quinta-feira, 3 de junho de 2010

239 - GRÉCIAANTIGA VERSUS GRÉCIA CLÁSSICA

A CONSTITUIÇÃO DO DIREITO NA GRÉCIA CLÁSSICA*
THE CONSTITUTION OF THE RIGHT IN CLASSIC GREECE
VALÉRIA REIS SANTOS**
Resumo
Esse artigo consiste numa análise da história da constituição do
Direito na Grécia Arcaica através do teatro trágico de Ésquilo. Esse
estudo enfatizou uma análise filológica, observando o contexto e sua
especificidade.
Abstract
This article analyses the history of law in the Archaic Greek, through
the Eschylo’s tragedy. This study consists in a filological analisis,
observing the context and its peculiarity.
Palavras-Chaves
Direito – Política – Tragédia – Grécia – Antiguidade
Keywords
Law – Politics – Tragedy – Greek - Archaic
O mundo grego do V século a.C. apresenta-nos um contexto jurídico-político
específico, o qual pode ser estudado através de suas manifestações culturais ao levantarmos a
questão do sujeito trágico e de sua inserção num momento conturbado, de transformações
significativas, tanto de ordem política quanto social.
Acreditamos que nesse período inscrevem-se não só as tragédias gregas, mas também
uma nova concepção de mundo e uma nova forma de relação entre os homens, através da
ordem democrática e da isonomia – a igualdade perante as leis. Esse momento pode ser
* Artigo recebido em 14.07.2003 e aprovado em 26.08.2003.
** Graduada em Letras (Língua e Literatura Grega) pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Mestre
em História pela UFF. Profa. Substituta de Grego da UFF e do Curso de Letras da Universidade Estácio de Sá.
2
entendido como um período de transição da tirania para a democracia, e os poetas trágicos do
V século a.C. deixam transparecer, em grande parte de sua obra , resquícios da ordem
isonômica de Sólon, em 594 a.C., poeta lírico e legislador, que teria promulgado as primeiras
leis escritas do mundo ocidental.
Esse momento de transição seria, na verdade, uma adaptação às reformas de Clístenes,
empreendidas em 506 a.C., o que nos levaria a perceber um perfil conflituoso da sociedade
ateniense e tendo seu correlativo nos questionamentos e ambigüidades do herói na obra
trágica.
Dessa forma, esse artigo propõe-se estabelecer uma discussão historiográfica acerca das
origens do Direito grego e do seu campo semântico, através de uma análise dos aspectos
discursivos das tragédias do poeta Ésquilo, com o objetivo de enfocar essa ambigüidade do
lógos trágico, o qual se adequa a esse momento de transição.
Segundo Aristóteles, a etimologia da palavra drama teria origens: dórica - drân e ática -
práttein , ambas com acepção de agir . Para Jean-Pierre Vernant, as dúvidas e incertezas quanto
ao destino levariam o sujeito trágico ao ato de "deliberar consigo mesmo" antes de agir,
promovendo uma ação, muitas vezes, de desafio ao destino (Vernant, 1988: 36-37).
A nova concepção do Direito deve-se, sobretudo, à sua secularização e à valorização da
cidadania, bem como o espaço ganho pelo público em relação ao privado, e à valorização do
homem e de seus atos em relação aos valores cristalizados dos antepassados. Para estes valores,
Louis Gernet localiza as origens num comportamento, cujo fundamento seria a obrigação
delictual e aponta para a palavra creoV - khréos, dívida - como seu correlativo que implicaria o
constrangimento que pesa sobre o devedo, ou seja, um compromisso, um dever de cunho religioso
(Gernet, 1982 ).
No pensamento arcaico, Zeus teria outorgado aos homens duas virtudes diretamente
ligadas a Khréos : dikh - díke e aidwV - aidos , justiça e reverência religiosa, respectivamente. A
partir desses dois conceitos, podemos compreender um tipo de comportamento em que a
preocupação com a opinião pública regularia as formas de conduta social. A formação de
grupamentos (quase familiares) chamados frátrias poderia estar ligada aos novos costumes
que acabariam por fomentar as novas associações na região da Ática.
3
O conceito de khréos, estaria associado a um sentido mais antigo do Direito, que
imputaria aos envolvidos não apenas o direito, mas também o dever de vingança, pois os laços
internos da frátria seriam sedimentados pelo compromisso entre os indivíduos, que se
utilizariam do eranoV - éranos , empréstimo ou contribuição para reforçá-los.
O confronto entre o Direito de Família e o Direito Novo dos Tribunais pode ser
atestado em Suplicantes, tragédia grega de Ésquilo, encenada em 463 a.C., que mostra o valor da
dívida, khréos, num contexto remoto e a sua inserção num jogo lingüístico elaborado pelo
poeta trágico.
O mito representado é o de Dânao e de suas filhas, que fogem do Egito. Os fugitivos
vão para a pólis de Argos e suplicam asilo ao rei Pelasgo, alegando um parentesco jônico.
Entre a lei do parentesco e a possibilidade de uma guerra com o Egito, Pelasgo abstrai-se da
decisão frente à soberania do tribunal do povo.
A freqüente ocorrência da palavra khréos mostra-nos a dívida em função de um
parentesco reivindicado pelas Danaides, filhas de Dânao. Ao mesmo tempo em que o poeta
imputa à cidade de Argos as novas leis pautadas na soberania do povo, coloca as Suplicantes
numa posição de desconhecimento do processo de deliberação e de votação, pautando seu
discurso nos costumes e leis do Direito Arcaico.
Na tragédia, a personagem do rei, personificada por Pelasgo, ao dirigir-se às
estrangeiras menciona a falta de um próxenos para acompanhá-las; o próxenos , segundo Marcos
Alvito P. de Souza (Souza, 1989) em seu artigo sobre a alteridade na Grécia, seria um cidadão
escolhido pelos habitantes de uma determinada pólis para defender os interesses de seus
habitantes em outra pólis. A proxenia seria considerada praticamente uma instituição a partir
do V Século a.C.
