segunda-feira, 19 de julho de 2010

1735 - HISTÓRIA DAS PSICANÁLISE

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História e Psicanálise no discurso fi ccional de
Cavaleiro Andante1
Tiago Ribeiro dos Santos
Mestrando/Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Resumo:
A partir da leitura de Cavaleiro Andante, último romance da Tetralogia Lusitana de
Almeida Faria, entrevemos, por meio do esteio inconsciente da psicologia, capítulos
da História portuguesa mais recente, marcada pelo processo pós-revolucionário
por que passou a nação. Procuramos analisar como a obra em questão é signifi cativa
para a sondagem do inconsciente, por meio da leitura psicanalítica dos sonhos das
personagens. Utilizamos o método psicanalítico de Freud para a análise do material
onírico do texto, bem como as refl exões de Hayden White e de Paul Ricoeur a
respeito do caráter narrativo das produções historiográfi cas e fi ccionais.
Palavras-chave: romance português; História; Psicanálise.
Abstract:
From the reading of Cavaleiro Andante, the last novel in the Lusitanian tetralogy by
Almeida Faria, it was detected, by the unconscious aid of Psychology, latest chapters
of the Portuguese History; marked by the post revolutionary process the Portuguese
nation underwent. We tried to analyze how signifi cant this work is for probing of
subconscious, by the psychoanalytic reading of the characters’ dreams. It was used
Freud’s psychoanalytic method to analyze the oniric material of the text, as well
as Hayden’s and Paul Ricoeur’s the refl exion about the narrative character of the
historiographic and fi ctional productions.
Key-words: portuguese romance; History; Psychoanalysis.
Resumen:
A partir de la lectura de Cavaleiro Andante, última novela de la tetralogia lusitana
de Almeida Faria, percibimos, por medio del estado inconsciente de la psicologia,
1. Recebido em 30 de julho de 2009. Aprovado em 9 de setembro de 2009.
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capítulos de la Historia portuguesa mas reciente, marcada por el proceso postrevolucionario
por que pasó la nación. Buscamos analizar como la obra en cuestión
es significativa para el sondeo del inconsciente, por medio de la lectura psicoanalítica
de los sueños de los personajes. Utilizamos el método psicoanalítico de Freud para el
análisis del material onírico del texto, bien como las reflexiones de Hayden White y
de Paul Ricoeur al respecto del carácter narrativo de las producciones historiográficas
y ficcionarias.
Palabras-clave: novela portuguesa; Historia; psicoanálisis
A “Tetralogia Lusitana”, de Almeida Faria, inserida no conjunto da
Literatura Portuguesa contemporânea, pode ser lida sob o viés da História,
uma vez que estabelece um diálogo com capítulos da História portuguesa
mais recente, marcada pelo governo ditatorial de Salazar e pelo posterior
processo revolucionário ensejado no 25 de Abril de 1974. Já na primeira
obra da tetralogia inicia-se o tom de dilaceramento da identidade da nação,
que se mantém ao longo dos três próximos romances. Em A paixão, que tem
como pano de fundo a Sexta-Feira da Paixão, Almeida Faria tece na primeira
narrativa da tetralogia um cenário coletivo, o núcleo familiar, cujo posterior
desmembramento prefigura o colapso da nação portuguesa. Se em A paixão a
temporalidade está calcada no calendário litúrgico cristão, em Cortes, segundo
romance da série, situado num sábado de Aleluia, os fatos continuam a ser
abrangidos por essa temporalidade mítica, em detrimento de um tempo
cronológico que poderia acompanhar os acontecimentos da realidade. Assim
como em Cortes, nos romances seguintes, Lusitânia e Cavaleiro andante, a grande
temática é a Revolução dos Cravos e muitos dos efeitos gerados no contexto
sócioeconômico de Portugal.
Em Cavaleiro andante observamos a presença de personagens que se
repetem desde os primeiros romances, ao articularem posicionamentos
críticos sobre o cenário pós-revolucionário e sobre os acontecimentos que
colocaram fim à ditadura de Salazar. Percebemos que a narrativa literária
de Almeida Faria suscita inúmeras questões para as quais a Historiografia
portuguesa não forneceu explicações satisfatórias. Além disso, a obra responde
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a essas mesmas questões, pois na tessitura do romance os espaços do não-dito
são preenchidos pela matéria da ficção. A partir desta perspectiva, podemos
afirmar que o texto literário, que noticia capítulos da História, relê essa mesma
História e a recria no universo ficcional da narrativa.
Com o intuito de tornar o relato verossímil para o público, tanto a
História quanto a Literatura utilizam-se de recursos próprios, no entanto
instrumentalizados pela linguagem, que é apropriada a partir do ponto de
vista do sujeito enunciador. Sobre a questão da verossimilhança, as obras só
conseguem retratar o que seria possível na vida se forem construídas de forma
que contenham elementos verossímeis. Mesmo que um romance histórico
ficcionalize personagens da realidade, retirados de capítulos da História,
ele só ganha o status de verossímil se a diegese for construída de modo a
passar essa sensação para o leitor, caso contrário, a mera recuperação de
elementos da vida real não configura a verossimilhança de uma obra. Nesta
perspectiva, Hayden White discute, em Trópicos do discurso, a literariedade da
escrita historiográfica. Segundo ele, o caráter narrativo do registro histórico
relaciona-o antes à Literatura do que às ciências:
Mas de um modo geral houve uma relutância em considerar as
narrativas literárias como aquilo que elas manifestamente são:
ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto
descobertos e cujas formas têm mais em comum com os seus
equivalentes na literatura do que com os seus correspondentes
nas ciências. (White 1994:98)
White alega que a produção do historiador é fruto da fusão de uma
consciência mítica e histórica. Na verdade, toda história, ao ganhar uma
certa abrangência, adquire uma forma mítica (romanesca, trágica, cômica
ou satírica). No entre-lugar entre o mítico e o histórico está o fictício, do
qual todo historiador se apropria na construção do seu relato. Ao tentar
compreender as fontes históricas, fragmentárias e incompletas, o historiador
retrata por meio de um tipo específico de enredo a história a ser contada.
