sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

2889 - GUERRA DOS ESTADOS UNIDOS VERSUS IRAQUE

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A guerra contra o Iraque,
o “império” norte-americano
e a crise sistêmica
Paulo Fagundes Vizentini Professor Titular de História Contemporânea e
Coordenador do Núcleo de Relações
Internacionais do ILEA-UFRGS.
Pós-Doutorado em Relações Internacionais
pela London School of Economics.
Resumo
O artigo discute a guerra anglo-americana contra o Iraque a partir de fatores
estruturais, como a construção de uma estrutura de tipo imperial pelos EUA.
Questionando as razões empregadas pela diplomacia norte-americana para justificar
a invasão, contrariando o sistema das Nações Unidas e a posição da
maioria da comunidade internacional, identifica um contexto de crescentes dificuldades
internas nos Estados Unidos e a emergência de mudanças profundas
no pós-Guerra Fria, como a emergência de novos protagonistas. Externamente,
essas tendências revelam uma crise sistêmica que demonstra o esgotamento
da estratégia de reestruturação político-econômica dos últimos 30 anos.
Palavras-chave
Guerra EUA versus Iraque; diplomacia norte-americana; unilateralidade
versus multipolaridade.
Abstract
This article discusses the anglo-american war against Iraq based on the analysis
of structural factors such as the built of the US neoimperial hegemony. By
questioning the reasons presented by US diplomacy to justify the invasion in
dissonance with the UN system and the majority of the international community
it identifies a context of growing domestic difficulties in the US and the emergence
of deep changes in the post-cold war world, including the rise of new players. At
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the external level, this trends reveal a systemic crises that demonstrates the
exhaustion of the world’s political-economic restructuring strategy of the last
thirty years.
Os originais deste artigo foram recebidos
por esta Editoria em 05.05.03.
“O sistema internacional que se configurou [com
o fim da Guerra Fria] sob o regime da unimultipolaridade
americana tem características pouco
estáveis. A mais longo prazo, esse regime ou
conduzirá a uma consolidação e generalização
da hegemonia americana ou, diversamente, acentuará
suas características multipolares, gerando
uma ordem mundial algo semelhante à do século
XIX.”
Hélio Jaguaribe
A guerra dos Estados Unidos, com apoio anglo-australiano, contra o Iraque
constitui um evento da máxima importância e gravidade no atual sistema internacional,
como parte de um fenômeno mais amplo de luta pela reestruturação
do sistema mundial e pela liderança dentro deste. Lamentavelmente, os pretextos
levantados pelos dirigentes de Washington acabaram pautando os grandes
meios de comunicação e, através deles, deturparam uma análise propriamente
científica nos meios acadêmicos. Nesse sentido, o presente artigo, dirigido a
um público qualificado, visa levantar alguns pontos para uma reflexão mais realista
e menos ligada às diversas conjunturas, com suas explicações post facto,
efetuadas por analistas que apenas recobrem superficialmente com considerações
acadêmicas uma visão predominantemente jornalística e ideológica, próxima
de uma propaganda política oficial. Assim, vamos diretamente ao ponto: a
guerra teve como objetivo estratégico outros adversários potenciais, e não o
Iraque exclusivamente.
Paulo Fagundes Vizentini
Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 1, p. 7-20, jun. 2003
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A diplomacia norte-americana na passagem
do século
A administração republicana de George W. Bush iniciou sob o signo da
confrontação com o chamado “eixo do mal” e do unilateralismo em relação aos
aliados e às organizações internacionais, tanto conceitualmente como em sua
aplicação prática. O atentado de 11 de setembro, um episódio ainda obscuro,
serviu de catalisador e legitimador à agenda anteriormente anunciada pelo novo
governo no plano internacional.1 Dessa forma, a guerra ao terrorismo serviu para
resgatar a confiança interna da população, mas gerando, simultaneamente, um
clima assim definido pelo famoso escritor inglês John Le Carré: “O público nos
EUA não está sendo só enganado. Está sendo ameaçado e mantido num estado
de medo e ignorância permanente” (FSP, 2003).