A passagem a seguir mostra-nos o momento em que o coro dirige-se ao rei utilizando
uma forma de tratamento, a qual reconheceria na pessoa do rei a sede do Estado e do governo:
Su toi poliV , su de to dhmion,
prutani akrito wn
kratunei bwmon, estian cqonoV ,
monoyhjoisi neumasin seqen,
monoskhptroisi d en qronoi creo
4
Tu és a pólis, tu és o povo, sendo chefe do Conselho
Supremo (prýtanis) ordenas os sacrifícios, és a terra,
deténs o único voto (monopséphoisi), deténs sozinho o
cetro (monosképtroisi) no trono.
(vv. 370-374 )
Pelasgo apresenta-se como o sujeito trágico por excelência, pois interpõe-se entre os
dois Direitos, observando a polução - miasma , que se sucederá caso não dê asilo às Danaides. O
herói trágico encontra-se no conflito gerado pelo reconhecimento de práticas ligadas ao
compromisso do indivíduo com o seu genos e sua frátria, ao mesmo tempo em que se reconhece
fazendo parte de uma comunidade política, cujo vínculo pelo sangue e nascimento são suplantados
pela pertença a um demos, uma espécie de comarca que se apresenta como uma nova divisão
dos corpo político da pólis de Atenas. O conflito do herói pode ser identificado na passagem
que recortamos a seguir:
Ei men gar umin mh tod ekpraxw creo ,
miasm elexaV .
Se não executo esta dívida, tu falas de uma
desgraça que não está acima do meu alvo (de mim)
(vv. 472-473)
Ao considerarmos o contexto que subjaz a tragédia como um momento de transição de
algumas práticas do Direito Arcaico para o dos Tribunais, percebemos que Ésquilo posiciona
as Danaides numa situação de desconhecimento das novas leis, entremeando o seu discurso
com palavras , cuja etimologia apresenta substratos lingüísticos do velho associados ao novo.
Vernant afirma que na boca das Danaides a palavra krátos participa do campo
semântico de bía - violência, designando força brutal, opondo-se à justiça. Esta ambigüidade
seria intencional, pois o foco da tragédia seria a interrogação sobre a verdadeira natureza do
krátos, ou seja, definir se o poder se encontra no plano da persuasão ou da violência (Vernant,
1988: 31)
5
É significativa a forma como as Suplicantes, referem-se ao pai, Dânao, por exemplo,
como sendo BoularcoV - bularchos, o primeiro no conselho (bulé + arché) e stasiarcoV -
stasiarchos, chefe de facção (stasis + arché), nos versos 12 e 13; a palavra bulé refere-se ao contexto
dos Tribunais. Vernant observa que a palavra bulé estaria ligada à "aspiração penetrada de razão",
destinada à consumação do ato - boulesis. Da raiz bul - teríamos o verbo búlomai, designando o
querer e participando do campo semântico do "desejo de agir", do qual fariam parte os verbos
buleuo, buleuomai - deliberar.
Cynthia Farrar explica que, ainda no contexto arcaico, através de Hesíodo - Os
Trabalhos e os Dias - poderíamos compreender a relação de trocas realizadas entre as grandes
famílias. A imagem de reciprocidade emerge de uma prática de trocas fundada na cariV -
kháris , gratidão - e jilia - philía, amizade entre iguais. Ela observa que este tipo de troca
entre indivíduos existia entre membros de oikoi - oikoi, propriedades vizinhos, num contexto
em que a oferta de presentes criava uma expectativa de "retorno" sob a forma de um benefício
maior.
Podemos detectar essas práticas nos versos em que Dânao dirige-se às filhas para expor
o resultado da votação que lhes conferiu asilo em Argos, mostrando a necessidade de se
retribuir aos Argivos e aos deuses, oferecendo libações - spondas, a honra que lhes foi
concedida.
W paide Argeioisin eucesqai crewn
quein te leibein q w qeoi Olumpioi
sponda , epei swthre ou dicorropw
pracqenta pro tou eggenei filw
Oh filhas é necessário oferecer preces e
libações (spondas), aos Argivos e aos Deuses,
pois não se dividiram ( vacilaram ) em nos salvar
(...) fazendo executar amigavelmente ( phílos )
por causa do parentesco ( engeneis ) - (vv. 980-984)
Dânao é um personagem igualmente ambíguo, visto que a sua compreensão da
situação transita pelos dois Direitos. Primeiramente, o aspecto religioso ainda se faz presente,
6
mostrando que o processo de votação tem a sanção divina, pois não foi apenas o povo o
responsável, mas os deuses também. Outro aspecto significativo é a unanimidade do povo,
configurando uma convergência de interesses, e a coesão da comunidade política .
Finalmente, ele alude ao fato de que o argumento decisivo para convencer a
Assembléia foi o compromisso face ao parentesco (engeneis), um aspecto significativo do
Direito Arcaico que é retomado pelo tragediógrafo.
Possivelmente esse aspecto pode ter sido objeto de discussão na ágora, praça pública,
face às novas alianças políticas estabelecidas por Atenas nesse período, bem como os recursos
utilizados para a sua legitimação.
Cabe-nos, nesse momento, tecer alguns comentários quanto ao aspecto da honra no
contexto pré-jurídico. A personagem Dânao constata que, através da votoção favorável, lhe foi
dada a sua parte de honra - timion geraV - tímion géras (v. 986). Neyde Theml afirma que o géras
consiste num privilégio-ofício próprio de um rei, um direito que "possibilita definir a formação de
uma hierarquia social".
Da mesma forma, a timé - parte de honra - é considerada como um presente de rei que
diz respeito muito mais à honra do que ao patrimônio do herói. Segundo a autora, esses
indivíduos só têm" existência enquanto membros de um grupo, e como tal preservam seus direitos ou deixam
de viver " (Theml, 1995: 147).
Neste tipo de relação a contrapartida estreita os laços de amizade, implicando a
retribuição e levando Dânao a proferir a sua gratidão aos Argivos:
carin sebesqai timiwteran qemi .
A gratidão (kharin) que nos levará a honrá-los ainda mais. (v. 990 )
Gernet observa que nesses grupos a figura do basileuV - basileus, rei - detinha a
qemistoV - themistos, sentença da justiça - que, na verdade, consistia no próprio oráculo. Tal
concepção está ligada à crença de uma virtude divina imputada à pessoa do rei, tendo no cetro
a sua sede e, nas palavras, o valor de revelação.
