Maria Thereza David João*
Afonso Botelho e a política portuguesa de
povoamento no Brasil meridional
Resumo
Verifica-se que, na segunda metade do século XVIII, em razão de uma transformação no sistema colonial
português, devida a uma nova organização administrativa do estado, levada a cabo pelo Marquês de Pombal e
encabeçada por D. José, o objetivo português passou a ser o de garantir a posse de seus territórios, via projeto
político, e assim transformar toda a sua população em súditos do rei. Esta política requeria a conquista e
efetivação da posse dos territórios da América Portuguesa, conjugando ações diplomáticas, militares e de cunho
econômico, atendendo a ordens provenientes diretamente da Coroa Portuguesa. Durante os anos de 1768 e 1772,
Afonso Botelho de Sampaio e Souza, ajudante de ordens do governador da capitania de São Paulo, empreendeu
uma série de expedições que visavam reconhecer e explorar os sertões do rio Tibagi. Os relatos dessas viagens,
redigidos pelo próprio Afonso Botelho, permitem o estudo da composição dessas expedições, importantes para
que se possa, em primeiro lugar, reconhecer qual o papel da comunidade curitibana nesses empreendimentos. O
estudo das expedições também permite uma compreensão sobre a política portuguesa de povoamento durante
o século XVIII. A atuação de Afonso Botelho e a do governador da capitania de São Paulo, D. Luís Antônio de
Souza Botelho, são importantes na medida em que demonstram como a política de povoamento portuguesa se
deu localmente, tendo em vista as particularidades do sul do Brasil, como a ameaça espanhola no Prata. Ainda,
a partir do estudo das expedições consegue-se perceber quais os efeitos destas expedições para desenvolvimento
da região, que mais tarde veio a se tornar o estado do Paraná.
Palavras-chave: Afonso Botelho; Tibagi; expedições militares.
Abstract
In the second half of the eighteenth century, because of a transformation in the Portuguese colonial policy,
which counted with king D. Jose and Marquês de Pombal, the portuguese attention turned to assure possession
of its territory and then, transform its entire population into king's subject. This policy required conquest and
efetivation of possession of the Portuguese America lands by diplomatic, military and economic acts instructed
directly from the Portuguese Crown. Between the years of 1768 and 1772, Afonso Botelho de Sampaio e Souza,
who worked for the governor of São Paulo captaincy, realized several expeditions in order to recognize and
explore the backwoods of rio Tibagi, in the south of Brazil. The reports of the voyages, written by Afonso
Botelho himself, allows the study of the composition of these expeditions, which are important to, in the first
place, realize what was the role of Curitiba's community in those undertakings. Expedition's study also allows
a comprehension of the portuguese colonial policy during eighteenth century. Afonso Botelho and São Paulo
capitaincy's governor performances in this policy are valuable because they show how it was made locally,
attending the particularities of brazilian south, like the war with the spanishes in the Prata. These expeditions
also left conscquences to development of the territory, which, years later, became the state of Paraná.
Key-words: Afonso Botelho; Tibagi; military expeditions.
Graduanda do curso de História/UFPR. Bolsista de Iniciação Cientifica CNPq. Integrante do CEDOPE • Centro de Documentação e
Pesquisa de História dos Domínios Portugueses • UFPr.
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Afonso Botelho e a política portuguesa de
povoamento no Brasil meridional
Maria Thereza David João
Durante a segunda metade do século XVIII verifica-se uma mudança na política
portuguesa de povoamento e na maneira com que a Coroa passou a olhar suas colônias. O objetivo português,
nesse momento, consistia em garantir a posse de seus territórios, via projeto político, e assim transformar
toda a sua população em súditos do rei. Nesse contexto, foram realizadas expedições aos sertões do Tibagi
(1768-1772), na região do atual Paraná, com o fim explorar o território e lançar as bases para a sua ocupação.
O responsável direto por esse empreendimento foi o ajudante de ordens do governador da capitania de São
Paulo, Afonso Botelho de Sampaio e Souza. Através de seus relatórios, que relatavam o "sucesso" das
expedições, é possível analisar quais os efeitos produzidos por essas expedições, bem como qual o papel de
Afonso Botelho na execução da política de povoamento portuguesa.
A transformação no sistema colonial português ocorrida a partir da segunda metade do século XVIII
é devida a uma nova organização administrativa do estado, levada a cabo pelo marquês de Pombal e
encabeçada por D. José I, que reinou entre 1750 e 1777. Estabeleceu-se, desta forma, uma política mais
coesa em relação aos domínios ultramarinos, culminando, inclusive, com a nomeação de Mendonça Furtado,
irmão de Pombal, como secretário de Estado da Marinha e dos Domínios Ultramarinos (1760-1769).
