quarta-feira, 21 de julho de 2010

1822 - HISTÓRIA DA PSICOLOGIA

Campos, R.H.F. (2009). História da psicologia e história da consciência através do estudo das
representações sociais. Memorandum, 16, 7784.
Retirado em / / , da World Wide
Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/campos02.pdf
Memorandum 16, abril /2009
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 16761669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/campos02.pdf
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História da psicologia e história da consciência através
do estudo das representações sociais
History of psychology and history of consciousness through the study of social
representations
Regina Helena de Freitas Campos
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Resumo
As relações entre estudos em história da psicologia e estudos de representações sociais
são analisadas, visando evidenciar as convergências entre objetivos e metodologias
utilizados. Argumentase
que, no caso dos estudos em história da psicologia de
orientação externalista é importante demonstrar as conexões entre o contexto sóciocultural
e a elaboração das teorias em psicologia, seja no período précientífico,
seja no
período de desenvolvimento da psicologia científica. Também os estudos das
representações pretendem demonstrar as conexões entre o contexto sóciocultural
e a
elaboração e difusão de redes de significados compartilhados que constituem o saber do
senso comum, muitas vezes observando as relações entre conhecimento científico e
senso comum. As metodologias de análise das representações sociais são semelhantes às
metodologias de estudo da história de conceitos científicos.
P alavraschave:
história da psicologia; representações sociais; história da consciência.
A bstract
The relationships between studies on the history of psychology and studies on social
representations are analysed, with the purpose of evidencing the convergence between
the objectives and methods used in both types of studies. I argue that, in the case of
externalist studies on the history of psychology, it is important to demonstrate the
connections between the social and cultural context and the development of theories in
psychology, both in the prescientific
and scientific periods. Studies on social
representations intend to demonstrate the connections between the social and cultural
context and the making and diffusion of networks of shared meanings that constitute
common sense knowledge, in many ways observing the relationships between scientific
knowledge and common sense. Also the methods of analysis of social representations are
similar to the methods of analysis of the history of scientific concepts.
Keyw ords: history of psychology; social representations; history of consciousness.
I ntrodução
Este trabalho trata das relações entre representações sociais, história e cultura do ponto
de vista da história da psicologia. Pretendo demonstrar que o conceito de representações
sociais pode se constituir em guia seguro e extremamente útil na investigação da história
das idéias psicológicas e da evolução da psicologia científica, em suas conexões com o
contexto sóciocultural.
Na investigação histórica em psicologia, buscase
deslindar a complexa trama de
significados produzidos nas relações entre a elaboração teórica – seja no período précientífico,
seja no próprio período de constituição da psicologia científica em que nos
encontramos imersos atualmente – e o tecido social e histórico em que essas idéias e
interpretações são produzidas e difundidas. Ora, a teoria das representações sociais tem
sido abordada na literatura especializada como uma contribuição importante no
conhecimento das formas de produção, transformação e difusão dos saberes socialmente
produzidos. Segundo Jovchelovitch (1998, p. 55):“(a teoria das representações sociais)
se centra sobre a análise da construção e transformação do conhecimento social, e tenta
elucidar como que o saber e o pensar se interligam na trama do tecido social”.
Campos, R.H.F. (2009). História da psicologia e história da consciência através do estudo das
representações sociais. Memorandum, 16, 7784.
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A psicologia também é um saber socialmente construído dos homens sobre si mesmos, e
o conhecimento que produz também passa por processos de produção, transformação e
difusão em contextos determinados, a partir da atividade de grupos sociais específicos. O
grupo dos intelectuais, dos filósofos, dos moralistas e, mais recentemente, dos cientistas
da mente não é desprezível em sua evidente capacidade de produzir e difundir
interpretações acerca do funcionamento da natureza humana.
