culturas adversas) que provocam a
degradação ambiental no semi-árido, tornando-a uma das áreas
brasileiras mais erodidas pelo uso intempestivo da terra. O zoneamento
proposta pela Embrapa (1993) indica que 36% da área de domínio
do semi-árido (cerca de 35 milhões de hectares) tem fortes restrições
ao uso agrícola. É exatamente nessas áreas de restrição que ocorrem
os processos de desertificação. A perda gradual da fertilidade
biológica do solo é resultado do manejo inadequado da terra, associado
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às variações climáticas locais e às características do solo pedregoso
ou impermeável.
Além das fragilidades ambientais, essa região tem sido cenário
de enormes contradições e injustiças sociais. Para a maioria das
pessoas que reside no semi-árido, ser cidadão é um desejo e uma
utopia. Ainda hoje, os indicadores sociais nas áreas de mortalidade
infantil, educação e renda per capita do semi-árido, são os piores em
relação à média nacional.
O Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil4 revela que
80% dos municípios do Nordeste, com 46% da população regional,
tem um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre 0,500 e
0,650. Estes percentuais estão bem acima da média nacional, com
apenas 31% dos municípios e 15% da população nessa faixa. Na faixa
mais elevada do IDH (entre 0,800 e 1,000), o Nordeste tem apenas
0,1% dos seus municípios com 5% da população. No Brasil, nessa
faixa mais alta, encontram-se 10,4% dos municípios e 37% da
população. Quando são considerados apenas os municípios do semiárido
as distâncias são ainda maiores em relação à média nacional.
A situação de pobreza e miséria assume proporções de
calamidade com as freqüentes estiagens prolongadas, quando as
chuvas são insuficientes ou irregulares para permitir a produção e a
subsistência dos sertanejos que, mesmo em anos normais, vivem em
condições limite da pobreza (GTDN, 1959, p. 65).
A miséria que explode nos períodos prolongados de seca é uma
expressão das formas históricas de ocupação dos espaços e utilização
dos recursos com base na concentração fundiária. Na década de 1940,
Josué de Castro denunciou largamente a concentração da propriedade
agrária como um dos elementos estruturais do fenômeno da fome e
da miséria no semi-árido. Otomar de Carvalho, quase 50 anos depois,
renova a constatação:
Assim, a estrutura agrária constitui uma das fontes básicas do atraso
no Nordeste Semi-Árido, em virtude de sua forte concentração nas
mãos de um pequeno grupo de proprietários de terra, impedindo sua
utilização econômica e social por quem queira e necessite fazer uso
produtivo – os inúmeros pequenos produtores rurais. (Carvalho, 1988,
p. 140)
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As secas na região semi-árida brasileira só passaram a ser
consideradas como problema nacional a partir da segunda metade do
século XVIII. Além da grande mortandade de pessoas na seca de
1877, pesavam interesses políticos dos coronéis com as perdas dos
rebanhos e com a possibilidade de ampliar as suas riquezas por meio
da situação de calamidade instaurada. Dessa forma, conseguem
colocar a seca a seu serviço e fazem dela um grande negócio,
popularmente intitulado de “indústria da seca”:
Entre o poder federal e a massa flagelada pela seca medeia, porém, a
poderosa camada senhorial dos coronéis, que controla toda a vida do
sertão, monopolizando não só as terras e o gado, mas as posições de
mando e as oportunidades de trabalho que enseja a máquina
governamental. (...) Esses donos da vida, das terras e dos rebanhos
agem sempre durante as secas, mais comovidos pela perda de seu gado
do que pelo peso do flagelo que recai sobre os trabalhadores sertanejos,
e sempre predispostos a se apropriarem das ajudas governamentais
destinadas aos flagelados. (Ribeiro, 1995, p. 348)
O uso político da seca vem sendo reproduzido até os dias atuais,
transformando-a no “cavalo de batalha em cujos costados se põe
toda a culpa da miséria nordestina” (Castro, 1968, p. 90). Essa
percepção tem orientado as formas de intervenção no semi-árido, com
a idéia do combate à seca e seus efeitos.