7
A crença nessa figura divina permanece na fala das Danaides que se reportam
freqüentemente ao rei utilizando o título de anax Pelasgwn - ánax Pelasgon, rei dos Pelasgos
e Anax anaktwn - ánax ánakton, Senhor dos Senhores. N. Theml aponta para a diferença
estabelecida no Sistema Político-Ideológico da Aristocracia Guerreira da Ilíada, poema épico,
em que o termo ánax sobrepõe-se a basileus como o termo mais forte do poder. O próprio
Zeus nunca seria designado por este último, pois ele reina soberanamente entre os deuses. Tal
fato pode ser corroborado na tragédia citada acima, visto que as Danaides também emitem
súplicas a Zeus, designando-o como Zeus ánax.
O anax seria responsável pela maior parte das práticas religiosas, sendo que estas
envolveriam libações - sponsioi - spónsioi, as quais consistiriam em formas de juramento para
sacramentar as alianças entre o jiloi - phíloi. Muitas vezes, esses rituais necessitavam de
juramentos que reforçassem o apelo a uma divindade em especial. Neste caso, far-se-ia
necessário a utilização da palavra oral para se explicitar. Esses juramentos eram denominados de
orkoV - horkos. Moses I. Finley atesta que o juramento, dentro do contexto homérico, seria
uma prova formal num litígio e que, no contexto clássico, quatrocentos anos depois, estaria
reduzido a mera cerimônia, embora fosse ainda exigido de todas as testemunhas (Finley, 1985:
116).
Podemos detectar esta prática em outra tragédia de Ésquilo, Sete contra Tebas, encenada
em 467 a.C., a qual apresenta uma disputa do governo da pólis de Tebas por dois irmãos,
Etéocles e Polinices, filhos de Édipo Rei, que teria sido exilado. Na disputa, Etéocles teria
ficado com o trono e Polinices, para se vingar, marcharia contra Tebas, levando mais seis
heróis estrangeiros consigo. Na passagem que recortamos, o arauto, mensageiro, dirige-se a
Etéocles para narrar os sacrifícios empreendidos pelos sete guerreiros ao mergulharem as mãos -
cersi - khersi (v. 44 ) no sangue do animal e jurarem - wrkwmothsan - horkomotésan (v. 46 )
pelas divindades Ares (deus da guerra) e Enia (deusa amiga do medo e do sangue); seu objetivo era
conseguir a benevolência dos deuses para derrubar a cidade de Cadmo. A alternativa seria a
morrer, daí o sacrifício de sangue.
Como uma das principais práticas da sociedade grega arcaica, o esvaziamento de valor
do horkos, atestado por Finley, pode ser detectado na representação do tribunal em Eumênides,
outra tragédia do mesmo poeta, que trata de um julgamento de crime de sangue, encenada em
8
458 a.C. A obra trata do assassinato de Clitemnestra cometido por seu filho, Orestes, o qual é
induzido pelo deus Apolo a vingar-se da mãe, já que esta teria assassinado Agamêmnon, seu
marido e pai de Orestes. Nesse mito encontramos o sujeito trágico representado por Orestes,
que se encontra num conflito ao ver-se obrigado a matar a própria mãe, para vingar a morte do
pai. O herói trágico sabe que será perseguido pelas divindades que vingam o sangue materno
derramado, as Erínias.
O tribunal é instaurado para o julgamento e presidido pela deusa Atena, deusa da
justiça. Ao lado de Orestes estaria Apolo para defendê-lo, e do outro estariam as Erínias, as
quais exigem que Orestes jure antes de ser julgado; mas o ato é vetado por Atená, que alega, no
verso 432, que o juramento (horkos) não torna as coisas (os ditos) justas (dikaia) nem vitoriosas
(nikan).
A característica fundamental do juramento é a sua oralidade, própria de sociedades
arcaicas como a greco-romana. Observamos, portanto, o valor das palavras proferidas
oralmente; um ato que pode ser detectado, no confronto das duas sociedades em questão,
através da tragédia Suplicantes, em que a fala de Pelasgo atesta o valor desta prática:
oud en ptucai biblwn katesjragismena,
sajh d akouei ex eleuqerostomou glwssh (...)
Nada (minhas palavras) está escrito em tábuas (o que)
escutas (provém) de uma boca livre para falar.
(vv. 947-949)
Podemos entrever, na passagem, uma certa ambigüidade de sentido, pois não devemos
esquecer que é um discurso do V século remontando a um passado distante. Nesse sentido,
observamos que as palavras proferidas pelo basileus são legitimadas pelo seu caráter divino e,
portanto, próprias de uma sociedade arcaica, mas também nos remetem às práticas da
oralidade nos Tribunais e Assembléias do V século a.C.
Na cidade de Atenas, por volta do Século VIII, estabeleceu-se gradativamente uma
descentralização do poder, através da figura do basileus; tal poder estaria, antes, no período
micênico, centralizado na figura do anax, passando, no período arcaico, às famílias mais
9
antigas, entre aquelas que possuíam mais terras, acabando por estabelecer o equilíbrio político
na transição de um poder monárquico para uma oligarquia.
Os poderes eram divididos, antes de Sólon, entre nove arcontes: um arconte eponymos,
que dava o nome ao ano, para datar os acontecimentos; um arconte basileus, chefe da religião; um
polemarchos, ou comandante militar e seis thesmothetai, ou legisladores.
A oligarquia dos eupátridas, minoria dos bem-nascidos continuou a governar a Ática
enquanto a concentração de terra intensificava-se com a prosperidade da classe mercantil e o
endividamento dos camponeses.
No início do século VII, Drácon promove uma organização sistemática dos tribunais
de sangue ordenando-os por categorias. Vernant, ao defini-los, o faz sob o ponto de vista do
“sentimento coletivo”, e mostra que os crimes sujeitos à punição plena - phónos hekoúsios - seriam
destinados ao Areópago; o phonos akoúsios - homicídios escusáveis seriam da competência do
Paládio e os justificados - phonos díkaios - destinar-se-iam a Delfos.
Para o autor, as condições específicas do período arcaico construiriam uma concepção
acerca do Direito fundada na distinção operada por uma consciência social entre o ato
repreensível e o ato escusável, em oposição à moderna concepção do Direito, pautada na
voluntariedade individual do ato.
