segunda-feira, 19 de julho de 2010

1939 - HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

Vol. II N. 2 Jul – Dez / 2006 pp. 12 -21
ISSN 1809-3604
HISTÓRIA E PSICANÁLISE: POSSÍVEIS AFINIDADES
Celso Ramos Figueiredo Filho*
RESUMO: O advento da Revista dos “Annales” (França, 1929), trouxe para a
historiografia a possibilidade de novos objetos de estudo, além novos métodos de
abordagens para aqueles já consagrados pelas correntes historiográficas que a
precederam. Dentre elas destacamos a “História das Mentalidades”, responsável por
trazer para o campo de preocupações do historiador, objetos de estudo como o
imaginário popular, as crenças, enfim, aspectos da sociedade até então renegados
pelos historiadores. Por isso, a História se viu na urgência de recorrer a ciências que
até então lhe eram estranhas, a exemplo da Psicanálise. Esta, por sua vez, por obra
do seu próprio fundador, Sigmund Freud, sempre buscou superar os limites da
clínica, se predispondo a colaborar com o entendimento da dinâmica social através
do seu próprio instrumental teórico. Este artigo visa estabelecer alguns parâmetros
de uso da psicanálise pelos historiadores.
PALAVRAS-CHAVE: Historiografia - História das Mentalidades – Freud -
Psicanálise.
ABSTRACT : The publishing of "Annales" Magazine (France, 1929) made it
possible to historiography the study of different subject matters as well as new
methods of approaching those subjects that the preceding historiographic currents
were devoted to. Among them, the "History of Mentalities" stands out for arising in
historians the concern about subjects such as people's beliefs, collective
representations, in short, about aspects of society that had been disregarded till then.
Thus, History was urged to seek for other Sciences that so far had been unusual to
its scope: Psycho-analysis, for instance, which on its turn, and in accordance with its
founder himself, Sigmund Freud, has always attempted to overcome the limits of
practice and to contribute to the understanding of social dynamics through its own
theories. This article sets some Psycho-analysis parameters used by historians.
KEY-WORDS: Historiography - History of Mentalities – Freud - Psycho-analysis
* Docente da Faculdade Interação Americana - FIA
Alguns Aspectos da Historiografia Contemporânea
A historiografia do século XX e deste início de XXI está fortemente marcada
pelas contribuições da corrente historiográfica francesa genericamente denominada
de “Escola dos Annales” e, ainda mais recentemente, pela sua terceira geração, cujo
coletivo da obra ganho o epíteto de “Nova História”. 1
Dentre as várias inovações propostas pelos “Annales” ao longo da sua
existência, nos é especialmente relevante àquela que, a partir dos anos sessenta,
passou a ser conhecida como História das Mentalidades, mas que, desde Lucien
Febvre, fazia parte dos interesses temáticos desses historiadores. Dentro deste
vasto campo temático, de contornos necessariamente imprecisos, podemos
destacar as crenças, os hábitos cotidianos, as formas de relacionamento social,
enfim, o cotidiano dos indivíduos. E, justamente por tentar dar conta de aspectos da
vida humana relacionados, muitas vezes, com a psicologia social, é que a História
das Mentalidades teve que recorrer a ciências que, até então, não gozavam do
apreço dos historiadores, como, por exemplo, a Antropologia e a própria Psicologia.
No seu artigo A Psicologia (1936/1989), Febvre faz praticamente um “auto de fé”
na defesa do uso da “Psicologia aplicada” pelo cientista social que pretenda
“procurar o nexo de cada relação particular com a personalidade total”.(FEBVRE,
1989, p. 200) E mais, o autor enfatiza a importância da Psicologia especialmente
para o historiador que se debruça sobre temas típicos da História das Mentalidades,
como “os costumes, as maneiras de ser e de agir dos homens”. (FEBVRE, 1989, p.
212)
Implícita nessa frase pode-se perceber uma dupla recusa: a história tradicional,
e o economicismo do marxismo vulgar. A primeira, por considerar a história da
humanidade como conseqüência quase que exclusiva dos feitos dos “grandes
homens”, como os monarcas, generais, homens de gênio etc. E a segunda por estar
pautada num determinismo econômico mecanicista, incapaz de perceber outras
causalidades senão a produção material. Graças, portanto, aos “Annales”, a História
1 Referência ao titulo da revista lançada em 1929, por Lucien Febvre e Marc Bloch, cujo título
era Annales,d’Histoire économique et sociale. A revista é editada até os dias de hoje e, salvo algumas
mudanças de linha editorial, continua sendo importante referência nas ciências sociais em geral. A
chamada “terceira geração” tem como característica mais marcante a incorporação de temas
referentes ao imaginário popular e aos costumes.