O combate à seca e o paradigma civilizatório da
modernidade
De modo geral, as ações governamentais de intervenção nessa
realidade foram sendo construídas com base nas seguintes
características: a) o caráter emergencial, fragmentado e descontínuo
dos programas desenvolvidos em momentos de calamidade pública;
b) as ações emergenciais que alimentam a “indústria da seca”; e, c) a
solução hidráulica, com a construção de obras hídricas, quase sempre
favorecendo empreiteiras e a grande propriedade rural. Em todas essas
características reproduz-se o uso político do discurso da miséria e do
subdesenvolvimento como decorrência direta das secas.
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As ações de combate à seca decorriam também de uma visão
tecnicista das problemáticas do semi-árido. A Inspetoria Federal de
Obras Contra as Secas (IOCS), órgão governamental de engenharia
criado em 1909 para atuar na região, considerava que o combate à
seca consistia, sobretudo no armazenamento de água (política de
açudagem), esquecendo-se, no entanto, “que a água armazenada era,
em grande parte, perdida pela evaporação, em um clima quente e
seco” (Andrade, 1999, p. 55).
Ao analisar essa forma de intervenção no semi-árido, Aziz
Ab’Sáber (1999, p. 99), indica outras falhas de funcionalidade social
dos grandes açudes que não foram concebidos para garantir melhoras
na produção agrícolas. Alguns estavam localizados longe de várzeas
irrigáveis e os que favoreciam a distribuição de água por gravidade
para áreas irrigáveis atendiam a um número limitado de famílias.
Dessa forma, para Josué de Castro, a maioria dos açudes
públicos que foram construídos para combater os efeitos das secas,
além de não constituírem solução definitiva ao problema, foram
apropriados pelos grandes proprietários de terra:
Mais grave ainda que a miopia técnica fora a mistificação política em
que caíra este organismo ao qual competia, também, a distribuição e
aplicação das polpudas verbas para ajuda aos flagelados das secas.
Nenhum outro organismo técnico fora tão desvirtuado em seus
objetivos do que este que canalizava para os bolsos dos senhores de
terras e dos seus apaziguados quase todos os recursos que deviam ser
destinados a alimentar, a educar, a ajudar a viver os camponeses da
região. (Castro, 1967, p. 194)
Pode-se identificar também uma forte vertente economicista
que orientou as primeiras formas de colonização do semi-árido,
baseadas no uso de suas riquezas naturais e na exploração da força de
trabalho local.
A ocupação do semi-árido ocorreu com a formação das grandes
fazendas de gado para o fornecimento de carne, couro e animais de
tração às áreas produtoras de cana de açúcar na zona da mata. Além
da pecuária e da produção de alimentos para subsistência, o cultivo
do algodão se disseminou no semi-árido no século XVIII como uma
cultura resistente aos períodos anuais de estiagem e como alternativa
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de enriquecimento dos proprietários das grandes fazendas de gado.
O crescimento da produção do algodão no semi-árido levou a um
aumento da exploração dos pequenos produtores pelos grandes
fazendeiros, que se tornaram intermediários comerciais das grandes
empresas inglesas que controlavam o valor comercial da mercadoria.
Nas últimas décadas, algumas áreas experimentaram processos
de modernização econômica (pólos agroindustriais), constituindo um
novo modelo produtivo no semi-árido. Esse processo é resultado da
combinação de três elementos principais: as condições físicoclimáticas
favoráveis, os investimentos tecnológicos para o
desenvolvimento da fruticultura irrigada e a intensa participação do
setor público, cuja “presença foi fator fundamental para explicar a
intensidade e os rumos do crescimento econômico ocorrido” (Araújo,
1997, p.12).
O desenvolvimento recente de algumas ilhas de modernidade
no semi-árido é fundamentado na crença de que o modelo de
agribussiness deve gerar maior agregação de valor à produção local,
permitindo incrementos expressivos no nível de emprego e de renda,
contribuindo para o desenvolvimento da região. Com isso, a região é
vista como um espaço do mercado onde as instituições empresariais
podem desenvolver suas operações de capital.
