terça-feira, 16 de outubro de 2012

CARTA DE GUIA DE CASADOS: D. FRANCISCO MANUEL DE MELO

CORPUS ELECTRÓNICO DO CELGA


– PORTUGUÊS DO PERÍODO CLÁSSICO –

(CEC– PPC)

D. FRANCISCO MANUEL DE MELO

CARTA DE GUIA DE CASADOS

EDIÇÃO SEMIDIPLOMÁTICA

POR

DANIEL NETO ROCHA

CENTRO DE ESTUDOS DE LINGUÍSTICA GERAL E APLICADA (CELGA)

FACULDADE DE LETRAS

UNIVERSIDADE DE COIMBRA

2007

NOTAS PRÉVIAS

▪ Texto fixado por Daniel Neto Rocha sobre o testemunho transmitido pela primeira

edição da Carta de Guia de casados, de Lisboa, Oficina Craesbeeckiana, 1651. Este é

considerado, fundamentadamente, o testemunho mais fidedigno da tradição desta obra de

D. Francisco Manuel de Melo. Teve-se presente o exemplar da Biblioteca Geral da

Universidade de Coimbra com a cota VT. 17-6-17.

▪ O texto foi transcrito, de um modo geral, com conservação dos aspectos (orto)gráficos

observados na edição de 1651, relativos aos usos de caracteres vocálicos e consonânticos,

de sinais de acentuação e de til, pontuação, de maiúsculas e hífens (excepto neste caso os

que dizem respeito à translineação). Na apresentação do texto procederam-se às seguintes

intervenções actualizadoras:

• < I >, com valor consonântico, foi transcrito por < J > (em palavras da língua

portuguesa);

• < u >, com valor consonântico, foi transcrito por < v >;

• < v >, com valor vocálico, foi transcrito por < u >;

• s alto ( < ſ > ) foi transliterado pelo grafismo actual correspondente, < s >.

• < & > foi transliterado por < e >;

• < ² > foi desenvolvido em «que».

▪ Atribuiu-se numeração às páginas do texto editado, por inscrição do número dos fólios (frente

ou rosto, e verso) da edição seiscentista que serviu de base à nova edição. Esse número,

inscrito entre parênteses rectos, é antecedido da sigla CG.

[CGIr] Carta

de

Guia

de

Casados

[CGIIr] CARTA

DE GUIA

DE

CASADOS

Paraque pello caminho da

prudencia se acerte

com a Casa do

descanso.

A HUM AMIGO.

Por D. Francisco Manuel.

______________________________________

EM LISBOA.

Com as licenças necessarias.

na Officina Craes-

beeckiana.

1651.

Vendese na Rua nova.

[CGIIIr] LICENC,AS.

Vistas as informaçoẽs, podese imprimir este papel, cujo titulo he, Carta de Guia de

Casados. Autor Dom Francisco Manuel, e depois de impresso tornarà ao Conselho para se

conferir com o original, e se dar licença para correr, e sem ella não correrà. Lisboa 11. de

Octubro de 1650.

Fr. João de Vasconcellos.

Pedro de Silva de Faria.

Frãcisco Cardoso de Torneo.

Pantaleão Rodrigues Pacheco.

Diogo de Sousa.

Podese imprimir. Lisboa 18 de Octubro. 650.

Cabral.

[CGIIIv] Que se possa imprimir, vistas as licenças do Santo Officio, e Ordinario; e despois

de impresso virà à Mesa para se conferir, e taxar, e sem isso não correrà. Lisboa 26. de

Octubro 650.

D. P. P. Pinheiro. Pacheco.

Esta conforme com seu original. Em S. Domingos de Lisboa. 15. de Maio. 1651.

Fr. Fernando de Meneses.

Pode correr. Lisboa 23 de Mayo de 1651.

Fr. João de Vasconcellos.

Pedro de Silva de Faria.

Frãcisco Cardoso de Torneo.

Taxão o livro Guia de casados em quatro vinteins em papel. Lisboa 17. de Maio de

1651.

D. P. P. Pinheiro

[CGIVr] A DOM

FRANCISCO

DE MELLO ALCAIDE

mòr de Lamego, Comendador

de S. Pedro da Veiga de Lira,

Trinchante de

S. Mag.

Primo. Para haver no mundo hũa dedicatoria verdadeira, assi havia de ser feita ao

descuido. Agora me avisa Paulo Craesbeeck que na sua Officina està impressa a minha

Carta de guia de casados: que ou a dedique eu por mi mesmo, ou lhe deixe fazer della

convite a quẽ [CGIVv] a estime, e lha agradeça. Mas eu, que não estou jà para provar

ventura com bafos de grandes, nẽ ouso mandar de novo o meu nome às aventuras (porque

em fim o bafo he vento, e as aventuras soem ser desastres) neste pouco espaço que me

deixou cuidar no que faria, o pedidor da reposta, nada soube fazer mais atinado, que o

irme lembrar de vos, e da minha obrigação, para vos offerecer este livrinho. Não julgueis

que me ficais devẽdo muito; e sò paraque saibais qual he o empenho, desenrolai o

presente. Fazei conta que o que vos haveria de ir dizendo aos poucos, quando Deos vos

puser neste estado, [CGVr] vollo tenho aqui dito por junto; porque eu não sou, nẽ quero

ser d’ aquelles, que se curão a si cõ differentes mezinhas que aos outros. Escrevi a hum

amigo estas observaçoẽs. Confiadamente vos servi dellas a seu tempo; porque como a

amizade he o maior parentesco, o parentesco deve ser a maior amizade. Vai debaixo de

condição, que não haveis de amparar, nem defender o livro; porque se elle não corresse

offendido, e desamparado, ate eu o não teria por meu. Usai antes, se for (que sim serà)

necessario, d’aquella minha resposta a hum que me tachava de que fizesse muitos e maos

livros: Senhor (lhe disse eu) [CGVv] deixaime fazer muitos, ate que faça hum que vos

contente. Dizeilhe isto, e Deos vos guarde.

Vosso Primo.

D. Francisco Manuel.

[CGVIr] AOS LEITORES

desta Carta

Naõ he outra cousa a Filosofia que hũa consideração uniuersal de todas as cousas

pella qual se alcança o conhecimento dellas. Divide-se em natural, e moral. A natural

averigua as qualidades dos Ceos, Elementos, e Criaturas. A moral aparelha a ordem do

trato humano. Tambem esta moral se divide em tres partes, que chamão Etica. Economica,

e Politica. A Etica cuida dos costumes do homem. A Economica tem por fim o regimento

das casas, e familias. A Politica entende sobre o governo das cidades, reinos, e imperios:

mas de tal maneira, que a Economica requere Politica a Politica Economica; porque o

reino he casa grande, e a casa reino pequeno; e a Etica necessita da Politica, e da

Economica, porque o homem he hum mundo inteiro.

Mas agora fallãdo sòmente da Filosofia Economica, que he a que pertence a este

Tratado, digo que esta tal Filosofia comprende todas as condiçoẽs de gente de que consta a

republica: grande, meam. e pequena; porem olha com maior intensão para os grandes:

porque a segunda e [CGVIv] terceira qualidade de homens não requere tanto estudo para

sua conservação. Estendese tambem a todos os estados de vida: Casados, Solteiros e

Viuvos; mas da mesma maneira he mais propria dos casados que dos solteiros e viuvos.

Não porque estes dous modos de vida deixem de necessitar de regras para seu bom

regimento; porem porque saõ estados em que poucos e pouco tempo se detem; constaõ

sempre de limitadas familias, e por isso de menos ocasioẽs; não pedem todo aquelle

desvelo, cuidado e vigilancia que convem ao casado para sustentar sua casa em honra e

sem perigo.

O principal estudo que aos casados pertence para conseguirem esse fim, he aquelle

que lhes dà o modo justo de se haverem, e para viverem com suas mulheres; porque deste

acerto ou erro, procedem todos os erros ou acertos de hum varão, e de hũa familia.

D. Francisco, Autor deste papel, sendo rogado de hum seu grande amigo que

entendia casarse, para que lhe desse alguns bons conselhos e avisos acerca desse estado,

escreveo este Discurso (como elle mesmo affirma) sem algum artificio; que he boa

qualidade para dar credito ao que se aconselha.

Foi seu animo persuadir aos casados a paz e concordia com que devem ordenar sua

vida; encomẽdar a estimação das mulheres [CGVIIr] proprías; inculcar os meos por donde

o amor se conserva, e se aumenta a opinião.

Este livro, correndo manuscrito quis ser de algũas pessoas calumniado de severo

contra a liberdade das mulheres; e foi esta a principal razão de se comunicar agora a todos,

paraque se veja a pouca causa que o livro deu ao juizo que delle se tinha feito. O que bem

se pode conhecer conferindo sua doutrina com o que escrevem todos os que tratàrão esta

materia.

E se porventura disser alguem que o entendimento dos homens obra aqui

apaixonado por sua jurisdição; vejase aquelle excellente Tratado que escreveo da Nobreza

virtuosa, a Condeça de Aranda Dona Luisa Maria de Padilha, e publicou Fr. Pedro

Henrique Pastor; que logo se acharà como nem por ser escrito por mulher se sobornou da

fragilidade de sua cõdição, paraque deixasse de assentar às mulheres com toda a aspereza

os preceitos necessarios.

A natureza mostra, e o confirma a experiencia que as mezinhas de uso mais

difficultoso saõ aquellas de virtude mais efficaz. A arte a que os medicos chamão

Precautoria sem duvida he molesta, se se olha a quanto obriga; mas se ao muito de que

preserva, sem duvida he suavissima. O animo de D. Francisco bem prova que não foi

induzir a novos cuidados e desconfianças, [CGVIIv] mas antes mostrar os caminhos para

sair delles, e fugir dellas.

Entre os seus livros, pode ser que nenhum seja mais util que o presente. E nenhum

de certo he mais facil; ou que a materia pedisse hum descansado estilo, ou que elle

cansado de ser reprendido de misterioso (e tal vez de escuro) quisesse escrever para todos;

poes para todos escrevia, senão para si mesmo. Sejalhe comtudo desculpa (senão louvor)

haver sido seu fim em todos seus escritos acomodar sempre o estilo com a materia: cousa

não de todos guardada, e aos menos concedida. Porque na Historia de Catalunha mostrou

verdadeiramente eloquencia historica. No Ecco Politico levantou mais a pena, porque o

pede a Politica. No maior Pequeño e em os Fenis escreveo aforistico e Laconico, porque as

materias moraes e misticas que comprendem, fossem pella brevidade apetecidas. Nas

Musas grave; por ser esse o melhor metodo entre o vulgar e o difficil. No Panteon culto;

porque à materia tragica se assina o mais alto dos estilos. O mesmo observou nos livros e

Tratados que compos antes e despois dos referidos.

O proprio guarda no presente, que he o primeiro dos livros Portugueses, e que bem

mostra não ser menos digno de louvor pella propriedade com que escreve sua lingua, que

pella elegancia com que [CGVIIIr] nas passadas obras mostrou haver feito sua a

Castelhana. Seguiràõ os mais em Portugues, que fico preparando em quanto gastardes o

tempo em castigar ou estimar este, que a todos serve, a todos offereço.

O Impressor.

[CG1r] Carta

de Guia

de Casados

Em meio estou, senhor N. de aquellas duas cousas mais poderosas cõ os homẽs:

Amor, e Obediencia. Amo a V. M. Mandame V. M. E suposto que me manda hũa cousa

bem difficultosa; a Obediencia, e o Amor, que já fizeraõ impossiveis, não se negaráõ hoje

a vencer difficuldades.

[CG1v] Dizme V. M. que se casa, e que lhe dè eu, para se governar neste seu novo

estado, algũs bons conselhos. Esta he hũa das cousas de que eu cuido que falta mais quem

a peça, que quem a dè.

Pois por certo que aquelle que deseja bõs conselhos, já parece que delles naõ

necessita; porque he tão grande prudencia pedir cõselho, que do homem que o sabe pedir,

crerei que nenhũ lhe farà falta.

O primeiro que aconselharei a V. M. sera que se [CG2r] não fie em nada sò do meu

voto; pois suposto que em mì possa haver vontade para o bem servir, póde ser que nem

por isso haja entẽdimento para o bem aconselhar; porque entendimento, e vontade ainda se

ajũtão menos vezes que a honra, e o proveito: e ella com que seja potencia poderosa, nem

sempre guia ao acerto, se lhe faltão olhos de sufficiencia.

Grandes cousas deixou escrito a antiguidade, para advertencia dos casados. Muitas

saõ, e graves são; [CG2v] a que tambem os modernos acrecentàrão outras, ou nos puseraõ

em outras palavras as antigas.

Mas nòs aqui, senhor N. nos havemos de entender ambos em pratica como do làr, a

cujo abrigo, nestas longas noutes de Janeiro, vou escrevendo a V. M. estas regras, em

estilo alegre, e facil, qual requere o estado, e idade de V. M. bem que tão diverso do meu

humor, e da minha fortuna.

Darão licença os Senecas, Aristoteles, Plutarcos, e Platoẽs; nem ficaremos [CG3r]

mal com as Porcias, Casandras, Zenobias, e Lucrecias; tudo tão desenrolado nestas

doutrinas; porque sẽ seus ditos delles, e sem seus feitos dellas, espero nos faça Deos merce

de que atinemos com o que V. M. deseja de ouvir, e eu procuro dizerlhe.

Não sou já mancebo. Crieime em cortes; andei por esse mundo; atentava para as

cousas; guardava as na memoria. Vi, li, ouvi. Estes serão os textos, estes os livros, que

citarei a V. M. neste papel; donde juntas algũas [CG3v] historias, que me forẽ lembrando,

póde mui bem ser não sejaõ agora menos uteis, que essa maquina de Gregos, e Romanos,

de que os que chamamos doutos, para cada cousa nos fazem prato, que às vezes nos

enfastìa.

Ora, assentamos, que qualquer mudança causa estranhesa. Mudar de hũas casas a

outras he em algũa maneira esquivo. Seguese logo que não se mudará a vida sem algum

receio.

Porque se perca, imagine V. M. que para este estado [CG4r] naceo, e o criáraõ seus

pais. Este foi o que V. M. sabia o estava esperando. Este lhe he proprio, o outro alheo.

Ninguẽ se queixa de haver chegado ao fim de seu caminho.

Considere que aqui não padece algũa força sua liberdade: antes, assì como aquelle

que sobe açodado por hũa escada ingreme, quãtos mais são os degraos, mais deseja de

achar hum mainel em que descanse; assí tambem, subindo o homẽ pella escada da vida,

quantos mais são os annos, quanto [CG4v] mais soltamente os vai vivendo, tanto lhe he

mais necessario o repouso de hum honrado casamento; que jà por essa razão lhe

chamamos Estado, por ser não sò fim, mas tambem descanso.

Tem V. M. subido, senão muitos degraos, digo, senão tem vivido muitos annos,

vivido tem aquelles que bastem; e ainda mal porque a tal curso, que bem pode jà dar o

descanso a que chega, por chegado ao melhor tempo.

Paga o filho a seu pae em se casar, aquelle beneficio [CG5r] que recebeo delle.

Pois se seu pai não casára, o filho não fora. Vão assi os homẽs cõtribuindo hũs aos outros;

e todos à memoria dos que lhe derão ser, a que, despois de Deos, somos mais obrigados

que a tudo o mais.

Espantãose os moços cõ o que ouvem dizer do casamento de ordinario aos mal

casados, porque, senhor, ha V. M. de saber, que muito mais certo he que o mantimento

bom se converta no mao humor que em nòs acha, do que converter o mao humor nessa sua

boa virtude. [CG5v] Parecelhes aos moços intoleravel a carga do Matrimonio. He, senhor,

pesadissima para os que a não sabẽ levar; para os que sabem, he ligeira. Hũa arroba de

ferro ao hombro carrega hum homem, que com o facil artificio de duas rodas póde levar

hum quintal. Não excede o peso do casamento nossas forças, faltalhe as mais das vezes

nossa prudencia para que o sustente: e de aí vem que nos pareça grande.

Quer V. M. ver quão leve he a carga deste modo [CG6r] de vida que toma? meça a

com o peso de essoutra vida que deixa.

Ponha, senhor N. em balança a inquietação passada: os perigos, os desgostos, a

desordem dos affectos, aquelle temer tudo, não fiar de nada, o queixume que doe, a

vingança que arrisca, a ruim lei que desespera, os ciumes que abrasão, os amores que

consomem, a hõra em ocasiaõ, a saude diminuida, a vida arriscada, e o que he mais, a

conciencia sempre queixosa.

Ora alviçaras, senhor [CG6v] N. que já lá vai tudo isto.

Em verdade, que quando o casamento não trouxera outro algum bem, mais que

livrar de tantos males, justamente merecia o nome de santa, e doce vida.

Pois vejamos o que se lhe dà a hum casado, a troco dessa liberdade, que elles tanto

allegão que deixão?

Daselhe outra: entregaselhe a mulher com a liberdade, com a vontade, com a

fazenda, com o cuidado, cõ a obediencia, com a vida, com a alma.

[CG7r] Quem pezarà o que deixa com o que recebe, que logo não conheça os

ganhos desta troca?

Hũa das cousas que mais assegurar podem a futura felicidade dos casados, he a

proporção do casamento. A desigualdade no sangue, nas idades, na fazenda, causa

contradição; a contradição, discordia. E eis aqui os trabalhos por donde vem. Perdese a

paz, e a vida he inferno.

Para a satisfação dos pais cõvẽ muito a proporçaõ do sangue, para o proveito

[CG7v] dos filhos a da fazenda, para o gosto dos casados a das idades. Não porem que seja

preciso hũa conformidade, de dia por dia, entre o marido e mulher; mas que não seja

excessiva a ventagem de hum a outro. Deve ser esta ventagem, quando a haja, sempre da

parte do marido, em tudo à molher superior. E quando em tudo sejão iguaes, essa he a

suma felicidade do casamento.

Dizia hum nosso grande cortesão, havia tres castas de casamentos no mundo:

[CG8r] casamento de Deos, casamento do Diabo, casamẽto da Morte. De Deos, o do

mancebo com a moça. Do Diabo, o da velha cõ o mancebo. Da Morte, o da moça com o

velho.

Elle certo tinha razaõ, porque os casados moços podem viver com alegria. As

velhas casadas com moços, vivem em perpetua discordia. Os velhos casados com as

moças apressão a morte, ora pellas desconfianças, ora pellas demasias.

Mas porque estas cousas saõ muito geraes, e [CG8v] ainda os incapazes tem dellas

o conhecimento que aos entẽdidos lhes sobeja; he tẽpo de passar a algũs mais particulares

avisos.

Senhor, saiba V. M. que à sua alma se acrecenta outra alma de novo; á sua

obrigação se ajunta outra obrigação. Assì devem crecer seus cuidados, e seus respeitos. E

da mesma sorte que se a hum homem que possuisse hũa herdade, a qual cultivasse, lhe

fosse deixada outra de novo, para o mesmo effeito; este tal homem, sem diminuir em sua

[CG9r] alegria, era força que na diligencia se aventejasse, por abranjer com seu trabalho a

ambas aquellas suas fazendas; nem mais nem menos deve o casado multiplicar o tento, e a

fadiga (sẽ que por isso se entristeça) por não faltar ao novo cargo que tomou, e lhe

entregàrão, com a mulher que lhe derão; não para que a arriscasse, e perdesse (e a si

mesmo com ella) mas para que com maior comodo, e descanso pudesse passar com ella a

vida.

Provemos a ver se será [CG9v] possivel dar algũa regra ao amor: ao amor, que soe

ser a principal causa de fazer os casados mal casados. Hũas vezes porque falta, e outras

por que sobeja. Armemoslhe, se quer, as redes; caia elle se quizer; e o mais certo será que

avoe, e fuja dellas; porque quiçá por isso o pintàraõ com azas.

Amese a molher, mas de tal sorte que se não perca põe ella seu marido. Aquelle

amor cego fique para as damas; e para as molheres o amor com vista. Ou [CG10r] cure os

olhos que tem, ou os peça emprestados ao entẽdimẽto de esses que lhe sobejão.

Digo, perder pela mulher: perder por ella seu marido a dignidade de homem, a

troco de lhe não contradizer sua vontade, quando he justo que lha contradiga. Saibase, e

temase que tãbem ha Narcisos do amor alheio, como de seu proprio.

Gabavão muito certos Cardeaes ao Papa Pio V. hũ seu criado, que elle mais

favorecia. Respondeolhes: Bom he, mas nunca me cõtradiz. Taõ longe está de ser [CG10v]

desamor, que antes he perfeição do amor o saber encontrar a vontade de quem se ama,

quãdo ella não deve de ser seguida.

Há algũs, senhor N. de tão pouco juízo, que fazẽ ostẽtação de seu próprio cativeiro.

Igual afronta he a hum casado saberse que o manda sua mulher, que saberse he ella de seu

marido escrava, e não companheira.

Este foro, esta prerogativa de que cada hum he bẽ que use, logo ao principio

convem que se concerte. O [CG11r] marido tenha as vezes de Sol, em sua casa, a mulher

as de Lua. Alumìe com a luz que elle lhe der; e tenha tambem algũa claridade. A elle

sustente o poder, a ella a estimação. Ella tema a elle, e elle faça que todos a temão a ella,

serão ambos obedecidos.

Dissera eu, que as mulheres saõ como as pedras preciosas, cujo valor crece, ou

mingua, segundo a estimação que dellas fazemos.

Os que casaõ com mulheres maiores no ser, no [CG11v] saber, e no ter, estão a

grandissimo perigo. Deste livrou Deos a V. M (e àquelles que assi casarem) porque no que

devião ser iguaes mulher, e marido, saõ muito iguaes, e no que V. M. era bem que

excedesse, a si he que excede. Os mais annos saõ grandes arras no casamento, em favor da

autoridade do marido.

Não me detenho em apontar remedios a estes riscos, porque o meu animo não he

dar conselhos aquem escolhe mulher, senão avisos [CG12r] para se viver aquella que jà se

tem escolhido.

O homem que casa com mulher de pouca idade, leva a demanda meia vencida. Nos

tenros annos não ha ruim costume; porque ainda o menos advertido está no animo como

hospede, e não de assento.

Acusando hum homem a sua molher de mal acostumada, diante de seu Principe,

foi delle perguntado, de que annos entrára em seu poder; e como lhe disse o marido, que

de doze, respõdeo aquelle Rei: Pois vòs [CG12v] sois o que mereceis castigado, que tão

mal a criastes.

Hum leão, em pequeno se amança. Aos proprios ferros da gaiola, em que vive

preso, toma affeição hum passarinho; sendo aquelle por seu natural feroz, e este livre. He a

criação outro segundo nacimento; e se em algũa cousa differe do primeiro, he sò em ser

mais poderoso este segundo.

O homem que tiver discrição, & industria, casando com mulher de tal idade, pai

cuide que vai a ser [CG13r] de sua mulher, tanto como seu marido. Pòde fazer que ella

renaça com novas condiçoẽs. Se vemos balhar hum usso em hũa corda, animal de tão

differente despejo, que bruto se afirma mal sobre a terra; que ha que desesperar de poder

instruir a mulher moça em todos os bõs costumes, e dictames em que a puzer seu marido?

E tambem que ha que confiar de que não teme os ruins, se seu marido lhe dá liçoens, e

motivos para cair, e ficar nelles?

Correm algum perigo as [CG13v] muito moças, pello sobejo amor aos pais, e

irmãos, cõ que se criàrão; e he tanto mais ocasionado este inconveniente, quãto parece

mais licito.

De ordinario esta acção se regula pello ser desses pais, e dessa parentella. Quando

os pais, sejaõ como devem, louvavel he a inclinação, quando não he necessario que se và,

desde logo, e por bons meios, despartindo aquella familiaridade.

Sobretudo eu quizera ver antes nas casadas para [CG14r] com seus pais reverencia,

que amor; não que lho neguem, porque sem algum amor, não ha nenhũa obediencia: mas

quando seja amor, e elles taes que não sejão dignos delle, se no marido houver arte, o

remedio não parece difficultoso.

Julgava eu que para esta tal mezinha era bem cõveniente hũa nova brandura, hum

novo afago; (digamos assì) hum namorar a mulher outro tanto mais do que sem esta razão

seria necessario.

A criança que outra [CG14v] cousa não sabe senão o peito de sua mãi, o deixa a

troco de se lhe dàr a conhecer a suavidade do mel, ou do açucar, que he mais doce que o

leite. Não se duvida que o bem querer do marido he mais proprio para a mulher, que o de

seus pais, e parentes. Donde vem que a mulher obrigada, e amimada do marido, esquece

facilmente o trato dos pais, e dos irmãos.

Este afago tambem deve ser discreto, repartindoo igualmente por obras, e palavras.

O vestido quando [CG15r] se não pede o brinco que se não espera, a saìda em que se não

cuida; hum não saìr de casa hũa tarde, hum recolher mais cedo hũa noite, (e se disser, hum

levantar mais tarde hũa menhaã, não mentirei) farão logo chanissimo o caminho para

aquelle esquecimento, ou desvio dos pais, quando ao marido lhe convenha.

Ouve quem duvidasse, se podia ser prefeito o amor entre aquelles que por

conveniencias, e por concertos se casavão: entendendo que esta perfeição de querer, só

[CG15v] se guardava para os que casavão por amores. A que se referia hum galante, que

convidando o hũa sua parẽta para que casasse por concertos, lhe deu por reposta: Senhora,

não me obrigo a amar ninguem por fé de escrivão, senão pella minha.

De hũa, e de outra cousa não faltão bons, e maos exemplos; mas eu que sou mais

amartelado da razão que do caso, direi com algũa novidade o que se me offerece.

Persuadome, senhor N. que esta cousa a que o mundo [CG16r] chama amor, não he

sò hũa cousa, porèm muitas cõ hum proprio nome. Poderá bem ser, que por isto os antigos

fingissem haver tantos amores no mundo, a que davão diversos nacimẽtos; e tambem pòde

ser venha de aqui, que ao amor chamamos amores: pois se elle fora hum só, grande

impropriedade fora esta.