Moscovici pensa na mesma direção, em um belo estudo sobre as contribuições de Piaget
e Vygotsky ao estudo da história da consciência social em que pede ao público leitor que
considere sua contribuição com tolerância, como “an aspiration to make the history of
psychology more interesting both as a science of humanity as as a humane science”
(Moscovici, 1998, p. 428). Não é demais lembrar que o estudo do autor que inaugura o
uso do conceito de representações sociais na psicologia social – o famoso trabalho sobre
a representação social da psicanálise, publicado em 1961, na França – é precisamente
um estudo sobre os processos de apropriação dos conceitos psicanalíticos pelo grande
público, ou seja, um estudo que se inscreve no campo da história da psicologia científica.
Vejamos então como podemos utilizar o conceito de representações sociais no estudo da
história da psicologia, e como aproveitar o desenvolvimento metodológico que os estudos
sobre representações sociais apresentam para nosso objetivo.
História da psicologia, história das idéias psicológicas e representações sociais
A partir da distinção proposta por Penna (1980), podemos dividir a história da psicologia
em dois grandes temas: a história das idéias psicológicas e a história da psicologia
científica. A rigor, só podemos falar de uma história da psicologia científica a partir do
final do século XIX, momento em que o projeto de construção de uma ciência psicológica,
no sentido moderno da expressão, realmente ganha sentido, Nessa época, a partir do
trabalho feito nos primeiros laboratórios de psicologia criados por Wundt e outros
pioneiros, buscouse
enquadrar os fenômenos da subjetividade nos métodos objetivos de
estudo, inclusive com a utilização de instrumentos de mensuração.
No entanto, sabemos também que a reflexão sobre esses mesmos fenômenos que vêm a
ser objeto de investigação dos primeiros cientistas da mente – a percepção, o
pensamento, a imaginação, a formação de conceitos, a afetividade – era feita há muito
tempo no quadro da história das idéias, a partir da filosofia, da metafísica, da ontologia,
da ética ou das religiões. Esse largo período de reflexão sobre a natureza humana, cujo
registro encontramos na obra dos grandes pensadores que nos precederam, cobre a
chamada história das idéias psicológicas. Em relação a elas, não podemos nos referir
como parte da história da ciência, muito menos utilizando a metodologia própria à
história da ciência – o levantamento dos programas de pesquisa, dos debates entre eles,
a dinâmica das descobertas, da verificação, da falsificação de diferentes perspectivas
teóricas, os dispositivos de demonstração empírica dos fenômenos. Os fantasmas do
presentismo – atribuição de significados contemporâneos a conceitos elaborados em
contextos históricos diferentes do nosso ,
ou do anacronismo – atribuição de
continuidade nos significados elaborados no passado a conceitos que fazem sentido no
presente, sem perceber as descontinuidades e rupturas que a história engendra – estão
sempre a rondar os trabalhos dos historiadores das idéias, especialmente os
historiadores da ciência. Para escapar dessas armadilhas, a distinção entre os dois
grandes períodos – a história das idéias psicológicas e a história da psicologia científica –
tem sido útil.
Por outro lado, o estudo da história das idéias psicológicas abre um vasto campo de
investigação para os historiadores da psicologia. Na verdade, estudar as idéias e
conceitos construídos em diferentes contextos históricos acerca dos fenômenos
psicológicos equivale a empreender uma espécie de reconstrução da história da própria
consciência humana sobre si mesma. Este empreendimento também está sujeito aos
perigos do anacronismo ou do presentismo, e por isso o historiador tem que se colocar
na posição de um antropólogo que observa uma cultura diferente da sua, e buscar a rede
de significados elaborados no contexto de investigação em seus próprios termos, ou seja,
tratase
de procurar compreender como os sujeitos, em suas condições de existência
Campos, R.H.F. (2009). História da psicologia e história da consciência através do estudo das
representações sociais. Memorandum, 16, 7784.
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concretas, elaboram, reelaboram e significam as práticas e representações que
produzem.