Predomina a lógica do mercado sobre o discurso da
sustentabilidade ambiental e do desenvolvimento humano: as pessoas
e os recursos ambientais são vistos na perspectiva empresarial, como
vantagens competitivas e comparadas:
Numa visão moderna, o Banco do Nordeste entende que a questão
ambiental é considerada como uma variável econômica e não
simplesmente ecológica, sendo relacionada à competitividade e à
oportunidade de negócios. Não se trata, portanto, de um aspecto
restritivo da atividade econômica, mas ao contrário, reflete uma
aproximação entre meio ambiente e desenvolvimento, onde o próprio
mercado é utilizado para induzir um manejo ótimo e sustentável dos
recursos naturais e de aspectos sociais relacionados com a sua
exploração. (França, 2000, p. 112)
De modo geral, as alternativas apresentadas para enfrentamento
das problemáticas do semi-árido são parte de um modelo de
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desenvolvimento fundamentado no “progresso” técnico e no domínio
da natureza, colocando o crescimento econômico e a acumulação
dos bens como suas finalidades últimas.
O combate à seca e o utilitarismo economicista na exploração
dos recursos naturais estão diretamente relacionados ao paradigma
da modernidade. Para Capra (1999), esse paradigma baseia-se nas
seguintes crenças: o método científico como única abordagem válida
do conhecimento; a concepção do universo como um sistema mecânico
composto de unidades materiais elementares; a concepção da vida
em sociedade como uma luta competitiva pela existência; e a crença
no progresso material ilimitado, a ser alcançado através do crescimento
econômico e tecnológico.
Com base nesse paradigma, o semi-árido é visto a partir de
uma perspectiva utilitarista de ocupação e de aproveitamento de seus
recursos, transformando-os em riquezas. As ações dos governos trilham
essa lógica. A seca surge como empecilho natural, um elemento que
deve ser combatido. Por isso a lógica do combate à seca é reducionista.
Resulta na manutenção da miséria. Funciona como uma estratégia
perversa de manutenção e controle de uma região que, a princípio, e
com raras exceções, não cabe na lógica do modelo de desenvolvimento
que predomina.
O combate à seca, afina-se perfeitamente com o paradigma
antropocêntrico da dominação da natureza. É com a modernidade
que se afirma a dominação humana, “como um ser especial que dispõe
da terra como herança”. Para Bartholo Júnior (1984, p. 75), a
dessacralização da natureza atinge seu ápice nas sociedades modernas
e torna possível a “sua redução a um objeto de livre manipulação
técnica, um reservatório de matéria e energia disponível (...) a serviço
da elevação progressiva do bem-estar material do homem”.
A crença nas leis naturais e na capacidade da ciência de
desvendá-las com vistas à geração de valor de troca, estabelece os
parâmetros de relação entre homem e natureza. A ciência moderna
se fundamenta nas regularidades objetivas, matematicamente
descritíveis, capazes de desvendar os segredos da natureza: “o objetivo
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da ciência passou a ser aquele conhecimento que pode ser usado para
dominar e controlar a natureza e, hoje, ciência e tecnologia buscam,
sobretudo fins profundamente antiecológicos” (Capra, 1999, p. 51).
Na concepção cartesiana, a natureza é uma máquina perfeita,
governada por leis matemáticas exatas. O universo newtoniano era
um sistema mecânico gigante que funcionava de acordo com leis
mecânicas exatas. Essas concepções forneceram as sanções para a
manipulação e exploração científicas da natureza.
A natureza é tão só extensão e movimento; é passiva, eterna e reversível;
mecanismo cujos elementos se podem desmontar e depois relacionar
sob a forma de leis; não tem qualquer outra qualidade e dignidade
que nos impeça de desvendar os seus mistérios, desvendamento que
não é contemplativo, mas antes ativo, já que visa conhecer a natureza
para a dominar e controlar. Como diz Bacon, a ciência fará da pessoa
humana ‘o senhor e o possuidor da natureza. (Santos, 1993, p. 13)
Da mesma forma que a sociedade moderna é fundada no
distanciamento e estranhamento entre o homem e a natureza, o
combate à seca é apenas mais uma expressão desse modelo ou padrão.
Indica a crença na capacidade do progresso como solução técnica
aos problemas. A sua finalidade implícita é domar a natureza, a seca,
os efeitos da seca. Indica um distanciamento entre ser humano e
natureza, entre o ser humano e uma terra e climas amaldiçoados.