É possível dizer que o modelo pombalino se centrou especialmente nas preocupações com a expansão
territorial, urbanização e recuperação econômica. De maneira mais particular no sul do Brasil, a militarização
também foi característica extremamente marcante, tendo em vista o período coincidir com a ameaça dos
espanhóis no Prata (o período coincide com o da Guerra dos Sete Anos). Especialmente após o Tratado de
El Pardo, em 1761, o qual revogava as linhas fronteiriças estabelecidas pelo Tratado de Madrid, a Coroa
necessitou da implementação de uma política capaz de salvaguardar seus territórios.
A questão espanhola era bastante presente já no início do século XVIII, com a Guerra de Sucessão na
Espanha e a ascensão de Filipe V, da dinastia francesa dos Bourbons, ao trono espanhol. Este fator gerou
uma forte aliança franco-espanhola, o que fez com que Portugal procurasse apoio dos ingleses, rendendo
hostilidades espanholas na colônia de Sacramento e duas invasões francesas no Rio de Janeiro1. Logo,
percebe-se a importância tomada pela região sul no curso deste período.
Enquanto a política pombalina sinaliza os contornos gerais tomados pela atuação portuguesa no
povoamento das terras do Ultramar, é pela atuação específica de cada governador que é possível perceber
as particularidades dessa política e seus efeitos de região para região. A política empreendida na capitania
de São Paulo pode ser bem observada pela atuação de D. Luis Antônio de Souza, o Morgado de Mateus.
Após um período de subordinação ao Rio de Janeiro (1748-1765), a capitania de São Paulo foi
restaurada. Segundo Bellotto, a restauração estava ligada à revalorização das áreas coloniais, contra a
dispersão demográfica e da lavoura, e também ao papel militar no esquema de ofensiva no Prata. Não se
pode deixar de perceber que, igualmente, a região de São Paulo serviria como uma espécie de "territóriotampão"
entre a região hispano-americana do Prata e a área que abarcava Minas e o Rio de Janeiro.
E importante salientar que, com a restauração da autonomia de São Paulo, pretendia-se uma participação
efetiva no combate ao espanhol e a criação de novos proventos à Coroa através de uma dinamização da
economia. Nas zonas mineiras e ao sul ameaçado pelos espanhóis concentrava-se a ação da metrópole2, que
também empreendia ações de povoamento no então Estado do Grão-Pará e Maranhão. Ainda, procuravase
a unificação da ação bélica em todo o sul, sob o comando de Gomes Freire de Andrade. São Paulo era
estrategicamente importante pois, pela região, seria possível fazer frente à belicosidade no sul bem como
defender as fronteiras do oeste, garantindo, assim, os domínios portugueses.
A ação de Afonso Botelho, verificada entre 1768 e 1772, conta com sete expedições oficiais que
exploraram os sertões demarcados, ao sul, pelo Rio Iguaçu, e, a oeste, pelo Rio Paraná, a partir de Curitiba3.
A principal instrução para os comandantes dessas expedições era a de reconhecer e explorar um território
até então apenas adivinhado. Num segundo momento, buscar-se-ia a fixação de moradores. Longe de tal
empreendimento constituir-se em ação particular de Afonso Botelho, ou mesmo do governador de São
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Paulo, essas expedições estavam respaldadas por instruções originadas desde a metrópole.
As expedições oficiais são as seguintes4:
• a primeira data de cinco de dezembro de 1768, comandada por Domingos Lopes Cascaes, e parte do Rio
do Registro (Iguaçu).
• a segunda expedição é do dia vinte de junho de 1769, tendo como comandante Estevão Ribeiro Bayão, e
parte do Porto de S. Bento no rio Tibagi.
• a terceira inicia-se com Francisco Nunes a doze de agosto de 1769, também no Porto de S. Bento (mais
tarde substituído por Francisco Lopes da Silveira).
• a quarta expedição é de vinte e oito de agosto de 1769, sob o comando de Bruno da Costa Filgueira, e
parte do Rio do Registro.
• a quinta, de dezesseis de outubro de 1769, foi comandada por Antônio da Silveira Peixoto, partindo do
Porto de N. Sra. da Conceição do Caiacanga, também no rio do Registro.