Ato desprendido da vontade individual, o erro ou hamartia é um delírio, cuja ação
contagiosa penetra a linhagem tornando o genos maldito. Até o período de Sólon, a justiça do
genos, a honra lavada com sangue, constituía a forma do Direito conhecida e praticada na Ática.
A justificativa religiosa para a morte violenta legitimava os conflitos que opunham as grandes
famílias na disputa pelo poder e pela posse da terra.
A crise social levou os pequenos proprietários a perderem progressivamente suas terras
e sua liberdade, justificando a intervenção de Sólon, legislador, no sentido de minimizar as
hostilidades entre os cidadãos. A abolição das dívidas, juntamente com a libertação daqueles
que perderam a liberdade em função delas, determinou, a partir de então, uma igualdade entre
os cidadãos no plano político, complementando a igualdade já alcançada no âmbito militar,
com a falange hoplita.
Claude Mossé afirma que a maior parte dos historiadores ao estudar a obra do
legislador baseia-se na Constituição de Atenas de Aristóteles. Nessa perspectiva, encontraríamos
10
sob o nome de dike - justiça - a libertação da terra e dos homens empreendida por Sólon. Não
podemos esquecer que Aristóteles, para denominar as classes que iriam, doravante, se opor,
utiliza a mesma nomenclatura corrente de sua época (IV século): os penetes - pobres e os plúsioi
- ricos. Independentemente da riqueza, para mostrar que a díke seria igual para todos, Sólon
empregaria o termo qesmoi - thesmoi, estabelecendo nomoi - nomoi - leis e uma
politeia - politéia constituição para todos.
No entanto, Claude Mossé afirma que os termos nómos e politéia seriam de uso recente
(IV séc. a.C.) comparados à thesmoi, mais antigo, possivelmente da época de Homero (séc. VIII
a.C.), referindo-se a leis não escritas e com um cunho sagrado, o que daria uma conotação
divina à sua obra. As leis solonianas levariam a uma valorização da comunidade política, e o
miasma que antes atingiria somente o indivíduo e o seu genos, passa a macular a pólis como um
todo. No entanto, a autora atesta que as categorias do Direito propriamente dito teriam sido
fixadas somente no curso do V século.
Para os Atenienses, essa legislação apresentaria um duplo aspecto: num primeiro plano,
teriam sido estabelecidas normas no que tange ao Direito privado, ou seja, a família, o
casamento, o dote e a herança, regulando as relações sociais fundamentais; já, num segundo
plano, a modificação da politéia, com Clístenes, reorganizaria os poderes centrais da cidade,
dando ao demos sua parte de geras - honra.
A antropóloga Catherine Darbo-Peschanski (Peschanski, 1996: 747) compreende certos
traços da reforma de Sólon, a abolição das dívidas por exemplo, como uma interdição no
movimento de aquisição ilimitada de riqueza. No entanto, ele não teria promovido uma
redistribuição de terras, mantendo o desnível sócio-econômico e a idéia de que os homens não
são dotados igualmente, não possuindo a mesma tumh - tymé, honra, a qual implicaria bens
materiais e a manutenção dos limites que distinguem os diversos lotes ou dons de cada indivíduo.
O regime de dons e contradons definia um kosmo - kosmos, ordem estável, que perdurou
até meados do Século VI. Sólon distinguiria duas maneiras de se obter tais dons: o dom dos
deuses ou a aquisição desonesta; estes corresponderiam a dois tipos de posse: uma estável e
duradoura, a outra fadada à ruína; uma conforme a ordem ou contribuindo para criá-la, a outra
perturbadora e contrária a esta.
11
Essa visão possibilita-nos uma leitura em que a ordem divina dos dons ignora a ordem
humana da ação; os deuses ou o destino decidem inteiramente a sorte dos homens,
independentemente daquilo que estes últimos possam fazer para se conduzir. A Moira -
Moira, destino - ou parte que cabe a cada um, consiste no lote de dons atribuído aos homens pelos
deuses. À ordem divina, kosmos, opõe-se a desordem, a qual seria gerada por uma situação em
que o homem tomasse aquilo que não lhe foi dado pelos deuses, ou seja, cometesse uma
injustiça - adika erga - adika erga. Imediatamente a justiça, dike, seria mandada por Zeus
para punir os culpados. Na lei soloniana essa injustiça poderia perdurar por gerações, em que
os inocentes - anaitioi - anaitioi, pagariam a dívida.
Ésquilo nos mostra, na tragédia Persas, encenada em 458 a.C., reminiscências desse
direito de dons soloniano. A tragédia conta a vitória dos Atenienses sobre os Persas, os quais
foram liderados pelo rei Xerxes, na batalha naval da ilha de Salamina. Observamos, no entanto,
que esse tipo de justiça arcaica é localizado não entre os gregos, mas entre o povo persa, na
cidade de Susa, onde o poeta localiza a ação.
ex oute timhn Zeu anax thnd wpasen,
en andr apash AsidoV mhlotrojou
tagein, econta skhptron euqunthrion.
Zeus anax concedeu a um homem o comando
da Ásia que alimenta rebanhos, dando o cetro
que governa. (vs. 762 - 764)
Na seqüência, Ésquilo aponta para o fato do poder na Ásia ser hereditário, tendo o
primeiro governante, Medo, recebido o cetro de Zeus (essa forma de estabelecer o poder
contrapõe-se ao governo exercido pelo demos). O elo que ligaria o dom / poder à cadeia de
sucessão teria sido rompido por Xerxes ao cometer a hybris.
qnhto wn qewn te pantwn wet ouk
euboulia kai Poseidwnon krathsein (...)
Sendo mortal pensou mal em querer dominar
não somente todos os deuses mas também
12
Poseidon. (vs. 749 - 750)
Na visão persa, que é o ponto de vista adotado pelo poeta, o povo de Susa
reconheceria a invencibilidade dos gregos também como um dom divino. Ao ser questionado
pelo coro sobre como deveria agir em tal circunstância, o espectro de Dario aconselha a não
levar mais a guerra aos gregos:
auth gar h gh xummaco keinoi pelei.