Eu considero dous amores entre a gente. O primeiro he aquelle comum affecto com

que, sem mais causa que sua propria violencia, nos movemos a amar, não [CG16v]

sabendo o que, nem o porque amamos. O segũdo he aquelle, com que proseguimos em

amar o que tratamos, e conhecemos; o primeiro acaba na posse do que se desejou; o

segundo começa nella: mas de tal sorte, que nem sempre o primeiro engendra o segũdo,

nem sempre o segundo procede do primeiro.

Donde infiro, que o amor que se produz do trato, familiaridade, e fé dos casados,

para ser seguro, e excellente, em nada depende do outro amor, que se produzio do desejo

do apetite, [CG17r] e desordem dos que se amàrão antes desconcertadamente; a que, não

sem erro, chamamos amores, que a muitos mais empecèraõ que aproveitàraõ. Parecerá

difficultoso o considerar, como à pessoa que não havemos visto poderemos amar com

perfeição. Larga he a disputa, e não de aqui. Digo eu que façamos, senhor N. neste caso,

como os que cortão madeira, e a lanção ao rio, para que sua corrente lha leve (sem algũ

trabalho) ao porto. Elles naõ sabẽ [CG17v] por onde vai sua mercadoria; mas bastalhes

saber que ella chega a salvamento, por outras que já tem chegado, para que lha entreguem

ás aguas cõ muita confiança.

Deixese levar o casado do poder de aquelle virtuoso costume; não lute, nem forceje

com a corrente, que quando menos o espere (e sem saber o como aquillo foi) elle se achará

amando a salvamẽto a sua mulher, e sendo della muito seguramente amado.

Deselhe a entender à [CG18r] mulher que a cousa que mais deve querer he a seu

marido. Tenha o marido para si que a cousa que mais deve querer he sua honra, e logo sua

mulher.

Diz hum antigo ditado: Quem não tem marido não tem amigo. Diz outro: Quem

tem mulher tem o que ha mister. E na verdade assí he entre os bõs casados; e os rifoẽs,

senhor N. sentenças saõ verdadeiras, que a experiencia summa mestra das artes

pronunciou pellas bocas do povo.

Mas porque sucede que [CG18v] sem embargo de todas as mezinhas receitadas,

quando Deos nos quer castigar com a pena, e injuria de encontrarmos com hũa condição

avessa, a mulher luta por sustentarse em seus desmãchos: discorreremos aqui pellos varios

generos de ruins qualidades, que acõtece haver nellas, para que a todos se possaõ aplicar

os remedios convenientes. Mas nem por isto se espere que de todas se consiga a melhoria.

Cuidão, com falso discurso, algũas mulheres que como ellas guardem a lei de vida

[CG19r] á honra de seus maridos, em tudo o mais lhes devem elles de sofrer quanto ellas

quizerem que lhes sofraõ.

He este hum méro engano; por duas razoens: a primeira, porque nada se lhes deve

às honradas de guardarem a obrigação, em que Deos, a natureza, o mũdo, o medo as tem

posto.

Lembrame que estãdo em Madrid, tinha hũa vizinha muito braba, que peleijando

hum dia, como sempre fazia, não cassava de dizer ao marido, e com [CG19v] verdade:

Hermano soy muy honrada, e elle respondialhe: Pues anda a Dios que te lo pague, que a

mi quenta no está el pagarlo, quãdo lo seas, sino el castigarlo quando no lo seas.

A segunda, porque não só a honra de seus maridos se perde por sua descontinencia,

mas não menos pellas ocasioẽs a que poem os homẽs por muitos outros excessos que

cometem. Foi assì graciosa, mais que segura, a opinião de certa pessoa, que ninguem tanto

sofria como quem tinha boa [CG20r] mulher, bom criado, e boa cavalgadura. Porque á

conta de boas peças cada hũa fazia sua vontade, e nunca a de seu dono. Não fosse ora por

isso o dizer a chocarrisse Castelhana: Buena mula, buena cabra, buena hembra, son tres

malas bestias.

As mulheres de rija condição, a quem commummente chamão brabas, saõ as que

menos cura tẽ; porque até da temperança do marido, que era a sua melhor mèsinha, tomão

causa de se demasiarem; sendo já [CG20v] antigo que o soberbo se faz mais insolente á

vista da humildade; o brabo se enfurece diante da mansidão. A violencia, e o castigo não

tem lugar na gente de grãde qualidade. Pello que já disse hum muito discreto, que entre as

cousas que os villãos trazião lá usurpado aos fidalgos, era hũa, o poderem castigar suas

mulheres cada vez que lho merecião.

Pouco mais remedio soẽ ter estas taes condiçoẽs, que hũa grande prudencia com

que se atalhem. Aconselharia [CG21r] a aquelle a quem tal sucedesse, se apartasse o

possivel de viver nas Cortes, e grandes lugares. Quem grita no despovoado, he menos

ouvido. Atalhãose assì inconvenientes; não se ficarà sendo a fabula do povo, dõde de

ordinario servẽ de iguaria aos murmuradores as acçoẽs de taes casados. Procede de aqui

não leve injuria: pello menos hũ escrupulo de afronta, que anda sẽprezunindo nos ouvidos

do pobre marido, como os gritos da propria mulher braba.

A fea he pena ordinaria, [CG21v] porem que muitas vezes ao dia se pode aliviar,

tantas quantas seu marido sair de sua presença, ou ella da do marido. Considere que mais

val viver seguro no coração, que contente nos olhos; e desta segurança viva cõtente; que

pouco mais importa haver perdido por junto a fermosura, que vella ir perdendo cada dia,

com lastima de quem a ama. Isto sucede sempre nas mulheres, já pella idade, jà pellos

achaques, a que toda a fermosura vive sogeita. Donde cõ muita razaõ se queixava [CG22r]

hum discreto, não de que a natureza acabasse as fermosas, mas de que as envelhecesse.

Mulher necia, cousa he pesada, mas não insufrivel. procure o marido emprestar de

seu juizo às acçoẽs de sua mulher aquella discrição que vir que lhe falta. Assí o farà o

entendido; e se elle tambem o não for, pouca pena lhe dará que ella o não seja.

A doença, que a muitas aflije, he tambem hum não pequeno trabalho: vèse penar a

pessoa a que se quer [CG22v] bem; e por ventura, soem ser estas as que menos o merecẽ:

porque males, e bens muito ha que costumão andar desordenados. Deve a mulher, quando

enferma, ser tratada de seu marido com todo o regalo possivel, sofrida com toda a

paciencia. Podese fazer esta conta: que estando disposto haja de padecer o homẽ em

ametade de sua alma, favor foi grande de Deos padecesse antes naquella parte que menos

falta faria á sua familia. Considerese (para que se bẽ sofra) que a obrigação [CG23r] do

fiel companheiro, he guardar companhia, tanto pello mao, como pello bom caminho. Se as

sortes se mudassem, da mesma maneira quizera o marido ser tratado, e sofrido da mulher.

Ha não poucas mulheres proluxissimas, e de condição impertinente, cuja demasia

de ordinario descarrega sobre os criados, a quem saõ insoportaveis; dõde à casa resulta

ruim fama, e achar o senhor della com difficuldade quem o sirva. Convem que a estas

[CG23v] taes se lhes aperte o freo, se lhes dè pouca mão no governo, e como a pessoas

feridas de mal contagioso as sirvão, e ministrem ao longe, ouvindoas pouco, e dandolhes a

ouvir menos. Mostremselhes por experiencia os frutos de sua cõdição, faltandolhes tal vez

com o serviço necessario; porque se com este garrote não tornão em si, saõ por outro

modo de difficultoso remedio; e vem a pagar o marido, sem culpa, os desabrimentos da

mulher agressora, e merecedora da [CG24r] ruim vontade dos servos, que, como pouco

prudentes, não distinguem em acçoens tão proprias como as de mulher, e marido, qual

delles he digno de amor, e qual de desamor.

Acõtece serem escassas; e dos deffeitos mais leves, que nellas se achão, he este

hum delles. Não julgo que seja de algum perigo (posto que pòde ser de descontentamento,

e azo de pouca paz) porque se o marido he liberal, elle dará logo remedio à condição da

mulher; se tiver o mesmo costume [CG24v] vivirão com miseria, mas com contentamento.

Não cuido, certo, que os Egipcios com toda a sua agudesa, inventàrão mais

excellente geroglifico do que o descobre hum nosso proverbio Portugues: O marido barca,

a mulher arca. Ouvi o dias há a hũa velha, e o escutei como da boca de hum sabio: Traga o

marido, e guarde a mulher.

Mulher ciosa, he bem ocasionada mulher para que se viva sem contentamento.

Dizia hũa de bom juizo: A mulher ciosa tendea ociosa. [CG25r] Queria dizer, não lhes deis

causa, que ella a não tomará. Esta não vinha em distinguir a queixa do ciume; porque

aquella que com razão se sente, não chamo eu ciosa. A ciosa he aquella que sem causa se

queixa; e estas saõ as trabalhosas. Porque emendar cada hũ as suas fraquezas, sobre que he

difficultoso, não he impossivel; mas emendar as alheas, não he difficultoso, porque he

impossivel.

Cõtra as ciosas sem razão, o melhor remedio he, que ellas a não tenhão: [CG25v]

porque assi se segura a conciencia, e a honra. Contra as ciosas com razão, curandose o

marido da leviandade, fica a mulher curada do ciume. Para desconfianças leves, que hum

discreto chamava sarna do amor, que faz doer, e gostar jũtamente, digo eu, que como se

satisfizeraõ as damas, se satisfaráo as esposas. Aquelle amor desordenado, mais furioso

he, e assì mais vehementes seus ciumes (como he do melhor vinho o melhor vinagre.) Quẽ

soube (que todos souberão) [CG26r] desmentir os ciumes de sua dama, quando a teve, por

esse mesmo modo desminta os de sua mulher, quando a tenha.

Eis aqui vem as gastadoras, fogo perenal das casas, e das familias. Sempre foi

causa de muitos males esta tal condição; porque là tem suas cores de cousa boa; e

sobretudo he mui aceita. Digo, senhor N. com verdade, que me parece deve hũa mulher

honrada tratar o dinheiro com aquelle mesmo temor que ao ferro, e fogo, e outras cousas

[CG26v] de que convem sejão medrosas. Parece o dinheiro em mãos da mulher arma

impropria. Pergunto: Se para despedir, e lançar de sua casa hum criado a mulher casada

por si não tẽ bastante autoridade, porque a quererá ter para despedir, e lançar fóra de casa

sua fazenda, em que consiste o bem, e repouso de amos, e criados?

Para a que for ferida deste mal, he necessario armar de hum grande recato, e vigia;

e assì como quem navega se teme muito [CG27r] mais de abrir hũa ferida no casco do

navio, por donde sem duvida se irá apique, do que se se lhe abrìrão outras muitas pello

bordo, que vai fóra da agua; assì não he tão perigosa a hũa casa outra qualquer desordem,

nem lhe ameaça ruína, como o excesso da mulher gastadora, e desregrada; porque como

esse defeito jaz dentro na agua (dentro digo do proprio cabedal) por alli logo se vai ao

fundo a familia inteira.

Hũas há destas apetitosas, e que por hum bonifrate [CG27v] venderàõ hum padraõ

de juro da Camara. He defeito, que comprende não só as grandes senhoras (antes nellas

menos perigoso, e mais desculpado) mas até à gente de pequena condição. Sucedeo,

estando em Madrid, vir a minha casa com grande ansia a mulher de hum obreeiro a pedir,

que sobre dos savanas le prestasen doze reales; e preguntandoselhe, qual era sua

necessidade: Ay señores, disse, que tengo concertadas a comprar media dozena de higas

de azavache lindissimas, [CG28r] y si agora no las tomo, no sè quando podré despues

haverlas. Sofrese melhor hum destes desmanchos, quando não he costume. Na moça he

toleravel, na mulher condenavel. Saiba toda a mulher, que o mundo he maior que seu

apetite, porque não queira fazerse necessitar de quanto vir, ou ouvir. Deos nos guarde de

hũas que fazem certo aquelle rifaõ bem vulgar, mas muito proprio: A minha filha Tareja,

quanto vè tanto deseja. Respondaselhe nesta razão. Primeiro [CG28v] está a obrigação,

logo a temperança, e despois o gosto.

Que direi das voluntarias, que por nome, não menos proprio, se dizem teimosas? de

outras que aprofiaõ? as mais saõ constantes, e ainda cõtumazes em seu parecer. Acontece

isto com maior frequencia nas ou muito necias, ou muito presumidas. Não venho em que

com a mulher se litigue, que he concederlhe hũa igualdade no juizo, e imperio, cousa de

que devemos fugir. Façaselhe certo, que [CG29r] à sua conta não està o entender, senão o

obedecer, e fazer executar, mas que não entenda. Mostreselhe as vezes que havendo quãdo

se casou entregado sua vontade ao marido, comete agora delito em querer usar de aquillo

que jà não he seu.

Tudo he sombra se se compára com o defeito da facilidade, ou ligeiresa: e ainda o

não acabo de dizer, porque não acho nome decente. Mulheres hà leves, e gloriosas,

prezadas de seu parecer: loureiras, cuido [CG29v] eu que lhes chamavão nossos antigos,

por significar que a qualquer bafo de vento se movião. Este he o ultimo de seus males.

Nem o quero considerar, porque nos não he necessario, nem apontar o remedio. A honra

de cada hum, e a conciencia sejão neste triste caso os conselheiros. Com agudesa difinio

este ponto em poucas palavras hũ discreto: Sofra o marido á mulher tudo, senão offensas;

e a mulher ao marido, offensas, e tudo.

Advertirei, todavia, que [CG30r] aquelle seu pretexto, de que cortesanías, ou

galantarias não fazem mal, he conclusaõ erradissima, cuja pratica introduzio a industria,

não a razão. Para que se pregue hum prégo, costumamos fazerlhe primeiro lugar com hũa

futil verruma. Nenhum vicio entra tamanho como he. Aquelle bicho que no Brazil se

padece por achaque, sem falta que com providencia no lo deu a natureza a todo o mundo

por exemplo; entra invisivel, começa entretenimento, passa a ser molestia, chega a ser

[CG30v] doença, e acontece que pòde ser perigo. A honra da mulher comparo eu á conta

do algarismo; tanto erra quem errou em hum, como quem errou em mil. Fação as honradas

boas contas, acharàõ esta conta certa.

De hũas que se prezaõ de fermosas, não ha para que nos descuidemos. Que a

mulher se conheça não he vicio; antes antiga opinião minha que em muitas partes tenho

escrito. Devemos tanto conhecer o bem, se o há em nòs, como o mal quando o [CG31r]

haja. Este para que se guarde, e não perca; aquelle para que se emende, e não và adiante.

Desejo que da fermosura se use como da nobreza; folgue cada hum de a ter, mas não que a

amostre. Levar da espada a cada passo, argùe pouca prudencia. O marido que vir sua

mulher inclinar a esta vaãgloria, viva por ella mesmo avisado, e saiba que tem perigosa

mercadoria, sendo esta das mulheres ao revèz que as outras, pois quanto mais cobiçada he,

menos he para cobiçar. E [CG31v] por esta razão não faltou já quem duvidasse, se a

fermosura se dava por premio, se por castigo.

Passado havemos este enfadonho labarinto, ou por estes monstruosos medos, que o

guardão. Tudo hà no mũdo, donde em nada perigarà a pessoa advertida. Verà V. M. nos

mappas, por que se governão os mareantes, notados com tanta diligencia os baixos de que

se haõ de guardar, como os portos a donde devem de ir a surgir.

Tendo, senhor meu, mostrado [CG32r] a V. M. assi hũas sombras dos perigos, e

inconvenientes que causaõ as mulheres com algũas de suas imperfeiçoẽs; hei como dito a

V. M. os descansos, os contentamentos que trazem consigo as boas. Elles saõ tantos, que

na verdade senão podem dizer.

Não hà na eloquencia louvor que não venha estreito para a mulher honrada. Assì a

deve de tratar seu marido como penhor celestial.

Para a conservação desta honra, e desta mulher, [CG32v] em que ella tãto estriba,

hirei assí apontando a V. M. algũas cousas, as quaes não servem aprendidas, senão usadas,

e usadas muitas vezes. Bem se vè que não basta prantar a murta no jardim, por de melhor

casta que ella seja, para que o adorne, faça figuras, e lavores agradaveis; he necessario

torcerlhe às vezes os raminhos, e outras cortarlhe as vergonteas; e com tudo nada

aproveita, se perpetuamente o jardineiro a não toza, e cultiva, porque veceja [CG33r]

muito.

Fujase, como de peste, de repartir casa, e receber criados com distinção, taes para o

senhor, e taes para a senhora. Se o casamento he união, de que serue dividillo? Este ponto

he mais proveitoso á advertencia, que agradavel à especulação. De aqui vem, que nem lhe

fujo, nem a persigo.

Temse hoje por grandesa lavrar quartos, e aposentos a parte, conservaremse por

toda a vida assì entre os casados. E hà homem que vive tão diminuto de [CG33v] sua

mulher, como das de seus vizinhos. Perguntemse neste caso as paredes das casas mais

antigas; que pois as paredes fallão, ellas dirão os costumes dos passados. Vese no seu

modo de edificar, que donde hoje não cabe hum pobre escudeiro, antes cabia hum senhor

grande. Eu não sou tão amartelado da antiguidade, que cegamente siga seus costumes, mas

pareciame bẽ aquella singelesa, e não bẽ esta cautela. Vivão todos em todas as casas,

maridos e mulheres; que o contrario, [CG34r] certo, he abuso cheo de perigos.

Affirmo ser erro que traz grãdes incõvenientes, haver em casa gente parcial, e que

cuide algũa della que sò a sua ama deve fidelidade, e segredo, sò a ella queira servir, e dar

gosto, sò tema seu enojo, e espere seu premio.

Costumavão dizer os Grandes: Tantos criados, tantos inimigos; sentença de que foi

autor não menos que o Espirito santo. Pois estoutra casta de criados, que o saõ, e que o não

saõ, he a [CG34v] quinta essencia dos criados inimigos.

Introduzio o costume, ou o diabo inventou, hũa sorte de pagenszinhos, que chamão

de tocha, ou de estrado. Não aprovo tal uso, se se lhe ouver de assinar particular exercicio,

antes sou muito contra elle, porque entrão, e saem, saõ espertos, e artistas, tomão cio com

o favor, como quartaos gallegos, e saem delle com más manhas.

Sejão os pagens todos do senhor, e destes os mais modestos, e honrados se

[CG35r] apliquem ao serviço de sua mulher; e se se variarem, he ouro sobre azul. Não he

necessario para fazer isto, senão verse que he melhor que o contrario. Façase porque he

bom, e mais seguro que o que se não faz.

Entrem pouco, e até parte sinalada; porque se saõ pequenos, negoceão com as

criadas, e avogaõ às vezes por outros; se saõ grãdes, trazem procuração em causa propria,

sempre com dano do decoro da casa.

Vio hum dia o Duque de Alva, avò deste que hoje [CG35v] vive, entrar hum

pagem jà espigado no quarto das criadas; chamou o, e disselhe: Andad, decilde al

mayordomo, que ó os cape, ò os encape.

Havia sucedido hum desconcerto em casa de hũa senhora a certa criada sua; e foi

tal que se houve de descubrir de noite, e hirselhe buscar o remedio a casa de hũa comadre;

dava grandes vozes o portador, e dizia (dizia elle despois que por lhe parecer mais

honesto:) Senhora, acuda V. M. depressa a casa da [CG36r] senhora Dona fulana, que está

hũa sua dona de parto. Que pregão este! e quem tão culpado na infamia de aquella casa,

como o descuido do senhor da casa?

Senhor N. olhe V. M. Quando o fogo anda na coitada, varremlhe muito bem os

caminhos, que não fique palhinha, nem aresta, nem argueiro, e isto a fim de que não salte

de hum arvoredo em outro, por meio de aquelles nadas em que se atea.

Estas sevandilhas pequenas, estes argueiros, estas palhinhas, [CG36v] estas arestas,

saõ ás vezes causa de grandissimos incendios. Ande, senhor meu, a casa de V. M. bem

limpa, e bem varrida, que alem de ser grande asseo, he grande descanso.

Quero fallar em criadas, e quizera fallar mais baixo, se a escritura tivera tons, como

tem a pratica.

O numero dellas, nem falte ao estado de cada hũ, nem sobeje à fazenda de cada

hum. Nesta mingua nos levão os estrangeiros muita ventagem. Senhoras de grande porte,

por terras [CG37r] que vi, e andei, se servem com hũa, duas criadas, e mais das filhas que

dellas. E jà por ventura por esta causa chamão os Franceses às Damas do Paço: Filhas de

Honor; dando a entender, que não menos das filhas se podem fazer criadas, do que se podẽ

as criadas ter em conta de filhas.

Se o hei de dizer em outra parte, seja aqui logo, antes que me esqueça. Ouvi muitas

vezes a hum famoso prègador (que todos ouvimos) repetir este dito engraçado, e

verdadeiro: Quem [CG37v] gasta menos do que tem, he prudente; quem gasta o que tem,

he Christão; quem gasta mais do que tem, he ladraõ.

Em nada deve haver excesso na casa bem regida; e se em algũa cousa se cõpadece

falta, he naquella que menos se vè, quaes devem ser as criadas, que estas cõvem que sejão

as cousas menos vistas da casa, ainda que não sejão as menos para ver. Certo que quando

por mais não fosse que por atalhar os embaraços que ellas causaõ à familia, se podião ter,

e usar com grãde [CG38r] moderação.

Valìda especial de sua senhora não haja algũa, porque todas o possaõ ser no grao

conveniente. Todas a amem, a todas estime; sejão todas suas criadas, seja senhora de

todas; de nenhũa seja amiga, com nenhũa se mostre companheira.

Certo que hei de contar a V. M. (contolha, não lha inculco) em segredo, hũa

historia. Diziame hum grande Senhor muito discreto, e gentil politico: que assì como sua

mulher se declarava em favorecer hũa criada mais [CG38v] que as outras, se era moça lha

galanteava logo, até que a boa senhora, a puros ciumes, a lançava de seu serviço, ou pello

menos de sua valia; e se velha, lha comprava com dinheiro, e merces, de maneira que

tambẽ por sospeitosa a descompunha. Eis tudo revolto, e á vontade do marido. De sorte

que com tal destresa se havia, que nunca víra a a sua mulher tres dias particularizarse mais

com hũa criada que com outra. Tenho o por demasiada astucia, mas elle fazia muito caso

[CG39r] desta treta. Fique dito, não aconselhado.

Pois estamos aqui, digamos o que acerca de criados se offerece que advertir. Se for

algũa cousa mais proluxo, saiba V. M. que de proposito me detenho, porque julgo este

ponto por hum dos mais principaes á honra, e paz dos casados.

Mulheres que saõ como o rio Nilo, a quem se não sabe o nacimento, e toda sua

corrente, fugir, senhor, dellas, como dos proprios crocodilos, que dizem leva esse rio. Hà

hũas que dão [CG39v] em ter Dõs; outras que se prezaõ de nobìlissimas (e praza a Deos

que não seja por afinidade.) Muitas que se vendem por filhas bastardas de fulano, e fulano,

as quaes (se o saõ) sendo mal criadas ao bafo das mãis, saõ pouco a proposito para boas

criadas. Algũas que se introduzem por descasadas; algũas que se lhe forão hà tantos annos

seus maridos para a India, e nada daquillo he seguro, e apenas he certo.

Estas costumão ser discretas, musicas, comediantas, [CG40r] sabem fazer toucados

estravagantes; bordadoras, costureiras, e como cevo das boas habilidades, enfeitição as

senhoras, que mal advertidas de aquelles laços, que na aparencia se encobrem, caem

facilmente em seus enredos; saõ as logo mimosas, e queridas; erguemse de repente sobre

as mais; anda a casa revolta, e ainda este he o menor inconveniente. Contão historias a

suas amas, mostrãolhe às vezes a facilidade de vencer hum impossivel; allegãolhe com

casos [CG40v] passados; e finalmente saõ como sarna da honra, que sendo hũa ruim, e

asquerosa doença, passa por gosto, e dana com graça à pessoa que a padece.

Era para cuidar, se convinha servir de pessoas de grandes partes? Quando ellas

fossem conhecidas, muito bom seria. Vemos cõtudo, que nestas há o maior perigo; porque

a fortuna tẽ guerras apregoadas com a natureza: sempre hũa desfavorece a quem a outra

favorece.

Achou o com agudesa, [CG41r] e razaõ aquelle meu amigo, que escreveo: eraõ os

quatro costados da doudice, a Musica, a Poesia, a Valentia, e o Amor; não porque tudo isto

deixe de ser muito bom, mas porque por ventura por ser tão bõ, jà mais se concedem estas

boas partes (e outras como estas) sem a pensaõ de hum juizo leve, as mais vezes arriscado,

e não poucas defeituoso.

Quando a mulher tenha desejos de receber em seu serviço pessoas assì

semelhantes, opponhaselhe cõ [CG41v] suavidade seu marido. Façalhe entender que as

rendas se vendem na Capella, os toucados se fazẽ no Paço, e tudo o que custa dinheiro he

mais barato; que a troco de viver com receio, ou ocasião, nenhũa cousa he boa.

Convem para criadas as filhas das que o forão, e que tem feito prova do amor, e da

lealdade; as vassallas (quem as tiver) as vizinhas, e gente de antigo conhecimento; e todas

de aquella esfera de gente, que sem vergonha de seu estado, [CG42r] póde, e deve servir,

e de quem seus amos sem pejo, nem vaidade, pòdem, e devem ser servidos.

Hũa casta de mulheres que há pelo mundo, que saõ entre hospedas, e recolhidas,

tampouco levará o meu voto. Muitas senhoras folgão de valer a estas taes cõ a autoridade

de sua casa. Não sou contra o bem fazer; mas incauta seria a piedade de quem tirasse do

lume os carvoẽs acesos, porque se não gastassem, e os metesse no seio para que lho

abrasassem. Todavia não he [CG42v] gèral esta regra, que póde pella prudencia do marido

ser algũa vez dispensada.