• a sexta parte do Carrapato (na serra de São Luís do Purunã), no dia 26 de julho de 1770, sob o comando
de Francisco Martins Lustosa, com a missão de explorar os campos de Guarapuava.
• a última expedição parte em 09 de novembro de 1711, tendo o próprio Afonso Botelho em seu comando,
e segue também em direção aos campos de Guarapuava.
Desta iniciativa, foram confeccionados relatos de viagens, os quais objetivavam dar conta do sucesso
das expedições ao governador de São Paulo, D. Luis Antônio de Souza, o Morgado de Mateus. Como
estas expedições se configuravam em ações cujas diretrizes se faziam a partir da Coroa Portuguesa, são
encontradas também cartas do Marquês de Pombal, então Conde de Oeiras, e do próprio Morgado de
Mateus tendo em vista a orientação de diligências a serem cumpridas por estas expedições na região.
Quando da leitura dos relatos das expedições, nota-se "uma crescente presença de oficiais régios
controlando a administração e as questões militares nos domínios portugueses da América. As antigas
capitanias hereditárias passaram a ser tomadas pelo rei (...) de tal forma que, já na metade do século XVIII
todo o território brasileiro encontrava-se sob o controle direto de oficiais da administração portuguesa"5.
No sul, e mais especificamente na capitania de São Paulo, cuja autonomia foi restaurada em 1765, esta
política esteve intrinsecamente ligada a uma preocupação com o combate ao espanhol e a criação de novos
proventos à Coroa através de uma dinamização da economia.
Para tanto, o primeiro grande projeto de D. Luis foi o recenseamento da população de São Paulo
para conhecimento do estado militar da capitania, feito a mando de Pombal, conforme se observa em carta
por ele enviada em 2 de agosto de 1765: "em segundo lugar consiste o estado militar desta capitania em
algumas companhias de ordenança dispersas, em quase em muitas partes não compreendem toda a gente,
dos povos nem tem aquela regularidade que tem as ordenanças do reino e para remediar isto, escrevi a
todos os capitães mores para que fizessem listas exatas de toda a gente dos seus distritos mandando lhe um
exemplar para que se governassem por ele" 6.
A preocupação marcial foi marcante nas ações na capitania de São Paulo, dado o estado de beligerância
entre portugueses e espanhóis. Assim sendo, uma importante observação deve ser feita a este respeito, que
provém da leitura dos relatórios de Afonso Botelho. D. Luis apontava para o grande perigo que representavam
os castelhanos aos domínios portugueses, sinalizando o avanço espanhol em território luso. O interessante
é observar que, apesar da expectativa em relação aos espanhóis, nos relatos redigidos por Afonso Botelho
há apenas uma ocasião em que se observa realmente o encontro entre portugueses e espanhóis, em todo
o período que cobre 1768 a 1772. Trata-se da prisão do Capitão Silveira Peixoto, comandante da quinta
expedição aos sertões do Tibagi, que esteve encarcerado em Buenos Aires por cerca de sete anos. Fora isto,
não há sequer breve menção à presença espanhola.
Isto significa que, tendo em vista o território do atual Paraná, o avanço espanhol era um perigo apenas
temido. No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina a presença espanhola constituía-se em fator muito mais
preocupante, pois estes territórios foram efetivamente invadidos pelos castelhanos.
Mesmo que a questão espanhola não tenha tomado os contornos de um confronto direto com os
portugueses, sua importância é fundamental em toda a região sul neste momento, e corroborou com a
constituição do território, tendo em vista a preocupação em se estabelecer fronteiras e garantir a posse do
território antes que os castelhanos avançassem. Vigorava na época o princípio do uti possidetis\ ou seja,
quem povoasse antes o território tinha a sua posse.
O temor português, portanto, era muito mais relacionado ao medo da perda de territórios - cujo
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trabalho de proteção das fronteiras ao norte estava a cargo de Mendonça Furtado - que propriamente da
possibilidade de um confronto bélico na região. A preocupação em manter os territórios ao sul é expressa por
Martinho de Mello e Castro em carta a D. Luís Antônio de Souza, parte do Plano para sustentar a posse da
parte meridional da América Portuguesa1, datado do ano de 1772: "Em primeiro lugar: que sua majestade
estima muito mais a perda de uma só légua de terreno na parte meridional da América Portuguesa, que
cinqüenta léguas de sertão descobertas no interior dessa capitania. Em segundo lugar: que ainda que os ditos
descobrimentos do sertão fossem de um inestimável valor, a todo tempo se podiam, e podem prosseguir. E
que a parte meridional da América Portuguesa uma vez perdida, nunca mais se poderá recuperar".