Paralelamente, Washington tentava reafirmar-se internacionalmente, mostrando
que seu poder não fora corroído e que o mundo continuava sendo o mesmo
de antes dos atentados. Depois do golpe sofrido, fez-se necessário reafirmar
ainda mais o poder e relançar a hegemonia norte-americana de forma
explícita, diferentemente da sutileza empregada por Clinton, através das organizações
internacionais (Pecequilo, 2000). Mas a França e a Alemanha, respectivamente
potências diplomático-nuclear e econômico-financeira, que são o núcleo
duro da União Européia, um ano depois dos atentados, pareciam não mais
aceitar incondicionalmente a estratégia norte-americana.
O apoio da Inglaterra e de países de segunda linha, como os mediterrâneos
e os europeus orientais, não chegaram a compensar a ausência de seus
velhos aliados de peso na guerra anterior contra o Iraque. Da mesma forma, os
aliados árabes da Casa Branca temiam por sua legitimidade e estabilidade. A
reeleição de Ariel Sharon em Israel, por outro lado, contribuiu para reforçar a
política da Casa Branca para a região. A guerra contra o Iraque aprofundou ainda
mais o abismo entre os dirigentes árabes e suas populações, um cenário que
parece não preocupar Washington. Apenas as minúsculas petromonarquias do
Kuwait, Bahrein e Qatar apoiaram os EUA abertamente.
A pressão sobre os aliados europeus e árabes representou, mais do que a
simples busca de legitimidade diplomática para o desencadeamento da guerra,
1 Agenda colocada em prática em episódios como o abandono do Protocolo de Kyoto e da
Conferência da ONU sobre o racismo, bem como no abandono da política de conciliação que
o Presidente Clinton havia encetado com Irã, Coréia do Norte e China antes do 11 de
setembro (Vizentini, 2002).
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A guerra contra o Iraque, o "império" norte-americano e a crise sistêmica
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uma forma de subordiná-los à lógica da supremacia norte-americana e a necessidade
de obter apoio financeiro para o conflito que, devido à necessidade de
ocupar e reconstruir a infra-estrutura e o Estado iraquianos, seguramente teria
um custo bem mais elevado. Vale lembrar que, na segunda Guerra do Golfo (a
primeira foi a de Iraque versus Irã), os EUA contribuíram com, aproximadamente,
três quartos dos meios militares e apenas um quarto dos recursos financeiros.
Em meio a dificuldades econômicas e tentando estabelecer certa autonomia
internacional, os aliados da guerra anterior buscaram, então, se desengajar
do conflito.
Da mesma forma, Rússia, China e França, membros permanentes do Conselho
de Segurança da ONU, mostraram-se contrariados com a forma unilateral
pela qual a superpotência norte-americana passou a tratar os assuntos internacionais.
Além disso, os dois primeiros sentem-se, indiretamente, ameaçados
pela guerra ao terrorismo. Por outro lado, vigorosos movimentos pacifistas espalharam-
se pelo mundo, inclusive nos EUA. Já a Inglaterra, que, entre as duas
guerras mundiais, transferiu a seus descendentes do outro lado do Atlântico a
hegemonia do sistema mundial anglo-saxão (por falta de meios frente ao desafio
alemão), mantém sua presença como potência apenas na condição de aliada
subordinada de Washington, sempre contra os interesses do continente europeu.
Por outro lado, entre 1991 e 2001, houve uma estranha e sutil cumplicidade
entre Bagdá e Washington, pois o embargo permitiu a Saddam manter o seu
poder. O regime iraquiano jogou com os inspetores da ONU, pois essa era sua
única maneira de fazer política internacional. Depois, iniciou um processo de
normalização diplomática com os europeus, com os vizinhos árabes, com a
Rússia e com a China. Já os EUA, face a uma virtual ameaça iraquiana (propositalmente
exagerada pela Casa Branca), obtinha um excelente pretexto para
manter sua presença militar na região, através da qual controlava aliados cada
vez mais ambíguos, como a Arábia Saudita. Mas as coisas mudaram depois do
11 de setembro. Fatores geopolíticos e econômico-estratégicos, como o controle
da região e do petróleo, foram decisivos, além de representar uma oportunidade
de propiciar uma demonstração de força e a construção de uma nova geração
de armamentos.