Ao apresentar essa constatação de forma crítica, não se pretende
defender uma simples acomodação diante das problemáticas locais
do semi-árido, incluindo aquelas intimamente ligadas aos períodos
prolongados de estiagem. A perspectiva da convivência, como
veremos adiante, implica numa atuação pró-ativa diante da natureza
e de seus fenômenos, buscando aproveitar de forma sustentável suas
potencialidades para satisfação das necessidades humanas.
Não é essa a perspectiva baseada no domínio humano sobre a
natureza. O crescimento tecnológico criou um meio ambiente no qual
a vida se tornou física e mentalmente doentia. A produção e o consumo
se aceleram em ritmo febril pondo em risco as reservas naturais. A
miopia ecológica soma-se à ganância empresarial. A exploração
desordenada dos recursos e a acumulação das riquezas têm como
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Sociedade e Estado, Brasília, v. 18, n. 1/2, p. 361-385, jan./dez. 2003
conseqüências a perda do equilíbrio ambiental, com as ameaças
iminentes de esgotamento de recursos naturais, e a exclusão social de
bilhões de pessoas.
As numerosas manifestações da crise indicam que se trata de
uma crise civilizatória, uma crise complexa, onde os problemas são
sistêmicos, interdependentes. A humanidade encontra-se numa
encruzilhada civilizatória, frustrada com a confirmação de que a noção
moderna de desenvolvimento não passa de um mito:
O estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será o
privilégio de uma minoria. O custo em termos de depredação do mundo
físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de
generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma
civilização, pondo em risco a sobrevivência da espécie humana.
(Furtado, 1974, p. 75)
Da mesma forma, já faz algum tempo, constata-se a frustração
das políticas de combate à seca que são orientadas pelos modelos que
conformam o paradigma da modernidade. Em 1959, o Grupo de
Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), alertava sobre
a ineficiência do combate aos efeitos da seca: “Por motivos diferentes,
nem as medidas de curto prazo nem as de longo prazo contribuíram,
até o presente, para modificar fundamentalmente, os dados do
problema” (GTDN, 1959, p. 70). Essa mesma constatação pode ser
aplicada à situação do semi-árido no início do Século XXI, quando
as situações de emergência e calamidade continuam a se repetir na
região que ainda concentra percentuais de pobreza e miséria. Diante
das crises e frustrações, o semi-árido brasileiro requer um novo
paradigma que oriente o desenvolvimento sustentável da região,
desmistificando as problemáticas e as tentativas frustradas de combate
à seca e seus efeitos.
A convivência com o semi-árido e o paradigma emergente
da sustentabilidade
A problemática do desenvolvimento tem provocado o
surgimento de vários movimentos de tomada de consciência dos
impactos ambientais. Esses movimentos procuram alternativas de
Entre dois paradigmas: combate à seca e convivência com ... 375
Sociedade e Estado, Brasília, v. 18, n. 1/2, p. 361-385, jan./dez. 2003
desenvolvimento que permitam satisfazer, de forma adequada, as
necessidades e aspirações das populações presentes (solidariedade
sincrônica) sem comprometer o bem-estar das gerações futuras
(solidariedade diacrônica). A harmonização das necessidades básicas
da humanidade com as capacidades limitadas dos recursos da natureza
seria, conforme Sachs (2000, p. 29), o ideal de “uma nova forma de
civilização, fundamentada no aproveitamento sustentável dos recursos
naturais”.
A compreensão do desenvolvimento sustentável começou a ser
construída na Conferência de Estocolmo (1972) e no Simpósio de
Cocoyok (1974). Esses eventos tiveram grandes méritos: a
identificação de relações intrínsecas entre meio ambiente e
desenvolvimento; os avanços conceituais que enfrentaram os
reducionismos; e a formulação de estratégias para a promoção de um
“desenvolvimento sócio-econômico eqüitativo, ou
ecodesenvolvimento” (Sachs, 1993, p. 30).
Não se trata apenas de mudanças nas concepções de
desenvolvimento, mas da emergência de um novo paradigma. São
novos conceitos, idéias e percepções que tendem a orientar os
processos de desenvolvimento: “uma mudança profunda no
pensamento, percepções e valores que formam uma determinada visão
da realidade” (Capra, 1999, p. 29). Essas mudanças na visão de mundo
expressam a passagem da concepção mecanicista para uma visão
holística e ecológica. Rompem com a visão antropocêntrica,
proporcionando a reconciliação do homem com a natureza.