Observe-se, ainda, trecho das Instruções sobre a expedição que partiu do Porto de São Bento sob
o comando de Estevão Bayão, redigida por Afonso Botelho, no ano de 1769, e que se refere, portanto,
a diligências a serem cumpridas pela segunda expedição aos sertões: "Em todo lugar que o capitão tiver
alguma demora fará roças para bastante planta, cuja se fará em toda ocasião que houver, e a todos os campos
que encontrar porá fogo, e sempre na entrada e saída das matas fará cortar árvores grandes, e em outras
fará cruzes e descreverá alguns caracteres nos troncos das árvores e em pedras, que digam « V i v a El-Rei
de Portugal» e outras coisas semelhantes, que em todo tempo se conheça chegou por aí a expedição: nas
barras dos rios e lugares mais notáveis deixarão os ditos caracteres, e no roteiro virão marcados para saber
onde ficam".8
Estes trechos demonstram a preocupação em delimitar o território que estava sendo explorado, face ao
medo da perda de domínios, marcando as fronteiras do Império Português.
Obviamente que somente a inscrição em pedras e árvores não iria per si assegurar a posse do território,
por isso a necessidade do estabelecimento de sentinelas nas regiões que fossem sendo exploradas. A
constituição das roças também é importante nesse mesmo sentido, pois permitia a fixação da população no
território.
Na medida em que o território ia sendo marcado com insígnias que faziam referência ao rei de Portugal,
automaticamente se fazia ligação à posse do território, que era a preocupação principal tendo em vista as
expedições do Tibagi. A posse do território não implica apenas na delimitação do mesmo, mas também que
sejam povoados, razão principal para que fossem constituídas roças ao longo dos caminhos - sem esquecer
que serviam também para alimentação das pessoas que se encontravam nos sertões. Não adiantaria as
expedições em questão se configurarem meramente como exploratórias, visto que isto já havia sido feito
anteriormente. Essas ações dizem respeito à chamada "expansão espontânea" da população, conforme
observa Brasil Pinheiro Machado9.
A constituição de roças, ao possibilitar que pessoas se fixassem em um determinado território em razão
deste plantio, ajudava a afirmar a região como domínio luso. A comunicação do território, feita através dos
caminhos abertos pelas expedições, permitiu que as pessoas que se encontravam ali partilhassem de uma
certa identidade, que diz respeito, em primeiro lugar, à obediência ao rei português. Em segundo lugar, a
ligação do território por objetivos comuns, como a troca de gêneros alimentícios, possibilitou a prosperidade
da região, que foi se autonomizando até tomar os contornos do atual estado do Paraná.
A organização de pousos e roças, além de promover a fixação das pessoas na região, tinha como
objetivo mais amplo assegurar uma relativa autonomia da região, através do desenvolvimento comercial.
Isto permitiria uma redução dos gastos com a fixação os moradores, já que eles mesmos poderiam, então, ser
capazes de prover a própria subsistência e, através do comércio com as regiões próximas, gerar excedentes
capazes de movimentar a economia local, importante em um momento em que Portugal passava por certas
dificuldades econômicas. Por isso dizer que as expedições "implicavam em um empreendimento de grande
porte, e observou-se, por exemplo, que a presença das expedições nas imediações de Curitiba fez surgir um
novo mercado consumidor até então inexistente em uma vila que estava dando seus primeiros passos em
direção à consolidação de uma posição forte na região"1".
Isto é importante porque lugares como a Capela do Tamanduá e Paranaguá, produtoras de gêneros
enviados às expedições, também prosperaram, e com o desenvolvimento de novas regiões, promoveu-se
o comércio e a ligação do território, o que provocou uma unidade que culminou, enfim, na constituição de
um território paranaense.
Ainda, como observa Sérgio Buarque de Holanda a respeito dos caminhos abertos, em especial o do
Viamão, é possível concluir que "permitindo contato mais assíduo com os castelhanos, esse caminho iria
influir decisivamente, não só na vida econômica, mas até nos costumes do povo"11. Isso porque o contato
produzido pela abertura de estradas levou à introdução de certos costumes da região, que logo se tomariam
marcas registradas da população.