Sentido que a hora da verdade havia chegado, e sem meios para resistir,
Saddam teve medo e fez todas as concessões solicitadas, numa desesperada
tentativa de sobreviver. Ganhando a simpatia de algumas potências, mas sem
demover os EUA de seu intento, ele recuou suas forças para as cidades, como
meio de evitar uma deserção em massa e utilizar a população como escudo
humano. A máquina militar norte-americana teria, então, que invadir os centros
urbanos, sofrendo baixas e causando um elevadíssimo número de mortes entre
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a população, o que implicaria um custo político-diplomático excessivamente
alto. Tudo isso para evitar o ataque que, uma vez desencadeado, produziria o
colapso do cambaleante regime iraquiano. Ou seja, o resultado do conflito estaria,
no plano diplomático, determinado antes mesmo do seu desencadeamento.
A terceira Guerra do Golfo e suas
conseqüências
Sentindo que a posição francesa, a russa e, mesmo discretamente, a chinesa
não seriam vencidas no Conselho de Segurança2 e que a oposição à guerra
pela França, pela Bélgica e, surpreendentemente, pela Alemanha bloqueou o
mecanismo militar da OTAN, os Estados Unidos desistiram de votar a moção na
ONU autorizando o uso da força e partiram para a guerra apoiados apenas pelos
governos da Inglaterra, da Austrália e da Polônia. Tony Blair ficou em posição
delicada (no início, chegou a manifestar-se contra o uso da força) pela oposição
interna, e o apoio dos demais foi apenas simbólico. Antes, durante e depois da
guerra, os movimentos pela paz realizaram manifestações gigantescas, com
efeitos políticos importantes, especialmente em países cujos dirigentes apoiavam
politicamente o ataque, como a Espanha, a Itália e a Inglaterra.
O ataque iniciou em 20 de março, e, em menos de um mês, o regime
iraquiano foi derrotado e o País ocupado pelas tropas anglo-americanas. Foi um
resultado sem grandes surpresas para os que, desde o início, interpretaram
corretamente o problema. Agora, busca-se analisar as conseqüências e os possíveis
desdobramentos do conflito. Primeiramente, a previsível vitória militar norte-
americana teve um enorme custo político-diplomático, que apenas começou
a se manifestar. Os movimentos pacifistas transformaram-se numa influente
corrente política internacional, que não refluiu com o final da guerra, até porque
os EUA logo passaram a ameaçar a Síria.
Algo notável, que todos observam, mas poucos comentam, é que as armas
de destruição massiva não apareceram e que o “poderoso” exército iraquiano
só existia na propaganda política. Enfim, a ameaça que o ditador do Iraque
representava era fictícia. Mesmo assim, algumas centenas (ou mesmo dezenas)
de milicianos com armas leves e ultrapassadas causaram embaraços e
perdas às tropas norte-americanas, desgastando a teoria da “guerra com morte
zero”. Por fim, a morte de jornalistas que realizavam uma cobertura objetiva, o
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2 Ao que se somou a recusa dos países do Terceiro Mundo que integravam o Conselho,
inclusive aliados latino-americanos, como Chile e México.
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caos e os saques tolerados pelas tropas de ocupação e a misteriosa pilhagem
dos museus deixaram no ar uma série de perguntas cujas respostas ainda
causarão embaraços futuros.
Mas há outras especulações mais graves: a “evaporação” da Guarda Republicana.