"( pois ) a própria terra como aliada move-se para eles ( a seu favor )"
(v. 792)
Esta tragédia foi encenada nove anos antes de Suplicantes e, como podemos perceber, a
posição do poeta, no que tange ao desconhecimento do Direito dos Tribunais por parte dos
não-gregos (bárbaros), permaneceu. Baseados nos estudos de Lucien Goldmann, vemos que a
encenação da tragédia no contexto ateniense leva-nos à crença de que o regime de dons e
contra-dons, a sanção dos deuses, o miasma, ou maldição do genos são valores que conviviam
com as práticas dos tribunais, com os processos de deliberação e de votação.
Acreditamos que o período de Ésquilo (a primeira metade do V século), manteve-se
estreitamente ligado à visão soloniana, apesar das reformas instituicionais de Clístenes, pois o
poeta, ao colocar os persas num plano de desconhecimento das práticas de votação, demarca a
diferença entre dois mundos e, conseqüentemente, dois Direitos: o Direito Arcaico fundado
nos dons divinos e o Direito dos homens, pautado na prática dos Tribunais. No entanto, a
tragicidade do homem grego do V Século seria a de tornar-se ponto de interseção desses dois
mundos.
Enquanto Plutarco credita a Sólon a criação do Areópago, Aristóteles resume a obra
política soloniana em três aspectos: o estabelecimento das classes censitárias baseadas no valor
da riqueza (pentacosiomedimnos, híppeis, zeugitas, thetes), a organização do poder judiciário dentro da
cidade e a criação da boulh - Bulé dos Quatrocentos. Finley observa que este fato marcou uma
ruptura com os direitos exclusivos de uma ordem hereditária, de uma nobreza de nascimento,
o que não impediu que as famílias aristocráticas predominassem na nova classe dominante
determinada pela riqueza.
13
Para Aristóteles as inovações político-institucionais de Sólon desencadeariam um
distanciamento cada vez maior do conselho do centro da política, visto que ele criaria, baseado
no censo, um novo e ativo direito de cidadania, cujos beneficiados deveriam participar de
algum "organismo". A Assembléia, por exemplo, elegia os funcionários, tomava decisões e
pronunciava sentença, dependendo do caso jurídico. Mas à frente dessa instituição popular foi
posto, como órgão especial, a bulé que consistia num comitê de membros eleitos anualmente,
provenientes das quatro philai gentílicas antigas.
O tribunal do povo recebeu, assim, o encargo de dirigir a si mesmo, adquirindo
iniciativas políticas, fazendo com que o Areópago fosse privado de parte de suas atribuições.
Todavia, como seus membros eram vitalícios, o seu peso e importância levaram-no à
continuidade de algumas deliberações, tais como: certas tarefas jurídicas formais no campo da
vigilância, da constituição e as mortes por homicídio.
A desarticulação política do Areópago pode ser tida como uma das transformações
sociais mais expressivas do contexto ateniense. Aristóteles observa que a liderança do
Areópago foi perdendo aos poucos suas prerrogativas políticas, as quais foram distribuídas
entre outras instituições, especialmente a Bulé dos Quinhentos.
h politeia proestwtwn twn Areopagitwn,
kaiper upojeromenh kata mikron
A Constituição estava sob a liderança dos Areopagitas,
embora fosse subtraída aos poucos.
(Aristóteles, Constituição de Atenas XXV)
O filósofo grego afirma que o Areópago tinha uma influência determinante, pois podia
tanto apoiar quanto contestar um político. Apesar de ser um período de graves tensões,
Aristóteles estima que o conselho aristocrático teria realmente governado a cidade entre 478 e
461. No entanto, não se pode assegurar que a bipolaridade da vida pública estivesse
determinada, visto que Temístocles - principal estratego da batalha de Salamina, mesmo
apoiado pelas classes mais pobres, era uma Areopagita.
14
As reformas de Efíaltes, promulgadas em 462 a.C., levariam a essa minimização dos
poderes do Conselho e, mais tarde, a política empreendida por Péricles permitiria uma maior
participação do ateniense de poucos recursos nas decisões da Assembléia.
Epoihse de kai misqojora ta dikasthria Periklh prwto
Péricles foi o primeiro a dar o mysthós aos tribunais.
(Aristóteles, Constituição de Atenas, XXVII)
Através da tragédia Eumênides podemos visualizar um processo de julgamento e a
constituição de um tribunal, pois ela apresenta uma narrativa mitológica, cuja temática consiste
no julgamento de um crime de sangue. Recortamos uma seqüência em que a deusa Atená
instaura um tribunal para o julgamento de Orestes. O motivo, crime de sangue entre famílias
aristocráticas, bem como a composição do tribunal, remete-nos ao tribunal do Areópago, que,
historicamente, havia sido destituído de suas principais atribuições quando a tragédia foi
encenada.
Em seus estudos, Vernant contraria a posição de alguns mitólogos que vêem a mácula
como uma doença ou perturbação pertencente somente à pessoa do assassino. Para o autor, no
V Séc. a.C., a mácula do praticante de homicídio deter-se-ia à fronteira de seu país. Desde que
ele (Orestes) deixasse de pisar a terra de sua cidade, encontrar-se-ia puro, como se deixasse a
maculação atrás de si, ligada aos lugares assombrados por sua vítima. Assim sendo, podemos
compreender o por quê de Orestes ser julgado em outra cidade, na de Palás Atená, por
exemplo.
Na passagem a seguir, observamos o procedimento de Atená que parte em direção à
cidade com o propósito de escolher os juízes.
jonwn dikasta orkiou airoumenh
Juízes com juramentos de sangue serão escolhidos (v. 483)
Usando o verbo na voz médio-passiva, a deusa deixa transparecer seu interesse na
escolha, imprimindo, dessa forma, um caráter divino ao tribunal. Ratificando a sua escolha, a
15
deusa ainda proclama que eles serão escolhidos dos meus cidadãos ( v. 487). É significativo o uso
da expressão ta béltata que cod astwn twn emwn ta beltata - entre os melhores
corresponde ao grau superlativo do adjetivo agathós - bom, adjetivo com o qual se qualificava os
bem-nascidos (kalós kai ágathos).
Observamos que não somente o rei, mas os deuses, haviam cessado de emitir decretos.