está podendo ampliar “seu campo de pesquisa”, nos diz Michel Vovelle - notório
representante da História das Mentalidades – “englobando comportamentos
mediante os quais o homem se define em sua plenitude, isto é, a família, os
costumes, os sonhos, a linguagem, a moda etc.” (VOVELLE, 1987, p. 13) Por isso,
podemos dizer que Febvre, de certo modo, acabou antecipando um roteiro de
estudos para as futuras gerações dos “Annales”, cujas trilhas por ele traçadas são
muitas vezes paralelas àquelas da psicologia, podendo, às vezes, até mesmo se
superporem uma à outra.
Como vemos, os estilhaços dos “combates historiográficos” de Lucien Febvre
alcançaram os historiadores da “Nova História”. Jacques Le Goff, um dos seus mais
representativos membros, após aludir a diversas outras ciências sociais às quais o
historiador das mentalidades deve, necessariamente, recorrer, evoca a psicologia:
Dois domínios manifestam sua inclinação recíproca da história das
mentalidades e da psicologia social; o desenvolvimento dos estudos sobre a
criminalidade, sobre os marginais, sobre os desviados de épocas
passadas... (LE GOFF, 1973, p. 72)
É a falência da história positivista, ou seja, daquele modelo de historiografia que
se pretende capaz de alcançar a verdade dos fatos, oculta nos documentos oficiais,
e narrá-los com objetividade e imparcialidade. Para Peter Burke, os historiadores, ao
divergirem desses “modelos tradicionais de explicação histórica”, estão invocando
“seus motivos inconscientes”, pois, para ele, as explicações tradicionais
“superestimam a importância da consciência e da racionalidade.” (BURKE, 1994, p.
32) Por isso, esse autor aponta para o crescimento do uso da psicologia pelos
historiadores. (idem, 33)
Jacques Le Goff compartilha da opinião de P. Burke que o conhecimento trazido
à luz pelo historiador das mentalidades que se ocupou dos comportamentos
desviantes ou violentos, sem o auxílio da psicologia – e nós, aqui, acrescentamos,
da psicanálise – será incompleto, uma vez que a história das mentalidades,
Situa-se no ponto de junção do individual e do coletivo, do longo tempo e do
cotidiano, do inconsciente (o grifo é nosso) e do intencional, do estrutural e
do conjuntural, do marginal e do geral. (LE GOFF, p. 71)
Em suma, fazemos nossas as palavras de Le Goff: as mentalidades são “a
fronteira em que os historiadores e psicólogos deverão um dia se encontrar e
colaborar”. (LE GOFF, p. 72)
E, o mesmo nos diz Michel Vovelle. Uma vez que, para ele, o historiador, no afã
de superar continuamente as “fronteiras” da historiografia, coloca-se
permanentemente novas possibilidades de abordagens. Este é o caso específico do
historiador das mentalidades que, conforme Vovelle, “não se pode estudar a
mentalidade sem levar em conta os aspectos psicológicos (...)”.(D’ALESSIO, 1998,
p. 92)
Mas, nosso leitor deve estar se perguntando: - e Freud? As psicologias não são,
necessariamente, Psicanálise. Então, onde ela se enquadra nas problemáticas
relativas às mentalidades?
Psicanálise
O uso do instrumental teórico psicanalítico para a compreensão da sociedade,
cultura e da história, remonta ao próprio criador desta ciência. Freud, desde 1912,
com o polêmico Totem e tabu, dedica boa parte dos seus esforços na superação dos
limites clínicos aos quais estava restrita a Psicanálise até então. São deste período
suas obras antropo-sociológicas como Psicologia de grupos e análise do ego (1921),
O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o
monoteísmo (1938) dentre várias outras. 2
Como obra introdutória à utilização da Psicanálise pelas demais Ciências
Sociais, particularmente pela História, temos o livro de Peter Gay, Freud para
Historiadores (1989). Nele, o autor reconhece as várias resistências que sofrem, dos
seus próprios pares e, muitas vezes, também de psicanalistas, os historiadores que
recorrem à Psicanálise em seus estudos. De um lado, os psicanalistas, segundo
Gay, estariam demasiadamente ocupados com a clínica, destinando pouca, ou
2 Ainda antes, Freud já havia ensaiado seus primeiros passos para além dos limites da terapêutica.
Em 1907 publicou O delírio e os sonhos na “Gradiva” de W. Jensen e, no ano seguinte, o curto, mas
promissor artigo O poeta e a fantasia. No primeiro, Freud realiza a interpretação psicanalítica de uma
obra literária, ao passo que no segundo, Freud relaciona os sonhos, com as fantasias e a poesia.
nenhuma atenção ao social. Por outro, os historiadores, pelos mais variados
motivos, como o “preconceito” (GAY, p. 38) e a “ignorância” (idem, p. 48), ainda
relutam em buscar auxílio na ciência freudiana.