Em 27 de março, uma semana depois de iniciada a Guerra, as forças
anglo-americanas não haviam conquistado nenhuma cidade importante (apesar
das proclamações iniciais), e suas colunas avançadas haviam atingido o primeiro
anel defensivo iraquiano em Kerbala/Nadjaf/Hilla. A forte resistência de 30 mil
guardas republicanos e as baixas ocasionadas às extensas linhas de suprimento
norte-americanas pelos fedayns levaram os comandantes a solicitarem um
reforço de 120 mil soldados. Sem receber os reforços, mas empregando bombas
não identificadas, superaram a resistência iraquiana, que desapareceu súbita
e completamente. O mesmo aconteceu em 7 de abril, quando 40 mil guardas
republicanos trazidos de Tikrit montaram uma vigorosa ofensiva contra as
unidades da coalizão que haviam ocupado o aeroporto Saddam Hussein em
Bagdá.
Isso não seria novidade, pois munições de urânio empobrecido foram empregadas
contra o Iraque em 1991 e contra a Iugoslávia em 1999. Em contato
com elas ou no campo de batalha, 140 mil soldados norte-americanos contraíram
diversas formas de câncer, ocasionando deformações genéticas nos filhos,
e milhares já morreram. Sessenta mil dentre eles já obtiveram o status de inválidos
de guerra, e os demais demandam tal reconhecimento e compensação
na Justiça norte-americana. Sobre as populações locais, não há informações
(LE CRI..., 2003). De qualquer forma, o exército iraquiano era fraco, e, nessa
guerra (especialmente nas referidas batalhas), o que estava em jogo não era a
vitória (que era apenas uma questão de tempo), mas um certo custo político
provocado por eventual excesso de baixas. Por outro lado, isso evidencia
as limitações do exército norte-americano, que Liddel Hart já havia identificado
na Segunda Guerra Mundial. Não é o caso da marinha e da força aérea, que
possuem excelente capacidade operacional.
O Oriente Médio pós-Saddam
Com o encerramento das operações militares convencionais no Iraque e o
fim do regime de Saddam Hussein, começa a esboçar-se um novo mapa político
no Oriente Médio. O proclamado poderio militar iraquiano não existia, e a vitória
anglo-americana foi relativamente fácil, mas agora se inicia a difícil fase de estabelecer
um regime iraquiano estável. A ocupação militar norte-americana deve
ser complicada, pois começam a emergir as contradições internas do Iraque,
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anteriormente contidas por um regime autoritário: curdos de várias facções, xiitas
poderosos, um centro sunita enfraquecido e um governo oriundo de uma oposição
dividida e com poucas bases de apoio interno.
Ao mesmo tempo, a situação social e econômica é desfavorável, além de
a população ter em seu poder aproximadamente três milhões de armas de fogo,
que serão empregadas tanto com fins políticos como criminais. A queda da
ditadura, por outro lado, gerou um clima de ansiedade nos demais regimes de
países árabes ou muçulmanos, pró ou antiamericanos, todos eles autoritários.
Apenas o Irã e o Líbano possuem eleições realmente disputadas.3 Por fim, a
presença de tropas americanas gera um fator de reação que, num curto prazo,
deve adquirir força, especialmente se forem instaladas bases permanentes no
Iraque.
A fácil vitória militar, por sua vez, teve um custo político inesperado para
Washington, face aos cálculos iniciais. A Turquia, a Arábia Saudita e o Paquistão
adotaram uma política crítica e tendem a agir com maior independência. A Turquia,
além de limitar a presença militar norte-americana, tem certo poder de
influência no novo Iraque, numa postura anticurda. Os sauditas, por seu turno,
solicitaram a retirada das bases americanas estabelecidas em seu território em
função da anterior guerra contra o Iraque, e, por essa razão, os EUA pensam
estabelecer bases neste último, bem como um controle sobre o petróleo. No
caso da Arábia Saudita, a Casa Branca tem na memória o choque da perda de
um aliado estratégico, como ocorreu em relação ao Irã em 1979. Já foi anunciada
oficialmente a retirada de bases norte-americanas da Arábia Saudita (ironicamente,
uma das reivindicações de Bin Laden, líder da organização terrorista Al
Qaeda).