Contra a antiga modestia Portuguesa, introduzio o costume, que as criadas

andassem no mesmo trajo que suas senhoras. Ajudãose de outra astucia, metendo em

cabeça às pobres amas (a quem com taes persuadiçoẽs deixão mais pobres) que a honra de

hũa senhora está em trazer suas criadas mais lustrosas que a si mesmo; e lhe apontão que

veja a aquella, e aquelloutra, que não he tanto como ella, [CG43r] e veste as criadas tanto

melhor que ella.

Pòde assì acontecer cada dia, segundo a igualdade dos trajos, não se saber qual he a

ama, ou a criada, com muito mais ocasiaõ do que dizem que a teve certo caseiro de hum

fidalgo noivo muito mancebo, que entrando com hum presente na camara onde jazião seus

amos, e não distinguindo qual fosse elle, ou ella (a quẽ as crenchas fazião semelhantes, e

as barbas não dessemelhavão) perguntou simplesmente, qual dos dous [CG43v] era, ao

serviço de Deos, o senhor noivo? porque a elle queria dar seu recado. Quãtas vezes

puderão hoje outros mais praticos, vendo as senhoras, e as criadas do costume, perguntar

qual era a senhora ama?

O menor perigo que aqui há, he o excesso, e desordẽ do gasto; que comtudo he

tamanho, que em verdade se se medir a ansia, e trabalho, em que vivem muitos amos para

sustentar a vaidade de seus servos, que bem maior trabalho passaõ os senhores por serviço

de [CG44r] seus criados, que os criados pello de seus senhores.

Mas tornando ao fausto, e escusado adorno das criadas, mostra bem a experiencia

os danos que este costume traz consigo. Ellas vendose assi magestosas, logo sobem de

pensamentos, e tratão de aproveitar aquelle bom tempo, mostrãdose, e deixandose ver, e

procurando haver por taes meios algum estado, que em sendo havido por ellas, e por

aquelles meios, soe ser sempre bem ruìm.

Seja o marido Almotacel, [CG44v] que taixe as galas de sua familia; às criadas

consinta toda a limpeza, mas não toda a louçaìnha; differenceas o trajo, como o officio.

Não se lhe chame damas, nem se lhe consintão galãteos: cousa moderna, e bem

escusada. Fiquese essa permissaõ para a casa de el Rei, donde o medo do castigo, e a força

do decoro, suprime a malicia, que algũa vez se desaforou tanto, que venceo o medo, e se

rebelou contra o decoro.

Em parentes de criadas [CG45r] muito solicitas (e tãbẽ em parentas) haja grande

tento. Primos, e cunhados, que não forem muito conhecidos, fallem de fóra, e se não

fallarem ainda darão menos em que falar. Curas que se vão fazer a casa de irmaãs, e de

tias, saõ enfermidades. Visitaçoẽs, ainda com dòna velha á ilharga, tem seu risco.

Amizades especiaes entre esta gente, saõ dinas de tento; segredos perpetuos

induzem sospeita. Eviteselhe, que se chamem hũas ás [CG45v] outras cõ nomes que

inventa a sua ociosidade, como: meu marido, minha avò, minha comadre; ou tambẽ:

amores, cuidados, pensamẽtos; porque tudo isto, quando de presente não seja mao, he a

meu juizo hum jogo de espada preta em que o vicio as exercita, para que despois as tenha

destras para qual mais sanguinho desmancho.

Mas nem por isso aconselho aos amos o que Machavelo aos Principes, a quem

persuade revolvão os criados, para que não havendo [CG46r] algum que seja fiel ao outro,

lho sejão todos a elle. Velese o casado quanto puder; porem não espere por ruins meios a

concordia, que se não alcança (se se alcança) senão na casa pacifica, e concertada. Não

quero pór em cerco estas mulheres, nem negarlhes o licito; apõto onde jaz o perigo, para

que delle se desviem pello cuidado do senhor da casa, a senhora, e as criadas della.

Sobretudo, convem que o senhor procure ser bem quisto de suas criadas, e

[CG46v] as trate para esse effeito cõ a benignidade possivel; acuda por ellas na semrazão

que lhes fizer sua ama, se lha fizer. Não se particularize por nenhũa; falle, e procure por

todas. A liberalidade, pello menos a galantaria, ajuda a isso muito; dandolhes de quando

em quando o que delle não esperão.

Verdadeiramente, senhor N. que podemos affirmar, que assì como entre a cabeça, e

mais partes do corpo humano, convem que haja grande conformidade [CG47r] para que

vivamos com saude; assí tambem entre o senhor da casa, e os familiares della, convem que

haja concordia, para que se possa viver com gosto, e quietação. E da mesma sorte, assì

como os humores mais sutìs, e delgados, saõ os que primeiro se revolvem, e corrompem;

assì as mulheres saõ as que primeiro dão causa a qualquer movimento; por donde he

necessario viver com ellas muito regrado, porque se não destemperem, adoeção, e matem

o contentamẽto.

[CG47v] Agora peço eu a V. M. por premio do risco a que me puz em fallar tão

livremente, que V. M. lea, e guarde sò para sì estes avisos; porque por mais que o meu

estado seja jà isento dos perigos de sua indinação, todavia os passados danos fazem como

ainda agora tema, e as tema.

Pello que tenho dito das criadas, se podem tirar algũs documentos para os criados.

A primeira observação acerca delles, seja que a nenhum se trate de maneira que à sua

propria senhora [CG48r] dé cuidado: cousa que, não poucas vezes acontece. Quando este

favor he indiscreto, cuidão as mulheres que os criados servem a seus amos em ruins

officios; e partìcularmente se cãsaõ com aquelles da antiga obrigação dos maridos, como

antigos obreiros de suas mocidades.

Se tal sucedesse, seja o casado facil em persuadir sua mulher, que atroco de que

viva satisfeita, lhe serà leve desviar de sua valia, e ainda de sua casa, esse criado. E façao,

se convem, [CG48v] porque neste caso a resistencia he constelação das contrarias

sospeitas. Eu fico que a bem inclinada, e amante de seu marido, se contente com saber lhe

he possivel despejarse de aquelle enfadamento, quando lhe poem em sua eleição o

remedio.

Sucede muitas vezes às mulheres, o que aos potros que melhor se governão quando

lhes dão a redea e cuidão que podem hir à sua vontade, que quando lha recolhem, e

mostrão que vão à vontade alhea.

Não he cura para a [CG49r] mulher a raiva, e asinte; e assì se deve usar com ellas

de brandura, e cortezia. Se admitissemos para entre os casados algum artificio, dissera ser

boa regra para a mulher, mostrarlhe que com o marido podia tudo, sem que pudesse

realmente, mais do que fosse razão.

Saiba, todavia, a mulher sisuda, que deve honrar a quem seu marido honra; e o

homem honrado, que a ninguem deve dar azo que a sua mulher perca o respeito.

[CG49v] Não se nega que a hum, e a hũs criados possa ter o senhor melhor

vontade, segundo o que cada qual se avantejar em serviços, e merecimentos. A regra géral

deste negocio he, que de se favorecer o criado que muito merece, ninguem se escãdaliza;

de ver acrecẽtar sem ordem a aquelle, que todos conhecem por inutil, todos sospeitão mal.

Isto he nos Senhores, isto nos Grandes, isto nos Reis.

A escolha de criados, sendo sempre necessario que se faça com consideração,

[CG50r] o he mais para a casa dos casados. Os que se prezaõ de valentes, saõ ruidosos; os

musicos, inquietos; os namorados, infieis; os lindos, impertinentes. Homens limpos, bem

criados, amigos de honra, saõ a proposito; e estas suas melhores partes.

Taxe o numero à fazenda (como já das criadas se tem dito.) A razão pede hũa

continua igualdade na casa do homem sisudo. Nesta parte dispensàra facilmente, quando a

ocasiaõ requeresse contra a igualdade. Bodas, filhos, cargos, alegrias [CG50v] publicas,

pedem ventajem na familia; que tampouco passado aquelle tempo seria deffeito

aguarentalla, e o seria passar por estas cousas, sem algum novo luzimento; porque o

mundo, com quem vivemos, como tomou o sabor dos pensamẽtos dos homens, não julga

aquella temperança por prudencia, senão por avareza.

Lembrame acerca disto hũa cortezanìa. Acheime em hũa Corte ao tempo que hum

Rei mandou certa embaixada ao Emperador. [CG51r] Era prudentissima a pessoa que a

levava, nada quiz crecer no esplendor de sua casa. Notavase por culpa esta medianìa entre

os ministros. E porque el Rei expedira o negocio estando doente, dizião os travessos: que

S. Magestade mandava em seu nome aquelle Embaixador de tal maneira, por haver feito

voto de hir descalço a certa casa de devação em Alemanha, se Deos lhe desse saude.

O mesmo que do numero, direi do trato. O interior, e das portas a dentro, [CG51v]

sempre convem que seja sufficiente. A gente de não grandes pensamentos, nada tanto a

satisfaz como o bõ pasto, que he felicidade, ou trabalho que padecem duas vezes ao dia: o

exterior das portas a fora, por que entendo o vestido, póde (como jà disse) segundo os

tempos, crecer, ou minguar.

Particularizando mais este ponto. Tenho por grande prudencia o dar tinello aos

solteiros; comem, e andaõ limpos. O dinheiro he ocasionado; jogão, e o gastão mal,

despois padecem. Este [CG52r] he o perigo dos que saõ grãdes; e o dos pequenos, digao o

que aqui dizia hum fidalgo cortezaõ (và por cõto da chuminè:) que nunca tivera pagens

sem sarna, senão despois que dera em os fazer dormir na cama com as dònas de sua

mulher.

Mas que seja tornar a isto. Contavame hum grande Prelado de certa Religião mui

reformada: que sempre trazia os seus frades famintos, porque não cuidassẽ em outra cousa,

senão em comer melhor. Os criados se devem tratar às avessas, [CG52v] porque em

andando bem mantìdos, saõ melhores os seus pensamentos.

Temos assentada a familia; e posto ao casado sua casa. Digamos algũa cousa da

mulher; e despois apõtaremos como deve usar de tudo.

Meu animo (segundo já deixo dito) não foi aconselhar como deve casarse: que o

acerto de V. M. me livrou desse trabalho; podendo por esse exemplo aconselhar a todos

como era bem que casassem, se forem tão venturosos que assí possaõ.

[CG53r] Para o que jà casou, e suppomos bem casado, he que ajuntamos aqui estas

advertencias.

Perguntou alguem algũas vezes, se seria licito deixar usar a mulher propria de

aquellas boas partes de que a dotou a natureza: como o cantar, o dançar, e ainda o fazer

versos, e outras semelhantes prerogativas, que em algũas se achão, e em muitas pudèra

haver, se o receo as não suprimisse.

Certamẽte, que se V. M. me fizera esta pregunta, me [CG53v] vìra eu em grande

enleio; porque o aniquilar em qualquer pessoa as perfeiçoẽs que Deos lhe deu, impiedade

parece; fazerlhas exercitar naquelles limites que a prudencia requere, parece impossivel.

Dizia a este proposito a Princesa de Roca-Sorion em França, que foi discretissima,

e não bem casada: Que das tres potencias com que entràra em poder de seu marido, duas

lhe tomàra elle, e lhe deixára hũa sò, que ella lhe dera bẽ facilmente. Porque nem a

[CG54r] potencia do entender, nem a do querer tinha jà; e sò lhe ficára a memoria de que

as tivera em algum tempo, para sentir mais a pena de se ver agora sem entendimento, nem

vontade.

De todas as graças das mulheres, a graça he a que tenho por mais perigosa; porque

para se usar della, necessita de menos aparelhos: sendo, a meu juizo, esta graça a mais

perigosa desgraça.

Cantar a mulher a seu marido, e filhos, se os tẽ. cousa parece licita, e o seria

[CG54v] o dançar algũa hora na sua camara, em quanto a idade lhe permitisse essa alegria.

Não louvo o trazer castenhetas na algibeira, saber jacaras, e entender de mudanças do

çarambeque, por serem indicios de desenvoltura.

Mas aquillo de ser engraçada, e aguda na visita, na igreja, no coche, e no Paço, tras

grandes inconvenientes consigo, e dificilissimos de atalhar; porque das cousas a que se

segue aplauso, bem ou mal ganhado, ninguẽ se arrepende.

[CG55r] Velese disso seu marido; e se com ella acabar a emẽda, crea que fez

muito; porque deste mal nunca vì a nenhum doente convalecido.

Somos entrados na maquina dos costumes da Corte, senhor N. Em grandes receios

estou que comece a não saber o que digo, se jà o não tenho feito.

Quem dará termo a visitas, a merendas, a jogos, a romarias, a camaradas, a

comadres, a amigas? Viralhes eu termo, e fora dado por quem fora.

[CG55v] Senhor, hà hi hũas cousas, que não saõ boas nem mâs; e sò as faz boas,

ou más o costume. Hà outras, que de si não saõ boas, e por mais que se costumem, sempre

saõ màs. Há outras que sao ruins; mas que o costume as tem já feito sofriveis. Folgàra eu

muito que V. M. pois he discreto, me dera por adivinhado, sem me fazer declarar quaes

saõ hũas, e quaes outras, que eu declararei por muito cõmuns exemplos.

Quero lisongear as mulheres. O uso dos seus guarda [CG56r] infantes, e cousas

desta maneira, ponho entre aquellas, que de si não saõ màs, nem boas, e o costume lhe dá

o ser, ou lho tira. Eu vi andarem as Francesas com semelhante trajo, a que então chamavão

verdugadins; parecerem muito bem; e não lhe ser estranhado. Despois as vi sem elles, e

parecerem da mesma sorte. Quando estas cousas se usaõ, se estimão dignas, e quando não,

se estimão indignas. Póde mais ser: Eu tenho na minha livraria hum livro feito por

[CG56v] Alonso Carrança contra as guedellas, de que diz cousas abominaveis; e tenho

outro feito por Pedro Mexia, em que não cessa de chorar o ver os homẽs trusquiados. A

razão disto he o uso, que no tempo de hũ costumavão os cabellos grãdes, e parecia vicio, e

abuso raparemse os homẽs; e no de outro costumavão cabellos razos, e parecia

deshonestidade trazeremse crecidos. Estas taes saõ as cousas, que não sendo más nem

boas, o uso as faz boas, ou más.

[CG57r] Em Flandes (e mais em Alemanha) he acto de galantaria, singeleza,

amizade, e boa lei, beberem os homẽs tanto que perdem seu juizo. Mas este tal costume,

não póde desmentir, nem honrar o vicio que há nelle; porque aquella demasia he de seu

natural injuriosa.

Os antigos quebravão o jejum com qualquer outra cousa que comessem fóra de

aquella hora, em que lhes era permitida a refeição. Veio o uso, e fez consoar, e pode tanto

que ficou por bõ [CG57v] uso. Aqui ajuntamos as consoadas do Natal; e por não hir mais

longe, os meudos de Castella, que tudo foraõ introduçoẽs, sem algũa concessaõ, ou direito;

porem jà calificadas pello inalteravel consentimento, se fizerão toleraveis, e perdèrão o

nome de vicio.

Eis em bem claro modo, os tres modos do poder do costume. Mas deixemolas com

os seus guarda infantes, que elles viraõ a ser maos (se agora ainda o não saõ) como ellas

acharẽ outro trajo de que cuidem [CG58r] as faz mais airosas. Deixemolas com suas

visitas, romarias, e jornadas; que ainda que não era bom, já o uso lhe cõmunicou seu

privilegio. Porem jogos excessivos, banquetes descompostos, vindas fóra de horas,

amizades com profia; as comprendidas (se as hà) dem licença, porque eu me resolvo a

dizer a V. M. e a todo o mundo, que estas taes saõ de aquellas cousas que nenhum uso

póde fazer decentes.

Conhecẽdose que he mai, procurelhe o marido cedo o remedio, [CG58v] antes que

se aposse da pessoa. Consiste na ociosidade, e apetite; trate de dar remedio á ociosidade,

ocupandoa no honesto trabalho do governo de sua casa; e ao apetite, encaminhãdolho a

outro emprego de mais honra, e proveito; qual seria, que tenha apetite de viver em paz, e

confiança com seu marido, certificandoselhe que de outra maneira lhe serà impossivel.

Ouvi jà dizer a hum Principe, fallandolhe hũa pessoa de grande respeito [CG59r]

por hum criado, a quem aquelle Principe havia descomposto: Deixai o, deixai o estar em

minha desgraça, que primeiro que o castigasse cõ ella, lhe roguei muito que me tomasse

por amigo entre os mais por quem me deixou, e nunca quiz senão deixarme por seus

amigos.

Este tal requerimento deve com mais razaõ fazer o marido a sua mulher, e quando

ella não convenha nelle, outro tal castigo lhe merece.

He cousa rija, que a senhora de casa, de tudo seja [CG59v] amiga, senão de sua

casa; como acontece a aquellas, que ou perdem a casa, porque nunca estão nella; ou

porque o estar nella as ajuda a que a lancem a perder.

Disse que seria bom ocupar a mulher no governo domestico; e he bom, e he

necessario, não sò para que ella viva ocupada, senão para que o marido tenha menos esse

trabalho.

Cousas tão meudas não he bem que pejem o pensamento de hum homem; e para os

da mulher saõ muito [CG60r] convenientes. Pergũto: Não se rìra V. M. se víra hir hum

elefante carregado cõ hum graõ de trigo na tromba? Si por certo; e logo louvára a Deos se

o visse levar no bico a hũa formiga. Diz bẽ por isso o rifaõ: Do homem a praça, da mulher

a casa. Os maridos que em tudo querem mandar, saõ dignos de reprensaõ, igualmẽte aos

que não querem mandar em nada.

Emfim, senhor N. fique àssentado, que o gasto ordinario convem que se entregue à

mulher pella contentar, [CG60v] pella ocupar, pella confiar, por lhe dar aquelles cuidados,

por lhes desviar outros.

Se o faz como he razão, que maior ventura? Fará conta o marido que achou hum

criado tão bom como elle, e tão fiel, que o serve de graça. Se o faz menos bem; ainda he

mal bem toleravel. Quanto melhor serà que o desaproveite a mulher que não o criado? Que

ella sempre errará contra sua vontade, ou pello menos com vergonha; e o criado pòde ser

que muito por sua vontade, [CG61r] e sem nenhum pejo, desacerte.

As casas da gente ordinaria soem ser melhor governadas; porque infalivelmente

guardão esta regra: hum traz, outro aproveita.

Dissera eu, que á mulher se entregasse hũa tal porção de dinheiro, que pouco

excedesse o gasto quotidiano. Não por exercitar com ella algũa avareza; porem porque

tenho por sem duvida não convem às mulheres demasiado cabedal. Costumaõ gastar sem

ordem [CG61v] aquellas que sem ordem recebem.

Digalhe o marido, que elle se offerece para seu escritorio, que acuda a elle quando

lhe falte o dinheiro, como pudèra a hũa gaveta de seus contadores; e façalho assí certo.

Leve a pella vaidade de grande governo; mostre espantarse do muito a que chega sua

industria. Não se vé o bom alfaiate donde há muito pano, nem o bom cocheiro nas ruas

largas. Eu fico que se a mulher he gloriosa, para o seguinte mez gaste [CG62r] hum terço

menos.

Para que lhe não seja molesto o pedirlhe contas, délhe contas seu marido de aquillo

que gasta, e corre por sua conta. Mostrarlhes confiança, as obriga a que fação o mesmo.

Estas contas de fazenda entre casados, não seria eu de parecer que jà mais se

ajustassem, nem levassem ao cabo; seja sò reconhecimento, que na mulher haja ao marido.

Tirase de aqui hũa grande conveniencia; a qual he, que a mulher està sempre como que

não he senhora [CG62v] disso mesmo que possue. Igualmente convem que gaste a medo,

e goze a medo; mas jámais seja despojada do que logra; porque então agradece, como que

lhe derão, aquillo que lhe não tiraõ.

Agora inventou a cautela outras cautelas, contra esta boa politica: ajustandose logo

nos contratos do casamento (especialmente entre pessoas poderosas) os elementos que hão

de dar os maridos a suas mulheres, durando o matrimonio. A quem o prometeo assî,

acõselharei [CG63r] que o satisfaça; a quem o não prometeo, aconselharei que o não faça.

Não he, a este proposito, pequeno o inconveniente que hà quando se casa com filha

herdeira; as quaes cõ maior razão pretendem ser senhoras do que he seu, e ter na

governança de seus bẽs maior mão que seus maridos; donde lemos haver algũas discordias

entre o Rei Dom Fernando, e Dona Isabel. Quando a mulher tal pretendesse, certifiquea

seu marido, que quem he senhor da pessoa, e da vida, [CG63v] o he tambem da fazenda.

Quem deu hum anel de diamantes em hũa caixinha de veludo, que não desse tambem a

caixa, como deu o anel?

Não hâ para que me detenha no modo de vestirse; vistase conforme sua idade,

mudese com ella. Temse nisto respeito aos filhos, á saude, ao gosto, à presença, ou

ausencia do marido, e tambem a idade delle. Se o ouvessemos de regular parece que atè os

tres filhos, e atè os vinte e cinco annos se permite toda a gala. [CG64r] E ainda nesse

mesmo tẽpo tenha suas crecentes, e minguantes; que nos mesmos altares de Deos se

mudão as cores, e adornos, e vez hà em que se mostraõ tristes. Avorrecẽme hũas maias

muito enfeitadas, sempre de bordados, e joias, que parecem Fama de procissão, ou Raìnha

Moura de comedias. Seja mais confiada em sì a fermosura, se saõ fermosas; e mais

reportada a fealdade, se saõ feas.

Dizia hum marido galante a sua mulher destas [CG64v] muito arraiadas: que em a

vendo de aquella sorte, lhe fazia mais devação que amor; porque aquelle seu andar, não

era andar vestida, senão revestida.

Outras há, que saõ hũa perpetua pastilha, e hũa caçoula perene. Muito conforme

cousa he com ellas o cheiro; mulheres, e perfumes, tudo saõ fumos. E se elles fossem bem

adubados da discrição, eu fico que recendessem mais ainda. Confesso que nunca fui

desafeiçoado ao concerto das casas, e das pessoas, como por [CG65r] concertallas se não

desconcerte. Lembrame haver ouvido, e lido (tudo conto com pouco aplauso meu) do

Emperador Dom Fernando o Segũdo, pai do que hoje impera (se elle impera) que, não

quiz dormir em hũa camara, porque lha tinhão perfumado. Se foi achaque de natural

repugnancia, he desculpavel; se não mais que hombridade, não vi eu maior impertinencia.

Hà quem diga que foi religião; porque dizem tinha Dom Fernando para sì, que os cheiros

erão sò devidos a [CG65v] Deos. Do nosso Rei D. Sebastião tambẽ contão, não ser muíto

caroavel de cheiros. Não sei como isto he! porque como eu sẽpre ouvi chamar reaes a

todas as cousas boas, cuidava sermos obrigados a crer, que todas as cousas boas eraõ

reaes; erão digo aceitas, e dignas dos Reis. A experiencia mostra algũa vez que esta regra

não he infalivel. Com tudo se tem por certo sinal de hum bom espirito, ter inclinaçaõ para

todas as cousas boas. Não sei se nestes perfumes das mulheres [CG66r] entrão tantas

filosofias; mas ainda que não sejão virtude, contentemonos com que não sejaõ vicio.

Direi dos regallos, doces, e conservas o mesmo; se bem estes generos, como mais

necessarios, por razão da saude, da caridade, e da grandesa (que tudo he necessario) não

devem faltar nunca, como por acudir a elles se não falte a outras cousas mais necessarias.

Com tudo me parece conveniente deixar cevar (digamolo assì) as mulheres nestas

[CG66v] suas curiosidades femeais: serem prezadas de melhor marmelada, boas caçoulas,

consoadas pontuaes, lavores exquisitos, pano delgado, e cousas semelhantes; que

verdadeiramente as que se enfrascão nestes negocios caseiros, não lhe lembrão outros, e

este he louvavel.

Debaixo da mesma lei comprendo os adornos, e alfaias de casa, julgando a hũa

excellente ocupação a da senhora, que dellas trata; e a seu marido louvarei muito, que em

tal exercicio a ajude sempre. Honraõ, [CG67r] alegrão, servem; e em fim he thesouro que

se faz para as filhas, e em que se ganha às vezes mais que em mandar encomendas à India;

porque para levantar o falso testemunho de hum dote de tantos mil cruzados, não há

reposteiro velho, nem tapete que não valha a cento por cento.

Visitas que se fazem, e que se recebem, he hum largo pègo. Jà atraz deixo tocado

nisto, mas não á minha vontade. Muito havia aqui que advertir, mas nẽ tudo he para papel

e tinta. [CG67v] Por certo que não deixarei de contar o que me contava hum homem

discreto, e não bem casado, que havendome dito muitas queixas de sua mulher, rematou

com esta por fim de tudo: E vè V. M. isto? pois o que mais sinto della, he ser muito bem

quista. E de verdade as muitas amigas he cousa para dar cuidado, porque nem todas podem

ser como haõ de ser, as amigas.

Hũa cousa que antigamente entre as amigas se chamava pucaro de agoa, [CG68r]

passou a ser merenda, e de merenda a banquete; e de banquete tem já subido a tanto, que

se lhe não acha nome, ou pello menos não lho eu dar. Não sei como seja boa amizade,

andaremse destruindo as amigas hũas ás outras, empenhando as casas com excessos,

desgostando os maridos com petiçoẽs impertinentes, de perigoso, e de impossivel

despacho. Se esta demasia se encaminha a mostrar amor, certamente indigna he a amizade

que tem a gula por seu fim; se a ostentar [CG68v] grandesa, como se pòde conseguir a

grãdesa pelos meios que se alcança amizade, que entre todos os porque se alcança, nenhũs

saõ tão proprios como o gasto desordenado?