Para Gay, essa resistência dos historiadores é ainda mais enigmática. Desde
sempre, a história recorreu às mais diversas ciências auxiliares no intuito de melhor
conhecer o seu objeto. Assim foi, tradicionalmente, com a Economia, a Geografia a
Arqueologia e etc. Mais recentemente, em decorrência das inovações
epistemológicas propostas pelos Annales, outras ciências foram incorporadas ao rol
daquelas que auxiliam ao historiador no seu ofício: a Antropologia, a Sociologia, a
Ecologia, dentre outras. Diante disso, Peter Gay é levado a se questionar: por que o
historiador sente-se tão à vontade em recorrer a todas essas ciências, e incomodado
quando lhe é proposto o uso da Psicanálise?
Segundo Gay, a resposta dada por muitos historiadores é a de que a psicanálise
é uma ciência do indivíduo, e que os seus resultados não são irrefutáveis. (GAY, p.
21) Esses argumentos, revelam a ignorância sobre as possibilidades
epistemológicas da Psicanálise que, praticamente desde a sua origem, é utilizada
para a interpretação de questões histórico-culturais, a exemplo de diversos textos de
autoria do próprio Freud. Ao mesmo tempo, exigir da Psicanálise uma
inquestionabilidade que, atualmente, nenhuma ciência pode oferecer, é retroceder
ao reducionismo positivista. Ao mesmo tempo, Peter Gay relembra que o historiador,
desde os primórdios da sua ciência, age como uma espécie de “psicólogo”,
procurando nos determinantes causais, também os fatores mentais – o que mais
seriam, termos tão caros às últimas gerações de historiadores, que o imaginário e a
mentalidade? E, como falar em imaginário, mentalidade, fantasia, sem falar em
Psicanálise?
Sobre os textos psico-sociais de Freud, o autor considera que os seus
argumentos e hipóteses, muitas de longo alcance, ainda estão aguardando os
desdobramentos que somente os historiadores e sociólogos poderão dar.
E, neste sentido, são particularmente interessantes para os nossos propósitos às
considerações de Hanna Segal acerca da agressividade, de forma em geral,
inerente às organizações políticas estatais. Estas observações foram feitas pela
autora tendo em vista a persistência da belicosidade nos Estados contemporâneos,
mesmo após a experiência da Segunda Guerra Mundial, do Holocausto e do
bombardeio atômico de Hiroshima pelos EUA. A psicanalista inglesa parte de duas
premissas básicas, ambas originárias de Freud. A primeira, versa sobre a íntima
relação entre o comportamento individual e o dos grupos, aos quais este indivíduo
pertence. 3 Já a segunda premissa da autora, está amparada na dualidade pulsional,
de vida e de morte, conforme a última tópica da metapsicologia freudiana.4
Conforme H. Segal, a ambivalência das pulsões, condição inequívoca da
dinâmica do inconsciente individual, se manifesta também no comportamento grupal.
(SEGAL, 1998, p. 167) Por isso, os grupos cuja dinâmica pulsional é presidida pela
pulsão de morte, muitas vezes, podem agir de forma passional, descontrolada – H.
Segal chega a usar o termo “irracional” – pois os seus membros podem projetar
neles partes do seu inconsciente que não se manifestariam enquanto o indivíduo
permanecesse isolado. (ídem, p. 171) Nestes casos, os grupos podem vir a
desenvolver um “sentimento de superioridade com relação aos outros grupos (e
uma) injustificada hostilidade ou medo deles”.(ídem, p. 172)
Para Hanna Segal, a pulsão de morte está na raiz de toda a agressividade
humana. Quando ela, destrutiva por natureza, não se funde à pulsão de vida,
impulsionando o indivíduo face às adversidades da vida, ela se manifesta através
das neuroses graves, das psicoses, ou das perversões sádicas. (idem, p. 168)
Quando o grupo age destrutivamente, para a autora, houve a defusão pulsional, e a
pulsão de morte pôs-se em ação isoladamente. (ídem, p. 170) A forma como essa
agressividade, constitucional do humano, irá se manifestar ganha os contornos da
época. Por esse motivo é que podemos afirmar que o sintoma é social e, por
conseguinte, histórico.