Os custos da ocupação do Iraque devem ser qualitativamente maiores que
no Afeganistão, onde uma guarnição norte-americana estabelecida em Cabul e
na base aérea de Bagram garante um governo sem poder real, sendo necessário
pagar aos chefes tribais para combaterem os talibãs, que continuam ativos.
A lealdade desses chefes é duvidosa, pois eles entregaram aos EUA apenas
prisioneiros sem importância (nenhum dirigente), e as tropas da Aliança do Norte
permanecem sob certa influência russa. Além disso, a apreensão dos vizinhos
iraquianos, pró ou contra os Estados Unidos, tem um peso maior que em
relação ao Afeganistão (uma periferia sem petróleo).
Mas a questão central consiste no que fazer depois. Nesse sentido, mais
uma vez Washington procura agir pela linha de menor resistência, escolhendo o
alvo mais fácil, no caso a Síria, país sem petróleo e encravado entre regimes
3 Sobre a região, ver Vizentini (2002).
A guerra contra o Iraque, o "império" norte-americano e a crise sistêmica
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pró-norte-americanos (Turquia, Israel, Jordânia e, agora, Iraque). A Síria, aliada
do Irã e próxima da França, controla o regime libanês e é o único país a confrontar
Israel (através do grupo xiita libanês Hezbollah), para não falar do contencioso
das colinas de Golã, ocupadas pelo Estado hebreu. É preocupante que, devido
ao descaso em relação ao Direito Internacional, o ônus da prova não cabe mais
ao acusador. Assim, o Presidente Bush já acusou Damasco de possuir armas
de destruição massiva, de ter ajudado militarmente o regime iraquiano e de
estar dando refúgio aos líderes deste, sem levar em conta que eles são inimigos
históricos e que a Síria apoiou os EUA em 1991.
A visita do Ministro das Relações Exteriores da França à Síria, ao Egito, à
Arábia Saudita e ao Irã mostra que os europeus, com apoio da Rússia, não
estão dispostos a permitir uma nova guerra nessa região, já fragilizada do
ponto de vista geopolítico. Se Bagdá possuía uma situação político-diplomática
frágil (agressora e ditatorial), embora estivesse no caminho da normalização,
tal não é o caso de Damasco, que vive plena normalidade diplomática com a
comunidade internacional. Mas a guerra seria tentadora para os EUA, pois criaria
um espaço compacto sob seu controle e deixaria Israel sem adversários em
seu entorno imediato.
Os objetivos econômico-estratégicos dos EUA no conflito, por sua vez,
extrapolam a questão iraquiana e são mais claros a cada dia. O anunciado
plano de paz prevendo a criação de um Estado palestino em 2005, em troca da
segurança de Israel, conhecido como Mapa de Rota, retomaria as negociações
entre ambos e constituiria uma compensação norte-americana aos árabes. Paralelamente,
o Presidente Bush anunciou a intenção de criar uma zona de livre
comércio entre os EUA e o Oriente Médio, o que propiciaria meios para a estabilização
dos regimes pró-norte-americanos e consolidaria os interesses econômicos
de Washington na região em detrimento daqueles dos concorrentes
europeus.
Mas a verdadeira cruzada que Washington iniciou contra o mundo islâmico,
com seus regimes “politicamente incorretos” e militarmente incapazes de se
defender, arrisca a envolver os EUA em problemas complexos e custosos, política
e economicamente. Por detrás da diplomacia russo-européia (apoiada pelo
“silêncio” sino-japonês) e dos movimentos pacifistas, o mundo deseja o fim dos
conflitos que desembocam em novos conflitos e a retomada do crescimento
econômico, depois de três anos de estagnação global.