A consciência holística tem por base a concepção de
subsistemas que são, simultaneamente, “todo” e “partes”. A interrelação
e a interdependência são elementos essenciais em todos os
fenômenos físicos, biológicos, culturais e sociais: “A concepção
sistêmica vê o mundo em termos de relações e de integração” (Capra,
1999, p. 260).
Articulada às discussões sobre a emergência de um novo
paradigma de sustentabilidade, nos últimos anos, vem sendo construída
a perspectiva da convivência com qualidade de vida no semi-árido
brasileiro. O semi-árido é concebido enquanto um complexo de
ecossistemas com os seus limites e as suas potencialidades. Trata-se
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Sociedade e Estado, Brasília, v. 18, n. 1/2, p. 361-385, jan./dez. 2003
de um espaço onde é possível construir ou resgatar relações de
convivência entre os seres humanos e a natureza, com base no tripé
da sustentabilidade ambiental, da qualidade de vida das famílias
sertanejas e do incentivo às atividades econômicas apropriadas.
A construção da proposta de convivência com o semi-árido
tem sua gênese nas iniciativas de centros de pesquisa, como a Embrapa,
e das organizações não-governamentais que vêm desenvolvendo
projetos nas áreas de recursos hídricos, produtivas e socioculturais
em áreas do semi-árido brasileiro desde o início da década de 1980.
A proposta ganhou impulso significativo no final da década de 1990,
com a criação da Articulação no Semi-Árido (ASA), reunindo
atualmente cerca de 700 organizações não-governamentais, igrejas e
movimentos sociais. Trata-se de um espaço de articulação política da
sociedade civil organizada com a finalidade de:
Contribuir para a implementação de ações integradas para o semiárido;
a conservação, o uso sustentável e recomposição ambiental dos
recursos naturais; a quebra do monopólio do acesso à terra, água e
outros meios de produção; apóia a difusão de métodos, técnicas e
procedimentos que contribuam para a convivência com o semi-árido.
(ASA, 2001, p.71)
Fruto dessa articulação, foi formulado e está sendo
implementado o Programa de Formação e Mobilização Social para a
Convivência com o Semi-Árido: Um Milhão de Cisternas Rurais –
P1MC. É uma iniciativa que pretende garantir o acesso de um milhão
de famílias a equipamentos de captação e armazenamento de água
de chuva para o consumo humano. Milhares de famílias foram
beneficiadas com o acesso à água de qualidade próxima da residência.
Além das cisternas, o Programa pretende estabelecer um processo de
capacitação das famílias residentes no semi-árido, abordando a questão
da convivência com o semi-árido, gerenciamento de recursos hídricos,
cidadania e relações de gênero.
A valorização da captação e armazenamento adequado da água
de chuva é apenas o início de uma mudança cultural que se pretende
construir na região. Ao lado das cisternas para abastecimento familiar,
a Articulação do Semi-Árido vem disseminando práticas e tecnologias
Entre dois paradigmas: combate à seca e convivência com ... 377
Sociedade e Estado, Brasília, v. 18, n. 1/2, p. 361-385, jan./dez. 2003
apropriadas de manejo de recursos hídricos e de agroecologia que
fortaleça a agricultura familiar.
Embora venha tendo mais espaço entre organizações da
sociedade civil, a perspectiva da convivência com o semi-árido
começa a perpassar programas governamentais. Em 2001, o Governo
Federal lançou o Programa Sertão Cidadão: Convívio com o SemiÁrido
e Inclusão Social, com a proposta de desenvolver ações
permanentes para elevar os indicadores de educação, renda e saúde
do semi-árido.
Com a participação da sociedade civil e a articulação de
diferentes órgãos e esferas governamentais, foi proposta a criação de
um Sistema de Planejamento e Gestão do Semi-Árido, com a
finalidade de monitorar a dinâmica espacial e temporal de sistemas
ecológicos e socioeconômicos no semi-árido. Outra iniciativa proposta
foi a implementação do Programa de Disseminação de Tecnologias
Apropriadas para o Semi-Árido, tendo por orientação a recuperação
e preservação dos recursos naturais, o reordenamento dos espaços
agro-econômicos, a promoção de mudanças no padrão tecnológico e
as alternativas de inserção no mercado.