Psicanálise e História
3 Esta formulação está em FREUD, “Psicologia de grupos e análise do ego”, de 1921.
4 Vários estudiosos do pensamento psicanalítico concordam que esta nova teoria das pulsões,
anunciada em Além do princípio do prazer (1920), inaugura a segunda metapsicologia de Freud.
O próprio Le Goff flertou com a Psicanálise num artigo sobre os sonhos de
diferentes monarcas medievais. Para ele, estes relatos oníricos, quando bem
analisados, são um manancial riquíssimo de informações sobre a mentalidade
medieval e, justifica-se não ter ele próprio analisado esses sonhos por não se
considerar bem aparelhado com o instrumental psicanalítico.
Michel de Certeau, outro importante historiador alinhado à “Nova História”,
(1989) vai ainda para além de Le Goff, pois a História e a Psicanálise “têm os
mesmos objetivos”, ou seja, “(...) élaborer (d’oú? comment?) les manières de penser
et donc de surmonter la violence (les conflits et les hasards de l’histoire) (...).”
(CERTEAU, 1989, p. 99) Ora, se os objetivos são os mesmos, por que então os
historiadores relutam em recorrer à Psicanálise? Já verificamos que Peter Gay
dedicou todo um volume na tentativa de responder a esta questão, que Michel de
Certeau também tenta responder. Na sua opinião, os historiadores, por equívocos
metodológicos, estariam ainda presos a postulados positivistas: a hierarquização
entre o passado e o presente e a sua conseqüente sucessividade, o que inexiste na
esfera do inconsciente e, portanto, para a Psicanálise. Por este motivo, segundo de
Certeau, o historiador não conseguiria perceber a simultaneidade dos tempos, ou
seja, o cronológico e o do inconsciente. (ídem, pp. 98-99)
Continuando na sua valorização do uso da psicanálise pelo historiador, M. de
Certeau destaca as contribuições que o próprio Freud deu neste sentido. Algumas
delas já foram mencionadas ao longo deste projeto, mas juntamente com de
Certeau, relembremo-las a título da justificativa dos postulados teóricometodológicos
que estamos assumindo.
Michel de Certeau relembra que Freud invalidou a ruptura entre a psicologia
individual e a coletiva. Desde Totem e Tabu (1913) e, principalmente com Psicologia
de grupos e análise do ego (1921), Freud provou que os mesmos processos mentais
que ocorrem na formação da psique individual ocorrem nas sociedades. Para de
Certeau,
La vie sociale que postule dès le départ la constitution du sujet par un
rapport a l’autre (les parents, etc.) et au langage present seulement des
unités sociales de plus en plus larges qui obéissent aux mêmes lois.
(CERTEAU, 1989, p. 103)
Mas, é no curto artigo Uma neurose demoníaca do século XVII, de 1923, que
Freud, segundo M. de Certeau, daria uma outra importante contribuição, “avant la
lettre”, à História das Mentalidades. Este é o resultado das suas análises de um
manuscrito que lhe fora enviado, descrevendo o processo de exorcismo realizado no
mosteiro de Mariazell (Áustria), entre setembro de 1677 e janeiro de 1678. O
exorcizado era um pintor, de nome Cristóvão Haitzmann, que nove anos antes havia
celebrado dois pactos com o diabo, se comprometendo a lhe entregar sua alma ao
final desse período. Até então, nenhuma novidade, pois eram relativamente comuns
na Era Moderna os pactos demoníacos. O inusitado reside no fato de que
Haitzmann não exigia ao demônio nada em troca, exceto poder ser seu filho durante
esses nove anos.
O manuscrito redigido pelos clérigos responsáveis pela recuperação da alma do
pintor é detalhista na descrição de todo o processo, e nos dá uma ótima visão sobre
o imaginário das pessoas envolvidas. Anexo ao manuscrito estava um pequeno
diário, do próprio pintor, contendo inclusive gravuras, de sua autoria, das diversas
aparições do demônio.
Esta riqueza de detalhes permitiu a Freud arriscar um diagnóstico: neurose
obsessiva alucinatória. A causa imediata fora à morte do pai de Cristóvão, ocorrida
pouco antes do primeiro pacto, e que despertou no pintor dúvidas quanto às
possibilidades de sustentar-se através da sua arte. Sentimentos inconscientes,
claramente ambivalentes, com relação ao pai vieram à tona com a sua morte.