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Uma vitória de Pirro: transformando aliados
em rivais
As principais conseqüências do conflito já eram observáveis em suas causas,
ou seja, antes da guerra. O declínio da produção norte-americana, os
endividamentos externo e interno e o excesso de importações (o déficit comercial
anual, que era de US$ 100 bilhões em 1990, atingiu US$ 450 bilhões em
2000)4, fizeram o País depender agudamente da produção e do investimento
estrangeiro, especialmente europeu e japonês. O saldo negativo nas contas
norte-americanas deve ser coberto, a cada ano, pelo ingresso maciço de capital
externo. Além disso, o hiperconsumo doméstico torna o País dependente de
outras áreas, que precisam ser mantidas sob influência dos EUA.
Mas a globalização e sua liberalização comercial criaram um mundo onde
os blocos econômicos são uma realidade emergente, especialmente com o
desaparecimento de qualquer ameaça séria à paz mundial, devido ao fim da
Guerra Fria. Ora, essa dupla tendência está tornando os Estados Unidos uma
superpotência relativamente dispensável, tanto em termos político-militares como
econômicos, ainda que não imediatamente. A percepção dos riscos futuros contidos
nesse processo de perda de vitalidade, aliada à ilusão de poder decorrente
do colapso do bloco soviético, fez os EUA optarem por uma estratégia imperial,
buscando construir uma nova hegemonia.
O problema é que os meios para tanto não mais existem. Se os Estados
Unidos estão superarmados como nação, faltam-lhes os meios militares para
poderem controlar e estabilizar um planeta complexo, povoado e problemático,
cujas potencialidades foram dinamizadas pela globalização. Mais ainda, os sucessivos
governos norte-americanos não têm conseguido criar uma estratégia
coerente e, menos ainda, aplicá-la sistematicamente, optando por uma linha de
menor resistência, caso a caso. Não podendo manter o controle econômico
sobre o Japão e a União Européia, muito menos desarmar ou desagregar a
Rússia (única potência ainda com capacidade estratégico-militar equivalente),
Washington optou por desenvolver um militarismo teatralizado contra os mais
fracos integrantes do “eixo do mal”, os países árabe-muçulmanos, que não possuem
capacidade de defesa.
Ao exagerar perigos que não existem na dimensão apregoada, a Casa
Branca fomenta um campo de conflitos que lhe permite resgatar sua utilidade
militar para a comunidade internacional, que, ao mesmo tempo, assiste a um
4 Disponível em: http://www.census.gov/foreign-trade
A guerra contra o Iraque, o "império" norte-americano e a crise sistêmica
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show de poder que recomenda maior tolerância dos aliados para com as necessidades
da potência “protetora”. O problema é que o ritmo e a forma com que
essa política está sendo desenvolvida têm produzido o resultado oposto. A autonomia
da diplomacia francesa ressurgiu com força, a Alemanha surpreendeu ao
opor-se a Washington pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, e a
Rússia, considerada vencida, reapareceu na cena internacional, estabelecendo-
-se um eixo Paris-Berlim-Moscou, que representa exatamente o que os EUA
desejariam evitar. O controle sobre o Oriente Médio, por sua vez, está longe de
assegurado, pois o real problema é a ascendência cada vez mais precária sobre
aliados antigos, como Turquia, Paquistão e Arábia Saudita, os novos “elos fracos”,
que ameaçam escapar do controle.
A insistência dos EUA, durante a atual administração, em exibir poder
perante o mundo, agindo unilateralmente e, inclusive, como “Estado louco”, na
expressão de Emmanuel Todd, é, por si só, um signo de fraqueza ou percepção
de fraqueza. Já Maquiavel considerava que o bom príncipe deve reinar mais pela
sabedoria e astúcia e menos pelas armas, que seriam complementares. Segundo
a apresentação do livro Après l’ Empire, de Emmanuel Todd (2003),
“(...) não haverá império americano. O mundo é demasiado vasto,
diverso e dinâmico para aceitar a predominância de uma única potência.
O exame das forças demográficas e culturais, industriais e monetárias,
ideológicas e militares que transformam o planeta não confirmam a
atual visão banal de uma América invulnerável”.