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Pelo fato de o conjunto de elementos históricos que o historiador lida, por si
só, não formarem uma história, ele é obrigado a concatenar os fatos segundo
uma estrutura específica de enredo.
A preocupação do historiador é a de que o público reconheça a sua
história e consiga produzir sentido através dela. A representação criada pelo
escritor da História a partir dos fatos reais vai de encontro às expectativas do
seu público, de modo que este consiga formular um sentido plausível com suas
concepções extra-históricas, ideológicas, estéticas ou míticas. O historiador
busca acontecimentos capazes de fazer sentido para si e para o público a que
o relato é veiculado, por isso os historiadores buscam fatos diferentes, já que
têm diferentes histórias para contar.
Se o público da escrita historiográfica aceita de bom grado o relato
que lhe é veiculado, será criada uma sensação chamada efeito de real, gerada
a partir do eixo da narrativa e responsável por suscitar no leitor a crença de
que a história lida é plausível e de que os fatos retratados podem realmente
ter acontecido. Da mesma forma que os historiadores buscam criar esse efeito
de real no público leitor, a maioria dos escritores também tem a mesma
pretensão, independentemente de criarem obras calcadas em fatos ou em
personagens históricos. Essa busca da verossimilhança, em relatos históricos
e em textos ficcionais, demonstra a tamanha intenção dos sujeitos autores em
atingir plenamente o público visado.
Se os historiadores assim como os romancistas visam à criação do efeito
de real no leitor, eles o fazem por meio de técnicas literárias que direcionam
também a escrita da História. Por conseguinte, podemos afirmar, como o faz
Hayden White, que o relato historiográfico está intimamente ligado às práticas
literárias, uma vez que ambos, escritores e historiadores, utilizam-se de técnicas
narrativas semelhantes, embora o texto não apresente a mesma função:
[...] as narrativas históricas não são modelos de acontecimentos
e processos passados, mas também afirmações metafóricas que
sugerem uma relação de similitude entre esses acontecimentos e
processos e os tipos de estória que convencionalmente utilizamos
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para conferir aos acontecimentos de nossas vidas significados
culturalmente sancionados. (White 1994:105)
Nos diferentes relatos, os eventos não se alteram de forma significativa:
o que difere são as modalidades das suas relações, uma vez que os historiadores
ainda que se reportem aos mesmos fatos, optam por diferentes representações.
Apesar de o leitor, muitas vezes, acreditar que o desencadeamento dos
acontecimentos é efeito da própria sociedade, da política e da História, ele
tem suas origens nas caracterizações figurativas escolhidas pelo historiador.
Mesmo valendo-se de responsabilidade perante as regras da evidência,
da relativa inteireza do pormenor narrativo e da consistência lógica, os
historiadores dão diferentes enfoques aos fatos, mediante a utilização
de elementos especificamente literários para a composição da narrativa
historiográfica. Como afirma White, “se há um elemento do histórico em
toda poesia, há um elemento da poesia em cada relato histórico do mundo”.
(White 1994:114) O relato que é feito do mundo histórico depende de técnicas
figurativas de linguagem, tais como a metáfora, a metonímia, a sinédoque e
a ironia, e é por meio dessas técnicas que se dão diferentes visões a respeito
do que o passado poderia consistir:
Isso quer dizer que os únicos instrumentos que ele tem
para dar sentido aos seus dados, tornar familiar o estranho e
tornar compreensível o passado misterioso são as técnicas de
linguagem figurativa. Todas as narrativas históricas pressupõem
caracterizações figurativas dos eventos que pretendem representar
e explicar. E isso significa que as narrativas históricas, consideradas
como artefatos verbais, podem ser caracterizadas pelo modo do
discurso figurativo em que são moldadas. (White 1994:111)
Segundo White, a oposição entre História e Ficção, como sendo a
distinção entre o real e o imaginário, deve ser encarada de outra forma na
narrativa histórica: como real – relato de algo que aconteceu – e como ilusão,
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que se revela como um história inventada. Na realidade, da mesma forma
que o romancista tenta atribuir sentido à sua arte, o historiador também
o faz. Comparar a História à Literatura não diminui de nenhum modo o
status de conhecimento atribuído à primeira, uma vez que ambas tratam do
mundo humano, fazendo-o por meio da linguagem. Se o elemento literário
da narrativa histórica fosse reconhecido como tal, o ensino da historiografia
seria conduzido a um nível de autoconsciência mais elevado, afirma White.
De qualquer forma, com o intuito de apresentar aquilo que “realmente
aconteceu” de forma científica e objetiva, os historiadores, mesmo utilizando
formas diferentes de linguagem para compor seus relatos, relutam em enxergar
o elemento estruturante de todas as suas narrativas.
Na mesma trilha de White, Paul Ricoeur, em Tempo e Narrativa, afirma
que a linguagem é capaz de amenizar o abismo existente entre os mundos
do texto e do leitor. Ricoeur afirma que as obras poéticas compõem-se de
referências metafóricas, ou seja, que elas informam sobre as coisas do mundo de
um modo não descritivo. Segundo ele, a narrativa ficcional ajuda o homem
a ampliar os seus horizontes, fornecendo não uma imagem fiel da realidade,
mas um quadro maior desta, através dos vários significados formados a partir
da tessitura da intriga. Por isso, a literatura tem o poder de aumentar a visão
do homem sobre o mundo, empobrecida pelo cotidiano.
Da mesma forma que White, Ricoeur evoca uma reflexão sobre as duas
grandes classes de discursos narrativos: a narrativa de ficção e a historiografia.