Gernet afirma que a tragédia Eumênides celebra a fundação do Areópago, o tribunal para as
causas de morte : "um acontecimento lendário em que os Atenienses encontrariam um dos títulos mais
autênticos de sua glória". O verbo dikazein - dikazein, fazer justiça (julgar) está ligado ao alto
magistrado, chamado ainda de rei que, no entanto, não julga ; no período arcaico, convocavase
para o julgamento membros para compor o tribunal.
Podemos perceber, com isso, que diferentemente de Hesíodo, Sólon transpôs para a
esfera política (no sentido de assuntos ligados à pólis) os fenômenos que antes eram tratados
somente no plano divino. Sólon imprimiria, portanto, uma realidade histórica aos fatos, pois
um novo sistema de valores configurava uma nova ordem. Antes de legislador, ele teria sido o
"criador da ordem". A tragédia está ancorada nos assuntos humanos e nas potências divinas. O
criminoso procede por dupla motivação: vontade e potências divinas.
A concepção de Sólon acerca do poder público fundamentava-se na crença de que ele
deveria ser acessível a todos e cada um seria convertido no agente responsável da força política
e das tarefas estatais. A sua atividade se encontra no ponto de interseção de duas direções: uma
orientação no sentido de um pan-helenismo e outra consistindo numa especificidade ateniense
no âmbito da organização e administração da pólis. Especialmente na Ática, observou-se um
ordenamento político que passou do domínio da aristocracia tradicional à competência de um
grupo social mais amplo, no qual centrava-se a existência política e social dos indivíduos,
fundamentando a nova comunidade e convertendo-a em cidadãos, ou seja a "pólis dos polítai".
Concebemos na política empreendida por Sólon os primeiros indícios da construção de
uma identidade política ateniense, que no final do VI e início do V Séculos teria sido suplantada por
uma identidade helênica, face às guerras médicas. Tal "desvio", entretanto, não teria sido capaz de
romper o processo já iniciado no período arcaico, mas teria tido sua continuidade com o
afastamento da ameaça persa e a consolidação da hegemonia de Atenas no mar Egeu, durante
a primeira metade do V século a.C.
16
George Thomson (Thomson, 1970) analisa este período como sendo a transição de
uma economia primitiva para uma economia monetária, baseada na escravidão. Dessa maneira,
operar-se-ia uma mudança no quadro político-social, visto que, da tribo primitiva à pólis
mercantil, a terra, antes bem comum, passaria a ser propriedade privada, sendo-lhe atribuída
um valor de mercadoria, o mesmo ocorrendo com o escravo. Para o autor, o grupo social mais
beneficiado com as reformas de Sólon seria o dos mercadores e artesãos, o que, de certa
forma, enquadra-se no arcabouço ideológico da época, que teria em Pitágoras o sentido da
"meia medida" como harmonia dos contrários.
É necessário não esquecer que Sólon não efetivou uma redistribuição de riquezas e que
a camada mais pobre da população, os thetes, manteve-se afastada das diversas magistraturas.
Ele era um homem da antiga aristocracia, um educador interessado em modelar um povo
apolítico segundo a imagem do grupo social até então dominante. Todavia, sob essa ideologia,
podemos ver uma realidade social: os interesses direcionados para o ganho e o proveito, uma
utilização econômica dos excedentes e o advento da moeda que romperia, mais tarde, com a
antiga estrutura sócio-política.
Depois das reformas de Clistenes (508-506 a.C.) qualquer Ateniense teria de,
necessariamente, pertencer a quatro organizações: o demos, a trítia, a tribo e a frátria, além da
pólis. Um grupo de demos formaria uma trítia, a qual associando-se a mais duas formaria uma
tribo, ou seja, da montanha, da planície e do litoral. Todavia, torna-se necessário entendermos o
valor e função de cada uma dessas organizações.
A organização política da Ática firmava-se, primeiramente, sobre bases religiosas. Cada
família pertencia a uma tribo, cujos membros se proclamavam descendentes da mesma
divindade heróica; adoravam o mesmo deus, reuniam-se nas mesmas cerimônias religiosas,
possuíam um arconte e um tesoureiro comuns. Impunham-se obrigações de defesa e auxílio
mútuo e partilhavam do mesmo cemitério tribal. No que tange à vida religiosa, o demos
consistia na organização mais importante, pois tinha além de seus próprios santuários um
programa ritualístico de sacrifícios durante todo o ano.
Sobre a organização em trítias, nada sabemos a não ser que ela poderia conter de um a
sete demos. Cada uma das três trítias, que formavam uma tribo, provinham de regiões básicas,
ou seja, cidade, litoral e planície.
17
As funções da tribo seriam essencialmente políticas e militares, o que não impedia o seu
envolvimento em algumas atividades religiosas, visto que, nas Panatenéias e Dionisíacas
Urbanas, os membros dos coros das tragédias eram provenientes das tribos.
Todo homem ateniense pertencia a uma associação hereditária conhecida como frátria,
e no período clássico ainda se poderia perceber os rituais de admissão do candidato como
membro, bem como seu reconhecimento como cidadão, o que nos mostra não apenas a
função da frátria, mas, face ao seu caráter político, sua principal razão de ser.
As frátrias geralmente honravam, em seus rituais, heróis e deuses específicos, ligados
aos seus principais interesses: Apolo Patroos e Zeus Xenios para questões de cidadania; Cephisus,
Leto e Artemis Orthosia para o nascimento e saúde dos futuros integrantes.
O genos e orgeones também eram grupos minoritários de origem hereditária que
correspondem a subdivisões da frátria. Além de um rigoroso critério de aceitação (baseado na
herança), sua especificidade recaía sobre o culto em honra a um herói local.
Uma outra forma de associação hereditária consiste numa liga local unindo vários
demos. O exemplo mais conhecido diz respeito à Tetrapolis Marathoniana - organização em
grupo de quatro localidades, ou demos de Clístenes, como eles se chamaram mais tarde: Marathona,
Tricorynthus, Oinoe, Probalinthus. Possuíam um calendário específico de sacrifícios contendo seus
ritos de comunhão. Dessa forma, a liga era um nível extra de associação encaixada na estrutura
religiosa dos demos.
Podemos observar que as reformas de Clístenes não modificaram a base religiosa em
que se fundamentava a unidade administrativa, pois a estrutura anterior distribuída em quatro
tribos de origem jônia era constituída não da unidade administrativa do demos, mas dos
naukraries, também de cunho religioso. Aristóteles aponta, na Constituição de Atenas, para as
reminiscências das tribos ainda no IV século a.C., atuando nos crimes de homicídio
principalmente (Aristóteles, LVII).