Percebe-se, no entanto, que a institucionalização do discurso
da convivência ainda não foi suficiente para promover as mudanças
efetivas na intervenção governamental naquela realidade. Apesar da
abertura ao debate sobre alternativas para o semi-árido brasileiro, o
governo Fernando Henrique demonstrou maior interesse com as
alternativas de racionalização dos custos dos programas
governamentais na região do que com a efetiva implementação de
ações inovadoras.
Em abril de 2003, foi lançado o Programa de Ações Integradas
de Convivência com o Semi-Árido (Programa Conviver). Compreende
um conjunto de ações voltadas para melhoria da vida dos agricultores
familiares do semi-árido brasileiro tendo como principais ações: a) o
seguro-safra (renda mínima aos produtores); b) a compra de alimentos
pelo governo federal, garantindo renda aos agricultores da região; c)
o acesso ao crédito para ações de manejo e captação de recursos
378 Roberto Marinho Alves da Silva
Sociedade e Estado, Brasília, v. 18, n. 1/2, p. 361-385, jan./dez. 2003
hídricos, investimento em culturas forrageiras e manejo da caatinga;
d) o Cartão Alimentação para compra de alimentos; e) a assistência
técnica e educação para desenvolvimento de metodologias e
tecnologias de convivência com o semi-árido. Como o Programa ainda
está sendo implementado, não é possível uma avaliação sobre suas
ações e resultados.
Tanto as propostas da sociedade civil quanto as recentes
iniciativas governamentais expressam uma mudança de olhar das
organizações sociais e de alguns dirigentes políticos sobre a realidade
do semi-árido. Um dos pressupostos fundamentais para a convivência
com o semi-árido é uma nova percepção que ajude a retirar as culpas
atribuídas às condições naturais e enxergar o espaço do semi-árido
como as suas características próprias.
A perspectiva da convivência requer e implica um processo
cultural, de educação, de uma nova aprendizagem sobre o meio
ambiente, dos seus limites e potencialidades. Requer a constituição
de novas formas de pensar, sentir e agir de acordo com o ambiente no
qual se está inserido. Ou seja, a convivência envolve a percepção da
complexidade e requer uma abordagem sistêmica do semi-árido
brasileiro possibilitando a compreensão das dimensões geofísica,
social, econômica, política e cultural.
Não se trata, no entanto, de um processo exógeno,
protagonizado exclusivamente por alguns setores iluminados da
sociedade para ensinar às famílias residentes no semi-árido a conviver
com a seca. Ab’Sáber (2003) critica essa intenção destacando que é
pura falácia afirmar que é necessário “ensinar o nordestino a conviver
com a seca”, pois os sertanejos conhecem as potencialidades
produtivas dos sertões secos. Por outro lado, a convivência com o
semi-árido também não é uma proposta de passividade e acomodação
diante da seca:
Os espasmos que interrompem o ritmo habitual do clima semi-árido
regional constituíram sempre um diabólico fator de interferência no
cotidiano dos homens dos sertões. Mesmo perfeitamente adaptados à
convivência com a rusticidade permanente do clima, os trabalhadores
Entre dois paradigmas: combate à seca e convivência com ... 379
Sociedade e Estado, Brasília, v. 18, n. 1/2, p. 361-385, jan./dez. 2003
das caatingas não podem conviver com a miséria, o desemprego
aviltante, a ronda da fome e o drama familiar profundo criado pelas
secas prolongadas. (Ab’Sáber, 2003, p. 85)
No que se refere à necessidade e possibilidade de convivência
com os ecossistemas frágeis, a construção da sustentabilidade depende
de um processo participativo da população local no resgate e
construção cultural de alternativas apropriadas aos ecossistemas.