Havia adoecido hum fidalgo de pena de se ver empenhado sem proposito, pellos

despropositos com que sua mulher gastava o que não tinha; e como, estando com grandes

febres, visse em casa hum prato de cidraõ molle, com que a pesar de sua careza, a mulher

se servia de ordinario nestes seus [CG69r] convites, dizem que disse o pobre doente:

Daime cà aquelle cidraõ, que o quero comer todo. Requerialhe a mulher que tal não

fizesse, porque o cidrão era fogo para quem se achaa naquelle estado. Respondeo então:

Bẽ sei que he fogo, que bem abrasado me tem; mas deixaime ver se acaso tem o cidraõ a

virtude do cão danado, cujos cabellos, se os poẽ na mordedura que elle fez, dizem que a

sara logo. Nẽ andou menos discreto hum criado, que perguntandolhe certa pessoa, que

fazia seu [CG69v] senhor, porque o queria ver? elle lhe respondeo agudamẽte: Meu amo

não està para ver, porque o està merendando minha senhora com as senhoras suas amigas.

Faça o marido de quãdo em quando hũa estação a sua mulher; amoestea, que nẽ no

seu estrado, nem em o alheo apóde ninguem; cousa muito certa, e de que as apodadas,

sendo mulheres, se cansaõ assaz e tambem apòdão; e de que, se homẽs, logo lanção mão

para queixas, ou agradecimentos. Que não desẽróle os cuidados [CG70r] alheos, se fulano

olha, ou se passea a fulana. Parece cousa impropria, que hũa senhora que não he bẽ que

saiba mais que de sî, e sua casa, traga registados os pensamentos do outro. Nunca a algum

homẽ dos do lugar em que viver, louve, ou injurìe. He nas mulheres este diverso effeito

(de ordinario) procedido de hũa propria causa. De aquelles de quem muito mal se diz, e de

aquelles de quem muito bem se conta, julguei sempre hum igual misterio; e foi o pior, que

[CG70v] nũca me enganei nestas sentenças. Deve ser a pratica das mulheres, do seu lenço

de amostras, do ruim tempo que vai para curar pastilhas, queixarse das criadas, e ainda

para que se queixem dos despegos de seus maridos, lhes dou licença; mas que lhe

levantem falso testemunho.

E porque sei que hão de pedir maior comarca para sua conversação, me parece que

lhes podemos conceder, que possaõ até estranhar o bem ou mal feito vestido que traz Dona

fulana; e quãdo [CG71r] muito, chegar a não lhe parecer bem as cores, de que o betou,

com tanto que lhas não interpretem.

Torno às amigas, e reparo muito, que em nosso bõ Portugues, com muita razaõ, de

amigas a imigas quasi não vai differença. Sou tão ruim, que creo que muito mais dano

fizerão amigas no mundo, que inimigas. E assì costumo eu a dizer, que aos homẽs perdẽ

seus inimigos, e às mulheres suas amigas.

Tenhase que devem ser as melhores; e estas não [CG71v] tratadas com porfia;

basta que seja sem artificio. E esta tal amizade assento eu entre especialidade, e

comprimento. Isto com as mais amigas.

Trouxenos Deos agora (com todo o mais bem que veio a este Reino) hum novo

Paço, e Corte; e porque da do tempo passado nos não lembramos os que vivemos agora,

mal poderemos governar estas acçoẽs por aquellas antigas. A Corte Portuguesa era bem

frequentada, bem galante, e bem luzida, mas de grande recolhimento.

[CG72r] As idas ao Paço saõ devidas, justas, e boas; as vezes devem de ser

contadas. Nacimentos de Infantes, bodas, festas de entre anno, achaques de Principes, sua

saude, novas notaveis, e pouco mais que isto. O ir sò, não he elegante; seja a companhia

sempre boa, mas não de pessoa maior (salvo a primeira vez) cuja autoridade some o

agasalho, que cada hum deseja de achar na graça dos Reis, em suas casas, e em as de

qualquer hospede.

[CG72v] Acontece que muitas mulheres, muito para isso, começão a cobrar

(vaãmente) fumos de bem vistas das Rainhas, e Princesas; a que sem algum fruto se segue

grande inquietação. E sucede mais, que para dourarem sua ligeiresa, se haõ com os

maridos como dizem que fazem os negros dos mercadores, que em indo por donde

querem, tapaõ a boca aos amos cõ dizerlhes, que forão ouvir Missa. Vẽ muitas vezes a ser

o licito capa, e manto do ilicito. Com achaque de que vão ao [CG73r] Paço, se gasta o

tempo em ociosidades; e a casa se desgoverna.

A mulher principal bastalhe que a sua Rainha a conheça. Em melhor conta a terà

quando vir o siso com que procede, as poucas vezes que a vir. O correo extraordinario a

todos alvoroça, quando chega; o correo ordinario vai, e vem, sem ninguem fazer caso

delle. As pessoas de fora do serviço dos Principes, he custosa, e arriscada a pretẽsão de seu

favor. Punha hũ grande Cortesaõ o servir [CG73v] às damas, e aos Reis, cõ o uso do

limão, e da laranja: que o limão quer que o apertem muito, e então dá melhor çumo; a

laranja se quer espremida muito à de leve, porque logo amarga em se apertando. As

Damas querem ser assistidas; os Reis vistos â boamente. Por isso já disse alguem, que os

Principes, e o fogo, se querião tratados de longe, porque perto queimão, e longe alumião.

Ser mui pontual emu todas as festas, certo que he grande fadairo. Aquellas [CG74r]

das Igrejas, que entre nós saõ mais frequẽtes, ninguem pòde duvidar que seja licito acudir

a ellas; mas nem todas as cousas licitas saõ sempre convenientes. Deselhe confiança

bastante à mulher para crer que póde ir a todas as festas, mas cõ amor, e cortesia se lhe

mereça que não vá a todas.

De hũa que não lhe escapava alegria, em que se não achasse, dizia hum: A senhora

fulana pena em gloria. Porque verdadeiramẽte parece hum novo genero de Purgatorio não

haver [CG74v] festa, donde a mulher naõ queira ser presente. Pergũtavão a hum casado,

donde fora sua mulher à missa; e elle dizia: Donde ouvir charamellas. Eu conheci em

Castella hũa titular velha, e graciosa, e por estremo honrada, que quando se metia no

coche, e lhe preguntava o cocheiro, a donde? respondia: A donde huviere más gente.

Ora jà que vou tão meudo, heime de aventurar hũ pouco mais; servirà de alegrar a

malencolia, que até aqui guardàmos. Senhor [CG75r] N. não sou de cachorrinhos

enfeitados, que sempre tem nomes misteriosos. Jà me sucedeo em hũa Igreja virme

perguntar hum pagem esbaforido, se vìra eu por alli o Cuidado da senhora Dona fulana,

que andava perdido; e perguntando, qual era o cuidado de aquella senhora, que pudera

bem ter outros, achei que era hum cachorrinho de aquelle nome. Papagaios, saguins, saõ

praças mortas, mui escusadas, e que as mais vezes induzem ligeiresa. Senhor meu, os

mineiros pellas ervas, pellas [CG75v] flores, que dà a terra cà por fóra, conhecem logo

qual tem ouro là dentro, e qual não tem ouro. Tanto podem os sinais exteriores.

Vou estando tão impertinente, que nem passaros hei de deixar. Ruisenhol de todo o

anno, que canta de noute, e dizem logo que faz saudades, de que serve? De que servem

saudades estando o marido em casa? Não convem que haja saudades neste tempo, nem que

se conheçaõ. Negrinho, negrinha a que se digaõ requebros; engeitadinhos graciosos,

[CG76r] villoẽs simples (que às vezes não saõ simples) vestidos de cores, que se chamaõ

Dons fulanos, entrão, e vão por donde querem, não quizera eu que entrassem, nem fossem

por casa de V. M. Tudo isto na minha mà opinião he reprensivel; e folgara de o ver longe

das portas de meus amigos.

Juro a V. M. que toda a vida me enfadárão as damas dos livros de Cavalerias,

porque sempre as achava acompanhadas de cachorros, de leoẽs, e de enãos. Taõ inimigo

sou destas [CG76v] taes sevandilhas, que nẽ em livros mentirosos as sofro; veja V. M. que

será nas cousas verdadeiras? Mas o que he humor, ou capricho meu, não he razaõ que se

assente por regra géral. Seja advertido para quem tiver outro tão mao gosto.

Os Castelhanos celebraõ muito as mulheres caseiras, que tratão do serviço de suas

casas. Verdadeiramẽte elles as festejàrão tanto, porque colhem lá dellas tão pouca

novidade, que vem a ser novidade o achar là hũa [CG77r] destas mulheres. Com tudo ouvi

da Rainha D. Margarida de Austria (mãi de elRei Dom Felipe que hoje reina) bordava ella,

e suas Damas, mandava vender sua obra, e aplicava para regalos das Freiras da

Encarnação seus ganhos, e cabedais. Ou como, por melhor exemplo, dizem que faz hoje o

mesmo a Rainha nossa senhora, imitando as nossas antigas Princesas, entre as quaes foi

neste virtuoso exercicio sinalada a Rainha D. Caterina, tia da Serenissima Rainha nossa

senhora, [CG77v] de quem se diz se dava tão bem neste honesto, e piedoso trato, que

enriquecia os mosteiros pobres do Reino; dos quaes muitos guardão todavia singulares

adornos, ou feitos por mãos daquella santa Princesa, ou ganhados pello trabalho dellas.

Não cansa a minha Margarida de Valoes, Rainha que foi de França, e Navarra.

Chamolhe minha pella grande affeição que tenho a seus escritos; e porque foi, a meu juizo,

a mais discreta mulher de nossos tempos; cujas acçoẽs [CG78r] de muitos calumniadas, eu

espero brevemente defender no meu Theodosio. Não cansa, digo, esta entẽdidissima

senhora de encarecer o bem que lhe pareceo ver desabotoarse a Cõdeça de Lalaim, estando

á mesa com a propria Rainha, e dár de mamar a hum filhinho seu, que a seus peitos criava.

Gaba a Francesa grandemente aquella caseira acção da Condeça, e diz: que nunca teve

enveja a feito de mulher, como a aquelle.

Há hũas mulheres idolos, que ou saõ inutilissimas, [CG78v] ou se prezaõ de o ser;

e sò lhes parece que nacèrão para ser adoradas; e disso sò querem servir. Ora eu me

contento com que não fação mais de hum serviço em suas casas. E seja este. Sirva a

mulher de ser senhora de sua casa, satisfaça as obrigaçoẽs deste seu officio: que assaz fará

de serviço a sua casa, a seu marido, se o fizer como deve.

Como o tomará V. M. se disser mal das varonìs. O senhor N. eu me fundo em

razaõ. Se eu tivesse por certo que o grande coração da [CG79r] mulher se ouvesse sempre

de ocupar bem, bem lho sofréra; mas em duvida tenhão medo de hum rato; desmaiẽse em

vendo espada nua; hũ trovão seja para ellas hum dia do juizo. Criou as Deos fracas, sejão

fracas; oxalà fação o que saõ obrigadas, não lhes quero pedir mais que sua obrigação.

Já sei que desta vez ficarão de todo mal todas comigo. Não quizera discorrer pelo

seu entendimento, nẽ dar regras a cousa que serve de dar regra ás outras cousas; mas pois

me atrevi [CG79v] a offerecer preceitos sobre o amor, que he ainda affeito mais livre, não

temo jà de os dar para o entender.

Hei de estranhar por força hum dito de aquelle nosso tão nomeado, e tanto para

nomear, Bispo Dõ Affonso, que dizia: A mulher que mais sabe, não passa de saber

arrumar hũa arca de roupa branca. Nem sentirei melhor do outro que affirmava: Que a

mais sabida mulher, sabia como duas mulheres.

Sou de muito differente opinião, e creo certo há [CG80r] muitas de grande juizo,

vi, e tratei algũas em Espanha, e fóra della. Por isto mesmo me parece que a aquella sua

agilidade no perceber, e discorrer, em que nos fazem ventagẽs, he necessario temperalla

com grande cautela.

A este seu juizo não se pòde pòr lei algũa; aos exercicios sí. Como se agora a hũ

homem fosse dada hũa navalha de finissimo aço, para que fizesse hum feito ruim; mas

estando ella ainda em tosco, aquelle que lhe escondesse a pedra em que a que[CG80v]ria

afiar, fizera o mesmo que se lha tirasse da mão, e escusasse o maleficio.

Assi, pois nos não he licito privarmos as mulheres do sutilissimo metal de

entendimento, com que as forjou a natureza; podemos, se quer, desviarlhe as ocasioẽs de

que o agucem em seu perigo, e nosso dano. Façamos, senhor N. o que podemos.

Nos cuidados, e empregos dos homẽs não se metão as mulheres: fiadas em que

tambem tem como nòs entendimento; e em que a [CG81r] alma não he macho, nem femea,

como algũa em seu favor alegava. Mas saibão os maridos que nem por esta taixa, que lhes

ponho, he justo que a mulher sisuda deixe de dar a seu marido, modestamente, seu

parecer; nem deixa elle de ser obrigado a lho pedir.

Não cuide V. M. que me contradigo, ou arrependo do que tenho escrito; declarome

com hum bom semelhante. Seja a mulher como a mão do relogio, e o marido seja o

relogio. Apõte ella, e soe elle. Hum mostre, [CG81v] outro resolva; que andando desta

maneira temperado o relogio, todos o crẽ, todos o tem por oraculo. Não só se concerta a sì

mesmo, mas faz andar aos outros concertados. E ao contrario, se se desconcerta, tambem

aos outros.

O, como folgo de ver hũa mulher ignorar aquillo que não he razaõ saber! mas que

verdadeiramente o saiba. Acho grande perfeição quando errão aquellas cousas que lhe

podião pór imperfeição se as acertassem.

[CG82r] Entenda a mulher como mulher; seja tal sua lição quando ler. Sua pratica

quando praticar; e tal o mesmo que se lhe ler, e que se lhe praticar.

Pois comecei cõ os meus adagios, hei de acabar com elles. Ouvi hum dia

caminhando, e não era elle menos que a hum chapado recoveiro (veja V. M. que engeitei

os Filosofos, para citar estes autores) emfim ouvilhe, que Deos o guardasse de mula que

faz him, e de mulher que sabe latim. O rizo, e gosto com que [CG82v] lhe escutei esta

engraçada sentença me faz agora lembrar della; não se julgue por indecente, se he

proveitosa. O ponto está em que o latim não he o que dana; mas o que consigo tras de

outros saberetes envolto aquelle saber.

Jà que estou ao fogo, e como desde este lugar fallo a V. M. e V. M. me ouve, e me

perdoa, irá outra naõ peor historia. Confessavase hũa mulher honrada a hum frade velho, e

rabujento; e como começasse a dizer em latim a confissaõ, perguntoulhe o cõfessor:

[CG83r] Sabeis latim? Disselhe: Padre, crieime em mosteiro. Tornoulhe a perguntar: Que

estado tendes? Respondeolhe: Casada. A que tornou: Dõde està vosso marido? Na India

meu Padre (disse ella.) Então com agudesa repetio o velho: Tende mão filha; sabeis latim,

criastesvos em mosteiro, tendes marido na India? Ora idevos embora, e vinde cà outro dia,

que vòs he força que tragais muito que dizer, e eu estou hoje muito depressa.

Tomára que as mulheres não soubessem de guerras, [CG83v] nem estados, nem

procurassem por isso. Enfadãome hũas que se metem em eleiçoẽs de governos, julgar de

brigas, praticar desafios, mover demandas. Outras que se prezaõ de entender versos,

abocanhão em lingoajẽs alheas, tratão questoẽs de amor, e de fineza, decòrão gerguntas

para gẽntes discretas, trazem memorial de motes difficultosos. Hũas que dão significação

às ervas, que adevinhão as cores, outras que as tem de sua tenção; outras que examinão

prègaçoẽs, que [CG84r] lhe tomão palavras; outras que as usaõ esquisitas, e fallão por

circunloquios, que tem modos de gabar fóra do uso; que praticão ao som do meneo das

mãos, ou do movimento dos olhos. Fòra fóra tudo isto, que parece ficção, e nem

verdadeiro, nem fingido he bẽ que seja. Não me tenha V. M. por mal dizente; mais val que

por proluxo. Mas em verdade, que tudo o que aponto he digno de ser lembrado.

Pedia hũa Dama a hũ seu irmão, homem discreto, que lhe desse hũa letra para

[CG84v] certa empresa sua, que queria mandar abrir em hum sinete; respondeolhe: Minha

irmaã, deixai as empresas para as adargas dos cavalleiros andantes; as empresas, que

haveis de mandar abrir, sejão chavoẽs para fazerdes bollos a vosso marido quando o

tiverdes.

Fallar sempre, he mao; rijo he malissimo; e em lugares indecentes peor que tudo.

Acontece que muitas que se prezaõ de discretas, respondem alto nas igrejas para que as

ouçaõ, e aplaudão; entendem com as [CG85r] amigas, que lhe ficão lonje, a fim de serem

ouvidas. Tãbem o suspirar à prègação, fazer gestos com a cabeça, como que lhe contenta o

que se disse, rezar desentoado, compassar a musica, saõ cousas que não houveraõ de ser.

Falle a mulher discreta o necessario, brando, a tempo, com tom que baste para ser

ouvida da pessoa a quẽ falla; e não das outras. Comparou bem hum entendido as pessoas

com os sinos, que pella voz se conhece se estão saõs, ou quebrados. [CG85v] Escuso de

mostrar como as palavras informão do animo; porque assì como pelo correo que vem de

tal parte, sabemos as novas que lá vão, assî pellaspalavras, que vem do juizo, sabemos o

que là vai.

Ellas jà sei que me teraõ por sospeito; pois atè os movimẽtos lhes hei de medir.

Hũa das terribeis cousas que há na mulher, he usar de meneos descompostos. Sei que nem

todas podẽ ser airosas; mas graves, todas o podem ser. Faz grande dano hũa maldita

palaura, [CG86r] que se nos pegou de Castella, a que chamão despejo, de que muitas se

prezaõ; e certo que, em bom Portuguez, despejo he descompostura. Outra explicação lhe

hia eu a dár, mas esta baste. E claro está, que o despejo he cousa ruim, porque o pejo era

cousa boa. Nada disto se lhe perdoe: sendo, senhor meu, tão importante que estes

costumes exteriores andem concertados, como he a fermosa frõtaria a hum nobre edificio,

para que se tenha por nobre.

[CG86v] Ora do riso que diremos? Pois se ellas tem bons dentes, e aquillo que

chamão graça na boca, e cova na face, ahi lhe digo eu a V. M. que está o perigo. Há

mulher destas, que rirá a todo o sermão da Paixão, como se fosse ao de dia de Pascoa,

sòmente por assoalhar aquelle seu thesouro. Não disse Platão, nem Seneca, cousa melhor

que o que disserão as nossas velhas: Muito riso, pouco siso.

Longe estou de persuadir à mulher que seja melancolica; porque antes a [CG87r]

sempre triste, induz pouca satisfação de sua vida. Alegrese, e riase em sua casa, à sua

mesa, e na conversação de seu marido, filhos, e familiares; deixe o riso em casa, quando

for fóra: a modo da serpente que vomita a peçonha primeiro que vá beber, e despois que

bebe, torna outra vez a recolher a sua peçonha. Venha para casa, e tome a sua boa graça.

Ainda fico com escrupulo sobre a lição em que muitas se ocupaõ. O melhor livro

he a almofada, e o [CG87v] bastidor; mas nem por isso lhe negarei o exercicio delles.

Estas que sempre querem ler comedias, e que sabem romances dellas de còr, e os dizem às

vezes entoados, não gabo. Outras saõ mortas por livros de novellas; taes pellos de

cavallarìas. Aqui he mais perigosa a affeição, que o uso. Bem vejo que se lhes pòde

permitir este desenfado; mas seja com maior cautela a aquellas que excessivamẽte se lhe

entregarem: visto que podemos temer se ama nelle antes a semelhança dos [CG88r]

pensamentos, que a variedade da lição.

Não quizera que ninguem gostasse senão de aquillo de que era justo que tivesse

gosto.

Contarei a V. M. hũa cousa que a meu pesar me lembra. Caminhava por Espanha, e

entrando em hũa pousada bem cheo de neve, não houve algum remedio para que a

hospeda, ou suas filhas, que eraõ duas, me quizessem abrir hum aposento, em que

recolherme; e quanto eu mais apertava, me desenganavão melhor [CG88v] de que nenhũa

se levantaria donde estava, sem acabar deouvir ler certa novella, cuja historia hia muito

gostosa, e enredada. E tal era a sofreguidão cõ que ouvião, que nem ameaçãdoas com que

iria a outra pousada, quizerão desistir de seu exercicio, antes me convidavão que ouvisse

os lindos requebros, que Cardenio estava dizendo a Estefania: que tudo isto rezava a boa

da novella. Emfim eu me fui apear a outra parte, e voltando em breve tempo por aquelle

lugar, e perguntando [CG89r] pella curiosa leitora, e ouvintes, me disserão que muito

poucos dias despois as novellas foraõ tanto adiãte, que cada hũa das filhas de aquella

estalajadeira fizera sua novella, fugindo com seu mancebo do lugar, como boas aprendizes

da doutrina, que tão bem estudáraõ.

Somos entrados na santimonia, ou por melhor dizer, na beatarìa. Tenho cansado a

V. M. quizera passar voando por aqui, mas hei medo que naõ possa. A materia he das mais

importantes; [CG89v] procure V. M. (mas que se force) ouvirme com nova attenção, que

eu tambem renovando o cuidado, hei de procurar de fallar a V. M.

Muitas pessoas de grãde porte, e excellente natural, a titulo de virtude, temos visto

caìr em vida desordenada. Nosso inimigo o demonio hase às vezes com nosco, como hum

homẽ quãdo busca outro, que se o topa em hum caminho, e vé que vem para elle, alli o

espera; e se vè que se desvia para outra parte, então estuga o [CG90r] passo, e o segue atè

alcançallo. As pessoas que vivem mal, muitas vezes lhes não sae ao encontro, porque sabe

vem direitas para elle; mas as que vivem bem, apos de essas se lança com maior ligeiresa.

A reformação dos costumes causa he bonissima, e santissima. Tem porèm nas

casadas seu limite; de maneira, que por se darem de todo a aquelles bõs exercicios, naõ

desemparem os da obrigação de seu estado; no qual Deos deixou virtude, e santidade

bastante [CG90v] para que, sem sairem delle, se possaõ salvar todos, e todas, a quem

comprende.

Andão pello mundo espalhados hũs homens, e mulheres, que fazem profissaõ de

mestres de virtude, de que verdadeiramente nẽ saõ discipulos. A este fim arrebatão, sem

algũa prudencia, os animos singelos e piedosos das Senhoras, e gentes principaes, que às

vezes guião tão mal, como nos mostraõ mil exemplos, e como elles a sî se tẽ guiado.

Convem que a casada [CG91r] tenha seu cõfessor certo; e este seja pessoa grave, e

conhecida, e de aquellas Religioẽs que mais florecem no lugar donde viver. Muitas

Senhoras de grande estado vì confessar com os Curas, e Parochos de suas freguezias, que

quando elles sejão homẽs doutos, e sisudos, julgo por excellente costume. Pois como até

na eleição de confessor pòde haver desacerto: discreta resignação, e desconfiança seria não

fiar de seu juizo cousa tão importante, e seguir aquella que a Igreja tẽ feito, [CG91v]

entregando sua conciẽcia à pessoa a quem as entrega aquel e a quem Deos, e seu Vigario

as tem entregado.

Tenhão as Senhoras toda a piedade, e cõpaixão dos pobres, e afligidos. Mas hũas

devaçoẽs a beatas, e beatos extravagantes, não levaraõ jà mais meu parecer. Senhor N.

freiras veleiras, que naõ sejão as serventes dos Conventos conhecidos, velhas alumiadas,

gentes professoras de novidades, que trazẽ oraçoẽs, e devaçoẽs de tãtos [CG92r] dias, com

tantas candeas, e de tal cor, porque logo Deos (como ellas dizẽ) lhes mostra o que ha de

ser: requeiro a V. M. que tal cousa não admita.

Galantemente o advertio o nosso Sá nos seus Vilhalpandos, espelho de graça, e

cortesanìa. Quando a velha, que ensinava a matrona, mandasse nove moças em romaria

com velas de cera virgem para abrandar a condição do filho travesso; torna a fazer a velha

aquella tão estremada lembrança: Ouvís senhora; a [CG92v] cera das velas, convem que

em todo o caso seja virgem: que as moças, quer o sejão, quer não. Taes costumão ser de

ordinario aquellas suas devaçoẽs, taes as circũstâncias em que ellas poem a força de sua

virtude.

Hũas a que chamão Madres, que se prezaõ de dizer cousas em segredo: se se

casarà, se teraõ filhos, se serà o marido Governador de tal parte, se ficarão veuvas cedo;

benzem enfermos, vão a santo Andre, gastão rollos com seus nós todo anno; affirmão, que

a alma [CG93r] do parente não esteve mais que tres dias no Purgatorio: guardar, senhor,

de tudo isto como do proprio inferno.

Vejo que já me estão perguntando, como se haverão em o trato dos frades?

Responderei com a reposta de hum cortezaõ, ou aconselharei com o seu conselho. Dizia

este, sendo assî perguntado: Olhai, eu sou amicissimo dos frades; se não saõ bõs, não lhes

quero dàr ocasião em minha casa para que sejão peores; se saõ bõs, não lhes quero dàr

[CG93v] ocasiaõ em minha casa para que o não sejaõ; de sorte que sempre os amo, e

sempre os escuso.

Outro mais escrupuloso dizia, que em quatro partes lhe pareciaõ bem os

Religiosos: Altar, Pulpito, Confessionario; e perguntandolhe qual fosse o quarto lugar?

Respondeo: Pintados.

Licito he que o parente Religioso veja a mulher de seu parente, ou sua parenta.