Wundt sabia que a história da psicologia dos povos poderia contribuir para a
reconstrução dos conceitos psicológicos da humanidade. Para ele, os métodos empíricos
da psicologia seriam úteis no estudo dos fenômenos psicológicos mais simples, como a
percepção, a psicofísica, a psicologia fisiológica. Já os processos psicológicos superiores –
a linguagem, o pensamento, a imaginação, a própria produção da cultura a partir da
atividade humana concreta, só poderiam ser estudados a partir de um levantamento
historiográfico de seu desenvolvimento. Adotando perspectiva evolucionista, de corte
nitidamente hegeliano, o psicólogo alemão pretendia que seu empreendimento viesse a
constituir uma história da evolução psicológica da humanidade, ou seja, uma história da
evolução da consciência humana em direção a patamares cada vez mais reflexivos. Nas
palavras do autor, uma “historia del proprio substrato objetivo, pero experimentado
subjetivamente” (Wundt, 1926, p. 454).
Ora, as representações sociais também tratam da experiência subjetiva das construções
objetivas da cultura, compartilhadas por diferentes grupos humanos. Tratam, segundo
Moscovici, dos processos de apreensão dos objetos sociais através do chamado
“pensamento natural”, que trabalha em um sistema operatório de classificações e
discriminações subordinado a um metassistema normativo constituído pelos valores do
grupo, que determinam as combinações permitidas e as combinações proibidas no
conjunto das proposições possíveis (Moscovici, 1978/1961). Os fatores que afetariam o
curso desse “pensamento natural”, disperso, fluido, em constante mutação, seriam
aqueles derivados dos grupos de referência, dos grupos de pertinência, dos valores e das
tradições históricas de leitura da realidade pelo grupo social. Através da apreensão dos
princípios de funcionamento e dos produtos do pensamento natural, seria possível
acompanhar a construção do senso comum, produtor e produto das representações
sociais, e guia da atividade prática.
Os estudos contemporâneos tanto da história das idéias psicológicas quanto da história
da psicologia científica têm mostrado o quanto a complexa elaboração de teorias e
conceitos sobre o psicológico em diferentes épocas e lugares encontrase,
na prática,
envolvida em uma rede de significados coletivos. Essas redes de significados
coletivamente compartilhados incluem, com freqüência, os valores e representações de
seus produtores, imersos nas diferentes produções culturais de que fazem parte.
Muitos estudiosos da história da psicologia têm contribuído para esclarecer essas
relações. Massimi, por exemplo, estuda as relações entre os significados de conceitos
psicológicos desenvolvidos no Brasil colonial por grupos indígenas, jesuítas ou pelos
próprios mentores intelectuais da construção do estado nacional brasileiro e suas
respectivas inserções culturais e projetos sociais. Tratase
da reconstrução da
mentalidade dos grupos sociais de que faziam parte e suas raízes sócioculturais
(Massimi, 1996, 2005). Também Antunes (1996) evidencia, em seu estudo do processo
de autonomização da psicologia brasileira a partir de meados do século XIX, as conexões
estabelecidas entre os interesses de pesquisa, os conceitos desenvolvidos, e a
progressiva montagem dos sistemas de saúde e educação públicas no país. Nosso
trabalho recente sobre as ligações entre os movimentos de defesa dos direitos humanos
e a obra dos pesquisadores do Instituto JeanJacques
Rousseau, em Genebra, tem
evidenciado também o quanto as opções valorativas têm um impacto significativo na
forma de elaboração dos conceitos, em outras palavras o quanto a elaboração de
conceitos no interior da própria psicologia científica deve às opções filosóficas,
epistemológicas e políticas de seus criadores (Campos, 2003). A própria obra de Jean
Piaget, uma das mais significativas em termos de construção da psicologia científica no
século XX, também ele um representante exponencial da psicologia desenvolvida em
Genebra na primeira metade do século, tem sido estudada como evidência das conexões
entre o projeto político do protestantismo liberal e as concepções de natureza humana
por ele engendradas (Vidal, 1987, 1994). Denise Jodelet estudou as relações entre as
transformações das representações sociais da loucura em uma comunidade rural
francesa ao longo de quase um século, após as mudanças observadas nos tratamentos
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psiquiátricos a partir do movimento de desinstitucionalização ocorrido no início do século
XX. A construção de um saber quotidiano sobre a loucura, construído ao lado do saber
científico, evidencia como as interrelações
entre esses dois campos – o saber do senso
comum e a ciência – contribuem para a formação de categorias de classificação mediadas
tanto pela experiência ingênua quanto pelos conceitos científicos (Jodelet, 1989).