O discurso da História baseia-se numa realidade empírica e tem a intenção de
narrar os fatos tal como ocorreram. Por isso, a narrativa de um fato passado não
se utiliza da referência metafórica, uma vez que esta reconstrói o fato através
da imaginação. Contudo, na produção de um relato que seja cognoscível, os
vestígios do passado são insuficientes para a construção da narrativa histórica,
fazendo com que o historiador tenha de elaborar seu registro de acordo com
as práticas literárias, de modo a preencher as lacunas que impedem o pleno
entendimento dos fatos.
Assim como a História, a Literatura também recupera vestígios para
compor parte da referência metafórica. É a partir daí que personagens
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históricos, eventos marcantes, tempos e lugares são apropriados por
escritores e inseridos no universo da diegese, servindo de matéria-prima para
a elaboração da narrativa de ficção. Esses elementos retirados da realidade
ganham traços ficcionais e são metaforizados no nível do discurso literário.
“Nesse sentido, a ficção se inspira tanto na História quanto a História na
ficção.” (Ricoeur 1997:125)
Ao lado das discussões evocadas por White e Ricoeur está o conceito
de metaficção historiográfica cunhado por Linda Hutcheon, que alivia a
discussão a respeito dos limites entre Literatura e História, cujas narrativas
são construídas a partir da linguagem. Na verdade, este conceito atesta que a
narrativa literária que se reporta a algum fato histórico não mostra o fato em
si, mas a partir de algo que o permeia. No contexto literário, o acontecimento
histórico abordado não se presentifica no nível da narrativa tal como realmente
aconteceu, uma vez que ele é enfocado segundo o ponto de vista de um
sujeito. A pretensão à objetividade, por parte da História, cede lugar, no
texto literário, à subjetividade, fazendo do fato histórico algo peculiar ao
universo ficcional. Dessa forma, o escritor, durante o processo de criação,
insere no objeto sua marca pessoal e acaba por criar um novo acontecimento
no nível da diegese.
É o que podemos notar na (re)criação do fato histórico em torno
do período pós-Revolução dos Cravos no contexto narrativo de Cavaleiro
andante, quando Almeida Faria apropria-se do panorama conturbado da
sociedade portuguesa, envolvida em disputas partidárias dos grupos de direita
e de esquerda. O tempo ficcional, que vai de 2 de junho a 30 de novembro
de 1975, é um deslocamento do próprio tempo histórico, marcado pelos
acontecimentos posteriores aos “Cravos de Abril”. Por meio do olhar crítico
de cada personagem, expresso nas diferentes cartas que circulam entre os
membros da família, tomamos conhecimento da caótica configuração política
que se instaurou em Portugal.
Em Cavaleiro andante, notamos que a série de acontecimentos históricos
recuperados na obra ecoa das vozes e do inconsciente das personagens e é
reflexo do longo período de ditadura vivido pela nação, que despendia grandes
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somas em favor das guerras coloniais. Nesse sentido, o governo português
arcava com o ônus das empreitadas militares que visavam a impedir a liberdade
das colônias africanas, enquanto demandas infraestruturais da metrópole
estavam fadadas ao abandono. Além disso, observamos nessas colônias, durante
o regime totalitário, a criação de muitos grupos de guerrilheiros, ávidos pela
emancipação política de seus territórios. No desenrolar dos fatos contados
pelas personagens de Cavaleiro andante, entrevemos o desfecho dos conflitos
políticos nas colônias, como é descrito em carta de Sônia a Arminda no dia
11 de Novembro de 1975, a noticiar a independência política de Angola:
Este dia da independência da República Popular de Angola, que
para mim devia ser só de festas e foguetes, é de ameaça e medo: a
doença do André voltou a manifestar-se desta vez mais violenta,
tanto que o internei. Nem tive cabeça para assistir aos festejos, a
fim de estar sempre no hospital junto dele que não queria avisar a
família. Acho que devo e por isso te escrevo. (Faria 1987:126)
Assim como a independência de Angola é fruto do processo de lutas
ocorridas durante a ditadura, a reforma agrária instituída logo após a Revolução
de Abril também foi gerada a partir das questões latifundiárias do antigo
regime. Os grandes donos de terras, assim como a família dos Cantares, têm
suas terras expropriadas e, por isso, sentem-se prejudicados pelo sistema. O
desespero suscitado em decorrência da perda das terras faz com que muitos
portugueses ricos migrem para o Brasil ou se suicidem, como é noticiado pela
seguinte passagem retirada do monólogo de Marina, no capítulo 04: “Depois
da Revolução houve suicídios não dos pobres como outrora, mas de alguns
ricos”. (Faria 1987:16)
Da mesma maneira que a reforma agrária marca a vida da família, a
abertura político-social feita pelo governo pós-revolucionário de esquerda –
com ideais socialistas e democráticos –, faz com que a personagem Arminda
reflita sobre a passagem de poder, do grupo conservador de direita para o
radical grupo de esquerda:
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No Alentejo os trabalhadores agora ganham mais mas as terras não
são deles, são do Estado, e, se por enquanto o patrão estatal não se
faz notado, quando se lembrar de vir pedir contas de empréstimos
e linhas de crédito, quem lhas prestará? Os Cantares fazem parte
de uma unidade colectiva de produção com milhares de hectares.
Alguém extinguiu o latifúndio? Aumentou, pelo contrário. Apenas
não é privado. (Faria 1987:116)
Percebemos, por meio do pensamento crítico da personagem, que
o poder apenas foi transferido de um grupo a outro, enquanto a maioria da
população continua, depois da Revolução, à mercê das ações do governo.