É fundamental o resgate dos conhecimentos das populações locais,
somando-se aos demais saberes acumulados pela humanidade sobre
as ocorrências da natureza. Requer também uma abordagem negociada
e contratual de identificação de necessidades, de capacidades locais
e do aproveitamento dos recursos potenciais para a melhoria das
condições de vida das populações locais:
Estabelecimento de um aproveitamento racional e ecologicamente
sustentável da natureza em benefício das populações locais, levandoas
a incorporar a preocupação com a conservação da biodiversidade
aos seus próprios interesses, como um componente da estratégia de
desenvolvimento. (Sachs, 2000, p. 53)
A convivência exige a melhoria da qualidade de vida dos
sertanejos, com a superação da miséria que prevalece na região. A
construção de novas perspectivas sobre meio ambiente junto a
populações marcadas pela condição de pobreza e miséria exige a
capacidade de articulação das iniciativas de gestão ambiental
sustentável com as iniciativas sociais que resultem em melhoria da
qualidade de vida da população local. Caso contrário, o discurso da
convivência torna-se vazio sem dar respostas à situação da miséria
que prevalece no semi-árido. Como garantir a convivência com um
ecossistema frágil e, ao mesmo tempo, garantir a melhoria da
qualidade de vida dos seus habitantes?
Não se trata apenas de programas emergenciais e de ações de
combate à pobreza. A sustentabilidade com base na convivência
implica e requer políticas públicas permanentes e apropriadas que
tenham como referência a expansão das capacidades humanas locais,
sendo necessário romper com as estruturas de concentração da terra,
da água, do poder e do acesso aos serviços sociais básicos.
380 Roberto Marinho Alves da Silva
Sociedade e Estado, Brasília, v. 18, n. 1/2, p. 361-385, jan./dez. 2003
Se o desenvolvimento funda-se na realização das capacidades humanas,
é natural que se empreste a esta idéia um sentido positivo. As
sociedades são desenvolvidas na medida em que nelas mais cabalmente
o homem logra satisfazer suas necessidades e renovar suas aspirações.
(Furtado, 1980, p. 9)
Em síntese, percebe-se as articulações da perspectiva da
convivência com o semi-árido com um conjunto de concepções,
valores e proposições que estão conformando um novo paradigma de
desenvolvimento baseado na sustentabilidade.
Considerações finais
Com base nessa breve análise, foi possível identificar algumas
articulações entre concepções e critérios de desenvolvimento do semiárido
brasileiro com diferentes paradigmas que orientam as percepções
e as formas de intervenção humana no meio ambiente. Os dois
paradigmas identificados funcionam como lentes que orientam os
olhares sobre a realidade do semi-árido, selecionam as problemáticas
que devem ser interpretadas e indicam alternativas de solução que
devem ser priorizadas.
O combate à seca está intimamente relacionado ao paradigma
tradicional, que tem por base uma visão fragmentada, mecanicista e
utilitarista do mundo e, particularmente, da natureza. O estranhamento
e distanciamento entre ser humano e natureza são orientados pela
crença da dominação antropocêntrica que permite dispor, de forma
predatória, os recursos naturais para o crescimento econômico e
satisfação do consumismo acelerado. As adversidades naturais devem
ser combatidas para que o domínio humano se realize plenamente: a
falta de água deve ser enfrentada com as soluções hídricas; a baixa
produtividade com as tecnologias, inovadoras da irrigação e a
modernização das propriedades rurais etc.
Por outro lado, a culpabilidade da natureza é um artifício
ideológico usado para encobrir as questões estruturais geradoras da
miséria: a concentração das terras, das riquezas e do poder, combinada
Entre dois paradigmas: combate à seca e convivência com ... 381
Sociedade e Estado, Brasília, v. 18, n. 1/2, p. 361-385, jan./dez. 2003
com a exploração do trabalho humano, o mau uso dos recursos públicos
e o abandono da região a uma lógica econômica que concentra os
investimentos em áreas dinâmicas, descartando as áreas tradicionais
ou estagnadas.
Na outra perspectiva, a convivência com o semi-árido está
relacionada a um paradigma emergente que se baseia em uma visão
ecológica, rompendo com a visão antropocêntrica de dominação e
proporcionando a reconciliação do homem com a natureza. A
convivência com o semi-árido tem por base uma percepção holística
sobre as realidades complexas dos ecossistemas e a valorização de
conhecimentos, valores e práticas apropriadas ao meio ambiente essa
percepção devem-se articular as iniciativas que visem à melhoria da
qualidade de vida das populações locais.
O grande desafio é a transformação dessas alternativas ou
modelos em políticas de desenvolvimento sustentável do semi-árido
brasileiro, enquanto conjunto de medidas capazes de modificar os
padrões de produção, consumo, apropriação, reprodução e gestão dos
bens e recursos disponíveis de acordo com um modelo complexo de
sustentabilidade.