Todos esses estudos, de orientação externalista, propõem a análise dos eventos relativos
seja à história da psicologia, seja à história das idéias psicológicas, como manifestações
da mentalidade, das representações e das práticas culturais com as quais estavam
envolvidos os atores. Em outras palavras, tratase
de reconstruir as relações entre a
posição dos atores do processo no meio sóciocultural,
suas representações das
diferentes manifestações culturais relativas ao psiquismo e aos fenômenos de ordem
psicológica, e a elaboração dos conceitos com os quais trabalharam. Importa, pois,
reconstruir a forma como, imersos na cultura de seu tempo, os autores da história da
psicologia retiraram, dessa mesma cultura, os elementos a partir dos quais construíram
suas respectivas teorias. Além disso, convém também verificar como esses conceitos
foram transmitidos e apropriados em outras esferas – a famosa influência de um autor
sobre outro, ou a transformação dos conceitos em práticas nas instituições sociais que
deles se apropriaram: as instituições de saúde e educação, na modernidade, ou as
instituições políticas ou religiosas, no passado.
São esses processos de produção, transmissão, difusão e transformação que acontecem,
a meu ver, de maneira similar aos processos de produção, transmissão, difusão e
transformação das representações sociais. Se vamos utilizar as propostas de Moscovici
para estudálos,
poderíamos dizer que, no caso da psicologia científica, o que fazemos,
os historiadores, é procurar desvincular, no trabalho dos autores que estudamos, os
momentos em que sua produção obedece aos modos de funcionamento do “pensamento
natural”, regido por valores, e os momentos em que se esforçam para atingir os
patamares da reflexão propriamente científica ou filosófica, regida pelo metassistema
normativo constituído pelas regras lógicas que determinam, em termos racionais, os
limites das proposições e das combinações de proposições possíveis. Buscamos assim
conhecer tanto as interseções entre o senso comum e o conhecimento, como, quem
sabe, determinar as possibilidades do conhecimento genuíno. Nesse sentido, o conceito
de representações sociais ajuda a pensar essas diferenças e esses limites, pois cada
cientista é, ao mesmo tempo, uma pessoa de seu tempo, de sua cultura, e guarda em
sua obra as marcas dessa sua história pessoal.
A proximações entre métodos de estudo
Também no que se refere aos métodos de estudo o conceito de representações sociais
tem proposto caminhos para o estudo da história das idéias. Ao reconstruir os processos
de construção de uma teoria científica, ou de um conjunto de idéias sobre o psicológico,
podemos utilizar o esquema básico de análise das representações sociais: estudar as
condições de produção e de circulação das idéias, os estados em que podem ser
apreendidas em determinados momentos de sua história, e seu estatuto epistemológico.
Quando tratamos das condições de produção de uma teoria ou conjunto de idéias,
buscamos o conhecimento da cultura em que foram produzidas, em termos de valores e
de modelos de pensamento e de ação, ou seja, visamos reconstruir o contexto ideológico
e sóciohistórico
em que determinadas formulações se tornaram possíveis. Inseremse
nessa perspectiva os estudos que tratam das relações entre o contexto sóciocultural
e a
produção de conhecimento, sobre as instituições onde foi produzido, sobre as demandas
e propostas sóciopolíticas
e existenciais dos grupos interessados nesse conhecimento.