A abertura política ocorrida pode ser percebida no capítulo “André no Vale
Escuro”, ensejada no dia 25 de Novembro de 1975, dia de um outro golpe
radical que implantou o governo socialista. É interessante notar que a morte
do filho primogênito acontece no mesmo dia do desmantelamento do antigo
sistema, 25 de novembro, data da morte do antigo regime. Como assinala
Simões:
No dia 11 de novembro, André é internado passando mal;
historicamente esta é a data da independência de Angola. A
morte de André é coincidente com o 25 de Novembro de 1975.
É libertação simbólica (ou morte) de um sistema, libertação pela
democracia. Depois do 25 de Abril, o 25 de Novembro é o novo
‘thermidor’. (Simões 1998:103)
À implantação do Socialismo, no nível político, junta-se, posteriormente,
a entrada de Portugal na CEE, configurando a abertura econômica da nação
em relação ao mercado europeu. Na verdade, essa foi apenas uma das medidas
que visavam ao desenvolvimento da nação portuguesa, ainda calcada numa
relação de base feudal entre patrões e empregados – no âmbito da produção
agrícola – e numa indústria incipiente, que impediam a manutenção de grandes
laços econômicos junto aos outros países da Europa.
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A partir da sequência de acontecimentos recuperados em Cavaleiro
andante, ainda que de maneira metafórica tal como afirma Paul Ricoeur,
podemos perceber o tom pessimista da obra em relação aos destinos de
Portugal. Contrapondo-se à grande epopéia lusitana cantada por Camões, o
romance de Almeida Faria é um eco da nação decadente e do efeito negativo
decorrente dos anos de censura e repressão. Por isso, Almeida Faria, como
produtor de obras metaficcionais, ao lado de seus contemporâneos, não ousou
em fazer da Literatura um arauto dos tempos inglórios vividos pela nação
portuguesa. É nesse sentido que História e ficção se mesclam, com a recriação
de fatos a partir da imaginação do escritor, que os conduz a rumos que talvez
nunca poderiam tomar.
Se nos ativermos à construção do romance Cavaleiro andante, percebemos
que há uma confluência de discursos que, além de ensejar uma leitura no
âmbito das relações entre Literatura e História, é capaz de direcionar-nos
a uma leitura psicanalítica do tecido narrativo. Tudo o que parece estar no
nível da marginalidade pode ser sintomático para uma análise da narrativa de
Almeida Faria, a partir da leitura do material literário, construída a partir das
teorizações de Freud acerca da interpretação de sonhos. Nessa perspectiva,
nossa abordagem esbarra-se naquela que pretende verificar os motivos que
levam o leitor a esboçar determinada leitura para a obra. Certamente Cavaleiro
andante contém informações que levam o leitor a inseri-lo no conjunto
de estudos da crítica literária psicanalítica, tendo em vista os elementos
constituintes do texto, que nos autorizam a formular especulações próprias do
universo da Psicanálise. Nesse sentido, é válida a noção de subtexto, proposta
por Terry Eagleton:
[...] um texto que está inserido nela (na obra), visível em certos
pontos “sintomáticos” de ambigüidade, evasão ou ênfase exagerada,
e que nós, como leitores, somos capazes de “escrever”, mesmo que
o romance em si não o escreva. Toda obra literária encerra um ou
mais destes subtextos, e há um sentido no qual se pode falar deles
como o “inconsciente” da própria obra. As introvisões da obra, como
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ocorre em todos os escritos, estão profundamente relacionadas com
sua cegueira: aquilo que ela não diz, e o que parece estar ausente,
ser marginal ou ambivalente a respeito dela, pode constituir uma
chave mestra para suas significações. (Eagleton 2001:246)
É o que acontece com o discurso onírico das personagens menores Jó e
Tiago, capazes de sugerir novas significações ao texto. No cenário conturbado
da nação portuguesa, após a Revolução que pôs fim à ditadura de Salazar, o
discurso do sonho pode ser tido como uma espécie de releitura do discurso
histórico da obra. É como se as personagens incorporassem inconscientemente
todas as informações a respeito do panorama político-social de Portugal e as
transmitissem de forma deformada – segundo o processo de formação dos
sonhos proposto por Freud – ao longo do romance. Dessa forma, sugerimos
que tudo aquilo de que tomamos conhecimento em alguns capítulos que
abordam sonhos infantis, é passível de leitura psicanalítica, já que temos o
intuito de revelar os verdadeiros significados do conteúdo latente desses sonhos
obnubilados pelo seu conteúdo manifesto.
As personagens menores de Cavaleiro andante, inseridas no universo
ficcional da narrativa, releem inconscientemente o conteúdo das cartas
trocadas entre as personagens maiores conferindo-lhes outros significados.
As informações contidas nas cartas, basicamente de cunho referencial, são
assimiladas por Jó e Tiago e atualizadas de forma metafórica no nível de
seus sonhos. Por condensar e deslocar significados, o psicanalista francês
Jacques Lacan propõe uma ligação do sonho com certas figuras de linguagem,
principalmente a metáfora e a metonímia, e considera que o inconsciente
estrutura-se da mesma forma que a linguagem.
Nesse sentido, a importância de se interpretar os sonhos reside no fato
de revelarem os verdadeiros significados contidos nas metáforas produzidas
pelo processo de elaboração onírica. Os sonhos infantis são, segundo Freud,
puras realizações de desejos insatisfeitos na vida de vigília. Por isso, de acordo
com o psicanalista, eles não oferecem maiores dificuldades de interpretação,
como as que são detectadas nos sonhos de pessoas adultas.
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Em Cavaleiro andante, o personagem “Jó só sonha com modos irreais
de escapar de casa” (Faria 1987:25), pois só o sonho é capaz de acolher as
satisfações que a realidade é incapaz de possibilitar. No conteúdo manifesto
do sonho do personagem notamos a presença de figuras mitológicas, como as
que compõem o imaginário português. Se tomarmos as lendas em torno do
Rei Artur como o substrato cultural da nação portuguesa, podemos dizer que
a recuperação do mito no discurso onírico das personagens infantis demonstra
como seus elementos lendários estão arraigados no inconsciente coletivo. E
é por meio do esteio psíquico estranho à consciência – o inconsciente – que
esses elementos são incorporados aos relatos de Jó e Tiago.