Finley concorda que Clístenes substituiu o nascimento pela localidade, como base para
relações e controle político; o demos seria a comunidade vicinal, da qual as carreiras políticas eram
lançadas, com base nas classes censitárias (Finley, 1985: 40).
Esses dados nos levam a crer que as reformas significativas operadas na Ática, na
verdade, foram produto de Sólon ao estabelecer a igualdade dos cidadãos com a liberdade. As
18
antigas tribos também eram formadas por trítias, cuja função religiosa levava os indivíduos a
participarem dos festivais do conjunto da cidade.
No entanto, as novas tribos afetaram as frátrias, as quais eram, aparentemente,
subdivisões das velhas tribos e formavam um conjunto nos festivais públicos como organização
tribal. Dentro das novas tribos, a unidade mínima era o demos, em muitos dos quais os membros
de uma determinada frátria , normalmente, teriam sido dispersos.
Se o principal aspecto das associações foi mantido, em que especificamente
consistiriam as reformas de Clistenes, ou melhor, qual teria sido a reforma propriamente dita
de Clístenes? Pesquisadores acreditam que ele teria dissolvido a unidade das antigas associações
locais numa outra distribuição com um propósito político e militar, criando o culto das trítias
de forma a competir com as outras estruturas religiosas tradicionais.
Num certo sentido, a nova ordem Clisteniana era racional, abstrata, geométrica e
secular. Nenhuma tribo era efetivamente diferente da outra, mas todas estavam associadas ao
culto de um herói epônimo escolhido por Apolo de Delfos. Este seria um dos aspectos mais
significativos das reformas de Clístenes: a reformulação dos cultos. As antigas tribos jônias
estariam ligadas aos mitos remotos e linhagens divinas, as quais teriam gerado as antigas
aristocracias proeminentes do período arcaico. Clístenes teria substituído os cultos a essas
divindades por uma lista de 100 heróis, sancionada por Apolo de Delfos, sendo a maioria
autóctones. Dessa forma, os demoi passariam a cultuar os novos heróis, esvaziando o poder das
grandes famílias.
A Bulé dos Quinhentos, uma organização representativa de todas as tribos, numa
proporção de 50 membros sorteados por tribo, manteve os rituais coletivos em honra aos
epônimos. Cada Ateniense faria parte de um grupo dedicado a Delfos. O herói também seria
reconhecido como archgeta - archegetes ou archegos, um termo cuja etimologia está ligada à
arch - arkhé, origem e hgeomai - hegéomai, conduzir.
Ésquilo utiliza essas denominações em Suplicantes e Sete contra Tebas. Na primeira, não
apenas Dânao se refere ao rei, mas o próprio Pelasgo se autodenomina archegétes e ánaktos, chefe
supremo deste país e senhor dos senhores, respectivamente. A autoctonia do povo é expressa através
do herói epônimo Palaichthonos, filho da Terra.
19
tou ghgenou gar eim egw Palaicqono
ini Pelasgo , thsde gh archgeth
emou d anakto eulogw epwnumon
geno Pelasgwn thnde karpoutai cqona
Eu sou Pelasgo, filho de Palaichthonos, o nascido
da terra, chefe fundador desta terra (archegetes):
senhor dos senhores (anaktos) racionalmente epônimo
do genos dos Pelasgos (genos Pelasgon) fruto
produzido da terra. (vv. 249-253)
O herói epônimo torna-se, portanto, a base religiosa da Bulé dos Quinhentos do V Século,
a qual estaria consolidando sua posição no quadro institucional da pólis. À eleição do tribunal -
prática anterior às reformas de Clístenes - sucede o sorteio de membros da Ática para compor
os tribunais que, como prerrogativas, teriam os assuntos militares, jurídicos e religiosos.
Depois do Areópago, a Bulé consistia no conselho mais expressivo, ao qual estariam
relacionados todos os procedimentos da praxis política, que abarcariam não apenas a ação de
deliberar - bouleuw - buleuo (Agamêmnon, v. 846) mas também conselhos e resoluções -
bouleumasin - buleumasin (Eumênides , v. 593).
Outro aspecto que nos levaria à suposição de que o momento esquiliano poderia ser
considerado de transição, consiste no vocabulário utilizado pelo poeta para designar os
tribunais constituídos. Não atestamos em seu vocabulário a palavra ekklesia - ekklesia,
assembléia, da qual todos os cidadãos, incluindo os thetes poderiam participar. À exceção do
Areópago que é mencionado em Eumênides, a designação será sempre através de um vocábulo
derivado de Bulé, como é o caso de bouleuthrion - buleutérion, tribunal (Eum, v. 704) e seus
juízes seriam designados como - dikasta - diskastás (Eum. v. 483 ).
Claude Mossé (Mossé, 1985: 45) afirma que havia restrições censitárias para algumas
magistraturas e que os poderes da ekklesia estavam limitados pelos da Bulé dos Quinhentos, órgão
ao qual, possivelmente, estariam vetados os thetes.
Torna-se difícil, em nossas fontes, determinar a que Bulé Ésquilo se referiria: a Bulé dos
Quatrocentos (Soloniana) ou à Bulé de Clístenes. Quanto ao processo de votação, este seria
através do voto de urna ou estendendo a mão direita. Atestamos em sua obra as duas
20
possibilidades, no entanto, não pudemos definir qual processo seria utilizado exclusivamente
pela Bulé.
É significativo, todavia, que a presença da Bulé marque a tragédia esquiliana, levandonos
a configurar um quadro de exclusão das camadas mais pobres da população, no que tange
à ação de deliberar. Esse quadro nos permite supor que o rompimento com a concepção
soloniana dá-se efetivamente, quando, através das reformas de Efíaltes, a ekklesia e o Tribunal
dos heliastas herdam a maior parte das atribuições do Areópago.
Ligada à prática dos Tribunais e muito presente na obra esquiliana é a utilização das
mãos como símbolo representativo da justiça, díke, que tem sua origem nos primórdios do
período arcaico, mas mantém-se presente no contexto dos tribunais.