Com essa intenção, diversas propostas têm sido apresentadas
com o mesmo discurso e utilizando os mesmos conceitos de
desenvolvimento sustentável no semi-árido e de busca da qualidade
de vida. No entanto, essas expressões podem ter significados diversos,
dependendo do contexto e da globalidade da análise ou proposição
nas quais estejam inseridas. Isso porque são conceitos em construção
e disputa na sociedade, com significados diferentes e até
contraditórios.
É necessário analisar, para além do discurso aparente, os
processos de implementação e os resultados efetivamente alcançados
por essas iniciativas ditas inovadoras de convivência com o semiárido.
Com essa análise, é possível desvendar as ênfases e os critérios
de sustentabilidade de desenvolvimento orientadores das ações dos
diversos atores sociais que assumem o discurso da sustentabilidade
do desenvolvimento no semi-árido brasileiro.
382 Roberto Marinho Alves da Silva
Sociedade e Estado, Brasília, v. 18, n. 1/2, p. 361-385, jan./dez. 2003
Desvendar estas questões é uma tarefa fundamental que
possibilita identificar e construir estratégias políticas e teóricas
capazes de assegurar a construção de alternativas de desenvolvimento
sustentável com base na convivência com qualidade de vida no semiárido
brasileiro.
Notas
1 O paradigma é um modelo ou padrão cujos postulados são aceitos por
uma comunidade científica ou por grupos sociais para interpretar,
conceituar e expressar certas situações. Para Kuhn (1975), o paradigma é
uma matriz disciplinar que conduz os olhares e as visões de mundo em
relação à interpretação e soluções de determinados problemas.
2 A desertificação atinge 98.595 km2 (10%) da porção semi-árida (MMA/
PNUD, 1997). São áreas com processo de degradação dos solos, recursos
hídricos, vegetação, e com redução da qualidade de vida das populações
afetadas.
3 Apesar da fragilidade dos cultivos de subsistência, Castro (2001) destaca
sua importância para a sobrevivência da população sertaneja no que se
refere à alimentação. Ele compara essa situação com a de outras áreas de
fome endêmica, onde predominava a cultura comercial voltada para
exportação. No semi-árido, o autor identificou surtos epidêmicos de fome
com as estiagens prolongadas.
4 O Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil foi elaborado pelo Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Fundação João Pinheiro e
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com base
nos dados de 1991 e 2000 do Índice Municipal de Desenvolvimento
Humano (IDH-M).
Abstract: A large amount of the diagnoses and proposals on the
Brazilian semi-arid region have as a reference images that were
historically built upon a problematic space, a land of drought and
poverty. In the first half of the twentieth century, critical views emerged
about the structural causes and consequences of regional poverty.
Those critical perspectives gained importance in the 1980s, based on
the idea of human coexistence with the semi-arid. Both the struggle
against drought as well as coexistence with the semi-arid are associated
Entre dois paradigmas: combate à seca e convivência com ... 383
Sociedade e Estado, Brasília, v. 18, n. 1/2, p. 361-385, jan./dez. 2003
with world visions that guide the knowledge and the practices of social
agents, thus influencing the formulation and implementation of public
policies in the semi-arid. This article analyzes the relationships
between these two perspectives and the different development
paradigms in the Brazilian semi-arid.
Key-words: Brazilian semi-arid, development paradigms.
Résumé: Une grande partie des diagnostiques et des propositions sur
le semi-aride brésilien a pour référence des images historiquement
construites sur un espace problème, terre de sécheresse et de misère.
Lors de la première moitié du XXème siècle des regards critiques
apparaissent sur les causes structurelles et les conséquences de la
misère régionale. Cette perspective critique reprend des forces en
1980 avec les propositions et les actions pour cotoyer le semi-aride.
Aussi bien le combat de la sécheresse que le cotoiement du semiaride
se mêlent aux visions qui orientent les connaissances et les
pratiques des acteurs sociaux, influençant ainsi la formulation et
l’exécution de politiques publiques dans le semi-aride. Cette article
analyse les relations entre ces deux perspectives avec les différents
paradigmes de développement dans le semi-aride brésilien.
Mots-clés: semi-aride brésilien, paradigmes de développement.
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