Venha a casa, ajude a alegrar nas ocasioẽs de contẽtamento, e a consolar nas de desgosto;

componha a discordia, [CG94r] se aconteceo entre os casados. Que o mesmo faça o

Prelado da Religião, o homem douto, e virtuoso della; assistalhes o marido, de autoridade

a suas visitaçoẽs, que então fica a pratica mais universal, e a visita mais solene.

Enfadame (e he para isso) o modo de algũs homẽs, que em lhe chegando Frade, ou

pessoa de que elles não gostão, à sala, já o encaminhão para Dona fulana, e por se verem

livres da impertinencia, ou petitorio de algũs de taes mensageiros, [CG94v] lhos lanção á

pobre mulher, como quem lança odre de vento a touro, em que desbrave. He este hum mal

cõsiderado remedio.

Tambem o ser descortez com os Religiosos, e estar como potro espantadiço, tendo

medo de qualquer argueiro que voa pelo âr, he andar muito por elle. A mulher se

desconfia, vendo o pouco que fião della, escandalizase a casa, o senhor se afronta, e nada

fica melhorado.

Reduzìra, finalmente, as beatarìas da mulher casada [CG95r] em ser muito amiga

de Deos, muito temerosa delle. Estudar nas obrigaçoẽs de seu estado. Ouça a missa no seu

oratorio á semana; e se ao Domingo quizer ir á igreja, he bem louvavel. Và, e não às de

maior concurso. Os dias de festa será conveniente acompanharse da parenta, e da amiga; ir

cedo; e não entrar na casa de Deos com o mesmo estrondo que se entràra em hũa batalha,

destroçando, e atropelando o povo, que se queixa, e as murmura. Esta he [CG95v] manha

de algũas Senhoras, e não por certo boa manha. Não seja a ultima que saia, nem a

primeira.

Tinha tambem que dizer a hũas que comem nas igrejas, para ficar para a tarde; a

outras, que sem proposito se levantão mil vezes cada hora a rezar de joelhos, não sendo

tempo; mas parece apertar muito; fique pelo menos sabido, que não esquece.

O uso das penitencias, para quem as usa, he saudavel. Na mulher que as aprẽde,

convem que se moderem. [CG96r] Hà hũs casados tão indiscretos que se desvião da

mortificação, quando algum a quer receber. Isto não deve ser assi; porque quem ama a

pessoa, muito mais deve amar o espirito. A mulher boa, que sem excesso se mortifica, he

dignissima de que se lhe dé todo o azo, e licença, para que prosiga em sua oração, e mais

exercicios santos. Ao marido o mesmo a mulher; que o contrario, he amar de gentilidade.

Duvido (ou não sei se não duvido) de que seja cõveniente [CG96v] a amizade de

casadas com freiras. Isto podia ser mais e menos toleravel, segundo fosse mais ou menos

frequente. Por cousa tenho senhoril, ter boa amizade com hũa Religiosa, que as mais

dellas, ou saõ santas, ou discretas, curiosas, e pessoas de estima: quando o negoceo não

chegasse a amores impertinentes, escritos de cada dia, ciumes de cada hora, presẽtes, e

viagẽs de todo o anno. O mais; como digo, antes fora bem permitido; e que a casada

mandasse á freira seus presentes, [CG97r] por festas, e avisse por festa.

O mesmo a seu confessor, ao prelado conhecido do Convento reformado. Fez Deos

aos ricos tesoureiros dos pobres; e assi he razaõ que se deixem usar delles, como de

acredores seus.

Não tenho aqui que dizer mais, e antes cuido que fui sobejo. Salvo se acrecentar

hum aviso de cousa, com que ha muito que tenho azar; a qual he ver a hũas molheres

andar sempre fazendo festas, pedindoas, prometendoas, e aceitandoas cõ [CG97v] o

pretexto que ellas querem. Fallei já no servir a Deos, quão bem parecia: mas nesta materia

creo que há naõ pouco inconveniente; porque às vezes hũa senhora a troco de se não

escusar de receber hũa capella, e hum ramalhete em hũa salva, cuidando que se apouca em

a naõ aceitar a aceita, e poẽ despois seu marido em maior vergonha; ou não fazendo a

festa, ou fazẽdoa mal; do que ella se ficàra escusandose della. Atè a estas cousas alcança a

obendiencia, que aos maridos se deve.

[CG98r] Ande a mulher toda vestida, e sempre composta por sua casa, e jàmais a

vejão seus criados em habito indecente. Como para ella não he bem que haja outro mundo

que seu marido, crea que assi convem aparecer a seu marido, como se aparecera a todo o

mundo.

Estou de candeas às avessas com hum novo costume de hũas capinhas, que não sei

donde vierão; porque me não lembra que tal visse em nenhũa parte. Ora seja, ou não seja

de outra nação, elle não he trajo autorizado, [CG98v] nem (a meu juizo) decente; e jà tão

vulgar, que isso mesmo pudera ser o seu desprezo. Podendose com mais razão dizer pellas

taes capinhas, o que dizia hum pechoso pel’as violas, que sendo excellente instrumento,

bastava saberemno tanger negros, e patifes, paraque nenhum honrado a pusesse nos peitos.

Chega o desatento a tanto, que neste trajo se aceitão visitas; e he cousa muito para

evitar, por ser tão pouco airosa para quem a offerece, como para quem a recebe. [CG99r]

Ambas as pessoas desestima, quem a sua mostra sem compostura a outra pessoa. Ao que

bem aludia hũ cortesão, que sendo convidado de hum amigo, e delle mal agasalhado, lhe

disse: Não cuidei que eramos tão amigos.

Ha homẽs faceis em mostrar a seus amigos sua mulher. E suposto que este costume

diz simplicidade de animo, e he usado entre os estrangeiros: todavia nem oje està o mundo

paraque hũ só queira ser esse simplissimo, nem ainda nesses que o [CG99v] costumão

fazer, deixão de estar sucedendo casos, que os puderão mui bẽ haver feito mudar esse

costume.

Convidava (em Espanha era) hum senhor principal, e bẽ casado a algũs amigos

seus de alta condição; quis que vissem sua mulher; ella se escusou; mas em fim a visitarão.

Despois à mesa quis seu marido que ella tambem comesse, e honrasse os hospedes;

retirouse, e sendo apertada com recados, respondeo em su propria lingua: Dezid al Duque,

que si me hiço baxilla, no me [CG100r] hará vianda. Mostrando cõ agudeza Castelhana,

que já que como baxella a fizera ver, a não quizesse tambem facilitar como iguaria.

Que o senhor leve algũas vezes o parente, o amigo, o ministro, o prelado, o

estrangeiro, e homem douto, e principalmente o homẽ bom, a sua casa, e lhes faça convite;

não sò o não estranho, mas o louvo. He cousa honrada, e que faz os homens bem quistos.

Não deve evitallo sua mulher, antes com todo o concerto decente dispor que se ministre:

[CG100v] honrando a seu marido naquella acção, com o que os muito asperos se obrigão;

porque os coraçoẽs nobres, muito mais se satisfazem de ver que se ama o que elles amão

do que ainda de serem por si mesmo amados.

Hei de dizer aqui de hũas, que se prezão de matronas, e quer bem, quer mal, ellas

querem ser os senhores de suas casas. Estas pretendem sua maioria por muito honradas,

por muito sabedoras, ou por muito illustes. E às vezes sem nenhum destes estremos, ellas

[CG101r] se dão tal manha que a cõseguẽ, especialmente dos maridos bons, simples, e

divertidos.

Vigiese logo ao principio àquelle que tais pensamentos descubrisse em sua mulher;

porque se lhe vir que hũa vez deixa senhorearse, tãtas o intentará, até que de todo ella seja

senhora, e elle servo. Dizia hum em tal caso a sua molher: Senhora heivos de levar a casa

de vosso pai, e heide demandallo por justiça que me dè minha mulher; e perguntando ella

porque? respondeo [CG101v] elle: Porque vos não soes minha mulher, senão meu marido.

E a mi me dizia hum discreto, e galante casado: que deixarem as mulheres de

mãdar seus maridos, era impossivel; mas que o que estava à conta dos homens honrados,

era fazerem que isto fosse o mais tarde que pudesse ser. Eu não me contentàra com menos,

senão que nunca fosse; dando mui bem por escusadas essas matronerìas.

Desejei de mandar hũa cadea de ouro a hũa casada, [CG102r] que estando

chovendo, e ella para ir fora, quando já se molhava muito bem, e lho advertião os criados,

chamou hum pagem, e lhe disse: Dize a teu senhor, que me mande dizer se chove, porque

me não fio destes, nẽ de mi, e escusarei de sair. O que discretissima ignorãcia! O que

invenção de obediencia, tanto para ser obedecida!

Parece Senhor N. que nos vamos esquecendo das cousas picantes, que dão mais

contentamento, e saõ salsa das outras; e de verdade [CG102v] não menos necessarias.

Ainda não fallei no trafago da casa. Isto he cousa que requere muito tento. Quisera

eu as casas de hum sò gargàlo. Muitas portas, muitas serventias, não aprovo. As casas dos

Reis, e Principes tẽ infinitas guardas, e porteiros; com isto se defendem de incõvenientes;

como quem poem estrepes em muro baixo.

As casas dos fidalgos particulares, que não podem ter esses porteiros, e portarìas,

necessitão de alguns criados velhos, e fieis, a [CG103r] quem seus amos constituão vigias,

e centinelas de seu decoro. Mas neste caso não descarregue nelles todo o cuidado o

marido; porque assi como na guerra (e eu o estou aqui vẽdo, e ouvindo nesta torre)

costumamos pór soldados de posta; e nẽ com tudo isso se contenta a disciplina militar,

senão que lança roldas, e sobreroldas, e sobre ellas vaõ despois os officiaes a ver e vigiar o

que fazem, e o que vigião os soldados que vigião; assi nem mais nẽ menos deve o senhor

da casa roldar, e [CG103v] vigiar sobre os criados, a quẽ entrega o cuidado de sua honra.

Negras, e mulatas, que saem fòra, não tivera. Soem ser fecundas, e inção hũa casa

de tantas manchas (a meu ver) como dellas nacem; porque parece fea cousa andar hũa tão

vil licença aos olhos da senhora, e das criadas. Negrinhos, mulatinhos filhos destas saõ os

mesmos diabos, ladinos, e chocarreiros, por castanhas trazem, e levão recados às moças, e

saõ dellas favorecídos. Ciganas, ermitoas, [CG104r] adellas, mulheres que vendẽ garavins,

e bolotas para lenços: outras que trazẽ doces, e os daõ mais baratos do que valem, tudo he

malissimo. Mudas he peçonha. Lavandeiras, ramalheteiras, hũas que vendem, e saõ

freguesas, e com quem as criadas em hum instante armão contas de raçoẽs, que lhes

trocão, mostrãdo que não podem viver sem ellas, saõ gente bem escusada: Os que

adivinhão, os que benzem. Os chocarreiros, e mais os dos Principes, costumão ser

atrevidos [CG104v] pellas entradas que lhes dão sem tento. Huns tregeitadores, outros que

fazem prègaçoẽs, que arremedão animaes, e gentes, saõ peçonha refinada; e as que em

tudo o saõ, saõ hũas que vendem dixes, aguas de rostro, tirão pano, fazem sobrancelhas

com linha, alimpaõ o carão com vidro; homens de linhas, bofirinheiros, mulheres que

pedem para hũa certa Missa de esmollas, outras para amparar hũa orfaã.

Tudo isto Senhor, he hũa casta de gente, que ferve ao [CG105r] redor das casas

grandes, assi como peixe que anda à lambujem da pedra. Apartãose com dificuldade;

sofremse com perigo. Seu estorvo requere tanta força, como industria; porque cada hũa

destas criaturas pella maior parte não cuida senão em enganar, levar, roubar, mentir, dar

novas, e às vezes (e não poucas) em fazer muito ruins mensagens, e trazer outras, em

dano, e descredito das casas dõde se consentem, que não seja a de V. M.

Tinha hum homẽ principal [CG105v] sua filha donzella doente, guardavaa muito.

Havia quem lhe quizesse bem. Escrivialhe; revolviase o papel, e sobre elle se armava hũ

ramalhete. Vinha hũa ermitoa, fallava ao pai, davalhe aquelle ramo da parte de tal Sãto;

levavalho elle mesmo com grãde gosto, e era o proprio corretor de sua filha, servindolhe

por sua mão a peçonha dissimulada naquelle ramalhete. Quem tal havia de cuidar? Quanto

por este, bẽ se podia (e por muitos) dizer o que diz o Romance: El aspid anda [CG106r] en

las flores, alerta, alerta zagales. Tomado de aquelle adagio latino, que entre as ervas

mimosas latia o aspid pençonhento.

Costumão alguns homẽs de grande sorte introduzir suas mulheres em suas

pretensoẽs: entendendo quantos grandes negocios se acabàraõ já por ellas. Poucos saõ os

casos, a meu juizo, em que me pareça licito ficar hum homem passeando, e mandar a sua

mulher que va fallar, e requerer por elle. A prisaõ do marido, a honra da sua casa, do seu

officio, [CG106v] do seu titulo, a vinda do marido ausente, e risco de morte do filho. Estas

saõ, e não outras, as cousas que farão licita esta diligencia, sempre perigosa, e não sempre

proveitosa.

Hum certo ministro grãde costumava dar audiencia às senhoras fora de sua casa,

em hum lugar tão decẽte, que era demasiado recolhido. Levàrão alli dous fidalgos suas

mulheres para semelhante negociação; e deixandoas lá, se saìraõ logo. Vião isto outros, e

então disse hum delles: Certo [CG107r] que fulano, e fulano não fizerão bem de se

sahirem; porque estando alli autorizavão o seu negocio. Respondeo outro: Ridevos disso,

que fulano e fulano não saõ dos que querem autorizar o seu negocio; saõ dos que querẽ

fazer o seu negocio.

Nunca será bem acabada de louvar aquella sentẽça tão repetìda do discretissimo

Conde do Vimioso: Quẽ perde a hõra pello negocio, perde o negocio, e mais a honra.

Senhor N. nenhum prudente, nenhum honrado pretenda com riscos suas melhoras.

[CG107v] Que ha de ganhar do por vìr, quem logo de ante mão entra perdendo? Os bons

mercadores seguraõ as encomendas de mór valia.

Seja a mulher honrada, como dizem que he o Corpo Santo, que não aparece senão

nas grandes tempestades, e sempre para remedio dellas. Acuda aos males de sua casa, aos

trabalhos de seu marido, e de sus filhos. Procure salvallo, e salvallos delles. Seja sua voz,

não seu requerente. Possa ser instrumento ao remedio da necessidade, não ao logro do

interesse.

[CG108r] Obrigaõse muito as casadas de que seus maridos lhes contem o que

sabem, o que ouvem, e o que passa pello lugar. Que os homens sejão secos, he meio

caminho andado para serem aborreciveis; que sejão falladores, he todo o caminho andado

para serem desprezados. Devese eleger hũ bom meio, de sorte que a mulher não cuide que

seu marido a tem em pouca conta, nem que elle faça de maneira, que em outra semelhante

seja tido della. As mais logo trazem decorado aquelle rifaõ: Quẽ [CG108v] me a mi quer

bem, diz me do que sabe, dame do que tem.

Guardese o discreto de contar a sua mulher as historias passadas de seus amores, e

de sua mocidade. Causam assi dous males: dar a conhecer às mulheres a fraqueza de seu

natural, e entenderem como ha outras pello mundo, que se deixão enganar facilmente.

Por nenhum caso se lhes sirva o prato da liviandade alhea; e naquellas cousas taõ

publicas, que se não puderem negar, pello menos se [CG109r] desculpem, ou se desviem.

Mostrese sempre horror a taes sucessos; e havendo de praticar nelles, carregue a culpa, e

causa à parte do marido, e a da mulher se desculpe. Dando assi a entẽder, que aquelle que

for bõ marido, sempre terá mulher boa, como de ordinario sucede, e elle o espera de si, e

da sua.

Algũas vezes vemos, que a casada de grandissima honra, trata, e acompanha

confiadamente com outras de não tão igual fama. Haja nisto grande tento, [CG109v] e o

melhor será escusallo de todo. A reputacão he espelho cristalino; qualquer toque o quebra,

qualquer bafo o empana. Ellas quanto saõ mais seguras em seus procedimentos, se

avẽturão, pode ser, mais a tratar as que o não saõ. O vulgo, sempre cego, não sabe

distinguir, ou não quer, o bom do mao. As mais vezes quẽ atira não dá alli adonde atira,

mas dá perto do lugar adonde atira. Assi os maldizẽtes, indo a acusar a hũa pessoa, não

acertão logo; e por ventura infamão as que [CG110r] andão junto della.

Valhome sempre das cousas naturaes, e assombrome certo neste caso,

considerando que hũa sò gota de tinta que caia em hũa redoma de agua clarissima, basta, e

sobeja para a tornar turba; e que para aclarar, e deixar limpa hũa redoma de tinta não basta

hũa pipa de agua clara. Assi costuma ser a mà, e a boa fama, que a muito boa não pode

acabar de purificar a ruim, e a ruim logo empece à muito boa. Noutro lugar disputo eu

largamente: [CG110v] porque se nos não pega a saude assi como se nos pega a doença?

Notavel cousa por certo! Agora me contentarei com dizer o que o nosso Moral: O bem não

he como tinha, o mal pode ser que si.

Aparte esta contenda a prudencia do marido. Contava hum, que costumava a se

haver neste caso com excellente destreza. Instava de contino à mulher, que visse, buscasse,

e andasse com fulana, e fulana, de quẽ elle tinha satisfação; porque cõ estas persuasoẽs

ficava adquirindo [CG111r] nova autoridade para estorvar que se não visse, buscasse, e

andasse com fulana, e fulana, de quem elle não era satisfeito.

Gabar à mulher a fermosura de outras, as mais dellas o tem por descortesia. Assi o

ar, a graça, e as mais boas partes; mas como nisto não houvesse excesso, seria sofrido.

Dẽlhe todavia regra a condição, idade, parecer, e boas qualidades da mulher propria;

porque as que destes dotes saõ abũdãtes, podem ser mais confiadas.

Hum fidalgo praticando [CG111v] com sua mulher, na qual era sobeja a gentileza,

e a discrição, que faltava nelle, exagerava por estremo a fermosura, e partes de outra

mulher. Sofreo a propria quanto pode, e uẽdo sua demasia lhe disse: Não quisera mais para

me vingar das invejas que me fazeis com fulana, que vella casada com vosco, para vos não

parecer nada disso, e para ver como ella se havia quando vos me gabasseis outro tanto.

Não se nega porem ao marido que se possa mostrar [CG112r] galante com as

damas, e senhoras, quando a ocasião for de galantaria; porque esta obrigação he do bom

sangue; e como não seja viciosa, antes virtude, pellomenos politica, não obriga contra ella

o matrimonio. As proprias mulheres, se saõ generosas, folgão que seus maridos se

mostrem cortesaõs donde o devem ser.

Estavão os Reis Catolicos para sair fora, e a Rainha à jenella, vio passar o cavallo

de ElRei, e que igualandose com a sua egua, que jà alli estava, não fizera [CG112v]

nenhũa bizarria. Bradou donde estava a Rainha, e chamando o Estribeiro mòr, lhe disse,

que logo mãdasse cortar as pernas a aquelle cavallo, porque não levava gosto que ElRei

tornasse a subir nelle. E perguntandolhe o Estribeiro mòr que razão daria a ElRei de hum

tal feito, lhe respondeo: Porque passò sin relinchar a una yegua tã hermosa como la mia; y

cavallo que es tan para poco, no harà cosu buena.

Estas galãtarias do marido não podem ser reciprocas [CG113r] para a mulher, que

tem muito menores licenças, sem tèr algũa razão de queixa; como acontece que hũa cidade

tem muito menor comarca que a outra, e nem por isso terà justiça para a pretender igual.

Não gabe a mulher a outro homem diante de seu marido, salvo de aquellas cousas,

que tidas, ou não tidas, vẽ a ser a mesma cousa.

Permiteselhe ao casado moço ser loução e usar de todos os adornos de sua pessoa

que a hum homem saõ decentes. Supomos que aquelle [CG113v] he estado, a que se

dirigia; e assi como no estado estão todas as cousas em maior perfeição que no aumento

ou declinação, assi ao casado saõ licitas todas as cousas pertencentes à perfeição delle. Os

cheiros, as galas, os regalos para os casados, e para os namorados se fizerão; porque se

deixa entender, que aquelles empregos nacem do cuidado da mulher, ou da dama; cõ o que

se qualificaõ melhor, que se do proprio cuidado do varão nacerão.

Estas saõ das cousas que, [CG114r] tambem trocou o uso; e de verdade não cuido

que viciou, quando as não melhorasse. Os nossos velhos dizião: Que o homem havia de

cheirar a polvora, e a mulher a incenso. Aludião à religião, e milicia em que os querião a

elles, e a ellas, ocupados. Não ha muitos annos que hũa senhora principal, e não pouco

gloriosa, tachava os perfumes de hum cortesaõ; elle sabendoo, lhe mandou dizer, que

acabasse sua Senhoria consigo o cheirar a incenso, que elle acabaria logo consigo o

[CG114v] cheirar a polvora.

O concerto dos aposentos do senhor, o asseo de sua pessoa, finalmente estas cousas

que os antigos desprezavão, oje saõ licitas, e não tem o vicio em seu uso, se não em seu

abuso. Façamos differẽça de lindos a concertados.

E porque não nos desconsolemos de todo com os costumes modernos, nem os que

se prezaõ de severissimos nos queirão confundir com a pureza dos antigos; como se

poderà crer que naquelle reinado de ElRei D. Sebastião, em que os homẽs [CG115r] se

fingião de ferro, por contemplação dos excessos de ElRei, era costume andarẽ os fidalgos

mancehos encostados em seus pagens, como oje as damas? E chegava a tanto aquelle mao

costume, que quando os que jugavão a pella passavão de hũa casa para outra, o não fazião

sem que se lhe chegassem os pagens, e nelles se encostassem. Dizião haã, fazendoo muito

comprido, e os mais fallavão afeminado, por uso daquelle tempo. Sendo isto assi, não ha

para que condenar os costumes [CG115v] pela idade, senão pela qualidade; nem he justo

desprezar o presente por engrandecer o passado.

Tenho por muito digno de reprensão o andar por casa descomposto. Persuadira, a

não ser molesto, que fosse o mesmo trajo o de casa, e o da rua. Verdadeiramente o homem

em seu habito, parece que tem outra grandeza, e imperio. Provase bem, com que os Reis, e

os grandes, aquelle criado de que mais confião, he o que admitem a sua presença, quando

estão descompostos: [CG116r] como que necessita de amor, e fidelidade quem houver de

guardar inteira reverencia a hum homem descomposto.

Alguns ha tão pouco advertidos, que requebrão suas mulheres à mesa diante de

seus criados, agora com as palavras, agora com os mencos, e de todos os modos

indignissimo; porque igualmente offende a modestia dos homens, e a honestidade das

mulheres. Tenha este excesso sua contradição na mulher, quãdo não tiver sua advertencia

no marido.

[CG116v] Passo a estranhallo tambem para com os filhos. Vi hum dia a hum

grande General rodeado de muitos homens grãdes, que o seguião, abrir o corro de todos, e

lançar a correr por receber hũ filhinho seu que o vinha buscar, e beijallo em presença

daquelle concurso; que todo se estava olhando, e admirando, de que hũa tão grave pessoa

pudesse tão pouco consigo. Digo a V. M. senhor N. que se poder tivera, lhe tiràra logo o

officio. Porque o animo dos homens não se ve quando resistẽ [CG117r] aquelles afeitos

que aborrecem, senão quando vẽcem aquelles que amão. Dirão a isto os pais, que os que o

não saõ, não podem dar regras a seu amor. Elles dirão o que quiserem; mas eu não direi

outra cousa. E todos sabem que muito melhor conhece os lanços do jogo aquelle que o ve,

que aquelle que o joga.

Ora poes fallamos em filhos, acabemos o que ha que dizer acerca delles.

Desejallos he tão justo, como merecellos. Mas não obrigue este desejo a fazer

[CG117v] demasias. Nos moços deve de haver hũa boa cõfiança. E já que nos servimos

dos ditados, não vẽ aqui mal para escusar mais leitura, aquillo que se diz: A Deos rogãdo,

etc. Escusome de acabar o adagio, porque de todos he sabido.

Mesinhas, caldas, devaçoẽs, frades que benzem, freira que toca, fisicos estrãgeiros,

quintas essencias, bebidas desusadas, emprastos desconhecidos; de tudo isto livre Deos a

V. M. Muito faz aqui a hombridade; muito mais a Cristandade. [CG118r] Pòr nas mãos de

Deos; tornar dellas o que vier; que sempre he mais a proposito que nossos desejos.

Hora os filhos nacidos. Guarda de contar graças, nem estremecer sobre elles. Tudo

isto os faz mal criados, e aos pais he de pouca opinião. As mãis querem que os maridos os

tragão, e folguem com elles; quando V. M. caia nesta venialidade, seja a modo de officios

em igreja interdita, quero dizer a portas fechadas. Não he cousa pertencente a hum homẽ

ser ama, [CG118v] nem berço de seus filhos.

Fazerlhe aquelles seus momos, fallarlhe naquella sua lingoagem, tudo he indecente.

Basta que os veja, e ame, e lhe procure todo o regalo, e boa criação. Essoutras figurarìas

saõ proprias das mãis, a quem se não ha de tomar em nada o modo, nem o officio.

Bo fè que me lembrou agora hũa cousa que me não ha de ficar no tinteiro, mas que

todo não venha a proposito. Tinha hum ministro muito lisonjeado hum certo filhinho seu;

que costumava [CG119r] vir a hum aposento cheo de grandes pretendentes. Havia entre

elles hũ muito grande nos annos, na pessoa, e no estado; e mais que tudo nos interesses.

Era este o que mais praticava com a criaturinha, e taes cousas lhe fazia fazer o espirito

mào da lisonja, e adulação que trazia no corpo, que dizia outro pretendente por elle: Certo

muito he que o interesse faça mais parvo a fulano com os filhos alheos do que o amor nos

faz a nos com os nossos.