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Sérgio Buarque de Holanda ainda afirma a importância do contato com o indígena nos movimentos
de abertura de caminhos e de estabelecimento de fronteiras no Brasil. Diz o autor que "essa destreza com
que sabiam conduzir-se os naturais da terra, mesmo em sítios ínvios, herdaram-na os velhos sertanistas
e guardam-na até hoje nossos roceiros"12, como um elogio à mistura de costumes brancos e indígenas.
No caso do sul do Brasil, especialmente no tocante às expedições do Tibagi, é possível duvidar de uma
convivência harmoniosa entre índios e exploradores, conforme sugere Sérgio Buarque de Holanda. Indo
mais além, é possível até mesmo duvidar de uma convivência entre brancos e índios na região. Durante o
tempo em que foram realizadas as expedições, aparece apenas um relato substancioso a respeito do contato
com os indígenas, que representa mais uma relação de hostilidade que propriamente de harmonia13. Estes
relatos indicam que, ao contrário do que ocorria nas outras regiões do Brasil, a questão indígena não era
muito presente. E importante observar que os povos indígenas eram uma preocupação do Marquês de
Pombal, pois o mesmo intentava em fazê-los súditos do rei, a fim de obter maiores proventos. Dessa forma,
tem-se aí mais uma particularidade da aplicação da política de povoamento no sul do Brasil, que não teve
o índio como característica, diferenciando-se do restante do Brasil.
Para o estudo a respeito dos contornos da política portuguesa de povoamento nesta segunda metade
do século XVIII, as diversas Instruções redigidas por Afonso Botelho são documentos muito ricos em
informações Trata-se de orientações redigidas pelo tenente-coronel, o qual, pelo poder que lhe foi investido,
orientava a execução das expedições conforme as condições do território. Estas instruções tinham um caráter
específico para a região visada, o que é importante para perceber como se dava a política portuguesa em nível
local. O Morgado de Mateus, a partir de ordens advindas do Marquês de Pombal, instruía genericamente
os capitães das expedições através de Afonso Botelho, e ficava a cargo destes a execução específica destes
empreendimentos. É possível perceber então, dois níveis de atuação das expedições: um diz respeito às
instruções do Marquês de Pombal repassadas a Afonso Botelho pelo Morgado de Mateus, bem como suas
orientações específicas ao contexto do sul. Esta ação refere-se aos aspectos formais da política portuguesa,
tal qual deveria ser empreendida. O outro nível de atuação, levado a cabo por Afonso Botelho e pelos
capitães das expedições, mostra como a execução da política portuguesa de povoamento foi posta em
prática, tendo em vista não só as particularidades do sul, como também a realidade dos caminhos.
É importante frisar que cada qual respondia pessoalmente por suas ações. Mas o interessante é perceber
que era dada autonomia aos chefes das expedições para que agissem como achassem melhor tendo em vista
as condições encontradas, e é justamente essa atuação em nível local que diferencia a política empreendida
no sul da política de povoamento empreendida em outras capitanias do Brasil.
Contudo, verifica-se uma enorme dificuldade em recrutar a população para estes empreendimentos.
Segundo apresenta Belloto,14 havia um grande medo dos indígenas, e então se fez necessário motivar esta
população a adentrar nos sertões com a concessão de alguns benefícios como, por exemplo, a liberação da
área para a mineração.
Havia uma preocupação com a contenção de custos, já que as expedições representavam grande
investimento e a Coroa não podia arcar com as custas. Uma estratégia, então, foi recrutar pessoas locais que
financiassem as expedições em troca de mercês, conforme foi orientado o Morgado de Mateus pelo Marquês
de Pombal, em carta de 2 de agosto de 1765 : "(...) lhe ofereci passar a patente de capitão de auxiliares
pardos com graduação de tenente de infantaria, se ele me juntasse cem homens armados, e fardados a sua
custa, de que ele ficou muito satisfeito"15, e assim possibilitar a organização das expedições. Note-se que
as pessoas recrutadas para as expedições não eram militares, mas sim figuras influentes na região que,
interessados no status que uma patente militar poderia lhes oferecer, tomaram parte no empreendimento.
Observando a documentação, percebe-se um afluxo muito grande de pessoas da vila de Curitiba e regiões
próximas, consolidando sua posição de núcleo irradiador de população. Contudo, ainda se observa uma
presença maciça de pessoas advindas de São Paulo, especialmente da região da Cananéia.