Tratase,
em última análise, de determinar as formas de percepção e de representação
do real que tornaram possível, por um lado, e limitaram, por outro, as formulações que
encontramos.
Exemplos desses processos são os estudos que tratam das demandas dos modernos
sistemas de ensino de massa em relação a modos de apreensão da aprendizagem ou a
formas de classificação dos estudantes em termos de habilidades, aptidões e interesses
(Mulder & Heyting, 1998); da influência da experiência com determinadas formas de
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representações sociais. Memorandum, 16, 7784.
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organização institucional sobre o processo de construção de uma perspectiva teórica
(Duken, Van Der Veer, Van Uzendoorn & Kuipers, 1998); do contexto institucional no
interior do qual certos debates teóricos tomaram forma (Mclaughlin, 1998), ou que
tratam das formas de conceituação e tratamento dos distúrbios mentais em diferentes
momentos da história (Pessotti, 1996, 1999). Esses estudos exigem uma reconstrução
historiográfica acurada da cultura da época, e o recurso a fontes apropriadas para o
conhecimento da história das mentalidades, e das formas de articulação entre o poder
político, as práticas culturais e os constrangimentos econômicos que balizaram o
nascimento e evolução das instituições de que tratamos.
Um segundo tipo de estudo – aquele que se dedica ao aprofundamento do pensamento
de um autor, ou de uma teoria, buscando a sua lógica interna, o sistema de relações que
propõe, os conteúdos que aborda – lembra a abordagem da estrutura e dinâmica das
representações sociais Em geral, esses estudos tratam dos processos que, na teoria das
representações sociais, são conceituados como a objetivação e a ancoragem: buscase
saber que elementos contém a teoria, quais as definições desses elementos, que relações
estabelecem entre si, e como se inscrevem em uma rede de significados préexistentes
(muitas vezes modificando aquela mesma rede). Uma forma de abordar esses processos
de maneira eficaz tem sido estudar em que medida determinadas metáforas se deslocam
de um campo de conhecimento para outro. Assim, por exemplo, Faber (1996) mostrou
como a metáfora da sugestão atravessou as fronteiras da psiquiatria, no final do século
XIX, na França e foi apropriada por Le Bon na elaboração da obra sobre a psicologia das
multidões que tanta influência exerceu sobre a psicologia social do século XX. A autora
mostra que o termo “sugestão”, utilizado na França na segunda metade do século XIX,
baseavase
no sentido do senso comum para designar o processo de influência social
tanto na vida cotidiana quanto no caso da aplicação de procedimentos derivados da
atividade científica (como a hipnose de Mesmer ou Charcot). Faber adota o ponto de
vista que propõe que a metáfora ajuda o cientista no seguinte sentido: “to make sense of
an inadequately charted domain (and he) comes up with a way of seeing a particular
problem as analogous to something from an entirely different domain, thus putting the
whole matter into a new perspective” (Faber, 1996, p. 18).
Comparese
a definição de metáfora assim concebida com a descrição do processo de
ancoragem na teoria das representações sociais: “colocar um novo objeto em um quadro
de referência conhecido para poder interpretálo”
(Palmonari & Doise, 1986, p. 22).
Desse ponto de vista, é através das representações sociais que o sujeito social
estabelece mediações entre sua prática concreta, sua inserção na cultura e os objetos e
significados que absorve, tornando possível operar com esses objetos sociais. No limite,
esses objetos sociais seriam até mesmo engendrados pela representação, pois devem
sua existência, na percepção, ao sistema de representações no qual se inscrevem.