O primeiro sonho, que compõe o capítulo intitulado “Jó na aldeia
aérea”, mostra no seu conteúdo manifesto o personagem Jó numa aeronave
partindo em direção à África. A nave então atraca-se à aldeia aérea, uma
espécie de satélite artificial de forma esférica, e Jó encontra-se com alguns
cavaleiros da Távola Redonda, à exceção de Artur. Após a escuridão formada
por uma ventania, surge então uma claridade; momento em que Jó percebe
a ausência dos cavaleiros e a presença de seu pai. Este avança devagar para
junto do filho e desaparece mediante a chegada de alguns homens mascarados
que rodeiam Jó. Em seguida, a nave pousa, Jó desce à terra e avista à beira
de um lago a linda jovem Morgana – irmã de Artur –, que se banha e que o
convida a tomar banho com ela.
Para a interpretação desse sonho é importante que observemos duas
informações do seu conteúdo manifesto: a presença do pai que, em decorrência
da morte, está ausente no seio da família; e a figura atraente de Morgana,
“quem sabe se demónio disfarçado”. (Faria 1987:27) Se pensarmos, como
Freud, que os sonhos infantis expressam claramente realizações de desejos,2
podemos assegurar que o retorno do pai no conteúdo manifesto do sonho
é a realização indisfarçada do desejo de estar com o pai. Quanto à figura
2. Segundo Freud, a formação dos sonhos tem caráter inconsciente e é elaborada a partir de material oriundo
dos desejos reprimidos e daqueles elementos remanescentes da vida de vigília que foram recuperados do
dia anterior ao do sonho. Cf. A interpretação de sonhos, do mesmo autor.
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de Morgana, há a possibilidade de este sonho ser a realização disfarçada de
um desejo reprimido, tendo em vista a utilização da expressão “demônio
disfarçado”. Se considerarmos o processo de deslocamento do sonho, a figura de
Morgana pode ser a representação de Marina, a mãe de Jó. Nesta perspectiva,
o sonho realizou o desejo reprimido e não realizado no complexo de Édipo,
quando dirigimos “nosso primeiro impulso sexual no sentido de nossa mãe e
o nosso primeiro ódio e o nosso primeiro desejo assassino contra nosso pai”.
(Freud 1969:278) O desejo de repulsa contra a figura do pai pode ter sido
configurado no sonho de Jó pelo seu rápido desaparecimento, que possibilitou a
concretização do Complexo de Édipo, ou seja, o encontro com Morgana. Dessa
forma, este sonho pode ter sido um sonho edipiano, com a realização de um
desejo reprimido da infância, que estava latente ao nível do inconsciente.
De acordo com Freud, que concebe a maioria dos sonhos infantis como
realizações indisfarçadas de desejos da vida de vigília, podemos tomar a ânsia de
fuga por parte de Jó, retratada no sonho contido no capítulo intitulado “Sonho
de Jó”, como um desejo de se livrar dos tormentos causados pelo processo
revolucionário. No conteúdo manifesto, Jó apresenta uma estreita ligação com
a figura de Ícaro, que não ouviu as advertências do pai no momento em que
ganhou asas. Tudo aquilo que Jó manifesta no sonho é fruto de seus desejos
e frustrações, como podemos perceber nesta passagem:
E o gozo de ver ao longe os meus acossadores desesperados,
depois de me julgarem já no papo, compensa a sensação de vácuo
na barriga antes de me lançar. Mas voar é ser cobarde ou ter
coragem? Será sobreviver, e mais não sei. Ao menos não tenho
asas, assim não me arrisco a que a sua cera se derreta. Nem asas
nem pai que me as fabricasse, que me acolhesse no modo de usálas:
nem perto do mar para não se molharem, nem perto do sol
para não arderem. (Faria 1987:39)
Da mesma forma que Jó refere-se à sua orfandade, temos a orfandade
da própria nação que, abalada pelos eventos da História, gera um clima de
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desconforto nos seus indivíduos. A ânsia de fuga no sonho de Jó, representada
pela possibilidade de voar, deixa implícito o desejo de liberdade de toda
a nação, recém liberta da ditadura de Salazar. Seguindo a mesma linha de
raciocínio do sonho anterior, o sonho de Jó contido no capítulo intitulado
“Jó em Madagascar” é elaborado com elementos da vida diurna e retrata, de
certa forma, o desespero causado nos cidadãos em decorrência do processo
revolucionário em Portugal. No conteúdo manifesto desse sonho é notável
o desejo de retorno do pai, que não aparece, já que, em seu lugar, vem um
policial trazendo ao colo uma criança ferida. A carga lúdica alimentada por
Jó pode ser observada na participação do Rei Artur e de seus cavaleiros que
dão alento ao personagem. No final do capítulo, podemos notar o estreito
diálogo que o sonho de Jó mantém com a História, ao retomar elementos da
vida de vigília e reler inconscientemente o conteúdo das cartas trocadas entre
os outros membros da família:
Só graças aos poderes do Príncipe Valente consegui chegar tão
longe, mas ele não me ensinou nem cede a ninguém os seus
segredos. Pedi-lhe que me levasse à Aldeia Aérea para falar com o
Rei Artur e os seus cavaleiros, ele porém regressava à Terra onde
precisavam dele pois começava o êxodo, as sirenes anunciavam a
primeira bomba para breve, as pessoas fugiam de casa correndo
a cavalo, de carro, a pé, de eléctrico. O susto perseguia a gente
sem saber que fazer. (Faria 1987:61)
No referido sonho, mito e realidade se confundem, uma vez que a
crença na restauração da estabilidade nacional é depositada no elemento
mítico, representado pela figura dos cavaleiros da Távola Redonda. Da mesma
forma que os conteúdos manifestos dos sonhos de Jó mantêm uma interlocução
com as experiências da vida de vigília da família e, consequentemente, com
a História de Portugal, o sonho do outro irmão menor – Tiago – relatado
no capítulo denominado “Tiago no comboio fantasma” também tematiza os
acontecimentos gerados pela Revolução dos Cravos. Em todas as estações
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por onde passava o comboio que levava Jó e Tiago havia tropas armadas, bem
como grupos de exilados políticos que se refugiaram mediante as ameaças
fascistas.