Em relação a essas expedições do Tibagi, observa-se que deixaram conseqüências permanentes na
região. Nesse sentido se faz importante transcrever um trecho da Memória sobre o descobrimento e colônia
de Guarapuava, do Padre Francisco Chagas Lima, datada do ano de 1809, portanto, quase quarenta anos
após a atuação de Botelho: "A primeira conquista ou posse, que dos ditos se fez, foi no tempo do Capitão
General D. Luiz de Souza, em execução às instruções que recebeu do marquês de Pombal, o qual conheceu
que os descobertos para as partes do Rio Paraná, além dos interesses que podiam dar ao estado, facilitando a
comunicação com o Paraguai e suas adjacências, vigiariam as fronteiras, estabelecendo aí algumas colônias
(...)".16 É notória ainda a existência de leis, neste mesmo período, que conclamam ao povoamento da região,
dando continuidade ao trabalho de Afonso Botelho, que se dedicou à exploração dos territórios e lançou as
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bases para que se pudesse estabelecer uma população no local, através da construção de roças e arraiais no
meio dos caminhos.
Conclusão
Isto posto, é possível dizer que, a partir das diretrizes do Marquês de Pombal a D. Luís Antonio de
Souza e da ação de Afonso Botelho, é possível verificar a aplicação desta política de povoamento em nível
local, bem como quais os efeitos por ela produzidos.
Verificou-se, por exemplo, que a consolidação de Curitiba como núcleo irradiador de população
e a expansão desta mesma população, iniciaram um processo que contribuiu para a formação de uma
comunidade regional, que mais tarde veio a se tornar o estado do Paraná.
Essa 'irradiação', informada por Brasil Pinheiro Machado, manifestou-se de maneira mais explícita a
partir de 1765, com a reinstalação do governo-geral da capitania de São Paulo e, em decorrência disso, da
presença de Afonso Botelho em Curitiba.
Além da questão da expansão populacional, as expedições ao Tibagi englobam outros fatores
importantes. Primeiro, proporcionaram a fixação de moradores na região, com o plantio de roças que
permitiam a subsistência sertão adentro, em uma localidade praticamente inexplorada. Também foram
essenciais no tocante à delimitação de fronteiras, tendo em vista o permanente estado de beligerância
entre portugueses e espanhóis. A abertura de caminhos foi igualmente fator importante, pois permitiu a
comunicação do território e, por esta mesma razão, a consolidação de uma unidade.
E possível afirmar que estes fatores, em conjunto, sinalizam a importância dos estudos das ações
empreendidas ao Tibagi, pois fazem parte de um importante capítulo de história regional, especialmente
interessante se entendermos "a história do Brasil, como da formação de um povo e de uma nação, como
história interna é formada de histórias regionais que, por justaposição, formaram a história geral da
nacionalidade"17.
Notas
1 WHELING, Arno; WHELING, Maria José. A formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994p. 154.
2 BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775).
São Paulo: Conselho estadual de Artes e Ciências Humanas, 1979. p. 15.
3 A este respeito, ver: JOÃO, Maria Thereza David. Expansão de Curitiba no século XVIII: Afonso Botelho e os sertões do Tibagi. Curitiba,
2004. Relatório (Iniciação Científica). Universidade Federal do Paraná; CNPq.
4 Ver: NEGRÃO, Francisco (ed.). Boletim doArchivo Municipal de Curytiba. Curitiba: Câmara Municipal, 1906-32, 62 volumes.
5 SANTOS, Antônio César de Almeida. Para viverem juntos em povoações bem estabelecidas. Curitiba, 1999. Tese (Doutorado em História).
Universidade Federal do Paraná, p. 65.
6 Documentos interessantes para a História e costumes de São Paulo, v. 72, p. 46.
7 PEREIRA, Magnus R. de Mello (org.). Plano para sustentar a posse da parte meridional da América Portuguesa (1772). Curitiba: Aos
Quatro Ventos, 2003.
8 Documentos interessantes, v. 34, p. 96.
9 MACHADO, Brasil Pinheiro. Esboço de uma sinopse da história regional do Paraná. HISTÓRIA: QUESTÕES & DEBATES, Curitiba, n.
14, p. 177-205, jul-dez. 1987.
10 JOÃO, op. cit.
" HOLANDA, Sérgio Buarque dc. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957.
12 HOLANDA, p. 17.
13 SALLAS, Ana Luísa Fayet (org.). Documentação sobre povos indígenas. Séculos XVIII e XIX. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2001.
(MONUMENTA, v. 9, 2003).
14 BELLOTO, op. cit.
Documentos interessantes, v.72, p. 46.
16 SALLAS, op. cit, p. 56.
17 MACHADO, op. cit., p. 183.
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