Và mais por jogo, que [CG119v] por conselho. Quãdo, senhor N. Deos der filhas a

V. M. não lhes consinta mais que hum só nome liso, aquelle que lhes ditar a devação, ou

obrigação. Tenho por grande liviandade esta ladainha de nomes (dissera melhor, carta de

nomes) que oje se usa, pondo em camouço huns sobre outros, deixando os de mais

barafunda para o cabo. Derão as mulheres nesta nova casta de damarìa; e acontece que a

que naceu, e se criou mera Domingas, ou Francisca, lança sobre si meia duzia de Jacintas,

[CG120r] Leocadias, Michaelas, Hipolitas, e outros nomes esdruxulos, sò porque virão

chamaremse assi, pouco mais, ou menos, a suas vizinhas.

Acho graça nesta historia. Fora a bautizar em hũ lugar desta minha visinhança a

filha de hum escudeiro; e porque ouvio que a outra de hũ Titulo tinha sua mãi mandado

pòr na pia tres nomes; como a elle lhe custava barata a grandeza, içou hum furo mais à

vaidade, e mandou bautizar a menina cõ quatro nomes. [CG120v] Ouvioos todos o Cura, e

disse aos padrinhos: Senhores escolhão hum sò nome, que sou fraco de memoria; ou juro a

tal que lha bautize sem nome, ou lha mande para casa como veio, até que lá se resolvão no

que melhor lhes parecer.

Parece que me hia esquecendo de hũa cousa que julgo digna de advertencia, e

paraque pode ser que fosse advertido de quem sabe que escrevo este papel. Costuma haver

excesso nos maridos por dous modos, quando suas mulheres se achão naquella [CG121r]

hora do parto. Huns que as servem, e assistem melhor que as proprias comadres; outros

que como enemigos fogem dellas. Dizia hum destes com travessura, que, se casasse, não

havia de ser senão em Julho. E sendo perguntado porque? respondeo: Porque se for tão

mofino que minha mulher haja de parir, seja em Março; e possa eu achar embarcação para

a India, donde me irei antes que vella em tal estado. A boa, ou não boa vontade que se tem

à mulher, darà aqui o melhor cõselho. [CG121v] Tambem o natural do marido puxarà

muito por elle. Não reprovo aquelles que tudo querem ser naquelles casos; reprovo os que

não querem ser nada. O sair de casa he reprẽsivel, porque pode haver mil sucessos para

que sejaõ necessarios. Bastarà estar cada hum no seu aposento, e receber nelle cõ igual

constancia as ruins, ou alegres novas.

Hei de alegrar tamalavez esta materia com hum dito de certo senhor Castelhano.

Era General, e lhe pedia hũ seu Capitão licença [CG122r] por escrito para se ir achar em

casa ao nacimento de hũ filho. Poslhe por despacho: Al tener el hijo quisiera yo hallarme

en mi casa; que al nacer, poco importa.

A miseria dos tempos que em tudo vão para tras, tem feito que as amas, que antes

erão mulheres honradas, se hajão oje trocado a villans bem dispostas. Ja viemos das mãis

para as amas; e agora das boas amas imos para as ruins. Em fim he uso, va cõ elle. Mas

contra a natural obrigação das mãis; porque como [CG122v] disse hum sabio, quem antes

de nos ver, e conhecer, nos sustenta nove meses dentro em si; porque despois de nos ver, e

conhecer, nos engeita, e busca outrem que nos sustente? Bem folgàra eu de ver os filhos

de meus amigos mamar bõ leite: não sò na qualidade do corpo, mas tambẽ na do espirito.

A quem foi filho taõ bẽ criado como V. M. pouco, ou nada tenho que lhe lembrar

na criação dos filhos. Crieos V. M. como seus pais o criàrão, que todos nos daremos por

contentes.

[CG123r] He tambem esta materia larguissima para discorrer nella, e toca

verdadeiramente mais a outro intento, porque o que agora levamos he só apontar regras à

vida dos casados, paraque levem suavemente aquelle jugo que sobre ambos descansa.

Virá aqui a proposito de filhos, isto de filhos bastardos: alfaias certo mui bem

escusadas, e de não pouco embaraço aos casados; mas que aquelle que as tem, não pode

mandallas vender ao Pelourinho. He força que digamos [CG123v] sobre isto algũa cousa.

Os naturaes, e que não devem nada à fè do Matrimonio, saõ dignos de conservar,

em quanto não ha legitimos. Houve tantos famosos homẽs no appellido de V. M. e em

outros, deste tal nacimento, que não acõselhàra se esperdiçassem antes de tempo.

Com os pais, acabado me parece que o tenho; nas mulheres he a maior

difficuldade. Muitas ha de tão generoso natural, que agasalhão com muita galantaria aos

filhos de seus maridos; [CG124r] outras que os não podem ver, e os maltratão. Notavel foi

a fineza de aquella Margarida de Valoes Rainha de França (que já deixo nomeada.) Estava

no leito com seu marido Henrique Quarto o Grande (que grande ingrato lhe foi;) vio que

se affligia por lhe trazerem em secreto recado que estava no proprio Paço Real parindo do

mesmo Hẽrique, Madamusela de Foseuse dama da Rainha e de ElRei. Vestiose Margarida,

e foi assistir ao parto de sua criada, que tão mal a servia; [CG124v] tratou de seu regalo, e

o que he mais, de sua hõra; mandando a todas aquellas de quem se ajudou, que sopena de

sua desgraça, nenhũa descubrisse este sucesso.

Se por esta receita obràrão as outras mulheres, bẽ se lhe puderão confiar os filhos

que chamão de ganãcia; visto porèm que não he assi, seria acordo criallos sempre não só

fora de casa, mas do lugar em que se vive. As filhas em conventos; hũs, e outros não sejão

desamparados nunca; que em fim soẽ ser filhos do amor, a quem se [CG125r] deve boa

correspondẽcia; e que por faltos de fazenda, e cheos da obrigação de seus nomes, se achão

em mil affliçoẽs, que todas resultão em dano da honra, e da conciencia de seus pais.

A India, e a Religião costumão dar boa acolhida a este genero de gente. Siso serà

destinarlha.

Entre aqui a advertencia da emenda da vida livre, e descõposta; que se antes do

casamento comprẽdeo algũa parte da idade do homẽ, tanto maior deve de ser despois o

apartamento della. O [CG125v] senhor! que foge às vezes hũ libreo que estava preso,

quebra as cadeas, e corre sem ellas; mas là junto a colleira vai ainda tinindo hum fuzil das

prisoẽs por que estava preso; cõ que ainda elle se não dá por solto, e livre.

Benzer, senhor, benzer como do diabo, de cousas passadas, que não de balde na

lingoagem das velhas, cousas passadas; ou cousas mâs, he tudo o mesmo; nem com os

olhos se torne a voltar para ellas; nem para ver se ficão lá muito longe.

Cõ muita razão, e bonissima [CG126r] doutrina fingirão os poetas, que o seu Orfeo

não perigàra quando foi ao inferno, senão quando despois delle fòra quisera olhar para

traz. Verdadeiramente senhor N. que essa he a ultima perdição: sair do mao estado, e

tornar a olhar para elle.

Muitos ha que, não sei em que fiados, dão em terem amizades proluxas cõ freiras;

parecelhes que nada offendem as mulheres nessa correspondencia. Tirase daqui muito

ruim fruito; porque as mais das casadas começando [CG126v] em zelo do que os maridos

gastão, e do que se descompoem, acabão em hum finissimo ciume. Ellas tem razão,

porque os maridos não farão menos offensa a suas mulheres divertindolhe a affeição, que

qualquer dos outros cabedaes, que lhe saõ devidos, e com esse nome de devido se nomeão;

antes serà maior a offensa quanto for a mulher mais de aquellas, que sò da affeição de seus

maridos se satisfazem.

Não quero passar tão de pressa por esta palavra, ciume, [CG127r] ou ciumes; que

ou dados, ou tomados, significa hũ humano inferno. Humano, porque vive entre os

humanos; e deshumano, porque deshumanamente trata aquelles entre quem vive, ou vivem

nelle.

Foi questão, e ainda não he conclusaõ, qual lhe serìa peor a hum casado, dar

ciumes a sua mulher, ou tellos della? Escusome de averigualla; hũa, e outra cousa

abomino. Ha muitos que do dar ciumes não fazem caso, e grandissimo de os receber.

[CG127v] O engano, senhor, he manifesto; porque o dar ciumes que se despreza,

de ordinario assenta sobre grande causa; e o recebellos que em muito se tem, as mais vezes

he imaginação; e como as mulheres padeção ainda menos de fracas, que de vingativas,

acontece que mil vezes produz nellas mais terribeis effeitos a vingança, que a fraqueza.

Disse bem quem disse, que os ciumes se parecião a Deos, em fazer de nada algũa

cousa. Eis aqui o seu officio, que em todas as maneiras [CG128r] não deve ter lugar nas

casas onde viver a discrição, e Cristandade. Por que certo he terribel tormento o que

padecem, jà os homens, jà as mulheres, por esta maldita imaginação; a quem com não

menor propriedade houve quem chamasse bibora, porque em nacendo mata a pessoa que a

engendra.

Amoesto a todo o casado fuja esta peste; e que aquillo mesmo que para si tão

justamente deve de não querer, o não queira tambẽ para quem ama, ou deve de [CG128v]

amar pello menos.

Dizia hum discreto, que o chegar hum casado a dar a entender a sua mulher tinha

ciumes della, era meio caminho andado paraque ella lho merecesse; alludindo ao que se

diz vulgarmente, que a maior jornada he o sair de casa.

Assi como o direito dizem que tem deixado muitos casos paraque não assinou

pena, por não presumir acontecerião no mundo; assi o casado deve mostrarse esquecido de

tal pensamento, por não presumir lhe possa [CG129r] ser necessario.

Distingo porem prudentes de ciosos. A prudencia precata, desvia, e assegura todos

os caminhos da sospeita. Nada disto faz o ciume; antes para não ser hum homem cioso,

convem que seja prudente.

Pollohei mais claro com este exemplo. O prudente he como o Capitão de hum

castello, que tras pelo campo de continuo suas espias ao longe, vigiando noite, e dia seu

enemigo, bem que o não tenha; porque quando o tiver, o não possa tomar [CG129v] de

sobresalto. Este tal vive seguro, come com gosto, dorme com descanso. O cíoso he como

outro Capitão, que temendose de tudo o que ha, e não ha, se encerra miseravelmente em

seu castello; o ar que corre lhe faz nojo, a folha que se move cuida que he assalto; e assi

sem honra, e sem proveito, cheo de medo, e desconfiãça passa a vida, ignorando o que he

paz, e repouso.

Aqui lembro de passo a muitos, e muitas que me lerem, que quando me virẽ ser

miudo nas cousas, e [CG130r] praticar cautelas que parecem escusadas, não cuidem que

por nenhum modo he meu animo inculcar aos casados o ciume; antes, porque nenhum o

seja, lhe proponho tantos outros meos de segurança, que de todo percão esse receo.

Quẽ duvida se deve muito maior agradecimento ao medico que nos dà regras para

não perder a saude, que ao que nos dà mezinhas para que despois de perdida possamos

cobralla?

O jogo em todos os estados he ruim officio, se he officio; [CG130v] quando não

passe de ocupação cortesaã, e que anda anexa à ociosidade dos poderosos.

Eu viera facilmente em que se jugàra o licito, se eu soubera medir atè donde era

licito o jogo; mas ainda acho maior difficuldade em poder tèr mão nas redeas da colera, ou

ambição de aquelles que jogão: affeitos, que jàmais se enfreão. Sobre hũa muito pequena

causa se arma hũa porfia, e sobre ella hũa perda de honra, ou de vida; porque os homens jà

não fazem motivo da quantidade [CG131r] da perda, senão da qualidade da duvida.

São tantos os exemplos, que não ha paraque provar os danos do jogo. Olhemse as

lagrimas; escutemse as tragedias. Era dito de hũ discreto, que vinho, jogo, e tabaco se

devião de vender nas boticas como mezinha.

O solteiro, se joga, joga o seu, ainda quando dermos que he seu isso que joga. O

casado joga o que he alheo, porque elle não tem em sua familia mais de hum quinhão; e

respeitivamente tẽ alli outros a mulher, os filhos, [CG131v] e os criados. Logo como pode

com justiça avẽturar, contratar, e perder o alheo?

Tinha hum senhor, mui inclinado a jogo, hũa filha muito querida. Começou a

perder dinheiro, joias, alfaias, que hia mandando buscar a sua casa, e erão todas grão parte

do dote de aquella sua filha. Ella affligida, e queixosa justamente, tomou seus criados, e

foise dõde elle jugava. Vioa o pai, e com grande sobresalto lhe perguntou que queria delle

em tal lugar? Respondeolhe: [CG132r] Venho senhor a que V. S. me jogue tambem, e que

me perca; porque, assi como assi, eu paraque valho jà em casa sem o que V. S. tirou della?

Hum que gabava o jogo, chamavalhe escola da paciẽcia. Forao, se nella se

aprendesse como se gasta. A este fim considero eu muitas vezes a servidão de hũ taful; a

que não acabo de dar saìda; porque quando vejo que, se contra hum destes se dà hũa

sentença de vinte mil reis pronunciada por hum juiz, confirmada por tres, [CG132v] allega

duvidas, poẽ embargos, mete tempo em meio, e ainda no fim de tudo, ou não paga, ou se

queixa; e logo naquella maior demanda do jogo os vejo tão obedientes, que porque sota de

ouros veio primeiro que seis espadas, lhe levão sua fazenda, e o dá por bem julgado;

confesso a V. M. que, quando tal vejo, não sei filosofar em qual seja a causa desta

temperança á vista daquella demasia.

Acabarei de fallar no jogo com hũa bem grande galantaria de hũ dos nossos

[CG133r] antigos cortesaõs. Dizia este, que tres bens desejava a seus inimigos para se ver

vingado delles: pedir, mas que lhe dessem; preitear, mas que vencessem; jugar, mas que

ganhassem.

Outro genero de perigo não menos urgente, he o de hũs, que andão enfeitiçados cõ

amigos; seguem com elles caçadas, folguedos, banquetes, viagens, e todas as mais acçoẽs,

que traz comsigo a ociosidade. Digo a V. M. que este dano comprẽde mais aos homens de

inferior sorte; porque verdadeiramente [CG133v] entre os grandes saõ tão poucos os

amigos, que assi como não ha gozar dos proveitos da amizade, assi não ha perigar dos

inconvenientes della; mas delles sempre se guarde.

Parecerá comtudo mal, e será mao, que o casado escolha por amigo o solteiro,

principalmente se elle he de vida solta; porque como a amizade consiste na semelhãça, por

milagre tivera que o casado não fizesse o que visse fazer ao solteiro.

Destes os mais costumão dar maos conselhos, exhortar [CG134r] ao casado que se

não sogeite à mulher, e viva como livre. He manha antiga de nossa fraqueza folgarmos de

fazer os vicios comunicaveis. Os doentes desconfião de que haja quem se guarde de seu

mal. Aquelles que padecem, ou affectão sua soltura, procurão de a pegar aos que vivẽ em

devido recolhimento.

He para ser seguido, e acõpanhado do bom casado, o casado de bom procedimento;

e destes sempre deve de ser o parente preferido. São bons para amigos aquelles, cujas

mulheres saõ tambem amigas [CG134v] das mulheres proprias. Podemse ajudar, e prestar

nas ocasioẽs; desabafase com elles o enfadamento familiar, cõ mais confiãça de

compaixão, e remedio; porque alem de se referir a pessoa que os conhece, fica dito a

pessoa, que outro dia pode fazer o mesmo.

Dias ha que me perguntou hum fidalgo sisudo, casado de poucos tempos, a que

hora seria conveniente se recolhesse à noite para casa. Lembrame que lhe disse, que essa

hora daria o amor, ou ocupação, e não o relogio; mas [CG135r] elle não satisfeito, fez que

discorressemos naquelle ponto.

A huns parece que se deve recolher o casado sempre a hũa hora; e tal, que possa

muito bem antes della haver negoceado o que lhe pode suceder, sem dar sobresalto na

tardança. A outros; que não deve ser assi, senão à hora que for possivel; porque vindo hũas

vezes cedo, se mostra que as outras que se tarda, teve a culpa a ocasião, e não a vontade.

Tenho para mi que nada disto he seguro; porque os alicerces da confiãça do casado

[CG135v] devemse de lançar no credito, e não no artificio. Inclinome mais ao recolher

sempre a hũa hora justa, e proporcionada com as ocupaçoẽs, ou de casa, ou de fora. Sobre

tudo parece que os casados de pouco devem guardar mais cortezia a suas mulheres,

assistindolhes cõ maior cuidado aquelles annos primeiros.

Tambem nesta obrigação não deixou de haver opinioẽs bem contrarias; e tanto, que

entre dous esposados de grande juizo, ouvimos contar de hũ, que indose a recolher,

[CG136r] dissera ao seu estribeiro: Fazei ter prestes à manhãa bẽ cedo para irmos à caça:

que visita de cada dia não pode ser larga. E de outro, que sendolhe pregũtado pello moço

que lhe dava de vestir, que vestido queria lhe concertasse para o outro dia, lhe respondeo:

Vaite para casa de teu pai atè que te mande vir; porque primeiro se ha de segar aquelle

trigo, que alli andão semeando, que eu haja mister vestido. Taes saõ, e tão varias, as

opinioẽs dos homens; pelloque hum entendido dizia: Sabeis vòs porque [CG136v] o corvo

he negro? Porque se vos não pregũta se he negro, ou branco.

Já V. M. tem visto como nestes avisos não sigo algũa ordem, se não aquella, e

aquillo, que a memoria me vai offerecendo. Creo que longe fica de seu lugar (mas em

qualquer parte vem a tempo) o amoestar ao casado, que com o mesmo tento que deve

fallar diante de sua mulher louvando as alheas, deve (e cõ maior ainda) de gabar a propria

diante dos homens.

Pode, e deve bẽ o marido, [CG137r] quando haja razão, e necessidade, louvar

modestamẽte as virtudes de sua mulher: digo as virtudes, mas não digo as partes; e das

mesmas virtudes não se faça ostentação a cada passo. Ao pai, ao irmão, a tão chegados

parentes, aos muito amigos, e muito sisudos, poderia ser licito que desse o casado algũa

vez mostra da satisfação que tinha dos dotes do animo, que em sua mulher havia, e

estimava.

Não são poucos, nẽ pouco grandes, aquelles, que entremetendo de cortesaõs, ou

engraçados, [CG137v] gabão em publico as partes de suas mulheres, ou fallão nellas:

cousa, a meu juizo, indignissima, e dignissima de grande reprensaõ. Eu fiquei hum dia

como morto, fallando com hum fidalgo de idade, e autoridade, porque me disse, estando

sua mulher doente de hũ peito, que fulana estava muito afligida, porque tinha as tetinhas

muito delicadas.

Estando hũa noite (qual estas) em Flandes, em certa casa, donde assistião grandes

pessoas, foi hum dos circunstantes tão pouco advertido, [CG138r] que tirou o retrato de

sua mulher, para o mostrar aos outros. Era de huns que se fazem com differentes trajos,

que se lhe vão vestindo à vontade do apetite dos olhos: que tantas salsas tem inventado o

vicio para a vista, como para o gosto. Sucedeo poes que estava entaõ o bom do retrato em

figura de Alferes, e não parecia mal.

Achavase na mesma casa hũ dos convidados, mancebo bem illustre, mas muito

dado aos costumes da terra; e como todos estivessemos sobre cea (o que neste se

enxergava melhor [CG138v] que nos outros) deulhe na cabeça levar da mão ao simples do

marido o retrato da mulher; que beijava, e abraçava mais francamente, que se fosse sua,

dizendolhe: O Alferes mio! O Alferes mio! e mil requebros descompostos. Em fim o

negocio procedeo de feição, que todos viemos às pãcadas, e por pouco se não matão mais

de dous: com tal vergonha, e escandalo, que não sendo a gente ciosa nẽ a terra maliciosa,

houve assás murmuração, e durou muito; o que tudo procedeo da incauta [CG139r]

confiança daquelle descuidado marido.

Outros ha que, cõ tão pouco tento, levados, ou do desejo, ou da facilidade de sua

cõdição, mostrão em praticas às mulheres, lhes não pesará de ficar viuvos. E suposto que

os mais lanção estes ditos à zombaria; naquellas que os ouvem, se guardão como indicios

do animo, e sinal certo de desamor; que na verdade vemos melhor pago na mesma moeda,

do que se costuma dizer que o amor se paga. Desviese o prudente de taes remoques; antes

em feitos, [CG139v] e ditos, mostre sempre a sua mulher aquella boa lei, cõ que della

quisera ser tratado. Não como se conta do outro, que estando a sua agonizando, e dizendo

que tinha grande desconsolação de deixar tal, e tal cousa por fazer; elle lhe respõdeo:

Morrei vòs senhora, que tudo bẽ se farà.

Guarda, senhor N. de ser proluxo, e cansado, como não poucos saõ a suas

mulheres, e familias. He certo cousa intoleravel de sofrer a impertinencia de muitos, que

sem algũa razão mais que [CG140r] aquella de que estão em sua casa, gritão, saõ

comichosos, e enfadão as creaturas, ora querendo hũa cousa, ora não querẽdo aquella

propria cousa que quiserão. O odio começa em desagrado, e por alli vai subindo atè se

fazer odio, que assaz de vezes achamos entre a mulher, e o marido: servindo as causas do

perpetuo consorcio, que havião de ministrar a amizade, e fé, de persuadir a inimizade, e

perfidia.

Jà que conto a V. M. historias assi, não hei cà de deixar esta. Solicitava com

[CG140v] exquisita importunação em Roma a beatificação da veneravel matrona

Margarida de Chaves, hum seu filho, que eu muito bem conheci, e de sua boca ouvi o que

digo. Tinha o Papa Paulo Quinto remetido a causa a certo Cardeal; que jà andava tão

temeroso do requerente, que em o vendo fugia delle. Sucedeo chegar a falarlhe hum dia,

estando o Cardeal mais que outros enfadado; e havẽdolhe lembrado, como costumava, seu

negocio; lhe respondeo: Senhor, não nos cansemos em provas da santidade [CG141r] de

vossa mãi; prova sòmente que vos sofreo: que o Papa a declararà logo por Santa.

He assi, que se considerarmos o que se sofre a homens impertinentes, e que se

prezaõ de senhores absolutos, e que em nada tanto o parecẽ, como em se darem a padecer

às pobres das mulheres; sem falta ellas farão a Deos tão grande sacrificio de paciencia, que

bem poderão ser contadas no numero das santas.

Pois hũs gritadores; e que por qualquer mosca que voou contra seu gosto, jà

fundem [CG141v] a casa, e tirão della o segredo de sua mà condição, e elles proprios o

lanção na rua! Deos nos livre, senhor, de tão mao costume. Disse bem o que disse, que

ninguem padece tanto incomodo, que se puser os olhos no que outros padecem, lhe falte

razaõ para soportar o que padece.

Esta paixão toca, de ordinario, nos muito altivos, e nos muito desarrezoados.

Aquelles cuidão que todos, e tudo fez voto solene de os servir; estoutros não querem dar às

cousas algũ desconto. Ambos saõ defeitos [CG142r] infelicissimos; porque como as mais

das cousas, e casos não estão em nossa mão, acõtece que todo o dia, todo o ano, e toda a

vida, nos vão sucedendo ao reves do gosto, e da conveniencia; ao que não remedea nada a

desconformidade com que se levão esses sucessos.

Pareceme serà razão fazer hũa breve lembrança a alguns, que dão em se torcer para

suas criadas, com grande perigo, certo, da reputação de sua casa, a quẽ elles mesmos saõ

aleivosos, e merecedores de que em seu dano, [CG142v] com semelhante ousadia sejão de

Deos castigados. As proprias aves de rapina, que não tem outro officio senão caçar, e prear

o que encontraõ, costumão ir ao longe de donde habitão, fazer seus empregos. Porque

serão os homens menos fieis, e menos doutrinados?

Sendo certo que a porta principal para todo o perigo dos homens, he o illicito trato

com as mulheres: nenhum dos mais licenciosos resulta com tão pessimos effeitos, como

aquelle que se toma dentro na propria casa. O desconcerto [CG143r] do senhor della he

logo bem aprendido da familia; e como hum delito chame por outro, elles se multiplicão

ate hũ triste excesso.

As criadas, vendose queridas de seus amos, conspirão logo contra as senhoras,

traçando de ordinario taes enredos, que não cõtentes da primeira offensa, as procurão

despojar da honra, e da vida. Algũas com esperança de sucederem em seus lugares (como

não poucas vezes acontece;) outras por gozar mais soltamente sua ruim liberdade. De aqui

ouvimos [CG143v] tragedias lastimosas; de aqui vimos bodas infames.

Entre os conselhos tocantes às virtudes do animo, que variamente tenho apontado a

V. M. convem fazerlhe presente de algũs avisos concernentes ao bom governo de sua casa:

cousa que por outro nome mais elegante chamão os filosofos Virtude Economica, segunda

parte da ciencia civil, que tambem he segunda parte da filosofia moral. Isto em fim não he

outra cousa que a industria, e prudencia com que o cidadão, o fidalgo, o grande, e tambem

[CG144r] o pequeno, governão sua familia; que no Principe he arte politica, ou materia de

estado; chamemlhe os filosofos como lhe chamarem.

Esse Capitão Romano, que tinha para si saberia bem dispor hũa batalha aquelle,

que bem sabia dispor hum banquete; dissera melhor, quando afirmasse, saberia bem

governar hũa republica, quem sabia bem governar sua casa; pois he certo que a cidade he

hũa familia grande, e a familia hũa cidade pequena.