Durante a descida até à cidade, Jó e Tiago observam grandes explosões
no mar, que podem ser relacionadas às explosões geradas pelos conflitos
armados que colocaram fim ao regime totalitário em Portugal. Ao final do
sonho temos um registro fragmentário, com informações relatadas de forma
desconexa e sem pontuação, fruto dos pensamentos oníricos afetados pela
ação da censura. Essas informações apresentam um tom profético, ao prever o
destino de cada membro da família e de toda a nação. É gerado neste sonho de
Tiago um clima de pessimismo e melancolia, sentimentos causados pelos fatos
desastrosos que mudaram a situação política de Portugal. O discurso onírico
do personagem relaciona-se, aqui, ao que Freud afirma ser a função dos sonhos
para os povos da antiguidade: a de prever o futuro. E esse caráter premonitório
é demonstrado juntamente com a carga de negatividade que guarda o futuro,
segundo a mensagem apocalíptica do conteúdo manifesto narrado.
Um outro sonho de Jó, narrado no capítulo “Jó no dia de todos-os-santos
de 1975”, expõe o desejo de Jó de salvar Tiago, encerrado num túmulo de
chumbo. Pelo conteúdo, notamos que se trata de um sonho de angústia, ao
revelar o medo do personagem que empreende uma saga com o intuito de
chegar à Aldeia Aérea para que os cavaleiros salvem seu irmão. Na verdade,
o conteúdo desse sonho é uma releitura do sentimento de medo da matriarca
do clã, Marina, em cujo monólogo, que compõe o capítulo anterior ao do
sonho de Jó, ela expressa toda fraqueza e insegurança. Na avaliação que faz
da sua vida, a mãe declara sentir falta do marido Francisco, assassinado por
seus empregados e vítima da inveja alheia: “Quem me dera ser aquela rapariga
levada pelo árabe para distantes terras, para o ardor do deserto que é como o
Alentejo sem casas nem árvores nem esta gente invejosa que me detesta e quer
acabar com a nossa raça”. (Faria 1987:93) Nesta passagem, Marina refere-se à
condição pequeno-burguesa assumida pela família, que se destacava perante a
situação de miséria vivida por muitas famílias humildes da província rural do
Alentejo. A condição social da família de Marina, satisfatória em relação à de
Revista Investigações
232
outras famílias que embora de tradição agrícola não eram possuidoras das terras
nas quais trabalhavam, despertou o ódio nos empregados de Francisco.
Percebemos que o discurso onírico de Jó é uma releitura inconsciente
do monólogo de Marina, pois apresenta no final do sonho referências ao
ambiente dos Cantares, inundado pelas chuvas que dificultavam o acesso de Jó à
Aldeia Aérea, na busca de ajuda para salvar Tiago. De certa forma, assim como
o sonho de Jó relê o monólogo da mãe, o sonho também antecipa algumas
informações trazidas no capítulo posterior, “Tiago no dia de Finados”, que
relata a visita da família ao túmulo do pai, no dia dedicado aos mortos.
Se considerarmos, como Freud, que antecipamos nos sonhos alguns
eventos alvo de muita expectativa, podemos tomar o sonho de Jó como
sendo uma antecipação do dia de Finados, quando a mãe, segundo o costume,
certamente iria visitar o túmulo do patriarca. O fato de Jó ter sonhado com
o irmão enclausurado numa urna pode ter sido o resultado do processo de
deslocamento, que inseriu a figura de Tiago no lugar da figura do pai morto.
Como a maioria dos sonhos que analisamos está repleta de resquícios de
experiências da vida diurna, já que se trata de sonhos infantis, o conteúdo
manifesto dos pensamentos oníricos relatado no capítulo “Jó e o último vôo”
também contém este tipo de informação. Ao retomar um dos ambientes
retratados no sonho anterior, os campos agrícolas dos Cantares, Jó expõe a
opinião da população frente ao clima de incerteza gerado pela Revolução:
[...] fui pelos campos ao acaso, passei pela sede de uma dessas
ucepês dantes chamadas montes, lembrava os Cantares excepto
pelo portão de ferro à entrada e o muro que fora branco, agora
cheio de letras e bonecos que pareciam de uma creche, jardim
de infância, coisas que quase não existiam antes do 25 de abril e
umas frases eu não entendia, outras sim, eram iguais às da vila:
morte aos latifundiários, abaixo a lei reacionária, viva a ditadura
proletária, glória eterna ao camarada Salvador Alhendro, não à
reforma, sim à revolução agrária. (Faria 1987:130).
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Além dessa interlocução com a História portuguesa estabelecida no
discurso do sonho, há, no início do capítulo 42, a percepção de Jó sobre algo de
anormal que haveria de acontecer. Na verdade, esse sentimento premonitório
no conteúdo manifesto do sonho de Jó pode ser fruto de seu conhecimento
sobre a nova manifestação da doença de André, noticiada na carta que Sônia
endereça a Arminda. Dessa forma, podemos notar que mais uma vez o discurso
do sonho de Jó relê inconscientemente o conteúdo de uma das cartas, expressa
no capítulo anterior ao do sonho. É, então, a triste informação dada por Sônia
que desperta o elemento de anormalidade no sonho de Jó:
Percebi que algo de anormal se ia passar: todos os meus irmãos,
excepto André, e os primos em terceiro grau e até desconhecidos
se foram deitar com navalhas na mão, tesouras compridas e vários
objectos afiados, não cada um em sua cama mas aos pares em casa,
como se se preparasse um assalto maior. (Faria 1987:129).