Os processos de objetivação e ancoragem, por sua vez, permitem que a representação
social se atualize quando da confrontação do sujeito com um objeto estranho ou
inesperado, ou para estabelecer relações entre acontecimentos passados e futuros,
atuando como teorias implícitas. Ora, a historiografia da psicologia contemporânea tem
se ocupado, prioritariamente, exatamente da reconstrução dessas teorias implícitas,
dessas mediações, dessas transferências de significados de um domínio para o outro,
seja de um domínio científico para o outro (como no caso da transferência de conceitos
médicos para a área psicosocial)
seja do domínio do senso comum para o domínio da
ciência. É o caso, por exemplo, do conceito de “raça”, que tanta controvérsia gerou ao
longo do desenvolvimento da psicologia no século XX (Richards, 1998). É precisamente
nesse sentido que os conceitos desenvolvidos no interior da teoria das representações
sociais podem ser utilizados como guia para a reconstrução do percurso intelectual de
constituição das teorias psicológicas que estudamos.
Quanto aos estudos sobre o estatuto epistemológico das representações sociais, tratase
de examinar o seu valor de verdade – no nosso caso, o valor de verdade de uma teoria
científica, ou de um conjunto de idéias sobre o humano, em última análise examinar as
relações entre representações sociais e pensamento científico.
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A filosofia da ciência contemporânea tem mostrado que este é um projeto bastante
arriscado. Popper (1993), com sua extrema acuidade intelectual, penetrou a fundo nessa
questão, para demonstrar que, afinal, o valor de verdade de uma proposição é sempre
precário, instável, pois a falseabilidade é uma condição sempre presente. Já Kuhn
(1975), com seu modelo psicosocial
do desenvolvimento científico, contribuiu para
demonstrar, muito na direção apontada pela historiografia contemporânea da ciência,
que há muito mais interferência dos fatores exógenos no desenvolvimento das teorias
científicas, mesmo nas chamadas hard sciences, do que supúnhamos ingenuamente em
nosso encantamento com o progresso do conhecimento e da tecnologia.
Conclusões
Afinal, talvez nossa tarefa seja muito mais contribuir para deslindar as armadilhas do
senso comum e as falhas em nossa percepção que interferem na construção do
conhecimento que propriamente afirmar o valor de verdade das proposições científicas.
Mesmo assim, cabe ressaltar os momentos em que, a partir de determinados pontos
privilegiados de observação de sua própria cultura, coube aos cientistas e pensadores do
psicológico o mérito de enxergar além de si mesmos, em busca da universalidade. Pois é
exatamente quando o cientista duvida da evidência fácil, do senso comum arraigado, que
o processo de criação pode ter lugar.
Como, aliás, cabe ressaltar, parece ter acontecido no caso da teoria de que nos
ocupamos aqui. Foi justamente a preocupação com as distorções que o conhecimento da
psicanálise vinha sofrendo ao ser incorporado por diferentes grupos sociais na França do
pósguerra
que foi possível a Moscovici elaborar essa bela teoria do conhecimento ao
mesmo tempo crítica e compreensiva. Afinal, segundo nosso autor, não é preciso
transformar as lacunas de nosso conhecimento dos processos cognitivos em lacunas da
realidade, afirmando por exemplo que aos saberes socialmente construídos opõemse
os
nãosaberes.
Sabemos, ao contrário, com a ajuda da teoria das representações sociais,
que aos saberes ditos científicos opõemse
outros saberes, da mesma forma socialmente
construídos. Estabelecer as diferenças, localizar as semelhanças, cuidar para que as
manifestações fantásticas do espírito humano não se percam nas formas muitas vezes
estereotipadas e distorcidas em que se propagam, esse é o nosso papel. E saber
também, quem sabe, que essas distorções também têm um sentido, que é preciso
desvelar.
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N ota sobre autora
Regina Helena de Freitas Campos é professora de Psicologia da Educação e História da
Psicologia na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista
de pesquisa do CNPq, presidente do Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff.
Contato: Rua Professor Saul Macedo 111 – Belvedere, 30320490
Belo Horizonte, MG,
Brasil. Email:
regihfc@terra.com.br.
Data de recebimento: 25/ 05 / 200 7
Data de aceite: 10/ 10/ 200 8

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