Transfigurando-o no demônio que, por vezes surgia-lhe com aspectos físicos
femininos, tais como mamas, e noutras ocasiões, como um distinto senhor muito
bem trajado, Freud comprova a ambivalência dos sentimentos: um misto de afeto e
apreço (feminilidade e belos trajes e porte), com hostilidade (o próprio diabo). Para
Freud, é possível que este pai tivesse sido hostil com relação às inclinações
artísticas do filho, mas que não o tenha privado do seu amor paterno e do
provimento das suas necessidades, mesmo quando adulto.
A morte do pai apenas fez vir à tona, com extrema intensidade, esses
sentimentos que há muito já deveriam angustiar Cristóvão inconscientemente. A
solução encontrada por seu inconsciente foi fazer do diabo o substituto paterno, daí
os termos dos dois acordos, conforme podemos verificar. O primeiro fora escrito à
tinta, enquanto o segundo, datado de poucas semanas após o anterior, foi redigido
com sangue. Vejamos os termos desses pactos:
Eu, Cristóvão Haitzmann, subscrevo-me a este senhor como seu filho
obrigado até o nono ano. Ano de 1669.
e,
Cristovão Haitzmann. Assino um compromisso com este Satã, de ser seu filho
obrigado e, no nono ano, pertencer-lhe em corpo e alma.
O “sucesso” do exorcismo, que teve um caráter terapêutico, aplacando as
alucinações do pintor, foi reforçado pelo seu ingresso na Ordem dos Hospitalários.
Para Freud, este gesto é repetitivo na busca por um substituto paterno, agora
encontrado em Jesus e nos irmão da Ordem.
No que tange à nossa problemática, é bastante provável que Freud não tivesse
em mente uma eventual contribuição ao debate historiográfico acadêmico – até
porque ele detestava as estéreis polêmicas entre intelectuais. Mas, com toda
certeza, ele visava à ampliação da área de atuação da Psicanálise. Esta afirmação
pode ser confirmada através das considerações do próprio Freud na Introdução ao
artigo sobre as dificuldades do nosso pintor. Segundo ele, a cada momento histórico,
as neuroses irão encontrar formas correspondentes de manifestação. Em suma, é o
sintoma social.
Considerações Finais
O historiador ou cientista social que queira fazer uso da psicanálise,
evidentemente deve ter o devido cuidado para não psicologizar os processos
sociais, esvaziando-lhes dos móbices econômicos e políticos. Os abusos são
facilmente cometidos, e os erros que dele derivam podem ser grosseiros, como a
tentativa de explicar o nazismo e a perseguição aos judeus a partir do complexo de
Édipo de Hitler.
Vimos, tanto no caso do pintor, quanto no da persistência da agressividade e da
destrutividade humanas, a atuação de forças psíquicas, de ordem inconsciente. A
maneira como elas se expressam, necessariamente, estão em acordo com a cultura
e os aspectos históricos vividos pela sociedade em questão. Por estes motivos,
estamos convencidos, de que a História e a Psicanálise são ciências afins, e que,
adequadamente trabalhadas, podem contribuir para a elucidação de processos
históricos.
Referências Bibliográficas
BURKE, Peter (org.) – A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP,
1994.
CERTEAU, Michel de – Histoire et psychanalyse entre science et fiction. Paris:
Gallimard, 1987.
D’ALLESSIO, Márcia M. – Reflexões sobre o saber histórico. São Paulo: UNESP,
1998.
FEBVRE, Lucien – “A Psicologia”, in Combates pela História. 3a. Edição. Lisboa:
Editorial Presença, 1989.
FREUD, Sigmund – “Além do princípio do prazer” (1920), Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
______________ - “Psicologia de grupos e análise do ego” (1921), Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
______________ - “Uma neurose demoníaca do século XVII” (1922), Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
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GAY, Peter – Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
LE GOFF, Jacques – “Los sueños la cultura y la psicologia colectiva”, in LE GOFF,
J. – Tiempo, trabajo y cultura en el occidente medieval. Madrid: Taurus, 1983.
LE GOFF, Jacques – “As mentalidades. Uma história ambígua”, in LE GOFF,
Jacques e NORA, Pierre – História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1973.
SEGAL, Hanna – “De Hiroshima à Guerra do Golfo e depois: expressões
sociopolíticas de ambivalência”, in SEGAL, H. - Psicanálise, Literatura e Guerra –
artigos, 1972-1995. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
VOVELLE, Michel – Ideologias e Mentalidades. São Paulo: Editora Brasiliense,
1987.

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