O último sonho da narrativa composta pelos sonhos infantis de Jó e
Tiago, expresso no capítulo “Jó regressa à Aldeia Aérea”, tematiza a ânsia de
Jó em encontrar seu irmão André perdido em Angola. A saga empreendida
por Jó, com o intuito de atravessar a África para salvar o irmão, faz com que
ele vá até à Aldeia Aérea solicitar a ajuda dos cavaleiros. O desejo, por parte
de Jó, de anular a morte do irmão flui durante todo o discurso onírico do
personagem infantil e revela-se após o falecimento de André no romance. O
irmão menor alimenta inconscientemente esse desejo e delega aos personagens
mitológicos a crença na restauração da vida daquele que ama.
No conteúdo manifesto desse sonho, a própria morte de Galaaz
antecede a notícia da morte de André, já que desperta em Jó o pessimismo
decorrente do fato de não ter o auxílio do cavaleiro virgem. A aparição de Sônia
na Aldeia Aérea trazendo para Jó a mensagem de seu irmão, cujas letras foram
apagadas, acaba por simbolizar a morte de André, preconizada pela morte
de Galaaz. O conteúdo do sonho contém metaforicamente a mensagem da
morte de André, anteriormente anunciada na última carta que Sônia endereça
Revista Investigações
234
a Arminda. Na verdade, a mensagem da carta é assimilada por Jó e transposta
para um outro tipo de discurso, o do sonho, capaz de sustentar toda a carga
lúdica alimentada pela criança.
Percebemos por meio dos sonhos das personagens menores, Jó e Tiago,
que, assim como Almeida Faria apropria-se de eventos da História portuguesa
para compor as várias cenas do romance, as crianças – inseridas no universo
ficcional – releem inconscientemente o conteúdo das cartas trocadas entre
as personagens maiores conferindo-lhes outros significados. Além disso, no
tecido narrativo de Cavaleiro andante, o relato dramático dos personagens que
ecoa nas inúmeras cartas deixa entrever o substrato cultural da nação permeado
pela mitologia. No romance, observamos a intertextualidade realizada a partir
dos dois principais mitos formadores do imaginário português, o mito do
Santo Graal e o mito do Sebastianismo. Durante todo o discurso onírico de
Jó e Tiago, percebemos elementos do universo mítico-ficcional, recuperados
a partir da crença na restauração do quinto Império profetizado por muitos.
Se os eventos históricos decorrentes da Revolução não geram expectativas
positivas nos membros do clã de Montemínimo, os mitos preenchem os vazios
existenciais e servem como manobra de compensação para aplacar as dores
causadas pela realidade.
No capítulo denominado “Quadrívio”, que funciona como uma nota
introdutória, por revelar implicitamente os diferentes ambientes de onde
partem as várias cartas que compõem o romance, notamos, já de início, uma
referência aos dois mitos recuperados na obra. Por meio do relato do narrador
heterodiegético, que embora se pareça mais com um relato de cunho pessoal –
feito por um dos personagens – percebemos a crença na restauração da glória
portuguesa, há muito conquistada e perdida:
Será que se vão enfim realizar-se as profecias do Bandarra, que
prometeu um Quinto Império a quem perdeu o seu? Será que
um rei amado porque louco, incompetente e morto, em breve
retornará, não para de novo nos lançar em perdidas batalhas, mas
para nos salvar de todas as desgraças e ameaças de maiores males?
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Será que o Alumiado trará consigo o abre-te-sésamo da fortuna
e progresso, ou por nossos pecados é preciso partir à procura da
chave que abrirá a cave onde se esconde e não se encontra o Graal?
(Faria 1987:8-9)
A crença no retorno do rei D. Sebastião foi criada a partir do seu
desaparecimento na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, quando partiu numa
expedição de luta contra os mouros no norte da África. Sobre a construção
do mito do Sebastianismo em Portugal, adotamos a visão de Jacqueline
Hermann, expressa em sua obra No reino do desejado, em que encontramos
explicações satisfatórias a respeito desse mito anunciado por muitos escritores
letrados, dentre eles o Pe. Antônio Vieira. De acordo com a autora, o mito
do Sebastianismo pode ter surgido antes mesmo do nascimento do rei D.
Sebastião, em meio a uma comunidade de cristãos-novos que não mais
praticavam o judaísmo, em decorrência das inúmeras perseguições que
sofriam. Bandarra, que circulava entre o grupo de cristãos-velhos e novos,
escreveu algumas trovas que mais tarde seriam consideradas “o suporte
profético sobre o qual se assentaria a certeza da volta do Encoberto em
Portugal”. (Hermann 1998:19)
A executar o espírito empreendedor da cruzadas, D. Sebastião parte
para a Batalha no Marrocos e, a partir do fracasso da empreitada, escondeu-se
para não ser aprisionado – segundo o relato mítico –, ou morrera junto da
sua tropa – segundo a recente historiografia portuguesa. De qualquer forma,
como o rei não mais retornou, alguns tentaram se passar por ele, dando
vazão ao desejo de serem nobres, reis e rainhas, e outros viam-no gozando
de toda plenitude, já que alegavam ter visões concedidas pela divindade. A
partir do ponto de vista desses visionários, que viam no retorno do rei uma
forma de libertação contra os castelhanos, D. Sebastião estaria encoberto na Ilha
Afortunada, local associado ao paraíso de Adão e Eva noticiado no Gênesis.