Aconteceome hũ dia (e porque o conte com toda a [CG144v] verdade, era hũa

vespora de Reis) ir a visitar hum fidalgo meu amigo, que por morar longe da minha

pousada, e serem dias de inverno, cuidei que o não achasse jà em casa. Era mancebo, e

notados de pouco governo, elle, e sua mulher. Cheguei em fim à sua porta, e mandando

saber se estava em modo de receber minha visita; em quanto lidava nesta averiguação hum

pagem (batendo em vão a muitas portas) ouvi eu muito bem là dentro hũa voz que dizia:

Fulano, ide a casa do Cura, e pergũtailhe [CG145r] da parte do senhor D. fulano, se he

hoje dia de peixe, ou de carne. Se disser que de peixe, trazeio da ribeira; se disser que de

carne, trazeia do açougue; ide de pressa, paraque se faça de jantar. Era isto, quãdo menos,

da hũa para as duas horas. Veja V. M. que tal serìa para os servos o governo daquella casa,

quãdo para os senhores della era desta maneira.

Não saõ numeraveis os descontos, que causa hũ senhor froxo. Vulgar, mas

certissima, sentença he aquella, [CG145v] de que então doem todos os membros, quando a

cabeça està doente. Conheci hũ homem de grande qualidade, e juizo, em tanta maneira

remisso, que mandava pedir a hum seu amigo viesse a peleijar cõ os seus criados, e

obrigallos a que o servissem.

Ora estes excessos contãose como monstruosidade; e não poucas vezes cõvem

trazellos à memoria para os aborrecer.

Toda a governança de hũa casa eu reduzo a dous pontos: Pão, e Pano; ou [CG146r]

Prato, e Trato: regra, que muitos dias ha que sabe a prudencia. Pello pão, ou prato,

podemos entender todos os bens, e comodos das portas adentro. Pello pano, ou trato,

entenderemos todos os bens, e comodos das portas a fora. Algũa cousa disto toquei nos

avisos passados; menos porem do necessario.

Mas especializando de novo esta materia, convem que o senhor da casa procure

que sua familia ande acomodada, e lustrosa segũdo seu estado, desvelandose, [CG146v] e

buscando os effeitos para a conservar inteira em ambas estas qualidades. O comodo do

pão, por que se denota o mantimento ordinario, deve com grande providencia ser provìdo,

paraque a casa seja abundante, e que nella cõ ordem, e sem miseria se reparta. Pouco

importarà que de fora se tragão a casa os meios que a podem fazer abastecida, se nella se

vive em proluxa abstinencia. Muito peor levão os criados a abũdancia miseravel, que a

pobreza liberal.

[CG147r] Outros, com o escritorio bem provìdo, pagão mal, vestem peor. Não me

ponho da parte da fortuna, que muitas vezes faz que os amos que menos bem tratão seus

servos sejão os mais bem servidos; avogo pela razão, que obriga, desengana, e manda a

quem quer ter bons criados, que lhe queira ser bom senhor. Aquelle, que de seus criados

espera adivinhem seus pensamẽtos, adivinhe tambem suas necessidades.

Tenho por regra geral muito cõveniente, que o prato [CG147v] da familia seja mais

copioso que curioso; e o trato mais curioso que custoso. Comer a horas, vestir a tempo.

Dizia hum grande senhor por outro de muito menor estado, mas de grande concerto, que

nunca desejàra cousa como ser criado de fulano: porque assi os tratava, e conservava

inteiros, que não sò não envelhecião jà mais nos vestidos, mas que nem na idade.

Pague bem; isto he, a tempo. Aos criados o que lhe prometeo; aos officiaes o que

valer seu trabalho. Serà [CG148r] bem servido de huns e outros. O premio deve seguir ao

serviço, paraque o serviço acuda à necessidade. Quem paga logo, paga com menos; porque

se o dar logo, he dar duas vezes, verdadeiramente se estima em muito mais do que he.

Quem paga tarde, tẽ jà os animos tão desabridos, que com outro tanto mais do que deve os

não deixa satisfeitos. Perguntavão a hum criado, a quẽ servia? e respondia que a hũ filho

seu; e tornandolhe a perguntar que dizia nisto? respondeo: Sirvo a meu herdeiro.

[CG148v] Por semelhãte razão disse hum discreto, andava errado o proverbio de que

quem bem paga he herdeiro do alheo; porque muito mais certo he ser herdeiro do alheo

aquelle que o alheo não paga.

A todas estas cousas asista a providencia, e não a soberba; que sendo guiadas por

aquella, serão justas, e excelentes; e por esta, demasiadas, e escandalosas. Convenho em

que o casado principal tenha a sua mesa não faminta, limpissima, e bem servida; mas, que

seja [CG149r] mesa para a boca, não para os olhos. Quero dizer, que ministre a

necessidade, e não a vaidade.

Ora contarei duas cousas a este proposito estranhas, e que ambas vi, e algũa

exprimentei com meu dano. Havia hum Grande de Espanha tão grãde na vaidade, certo,

como na miseria: mandavase servir de doze pratos ao jantar, e outros tantos à cea, que se

lhe ministravão em publico cõ notavel ceremonia; e era certissimo que sò delles os tres

levavão iguaria, e os [CG149v] nove passavão sua carreira tão vazios como a cabeça de

seu dono.

A outro vi, que tendo, por razão de seu cargo, o prato de certo Prìncipe, a quem

servia, mandava levar as iguarias a sua casa, as quaes lhe servião a elle à mesa, e de que

pouco se servia. Sucedialhe logo outra mesa de seu filho herdeiro, que comia com

hospedes de ordinario; e de quem eu o fui algũas vezes; e eis aqui que aparecião outra vez

aquelles pratos, sendo jà a terceira que no mesmo dia [CG150r] tinhão saido a publico;

mas não parando nesta mesa, se armava o tinello, e là hião aos criados maiores, e delles

decião os residuos aos menores; de feição que cinco papeis fazião os pobres pratos antes

de serem de todo consumidos. Donde, cõ agudeza bem da sua terra, dizia hum dos criados

desta casa, que el N. su señor era el maior cavallero de España; porque se servia con nietos

de Infantes; porque todos sus criados estauan en el quarto grado cõ S. A. Aludindo às

quatro mesas, por [CG150v] donde, como graos, vinhão decendo a elles as cousas, que na

sua se comião.

Tanto pode, senhor N. a vaidade com os homens, e mais no tempo de hoje, que

lança çancadilhas à natureza e a derruba. Que o homem coma bem por necessidade, pode

passar; que coma bem por regalo, pode passar; mas que funde seu credito em pratos

vazios, ou aparecidos como figuras de comedias, guardenos Deos de tal semsaboria.

O servir a mesa com os criados, cousa he costumada; [CG151r] mas em verdade

que estes nossos Portugueses servem com tal descuido, ou cõfusaõ, que tinha por não

grande perda o servir com as criadas. Misturas delles e dellas não fizera eu nunca; e

sempre aconselhàra ao senhor se servisse cõ as criadas, senão fora destituillos a elles para

nunca o saberẽ servir quãdo vem hospedes; donde he necessario que os criados assistão, e

donde convem que saibão melhor o que fazem: cousa, que raramente sabem fazer os

nossos.

[CG151v] Acheime na Corte de Londres, em casa dos Embaxadores de S. Magest.

a aquelle tragico Rei Carlos Primeiro; e havendose de dar alli hũa cea às Damas da

Rainha, e às maiores senhoras de Inglaterra, suposto que na casa se tinhão mui

decentemente preparado aquelles ministros; eu que sou assi proluxo, e não vi em nenhum

de seus criados a arte necessaria para tal ministerio, o tomei a minha conta; e com hum

filho, e um neto de hũ Embaxador, o genro de outro, e o [CG152r] Secretario da

Embaixada, o negocio se dispos de feição, que se derão as convidadas por melhor servidas

ainda do que regaladas. Tanto importa o saber servir às mesas nobres, que verdadeiramẽte

he a principal iguaria dellas; mas entre nos poucas vezes achada; e tambem digo que nem

muitas achada menos.

Acabo isto com o exemplo de S. Magest. que poem fim a todas as razoẽs, e esforça

a minha; pois podendo ser servido de seus criados, os deixa, e certo que [CG152v] com

grande acordo, e se serve cõ as Damas, e criadas da Rainha. Tenho para a pessoa de

qualquer estado por mais limpo, e quieto modo de servir à mesa, aquelle das mulheres,

ainda que não sejão anjos as que ministrem. E por isto dizia hum convidado de hũa sua

parenta, que o fazia servir de duas criadas, hũa fea e outra bem parecida: Senhora, cà viera

todos os dias, se a fea só me servisse; porque estoutra he anjo, que me deixa anjo.

Já que aqui estamos, digase [CG153r] (pois tambem importa) que não se coma

desorado; quero dizer, fora de tempo. He grande inconveniẽte para as pessoas a quem

assistẽ seus criados. Quando o ministerio, o officio, ou negocio assi o pedissem, fora de

parecer que os criados comessem primeiro; porque de outra sorte seria intoleravel, e anda

sempre a casa mal servida: acontecendo que por esperar o senhor que comão os criados, se

comem despois delle, perder mil vezes o negocio ou saida, por não ter de quem se

acompanhe.

[CG153v] Gabo muito, senhor meu, hum cõservar nas casas certos costumes

nossos familiares, e antigos, que as fartão, alegrão, e agasalhão, corroborando de novo o

amor que se tem ao senhor da casa. Teve V. M. hum parente grãdissimo mestre destas

politicas, e o mais amado amo de seus criados que eu vi ja mais, por estas e outras

utilissimas humanidades que guardava com elles.

Digo eu que o casado, por alegrar sua mulher, e familia, mesmo de seu movimento,

[CG154r] mãde (se as houvesse) fazer em sua casa duas e tres comedias cada anno. Seja

elle proprio o que com ellas convide; tem se aquillo em muito; dizem logo delle que he hũ

anjo; e na verdade he mostra de bondade, folgar de que folguem os outros com as cousas

decentes. Não como o nosso Rei D. Pedro, que chamarão Crú, e cruel, que mandava de

noite acordar o povo que dormia, porque elle não podia dormir.

Arme outras tantas romarias e folgas, que cheguem [CG154v] até aos menores.

Mostreselhes assi leve, e cuidadoso de seu regallo. Reparta com prudencia dos mimos que

lhe vierem, jà da renda, jà do presente. Ha casas dõde se perderaõ cem queijos de Alentejo

antes que dar hũ a hũ criado. Aquillo de matar porcos pello tẽpo he lance caseirissimo, e

bem aceito, que faz os homẽs bem quistos atè da vizinhãça. E para dar algum gosto a esta

baixeza (que não quis que me esquecesse) direi o que aqui dizia hũ malvado cortesaõ, que

assi como cada [CG155r] homem, por bom governo de sua casa, devia matar cada ãno

pello menos dous porcos; assi por bom governo da Republica, devia matar cada anno pello

menos dous vilãos ruins. Por tão bõ costume tinha este aquelle agasalho; o que bem

favorece o nosso rifaõ quando diz: O dia de S. Thomè quem porco não tiver, matar pode a

mulher.

O ir às quintas louvo, o morar nellas não gabo; não porque me pareça indecẽte, mas

porque o tenho por desacomodadissimo: vindo a ser [CG155v] estas quintas hũa quinta

essencia da siganarìa. Estraga as casas, desbarata os moveis, destroça os criados; nada se

forra, antes se gasta mais; e os homens nem gozão a quietação do campo, nem a

autoridade da Corte. Entendo por estas quintas aquellas, das quaes se pode vir cada dia a

Lisboa; donde com comodidade, ou sem ella, nenhum dos vizinhos deixa de vir cada dia;

pelloque disse, com a graça que costuma, hum nosso discreto, que o coche de fulano hia

tres vezes cada anno a [CG156r] Gerusalem, lançando as contas certas às legoas que

andava cada dia o coche e seu dono, indo, e vindo de outra tal paragem.

Os grãdes cortesaõs fazem a vivenda do campo aborrecivel, que ella de seu não he;

antes alegre, e conveniente. Sendo hum convidado de certo fidalgo para estar com outros

em hũa sua quinta dous dias, ao segundo sem se despedir dos companheiros, tomou o

caminho da cidade; gritavãolhe os mais, que se detivesse, e como o fizesse assi, e lhe

perguntassem [CG156v] adonde ìa, respondeo: Amigos voume, porque se estou mais de

vinte e quatro horas no campo, cuido que me torno boi.

Julgo por importante acção não viver de continuo na Corte, e me parece que ha

huns tempos proprios de se retirar (o casado com sua familia) a viver no seu lugar,

comenda, ou herdade; em fim aquella parte que mais comoda for para a vida. Se hei de

apontar regra a este tal retiro; dissera que tendo o casado mais de dous filhos, era o proprio

tempo. [CG157r] E que os annos da ausencia da Corte podiaõ bem ser aquelles em quanto

os taes filhos crecem, e não perdem por não ser conhecidos atè então; como se

dissessemos, até idade de oito e dez annos.

Despois he bom tornar à Corte a introduzillos nella, paraque o Rei os conheça, e

elles se criem sem espanto dos Paços, que sem duvida o causaõ aos que os não virão desde

a mocidade; como se diz das aguas do Nilo; cujo estrondo he medonho ao forasteiro, e do

natural [CG157v] não he ouvido. Dizia o Duque de Alva pai do que hoje he, sendo

Mordomo mòr de ElRei de Castella: Si dos dias estoi sin venir a Palacio, al tercero ya

tropieço en las esteras, o ellas se burlan de mi.

Pareceme que despois de vindo atè casar estes filhos, se não deve fazer ausencia; e

que, casados elles, se faça para descançar a velhice, ou maior idade; e dar hum Christão

intervalo entre os negocios e a morte: que he o mais importante negocio para os vivos.

[CG158r] Esta observação sò comprende a aquelle que vive só para si e comsigo;

porque para o ministro, para o soldado, e para o criado do Principe, que vai de huns

empregos subindo a outros, e merecẽdo cada dia mais, não he meu animo dar por conselho

que sem causa deixe cada hum sua profissaõ, e aumentos. Com causa não lho negàra; nem,

quando o fosse, fora tão indiscreta a minha confiança que esperasse desses taes se

governarião pellas regras de hũ homẽ que tão mal se governou.

[CG158v] Estas ausencias trazem grandes e muitos proveitos à vida, à saude, à

fazenda, à salvação. A vida, porque no cãpo se vive mais; à saude, porque seus exercicios

a conservão; à fazenda, porque se gasta menos; à salvação, porque faltão as ocasioẽs que a

arriscão, e anda o animo mais livre para cuidar em Deos, e em si mesmo.

Não fallece cõtudo quẽ tudo isto contradiga; porque, como dizia hum discreto, todo

o homem poem outro nome à sua vontade. Assi he [CG159r] notavel a controversia, que

houve sempre sobre este modo de vida retirada. Hum fidalgo nosso antigo se gabava que

só de não no hà hi poupava no campo ametade de sua fazenda. Mas não fazia isso assi

outro Castelhano, que quando se via alcançado, fingia que se retirava, e não saìa da Corte;

e dezia que, Para descansar cada uno a su casa, no havia cosa como comerse media dozena

de pajes y lacaios sin salir de su tierra.

Estas taes retiradas costumão sempre ter grande [CG159v] contradição nas

mulheres; e quanto ellas na Corte saõ melhor vistas, mais aparentadas, e gozão maior

aplauso, tanto mais impugnão tal resolução dos maridos. Contra isto não tenho mais que

dizer que o que disse hum mesquinho a outro que lhe pedio dinheiro emprestado,

offerecendolhe sete razoẽs, pellas quaes lho devia de emprestar: Nas mesmas sete me

fundo eu (disse o mesquinho) para não fazer o que V. M. me pede.

Não me posso escusar de dizer duas palavras a huns [CG160r] certos casados, que

toda a sua ansia e desejo he andarem sempre ausentes de sua casa, em viagens e jornadas,

hũas paraque elles se convidão, outras de que se não desvião; deixando as mulheres

moças, e as vezes bem desemparadas de todo o resguardo que lhes he devido. Estes

costumão dizer, que por buscar pão e honra se ausentão; e não poucas vezes vimos que em

taes demãdas se perde de contado a fazenda, e não poucas uezes se arriscão cousas que

valem mais [CG160v] que ella. As mulheres casaõ para serem casadas. He o contrario não

entẽder cada hum sua obrigação.

Fallava hũa viuva com hum homem hum dia, que sabia que era ella viuva; e ella

dezialhe: Senhor, eu nũca casei, vede vòs como posso ser viuva. Replicava o outro, que

sim o era, porque conhecera em tal parte o senhor fulano seu marido; e ella tornava:

Senhor, digovolo porque eu casei por procuração, e fui casada por carta; e isto he não ser

casada. E era assi, que pellas [CG161r] ausencias de seu marido a penas o conhecera.

Se estamos sòs, senhor N. hei de contar a V. M. hũa historia de mancebo, que ouvi

em Barcelona. Havia alli hum fidalgo casado de pouco, cujo nome era Mosen Gralha.

Passou o Emperador Carlos V. para Italia, e o seguio este Catalão a despeito de sua mulher

moça, fermosa, e honrada. Engolfouse o marido em serviços, e esperanças, e não fazia

conta de vir tão cedo. Enfadavase a mulher, e lhe requeria muitas vezes [CG161v] que

viesse; mas desesperada jà da vinda dizem que lhe escreveo em Catalão estas palavras:

Mosen Gralha, Mosen Gralha, mon amor non manha palha. Tomou o soldado a carta,

levou a ao Emperador que lha interpretasse; o qual conhecendo o que queria dizer (que he

facil de conhecerse) e fazẽdolhe merce, gabou a confiança, e discrição da mulher, e

mandou para sua casa seu marido.

Mosteiros, Recolhimentos, e outros resguardos [CG162r] semelhantes, em que os

homens depositão suas mulheres, não deixão de ser arriscados; e de certo, quando a

ocasião não seja muito urgente, he usar com as mulheres ruim lei, e faltarlhes com a fè e

companhia devida; porque se cada hũa de aquellas quisera ser freira, bem escusara de se

casar.

Advirtase todo o casado, que no ausentarse por longo tempo de sua casa tenha

muito tẽto; e seja raro o interesse porque assi o faça. Disputavel foi entre [CG162v] os

politicos, se convinhão ou não os Capitaẽs casados ou solteiros. Dissera eu aos Reis, se

fallàra com elles, que para as conquistas, e guerras offensivas que se fazem em provincias

distantes, buscassem os solteiros; porque pella liberdade se arriscão; e por virem a

descansar na patria, e buscar esposa, abrevião mais as empresas, e saõ menos custosos na

vida e na morte a seus senhores. Ao contrario, para dentro de sua provincia, e na guerra

defensiva, prefirão os casados aos solteiros [CG163r] nos postos militares; porque por

defenderem a mulher, filhos, e honra delles, costumão os homens obrar maiores feitos, que

por beneficio de sua propria vida.

O mesmo que aconselhàra aos Reis para com os vassalos, aconselhàra aos vassallos

para com os Reis. Assi nas eleiçoẽs, assi nas pretensoẽs.

Passa V. M. por isto? Que me ìa eu agora metendo em politicas, e cousas de estado

sem me sentir! Là se avenhão os que mandão o mundo. Cõ licença de V. M. [CG163v]

quero fazer minha volta, e virme do pego para a terra.

A cousa com que mais atentado sou, he, huns que dão em nomearem as mulheres

por circũloquios, chamandolhes ora a minha velha, a minha companheira, a minha

hospeda, a minha obrigação, a mãi dos meus filhos, e cousas assi, que em qualquer tom

que sejão ditas, parecem pouco graves, e, a meu juizo, indignas de se acharem na boca de

nenhum sisudo. A mulher de que o homem se preza, e o [CG164r] homem de que a

mulher se honra, porque não han de ser por seus nomes nomeados? Digo dellas para elles

outro tanto.

Os parentes, se se casaõ, costumão chamarse pellos graos de seu parentesco, as

mulheres aos maridos, e os maridos às mulheres. Eu sou amigo da verdade; e àntes

aconselhàra a cada hũ que dissesse minha mulher, e meu marido, que minha prima, nẽ

minha sobrinha, nem meu tio, nem meu primo. Todavia não he costume condenavel, se o

[CG164v] não fosse com tal excesso que desse a ocasião, que deu outro, que de continuo

nomeava a mulher por sua prima, a que hum criado seu, havendo de lhe escrever, lhe pòs

no sobrescrito: A senhora prima de meu senhor; porque lhe não sabia o nome.

Se ei de levar ao cabo minhas impertinẽcias, tambem quero fallar algũa cousa

sobre o estilo de se fallarẽ entre si os casados. O Tu he Castelhano; e por mais que elles o

achem carinhoso, como là dizem, he palavra muito de praça, e que ao [CG165r] mais não

deve de quebrar a menajem da camara para fora. O Vós he Frances, que com hum Vu,

receberão a mesma Rainha Sabà, se cà tornàra. Tenhoo por demasiado vulgar. O Elle, e

Ella, hũ Ouve senhor, Que diz senhora, he termo bem Portugues, assaz honesto, e bẽ

soante. As Senhorias, e Excellencias, a quem pertẽcẽ gravidade induzem; mas parece hũ

certo modo de esquivança tratar hum homẽ sua mulher como que se o não fora. Fiquẽse

para os Principes e Reis as Altezas, [CG165v] e Magestades; e prohibãoselhe tambem

aquelles affagos humanos entre os mais afectos que lhes não podem ser comuns. Dõde jà

dizia D. João o Segundo, que por sò tres dias folgàra de poder ser homem.

Tratemse, a meu rogo, os os nossos casados cõ aquelle modo que melhor

companhia faça guardar ao amor, e à estimação; que he hũa excelente conserva para a vida

dos hõrados. Sẽ embargo, os mais moços tem privilegio para poderẽ sair tamalavez da

severidade destas regras.

[CG166r] Ora muito ha que lhe não digo nada às casadas, às quaes tenho para

encomẽdar hũa acção não inutil, antes de grande conveniencia. Ha muitas, que de

desgostos que não podẽ remediar, tomão em si o castigo: cousa totalmente indigna, como

injusta. Hũas, por serem mal casadas, se desmanchão em si mesmo, e desfigurão, com o

que vem a ser peor casadas. Aquellas a quem lhes morrem os filhos, aquellas a quem lhes

não nascem, vivem não sòmente desconsoladas no animo, mas o dão [CG166v] a entender

no trajo e rostro; de que os maridos prudentes, e que mais as estimão, se entristecem, e

vivẽ afligidos; e os de leve condição tomão motivo para procederem mais levemẽte,

achando facil a disculpa, que não tem, no exquisito modo das mulheres. Nacem desta

desordẽ outras maiores, em grande offensa da paz; porque de ordinario os homens não saõ

da condição de hum meu amigo, que dizia a sua mulher noutro tal caso: Senhora

desenganaivos, que por mais que me façais, nem [CG167r] vos hei de querer mal, nẽ me

haveis de parecer mal.

Devese à fé e igualdade no Matrimonio contrahida, grande satisfação; e assi como

entre os bem casados he digno de muita dor, faltar a algum delles a vida; assi he digno de

muito sentimento faltar a alegria de algum. Jà deixo dito que as almas dos casados saõ

comũas; seus gostos, e pesares. Não haja parte que se queira levantar com a parte alhea.

Nenhum chore, nẽ se alegre, mais do que pode tocar de affecto à sua ametade.

[CG167v] Poes a proposito destas que de tristes se desconcertão, farei lembrança

de outras que igualmente saõ reprehensiveis, por de muito alegres, se concertarem mais do

necessario. Jà disse acerca das galas e adornos; e não sei se de nojo, ira, ou esquecimento

tardei até agora em fallar de hũas que poem no rostro.

A mulher que poem no rostro, poem nelle sua injuria, e tira delle sua vergonha; não

belleza nem mocidade poem por certo: porque não só offende o siso, mas os [CG168r]

annos e o parecer. Todos entendem logo que pouco se fia em si aquella que de tão baixas

cousas se ajuda. Sempre se teve por cobarde o que muito se armava. Quantas, em vez de

agradarem aos que as vem, por essa propria diligencia escandalizão, e vão como

convidando o riso e a mofa da gente que pretendião admirar, e affeiçoar pode ser! Este

abuso he digno de que o marido, logo que o conhecer, o atalhe por todos os meios; porque

a idade o não emenda, antes o acrecenta. Tenho por certo [CG168v] que tão ruim conta dà

de seu juizo o marido que sofre posturas a sua mulher, como dà de seu entendimento a

mulher que as usa. Hũa cõvidava a seu marido que se sentasse junto della; e elle dizia:

Deixaime, que de hũa doença me ficou grande entejo aos doces da botica. Outro dizia por

hũa sua parẽta, que com muitos annos sobre si, trabalhava pellos lançar fora do parecer:

Minha tia ful. na não quer se não esperdiçar desenganos. E na verdade assi he, porque a

graça da mocidade se não [CG169r] alcança, e se perde a gravidade da velhice. Os rostros

se desfigurão com os martirios que nelles fazem os unguentos; e as pobres saõ escravas de

sua presunsão. A que aludìa hum discreto, dizendo por outra tal: Muito ruim cativeiro se

dà aquella senhora ao seu rostro. Mas com muito mais graça que todos o disse (como

sempre) o Cardeal C,apata, que, visitando hũa senhora Romana de maior idade, e muito

dada a este mao costume, como ella lhe perguntasse que novas havia [CG169v] em Italia,

e elle a visse tão maltratado seu rostro pella força das posturas, dizem que lhe respondeo:

Ilustrissima señora, mui malas nuevas tenemos; porque, segun las cosas corren, yo estoi

viendo Soliman apoderado de Civitavieja.

E porque, escrevendo eu a V. M. e regulando estas amoestaçoẽs, ou conselhos,

segundo as pessoas de seu porte, das quaes costumão sair sempre (pello menos sempre

devião sair) as que ocupão grãdes lugares na paz e na guerra; não serà [CG170r] sem fruto

deixar advertido a todas as mulheres, que o chegarem a ser de ministros, e pessoas que tem

à sua conta os negocios publicos, algũa cousa tocante à conservação de esse estado.