E, numa visão prospectiva, esse autor acrescenta que
“(...) um quadro realista [mostra] uma grande nação cuja potência foi
incontestável, mas que o declínio relativo parece irreversível. Os
Estados Unidos eram indispensáveis ao equilíbrio do mundo; eles
não podem hoje manter seu nível de vida sem os subsídios do mundo.
A América, pelo seu ativismo militar de teatro, dirigido contra Estados
insignificantes, tenta mascarar seu refluxo. A luta contra o terrorismo,
o Iraque e o ‘eixo do mal’ não são mais do que pretextos. Porque ela
não tem mais a força para controlar os atores maiores que são a
Europa e a Rússia, o Japão e a China, a América perderá esta última
partida pelo domínio do mundo. Ela se tornará uma grande potência
entre outras” (Todd, 2003).
Assim, a postura unilateral dos EUA frente a seus próprios aliados representa
menos uma descortesia do que a tentativa de manter a subordinação dos
mesmos. Exatamente por isso, está emergindo o eixo Paris-Berlim-Moscou
(que implicitamente abarca Beijing e Tóquio), que representa o verdadeiro problema.
Este já denominado “eixo da paz”, e não o “eixo do mal”, constitui o real
desafio. Nos dois extremos da Eurásia emergem bases produtivas dinâmicas,
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interligadas por uma Rússia ainda militarmente autônoma e capaz de responder
ao armamento estratégico norte-americano. Uma Rússia que há três anos voltou
a crescer economicamente. Depois de estabelecer uma parceria estratégica
com a China há dois anos, Putin declarou, no Bundestag em Berlim, em
setembro de 2002, que a Europa e a Rússia devem colaborar nos planos militar
e econômico, proposta bem-recebida pelos europeus. Assim, a intervenção norte-
americana no Oriente Médio e na Ásia Central, iniciada com a invasão do
Afeganistão, possui uma lógica geopolítica racional e clara: quebrar a chamada
ponte eurasiana antes que ela se consolide.
Um império virtual, a crise sistêmica
e a multipolaridade
Mas esses países, que desejam um lugar ao sol na estrutura mundial de
poder (e não afrontar os EUA), não podem ser enfrentados diretamente por
Washington. Daí a estratégia indireta que está sendo empregada contra os fracos
Estados da linha de fratura, e, nesse sentido, a obra de Brzezinski (exassessor
do Presidente Carter) é bastante clara (Brzezinski, 1997). E a regressão
do ethos universalista norte-americano, condição indispensável para a construção
de um império, foi explicitada em obras como O Choque de Civilizações,
de Huntington (1997). Assim, a diplomacia norte-americana está abrindo
mais contenciosos do que pode dar conta, e a racionalidade de um tal comportamento
está em evitar a emergente multipolaridade.
A Europa possui o euro, e o núcleo duro da UE oficializou, logo após a
Guerra do Iraque, a criação de um exército independente da OTAN e dos EUA;
a Rússia já superou o pior e volta ao grande jogo internacional. Se, por um lado,
é mais fraca que a antiga URSS, por outro, isso facilita suas alianças com a
Europa Ocidental e a Ásia Oriental, na medida em que não é mais percebida
como ameaça (papel que hoje cabe aos EUA). A China continua a crescer economicamente
e a capacitar-se militarmente, enquanto o Japão resiste e os Tigres
Asiáticos mantêm sua pujança. A Índia, por sua vez, recusou o Tratado de
Não-Proliferação Nuclear e manteve sua capacidade atômica, enquanto o Irã
busca adquiri-la, em aliança com a Rússia. Enfim, o Brasil e a África do Sul
passaram a desenvolver uma diplomacia mais independente, a forjar um espaço
regional de influência e a apoiar a construção de um mundo multipolar.