É interessante notar no processo de construção do mito do encoberto que
ele é formado por elementos do messianismo de cunho judaico, uma vez que
Bandarra era um cristão-novo recém converso ao catolicismo, por elementos
Revista Investigações
236
da tradição celta – já que expressa a luta pela soberania portuguesa –, além
de elementos da cultura cristã, representados pela acolhida do rei no paraíso.
É nessa mesma conjuntura, sempre agenciada pelo ideal de nobreza do Rei
desaparecido, que Arminda, numa carta endereçada ao irmão André, expõe
sua crença no retorno do monarca:
Talvez os mestres da Filosofia Portuguesa tenham afinal razão
quanto ao advento do reino do E. S., que será chamado Quinto
Império e terá sede social em Portugal: simbolizado pelas
cinco quinas, aliás cinco quinas do nosso escudo cada vez mais
desvalorizado, o Quinto Império verá a vitória do E. S. sobre os
outros impérios da Terra e o regresso de D. Sebastião ao reino
do Quinto Elemento; então a falida pátria voltará ao poder e à
glória mas desta vez só espiritual, sem as tentações materialistas
que, parece, são a causa actual da miséria financeiro-moral. (Faria
1987:136).
Ao abarcar, crítica e ironicamente, a possível restauração econômica
e moral da nação, cuja identidade foi extremamente abalada pelos percalços
da História, Arminda expõe os ideais que permeiam o inconsciente coletivo,
pautados na existência mítica do encoberto.
Da mesma forma que Cavaleiro andante recupera o mito do Sebastianismo,
podemos notar, por meio da retomada do título do romance, que ele
estabelece também uma profunda interlocução com o mito do Santo Graal.
Na verdade, ambos os mitos se fundem na tessitura da narrativa, uma vez que
D. Sebastião pode ser visto como a encarnação do nobre cavaleiro medieval,
disposto a batalhar pela defesa do seu território. A própria ilha onde, segundo
o mito, D. Sebastião estaria encoberto, pode referir-se à ilha de Avallon, na
qual o Rei Artur também teria se refugiado. De acordo com a lenda, Artur e
seus cavaleiros empreendem uma saga em busca do cálice sagrado onde José
de Arimateia teria recolhido o sangue de Jesus. A trajetória dos cavaleiros da
Távola Redonda, notadamente acentuada no discurso onírico de Jó e Tiago,
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marca o processo intertextual com o mito da Demanda do Santo Graal. É a
crença nos desígnios dos seres mitológicos que povoa o imaginário infantil
dos personagens e que participa da configuração de seus sonhos. O excerto
abaixo mostra, claramente, o intenso diálogo mantido entre o mito do Rei
Artur e o do Encoberto, bem como a sua recuperação no conteúdo manifesto
dos sonhos dos personagens menores Jó e Tiago:
Assim sucedeu, e apenas o rei ficou curado, logo apareceram os
cento e cinqüenta célebres cavaleiros da Távola Redonda tendo à
sua frente o heróico Rei Artur, o da feliz figura, mas quando este
os apresentou um por um e eles iam tomando os seus lugares, a
gente reparou que duas cadeiras estavam vagas, a cadeira perigosa
e a de Tristão o triste. Ora as profecias prediziam que naquela
data alguém viria não ainda para ressuscitar mortos e vivos mas
para ocupar a sédia vazia, o que foi feito tal qual previsto: todas
as portas se fecharam sozinhas, e as janelas idem, um raio de luz
do sol do meio-dia entrou pela casa apesar de fechada e com ele
Galaaz, surgido do ar, o que muito maravilhou todos que ele
cumprimentou depois de um eremita ter informado a ínclita
assembléia ser aquele o Desejado. [...]. (Faria 1987:132).
Assim como os cavaleiros de Artur vão em busca do Graal, os
personagens que partem, indivíduos exilados do seu próprio país, podem
ser tidos como sujeitos sem lugar que procuram o cálice sagrado e um outro
modo de estar no mundo. É uma espécie de saga empreendida pela família de
Cavaleiro andante, cujos membros dispersos são obrigados a migrar em busca do
antídoto para a cura do país doente. Configura-se, aqui, um quadro de errância
dos personagens, ao mesmo tempo em que o filho primogênito, André,
adquire um câncer que alegoriza o estado de doença da nação. Nesse sentido,
é interessante pensar nos membros da família como verdadeiros cavaleiros
andantes que revivem, no plano da realidade ficcional, as experiências
projetadas nos mitos. Aquilo que encontra-se arraigado no inconsciente
Revista Investigações
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coletivo nacional é, de certa forma, apropriado pelos personagens de Cavaleiro
andante e transformado em matéria passível de experiência humana. É no
projeto de cada personagem, de escrever cartas contando suas experiências
de vida, que mito e realidade se confundem, fazendo do romance uma espécie
de espaço intertextual, onde confluem o discurso da História e da Psicanálise
em meio a um discurso mítico-ficcional.
Referência bibliográfica
EAGLETON, Terry. A Psicanálise. 2001. In: –.Teoria da literatura: uma
introdução. São Paulo: Martins Fontes.
FARIA, Almeida. Cavaleiro andante. 1987. Rio de Janeiro: Nova Fronteira
FREUD, Sigmund. 1969. A interpretação de sonhos. In: –. Obras completas de Sigmund
Freud: edição standard brasileira. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, v.4 e 5.
HERMANN, Jacqueline. 1998. No reino do desejado: a construção do sebastianismo
em Portugal. São Paulo: Cia. das Letras.
HUTCHEON, Linda. 1991. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção.
Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago.
RICOEUR, Paul. 1994. Tempo e narrativa. Tradução de Constança Marcondes
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SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. 1998. As razões do imaginário: comunicar em tempo
de revolução 1960-1990: a ficção de Almeida Faria. Salvador: UESC; FCJA.
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Tradução Alípio Correia de Franca Neto et. al. São Paulo: Edusp.



COPÝRIGHT EDUSP.

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