Dão muitas destas senhoras mulheres de ministros, cõ grande risco de seus maridos

e casas, em quererem ser ellas ministras tambem como elles. A tres pontos se reduzem

estes inconvenientes: Interceder pellos que pretendem, negociar cõ os despachados,

revelar segredos aos negociantes.

[CG170v] Não sei qual he pior. Affirmo que tudo he pessimo para a opinião dos

ministros, cujas mulheres se deixão levar do aplauso, interesse e ambição. Tenho em meu

poder a copia de hũa carta de Carlos Quinto para D. Felipe seu filho, quando em hũa de

suas jornadas o deixaua governando, e instruìa dos sogeitos que lhe dava por ministros; e

chegando a hum, de quem não tinha toda a satisfação, diz estas palavras: Fulano era el

mejor de todos, si fuera eunùco; porque la muger deshace [CG171r] en aquel hombre las

mejores partes que he visto.

Nas mulheres de ministros de justiça he mais perigoso este costume. Mas porque

os de estado saõ pessoas maiores; quando nelles se acha este defeito, he mais notavel; ou

quiçà que o não he tanto nos primeiros, por ser mais ordinario. Ao que aludia hum

Cortesão, que, pegandose o fogo em casa de hũ ministro de justiça pouco escrupuloso, ìa

dizendo pello caminho: Acudamos, senhores, à nossa fazenda, que se nos queima.

[CG171v] Queixavase hum requerente a outro de que hum seu juiz, sendo pobre,

gastava como rico; e nomeando suas ostentaçoẽs, rematava cõ dizer: Poes isto senhor de

que sae? E outro lhe respondia: Do que entra. Tornava o queixoso, e dizia: Senhor, não

fizerão isso seus passados; e outro respondia: Não senhor, mas fazemno nossos presentes.

Costumão as mulheres de alguns ministros, pella propria razão que se houverão de

abster, e ajudar com grande tento a levar aquella [CG172r] carga a seus maridos,

ocasionarlhe seu precipicio, carregandoos de novo com suas desordens, e vindo despoes

com elles a terra.

Deve o marido começar por si mesmo no cuidado que he bem que tenha de sua

cõservação. E poes he certo que ao proprio sangue, em que nossa vida consiste, lançamos

das veas, se se corrompe, porque não apodreça o outro que nos fica; quanto mais se deve

sangrar a ambição, ou interesse, se na mulher for conhecido? que em breve tẽpo ameaça

corrupção [CG172v] à saude do corpo, e da familia: morte da casa, do officio, e da

conveniencia.

Confesso que fora licito à senhora mandar sua encomẽda, fazer ao marido esta e

aquella lembrança por hum ou por outro pretendẽte, e ainda favorecer a algum que o

merecesse, dandolhe huns longes de seu negocio, cõ que lhe pudesse dar remedio. Mas

como estas cousas sejão de seu natural perigosas, poucas vezes acontece que nellas se obre

sòmente o licito. Contentàrame com que [CG173r] a pena do desconcerto se ficàra com o

autor delle; mas não he assi; antes, da inconsideração da mulher he o marido sempre (sem

ser o fiador) o principal pagador.

Havia em Castella hum ministro dos que vou dizendo; era pouco limpo, ainda que

mui asseado; mercadejava a mulher, e ganhava sempre; elle dizia, quãdo lhe gabavão suas

alfaias: Muchas gracias a la industria de Doña Clara. E o certo era, que a industria era

clara cõ que D. Clara se aproveitava de sua industria.

[CG173v] Passando a Indias hum mercador, lhe foi dada certa encomenda da

mulher de hum ministro; e acertou o pobre de se perder, e perdella, com todo seu cabedal.

Tornou a Espanha, e à Corte; e não lhe sendo recebida em desconto a perdição, houve tal

violencia no caso, que lhe fizerão pagar aquella encomenda com ganhos, e cabedaes, como

que não pudesse ser perdida como as outras. Voltou a Sevilha, e topando a outro mercador

seu amigo, lhe perguntou adonde ìa, e havendolhe [CG174r] dito que à Igreja maior a

segurar com Deos, e com os homens de negocio, certa grande partida de fazenda que

esperava de fora, então lhe disse o queixoso: Andad, señor, y no hagais tal; mejor es

encomendarla a mi señora Doña fulana, que toda la saca a puerto de salvacion.

Mas porque toquei arriba acerca dos segredos que as mulheres costumão revelar

dos officios de seus maridos; a proposito virà agora tratar desta materia, assaz essencial

para o descanso [CG174v] do matrimonio.

Vi, senhor N. e ouvi ja grandes disputas (e tive ja boa parte nellas) sobre se se deve

dizer à mulher, ou não, tudo o que se sabe. Eu, que fui sempre amigo de ver amar com

singeleza, muito tempo tive para mi, que a mulher honrada havia de ser hũa boceta, em

que se guardassem os secretos mais intimos de seu marido; e que esse era dos maiores bẽs

do casamẽto, achar hum homem na mulher hum coração fiel, com quem poder repartir dos

cuidados, e ansias, [CG175r] que às vezes não cabem no coração do homem, com a

mesma confiança que se não saissem de seu animo; e que tudo o contrario era hũ amar

fraudulentamẽte.

Isto era o que eu cuidava; mas não he isto o que hoje creo, nem o que aconselharei

a meus amigos; antes me tem mostrado a experiencia, e maior observação, que alcancei

com os maiores annos, e com os novos casos, que contra esse mesmo amor e legalidade,

que à mulher propria se deve, irà aquelle que lhe fiar segredos [CG175v] e paixoẽs à sua

capacidade aventejados.

Pareceme a mi agora isto como quem poem meada grande em dobadoura pequena,

que em lhe puxando pello fio, tras o fio a meada, e a dobadoura, tudo a terra. Senhor meu,

se carregarmos hũa caravella com o lastro de hum galeão, metelaemos no fundo. Os

segredos que se fizerão para os grandes coraçoẽs, fiquemse nelles. E tragase sempre

presente aquelle notavel dito do outro: Nunca me arrependi do que não disse.

[CG176r] Porem, poes em tudo vou pondo dos meus unguentos; saibase que não

julgo as mulheres por de todo indignas de que se lhes confie algũa materia importante. E

assi, se houvessemos de medir pella razão este negar ou fiar segredos, diria: Que as

paixoẽs proprias erão, e saõ, dignas de lhes serem comunicadas. Os pontos da honra, os

misterios do officio, as confianças do Rei, as resoluçoẽs da Republica, estas deve reservar

o casado em seu peito indispensavelmente.

[CG176v] Se eu posso dar regras, melhor regra serà esta: Podese dizer à mulher o

que a mulher pode remediar com suas forças, ou cõ o conselho; o que não pode remediar,

não convem que se lhe diga. Confesso houve, e haverà no mundo mulheres de grãde

coração, donde fora bem empregada toda a confiança; com tudo, isto saõ como huns

baratos, que dà a natureza, quãdo se acha rica e sobeja; que não devemos esperar haja

repartido cõ todas; e a penas podemos crer que com algũas os repartisse.

[CG177r] Hũa das cousas, em que os casados mais necessitão de advertencia, he

nos casamentos dos filhos. V. M. ainda està longe; porem, como nisto fallamos por hũa sò

vez, não serà justo que, havendome lembrado de tanta impertinencia, me esqueça de cousa

tão importante.

Anda hũa pratica entre os homens, que affirma que o tempo do casamento dos

filhos he quando houver melhor ocasião. Esta regra, a meu juizo, he bem falivel; porque,

dado que haja boa ocasião para casar, e mà [CG177v] disposição para casar, em tal caso o

acerto serìa duvidoso; e as mais vezes não serìa. Devese entender isso da ocasião despois

da disposição, e quando a vontade dos filhos estivesse conforme para receber esse estado.

Porque aindaque das conveniencias delle se podia esperar que o proveito trouxesse o

gosto; todavia a vontade, que he nesta demanda o autor ou reo, raras vezes se governa por

essas regras; e de casamentos sem vontade não ha que esperar contentamento.

[CG178r] Seja livre a eleição do estado dos filhos; mas de tal sorte livre, que seus

pais os estejão sempre inclinando a aquelle que lhes convem. Sejão então seus

conselheiros, não seus senhores.

Mas filhas he grandissimo perigo; porque havendo trazido a vaidade humana hũas

leis (certo tiranas) contra a honra, partes, e virtude, e sò em favor do interesse; sucede de

ordinario que nas casas illustres e grandes, donde ha muitas filhas, a penas pode haver dote

com que casar hũa [CG178v] como convem. Ficão logo as outras condenadas a perderem

por força a liberdade, e haverem de tomar estado que não desejão, e violentissimamente

sofrem.

O remedio deste dano he quasi sem remedio: porque seria necessario emendar

primeiro toda a republica, e os maos costumes della. Se nos houvessemos de governar por

exemplos passados, vimos que muitos grandes homens, achandose ricos de filhas, se

fizerão maiores nas decendẽcias, e a ellas não violentàrão. Recolherão na [CG179r]

Religião as que a pedião; casarão as que o desejavão. Neste caso, parece que o pai de

muitas filhas se pode contentar não abaixando, sem que procure subir: que mais

claramente he dizerlhe, poderia casar suas filhas com pessoas que lhas pedissem para se

honrar com taes mulheres; e não querendo, achar para genros homens cõ que se honrasse.

Basta que se não deshonrasse com elles. Isto não he sempre, nem para todos; nem lhes

nego a todos que procurem o melhor; mas amoesto que se acomodem [CG179v] com o

possivel.

Guardàrão esta materia de estado muito notaveis pessoas deste Reino, que pudera

nomear, se não fora aqui escandalosa a comparação: fazendo memoria de algũas

desigualdades, que despois igualou o tempo, e a fortuna.

A valia dos Principes, a grande riqueza, o valor notavel da pessoa nas armas, ou

nas letras, quando seja acõpanhado de limpeza de sangue, realçaõ as qualidades dos

homens de sorte que os fazem merecedores [CG180r] de se poderem aparentar cõ os

maiores; e a estes dão confiança para se deixarem aparentar com elles.

Dizia hum grande Senhor em duas palavras tudo o que aqui ha que dizer: Que com

seus filhos havião de ir rogar seus pais, para serem bem casados; e para suas filhas havião

de ser rogados, para serem bem casadas. E outro, não menos entendido, costumava dizer:

Que as boas partes erão chapins da qualidade, que fazião crecer as pessoas de sorte que

muitas vezes igualavão [CG180v] os pequenos com os grandes.

Faltame aqui por advertir algũa cousa a hũas certas mãis, e não sei se a alguns pais,

que dão seus geitos às filhas paraque se casem; particularmente a aquellas de bom

frontispicio: largandolhes para esse effeito hum pouco a redea do recato.

Digo de mi que sou austerissimo nesta materia. Se a houvesse de julgar cõforme

meu natural, não acabàra nunca de condenalla. Vemos comtudo pello contrario tantos

[CG181r] exemplos, que parece tẽ jà tirado o horror que nella achàrão outros. Fora de

Espanha he tão ordinaria esta arte (em Flandes especialmente) que os galanteos saõ

permitidos, e devidos, e chega a tanto, que os pais, e mãis vem a ser os mestres das filhas,

a quem aconselhão os termos porque se devem haver com seus amantes até os obrigar a

que lhes sejão maridos.

De mà vontade direi (mas em fim o digo) que se pode dissimular a hũa filha,

quando se saiba he bem vista [CG181v] de tal pessoa, que lhe estarà bem para marido.

Mas devem ser taes os modos porque esta dissimulação possa ser licita, que tenho o

achallos por impossivel. Aconselharà neste caso o animo de cada hum.

Vem agora aqui o casar a furto, que chamamos, e contra a vontade dos pais. Isto he

em duas maneiras: em acção, ou em paixão; em acção, casãdo o filho; em paixão, sendo a

filha casada.

Ao homem que seu filho se casasse bem, aindaque contra vontade de seus pais da

[CG182r] mulher com que casasse, aconselhàra que o sofresse, que de secreto o ajudasse,

e se não desse por contente nem descontente da acção de aquelle filhò. Receitaria neste

caso hũa ausencia, que he cousa utilissima para negar ao juizo publico a tristeza ou alegria,

quãdo dellas não convẽ testemunho. E se fosse antes do sucesso, seria maior prudencia.

Ao homem que sua filha lhe fosse levada para casar com o filho alheo, se assi fosse

que nisso não perdesse, aconselharia que se fosse apos [CG182v] della, e se vencesse no

pesar que lhe daria essa desobediencia; que nos mais he teima e raiva, e nos menos

verdadeira dor.

Destas abominaçoẽs entre os pais dos que assi se casaõ, nacem de ordinario

enemizades, brigas, contendas; e mais de ordinario publicos ditos, remoques, e deshonras;

desenterrãose avòs, publicase o que se não sabia, vão os escandalos de monte a monte;

então no cabo de todos seus defeitos, verdadeiros ou mentirosos, virẽ à praça, heilos

amigos.

[CG183r] O casar bem dos filhos pode absolvellos da culpa de ser a desgosto dos

pais; que obrigados erão a ter gosto do aumento dos filhos. Finalmente o modo sempre era

bẽ que fora bom; mas là diz hũ rifaõ Castelhano: Hagase el milagro, hagalo el diablo. O

casar mal e a desgosto dos pais, he o ultimo descõcerto, e o que mais vezes se vè. Tem sò

o remedio na perservação; porque para o erro não ha mezinha. Advirtãose assi os pais de

darẽ com tempo estado aos filhos; e pello menos, quando não possa ser [CG183v] com a

brevidade que se deseja, mostremlhes que disso se trata. Com esta esperança os

entretenhão.

Acontece haver homẽs, que por se gozarem de sua casa inteira, ouvem mal, e

respodẽ pior aos casamẽtos dos filhos; e não poucas mulheres hà, que por não verem a

nora enfeitada junto a si, ou a filha descuberta, e proximo o perigo de serem avòs antes de

tempo, enxotão de casa as boas ocasioẽs das bodas dos filhos, que dão em ser tão

melindrosas e descõfiadas, que poucas vezes tornão [CG184r] donde hũa vez as

desprezàrão. Velese de tão indignos defeitos o marido sisudo, e a mulher honrada Queirão

para os filhos, quando sejão pais, aquillo que, quãdo erão filhos, quiserão para si.

Não he pouco, nem pouco proluxo, o que se tem discursado. Cada ponto quisera ja

que fora o ultimo; mas com licença de V. M. não me haverei de despedir sem fallar em

sogros e sogras, noras e genros, cunhados e cunhadas.

Estes soem ser hũs malestreados parentescos. Certo [CG184v] que ja me puz a

filosofar comigo, sómente, sobre a causa desta desavença; e outra não posso achar, salvo

aquella que em outra differente causa deu o mestre dos politicos, dizẽdo: Que aos grãdes

erão agradaveis as obrigaçoẽs, em quanto as podião pagar; mas como crecião mais, ainda

em vez de amor, causavão odio.

Julgo que he tamanha a divida que se tem aos sogros, e estes aos genros, huns a

outros os cunhados, tanto o amor que se deve a pessoas tão conjuntas, que porque se

[CG185r] não pode pagar, se converte em aborrecimento.

Bem o mostra o estilo; que nos ensina, vendo chamar pais aos sogros, filhos aos

gẽros, aos cunhados irmãos. Quanto he aqui, assaz està expressa a obrigação; mas assaz

mais expressa a ingratidão destes e aquelles, pelloque estamos vendo.

Queixavase hũa senhora viuva da grande amizade que tinha hum seu filho com

certo fidalgo, em que a ella parecia não ganhava elle muito; de que recebia desgosto.

Entroulhe por casa hum [CG185v] criado pedindo alviçaras; e perguntandolhe de que?

respondeo: De que meu senhor quebrou ja cõ fulano: porque lhe casa com hũa filha.

Como não me encarreguei de dar a razão, sò procurarei dar o remedio para que

nunca tal abuso se pratique.

Digame V. M. Se hum homem lavrasse com grandes despezas hũa quinta, durasse

nesta obra muitos annos, gastasse nella seu tẽpo e sua fazenda, lhe saisse em tudo perfeita,

e logo, [CG186r] ella acabada, se fosse a casa de V. M. e lhe desse aquella propriedade,

lhe vinculasse outras, e de tudo o metesse de posse, que faria V. M.? Que digo eu V. M.?

Que faria a mais ingrata pessoa do mundo, senão venerar, amar, regalar, e servir a aquelle

homem, confessarse por seu escravo, por seu devedor, por seu perpetuo amigo?

Poes que faz menos, ou que não merece mais, aquelle que cria por tantos annos a

filha, a doutrina, guarda, e aperfeiçoa; e despois [CG186v] repartindo cõ ella seus bens, e

entregando ametade da sua alma, mete todo este tesouro na mão a outro homem, a quem

por ventura antes nada devia?

Trarei para exemplo de bons sogros o que sucedeo quasi entre nòs, e quasi em

nossos tempos. E foi, que havendo hum homem rico casado hũa sua filha com hũ fidalgo

honrado, e querendo casar outra com outro, em nada maior que o primeiro; este segundo

não quis fazer o casamento sem que lhe dessẽ em dote mais dez [CG187r] mil cruzados do

que ao outro havia dado; e como o sogro dissesse, que teria grande causa de queixa o

primeiro genro, dando elle mais ao segundo, e lhe não valesse esta razão para effeituar o

ultimo casamento; houve emfim de cõvir nelle, e effeìtuallo, com tal galantaria e primor,

que no proprio dia que assinou as escrituras ao segundo genro, mandou outros dez mil

cruzados ao primeiro, dizendolhe, que não queria que houvesse alguem que cuidasse o

estimava a elle menos.

[CG187v] Por certo que não vi, nem ouvi, cousa mais galante, e honrada. E porque

se veja que tambem ha genros que o sabem ser como devem, contarei a V. M. outro caso

que bem o prova.

Havia, não ha muitos annos, em certo lugar hũa pessoa riquissima, com hũa sò

filha herdeira para casar; affeiçoouse sua mãi a hũ seu natural de boa qualidade, mas não

muita fazenda; mandoulhe dizer que estava tão satisfeita de sua pessoa, que lhe queria dar

as melhores duas peças que tinha [CG188r] em sua casa; quaes erão, sua filha por mulher,

e cõ ella tudo quanto tinha. Respondeolhe o genro, que não seria razão que a quẽ tanto lhe

queria, e a quem elle devia tanto, despojasse de todos os seus bens em hũa sò hora; que a

filha receberia por esposa, com condição que lhe não havia de dar mais da ametade do que

lhe prometia.

Bem vejo que estes exẽplos saõ muito bons para escritos, mas não são taes para

praticados; e disso mesmo he a minha queixa. Em [CG188v] fim eu satisfaço a minha

obrigação, mostrãdo como não he impossivel esta devida amizade. Malditos sejão os

interesses! que elles tem a culpa de que ella não prevaleça; porque de ordinario acontece

que aquelles queixumes de sogros e genros, tudo funda em sim me deu, não me deu.

Grande descanso viera ao mundo, se todos nos contentàramos cõ o possivel; mas isto he

querer outro mundo.

Tenho por boa a amizade e a companhia dos cunhados, quando elles sejão

[CG189r] para amigos e companheiros; quando o não sejão nem por isso os excluo do

trato e conversação. Devese neste caso fazer distinção dos maos aos ignorantes. Aindaque

o cunhado não seja aguia, se deve admitir; e antes a estes com maior causa, porque os

outros se lhe não atrevão. Mas aindaque seja aguia aquelle que mal procede, se deve

desviar com todo o cuidado; se quer porque não pareça que em suas obras se consente.

Ja ouvi murmurar, e não sei certo se murmurei [CG189v] eu tambem, de alguns

que casando se apartão dos amigos que tinhão antes, e de todo se entregão à parentela de

suas mulheres. Isto he condenavel; e se vè mais certamente naquelles que a ellas

cegamente se lhe entregão.

Andava hũ noivo sempre entre dous cunhados seus, que nem largava, nem o

largavão. Passava às vezes por hum seu amigo do tempo de solteiro, a quem tratava com

estranheza. Elle queixoso lhe disse hum dia: Pesame, senhor fulano, que [CG190r] a

senhora D. fulana tenha tão pouca confiança da fé de V. M. que o não deixe andar pella

cidade sem familiares.

Tambem não serà razão que nos passe por alto a pratica de hũ accidente, não

poucas vezes sucedido entre casados; como agora digamos huns descontentamentos, ou

arrufos, que passaõ com nome de escandalos entre a mulher e seus parentes, agora sejão

do marido, agora seus proprios.

Tudo isto costuma proceder de leves causas. E como [CG190v] ordinariamente as

vinganças das mulheres não saõ grandes, por isso saõ mais as queixas; que dão causa a

desconfianças, e ruins vontades, com grande cargo do primor, e às vezes da conciencia;

porque debaixo de hum, eu sou sua amiga, està enroscado hum odio como hũa serpente.

Ha homens que tem por grande siso o não terem parte nestas contendas. Tal não

aprovo; porque, alem de que ao marido por sua dignidade toca a justificação das acçoens

de sua mulher, [CG191r] ou a emenda, tambem lhe pertence a direcção dellas; e mais na

sua amizade, ou inimizade: assi como ao Rei pertence a guerra ou paz feita por seu

vassallo. Fora de parecer que nos casos meudos (que estes saõ os mais) hum pouco se

dissimulàra. Porque, senhor N. ahi ha hum desconcertar de braço ou pé, com que he força

acudir ao Algebrista e outro que quanto mais bolem com elle mais o desmanchão. He

carne quebrada, que ella por si mesmo solda quando lhe parece.

[CG191v] Quando a duvida passasse muito adiante entre a mulher e seus parentes e

parentas, e pudesse ser publica, e escandalosa, ou assi o ameaçasse; obrigado seria o

marido a interporse em meo e acordar tudo.

Isto se faz melhor, tratandose com o proprio marido da parenta (se o tem) ou ja

ofẽdida, ou ja agressora. E aindaque seja levantandolhe hum par de testemunhos a ambas

as agravadas, e dizendo a cada hũa que a outra a roga (cousa de que ellas muito se

satisfazem) [CG192r] he conveniente acomodallas, e fazellas amigas.

Mulheres ha, e não poucas, que nisto saõ tenazes, e durissimas de reduzir de seus

pontos ou caprichos. Sem embargo, razão he que os maridos as encaminhem à razão, e

lhes fação certo que ellas he bem que sigão o seu parecer delles; poes à sua conta delles

està sua honra e credito dellas.

Quando, feita a diligencia prudente e necessaria, não bastasse, tampouco serei de

opinião que hum homem esteja mal com sua mulher [CG192v] porque ella não està bem

com a outra.

Ora, senhor N. quando comecei a escrever a V. M. foi com animo de não passar de

hũa carta; e achome agora com hum processo escrito. Eu de meu natural sou miudo, e

proluxo; o estar sò, e a melancolia, que de si he cuidadosa, me fizerão armar tão largas

redes para colher dentro dellas todos os casos, e todos os avisos. Praza a Deos que nos não

hajamos cãçado de balde; como seria, se no cabo de V. M. haver ouvido [CG193r] muito,

e de haver eu dito muito, de aqui não tirassemos algum proveito.

Rematarei com as generalidades que, a meu parecer, avultão bem a grandeza das

casas: isto como conclusaõ do muito que nestes pontos havia que dizer.

Bem vejo eu que se chegar a ser lido de algũa casada, ou casado (e mais ainda dos

que estiverem para o ser) acharaõ medonho este caminho, por donde pretendo guiallos à

prometida casa do descanso. Porque dirão elles o estão vendo cheo de [CG193v] abrolhos,

e cautelas, que apenas parece poderà passallo a consideração, quanto mais a obra.

Dirlhehei a todas, que nesta Carta sucede o que nas cartas de marear, que quem as

vir assi cruzadas de linhas, e riscos, que se comem huns aos outros, parece que de tal

confusaõ não pode haver quem se desempece; e na verdade não he assi; porque aquellas

linhas todas são hũas proprias, e apenas passaõ de quatro principaes; mas para fazer mais

facil o nosso uso, se multiplicão.

[CG194r] Quem com bom juizo considerar esta maquina de cousas, as verà tão

semelhantes, atadas, e dependentes hũas de outras, que não lhe pareceraõ muitas, mas hũa

sò. E porque, como vemos, a corda de poucos fios se quebra facilmente, se com ella

apertão muito; por isso he necessario tecer, e torcer de muitos avisos, e remedios esta

corda, de que està pendurada a honra, vida, e salvação dos casados; porque com as forças

do vicio se nos não rompa. E como todas ellas [CG194v] costumão quebrar pello mais

fraco, e esta fraqueza he propria da mulher; por essa mesma razão convem fortificalla de

sorte, com tanta cautela, e arte, que por mais que tire a ocasião, sempre se conserve sã e

inteira.

Mas se comtudo parecer às mulheres excessivamente rigurosa esta minha doutrina;

certeficolhes que meu animo não foi esse, senão encaminhar tudo à sua estimação, regalo,

e serviço.

E porque assi se veja [CG195r] mais certamente, haja quem queira de mi outra

Carta para as casadas; e então se verà quão bem avogo por sua parte, quando pello que aos

maridos deixo dito as mulheres se não dem por satisfeitas.

Senhor meu. Casa limpa. Mesa asseada. Prato honesto. Servir quedo. Criados bons.

Hum que os mande, Paga certa. Escravos poucos. Coche a ponto. Cavallo gordo. Prata

muita. Ouro o menos. Joias que se não peção. Dinheiro o que se possa. Alfaias todas.

Armaçoẽs [CG195v] muitas. Pinturas as melhores. Livros algũs. Armas que não faltem.

Casas proprias. Quinta pequena. Missa em casa. Esmola sempre. Poucos vizinhos. Filhos

sem mimo. Ordem em tudo. Mulher honrada. Marido Cristão; he boa vida, e boa morte.

Torre velha em 5. de Março 1650.

D. Francisco Manuel.   COPYRIGHT AUTOR DO TEXTO.

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