Segundo o decano do estudo das relações internacionais no Brasil e exconselheiro
do Presidente Fernando Henrique Cardoso, Professor Hélio Jaguaribe,
A guerra contra o Iraque, o "império" norte-americano e a crise sistêmica
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“(...) a instabilidade do presente sistema internacional tende a conduzilo,
até meados do século, a uma alternativa básica: consolidação da
hegemonia americana, gerando um longo período de Pax Americana,
ou, diversamente, formação de um novo sistema multipolar, em que
os Estados Unidos deverão, seguramente, exercer um papel relevante,
mas em que tenderão a ser também relevantes países ou sistemas
como China, Rússia, União Européia e alguns outros. As mais
importantes variáveis para o segundo cenário são, por um lado, o
continuado desenvolvimento da China e a superação, pela Rússia, de
suas condições caóticas e, por outro lado, a adoção pela UE de uma
política externa e de defesa própria. Não dispondo os Estados Unidos
de condições para a eliminação de rivais (China e Rússia) ou preventivo
controle da UE, a tendência de que venha a prevalecer, em meados
do século XXI, uma ordem mundial multipolar — em detrimento da
Pax Americana — depende, predominantemente, mas não
exclusivamente, de um exitoso desenvolvimento chinês” (Jaguaribe,
2001).
Tanto Todd como Jaguaribe apresentam análises extremamente
instigantes, que superam largamente as visões superficiais e ideológicas (de
direita e de esquerda), tão comuns sobre esse tema. Detectam, com muita
argúcia, a emergência gradual e sistemática de novos pólos de poder e, por
conseqüência, de um sistema mundial multipolar. E é contra esse fenômeno
que os EUA se mobilizam. Contudo, por suas crescentes dificuldades internas
e externas devidas à interdependência da economia mundial, não é possível
enfrentar os problemas frontalmente. Interessantemente, o desafio maior parte
da situação objetiva de busca de autonomia por parte de aliados, como a Europa
e o Japão (em relação à qual seus líderes não têm total consciência). Mesmo
a Rússia e a China tentam, de alguma maneira, cooperar com os EUA, mas a
realidade os empurra em direção oposta, para desgosto dos novos capitalistas
de Moscou e dos reformistas de mercado de Beijing.
Mas há alguns aspectos a complementar ou questionar. Certamente, os
EUA continuarão sendo os maiores jogadores internacionais por certo tempo,
mas uma neo-hegemonia parece cada dia mais problemática, devido ao contínuo
desgaste de alguns elementos fundamentais do poder norte-americano,
como a incapacidade de produzir consenso. Não se trata de algum desafio
militar, que somente existe em relação à Rússia, mas de algumas tendências
inquietantes no campo econômico. A confiança na segurança dos papéis norte-
-americanos foi abalada pelas fraudes escandalosas, como as da Enron, a situação
das Bolsas de Valores permanece frágil, e a indústria norte-americana
perde terreno a cada ano, num quadro em que emerge o euro e novos pólos
Paulo Fagundes Vizentini
Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 1, p. 7-20, jun. 2003
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econômicos. A função de garantir a demanda global que os EUA ainda têm pode
desaparecer de forma mais ou menos rápida se, por alguma razão, o afluxo de
capital externo for limitado.
Evidentemente, trata-se somente de tendências que apenas agora começam
a emergir, sendo os EUA ainda a única superpotência, governada por um
grupo de falcões, que é capaz de iniciar novas guerras, mesmo contra a vontade
da comunidade internacional e de suas instituições. Contudo o que está sendo
apontado como uma demonstração de força pode ser interpretado como uma
prova de debilidade crescente em meio a uma crise sistêmica, simultaneamente
econômica e política. A questão é saber se os EUA vão gastar com suficiente
inteligência a energia que lhes resta, durante a contagem regressiva para a
emergência de novos pólos de poder, como forma de criar um sistema mundial
onde seu papel ainda seja predominante, em lugar de qualquer utopia imperial.
Sem espaço para desenvolver o tema, apenas lançamos algumas idéias que
necessitam ser debatidas e aprofundadas, mas cremos que os problemas internacionais
(e dos EUA) são hoje maiores que antes do ataque ao Iraque.
Referências
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Paulo Fagundes Vizentini


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