Como foi salientado anteriormente, Louis Gernet observa nos rituais de sangue,
envolvendo juramento, o mergulho das mãos para selar compromissos e alianças num campo
em que o Direito (Arcaico) reconhecia o aspecto divino na relação e, portanto, uma justiça
legitimada pelos deuses.
Dos rituais arcaicos para o Direito Novo do V Século, percebemos a mão mantendo-se
como instrumento de justiça, atestado nos versos de Agamêmnon:
dexia cero ergon dikaia tektono
Morto por obra da mão direita justa industriosa. (v. 1405 - 1406)
Esses versos são proferidos por Clitemnestra ao justificar seu crime junto aos anciãos.
A justiça realizada através das mãos mostra-se presente na fala de Orestes, quando este,
interpelado pelo coro, assume o seu ato:
Legw xijoulkw ceiri pro derhn temwn
Digo: a mão cortante com a espada contra a garganta (Eum., v. 592)
O verbo temno, no entanto, possui uma significação mais ampla, visto que pode ser
concebido como o ato de matar para “fazer um juramento" ou "sancionar um pacto". Geralmente as
21
vítimas de um sacrifício são mortas com o corte na garganta. Seria o caso de Orestes sacrificar
a sua mãe para cumprir um juramento de sangue. Todavia, a mesma mão que comete o
assassinato em nome de Dike precisa ser purificada.
ouk eimi prostropaio , oud ecwn muso
pro ceiri thmh to son ejezomhn breta
Não sou um suplicante culpável, sentado ao pé de sua estátua,
nem a infâmia está em minha mão. (Eum., vv. 445-446)
O herói purificou suas mãos com a água lustral para dirigir-se ao tribunal para ser
julgado. Percebemos que a correlação das mãos com a praxis da justiça mantém-se nos
tribunais do V Século, sem perder o caráter divino, pois as mãos dos mortais estarão sempre
sujeitas à vontade dos deuses. Em Agamêmnon, observamos uma passagem bastante
significativa e que corrobora esta simbologia; Agamêmnon fala sobre o fim trágico de Tróia:
e aimathron teuco ou dicorropw
yhjou eqento , tw d enantiw kutei
elpi proshei ceiro ou plhroumenw
kapnw d alousa . nun et eushmo poli
(os deuses) depositam o voto sem vacilação na urna sangrenta
a esperança se aproxima da mão que não está cheia (de votos)
a (mão) que está em frente (à esperança) está vazia. (vv.)
Se em Agamêmnon temos o voto de urna e uma ênfase na mão que o deposita, já
transparecendo, nesse ato, uma certa conotação de autoria-individualidade e de
responsabilidade pelo voto, em Eumênides estabelece-se uma relação direta das mãos com a
justiça e da responsabilidade do juiz, ao ser usado o voto através da mão "que se ergue no ar".
Esse aspecto torna-se claro na passagem a seguir, quando Atená se dirige ao corpo de juízes:
orqousqai de crh
kai yhjon airein kai diagnwnai dikhn
aidoumenou ton orkon. Eirhtai logo .
22
É necessário jurar e erguer o voto no ar e decidir o processo
respeitando o juramento feito. E tenho dito. (Eum., vv. 708-710)
O sentido do verbo airein (levantar, erguer ), empregado no verso 709, está estritamente
ligado à pséphon (voto), sugerindo um processo de votação, cuja prática seria erguer a mão. Este
tribunal ainda estaria ligado às classes censitárias e, portanto, não abrangendo as camadas mais
pobres, como pudemos atestar com a escolha, efetuada pela deusa: dos melhores cidadãos para
compô-lo. Podemos estabelecer um aspecto significativo em relação ao poeta e à prática dos
tribunais: a importância dada, por ele, ao tribunal da Bulé e uma prática de votação, em que
erguer a mão (direita) seria o voto favorável.
Ainda em Eumênides, a mão que é erguida em favor de Orestes é a mesma que arrebata
das mãos das Erínias o seu privilégio, a sua honra e as suas leis; são as mãos do Direito Novo
sucedendo às mãos que praticavam a justiça no Direito Arcaico.
Iw qeoi newteroi,
palaiou nomou
kaqippasasqe kak cerwn eilesqe mou
Oh deuses mais jovens arrancais as leis antigas de minhas mãos.
(Eum., v. 807-809)
A deusa Atená legitima a prática do tribunal, tornando-se centro promotor da justiça
suplantando, inclusive, o Oráculo de Delfos tido, até então, como a máxima autoridade
religiosa da Grécia. Oportunamente, a deusa seria representada com o escudo e a lança em suas
mãos, equipamento militar específico da falange hoplita a qual, no V Século, consolidaria a sua
conquista do direito de falar - isegoria - e a igualdade perante às leis - isonomia. Para Vernant, a
guerra seria da alçada do Estado, exclusivamente pública, portanto.
"A guerra é a mesma cidade em sua face voltada para fora, a atividade
do mesmo grupo de cidadãos confrontando dessa vez com o que não
é dele, o estrangeiro, isto é, geralmente de outras cidades." (Vernant,
1999: 39).
23
Entenderíamos essa formação militar atrelada à vida pública, não havendo, dessa
maneira, um exército profissional, ou a presença de mercenários estrangeiros, nem categorias
de cidadãos dedicados especialmente à carreira das armas; a organização militar se inscreveria
sem corte no exato prolongamento da organização cívica.
Detienne e Vernant concordam que a reforma hoplítica seria uma prática de combate
que acabaria por integrar a guerra na política, dando ao personagem do guerreiro o aspecto de
cidadão (Vernant, 1999: 21). O Direito amalgama-se à política e à guerra, pois o hoplita é
aquele que luta, julga e define o destino de sua pólis.
Bibliografia:
ARISTOTE. Constitution d' Athènes. Paris: Société d'édition Les Belles Lettres, 1996.
ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
BAKER, Ernest. Teoria Política Grega. Brasília: UnB, 1978.
BALANDIER, Georges. O Poder em cena. Trad. de Luiz Tupy Caldas de Moura. Brasília: Ed. da
UnB, 1982, pp. 6-12.
BASLEZ, Marie-Françoise. Armées et Sociétés de la Grèce Classique. Paris: Ed. Errance, 1999.
________________. Histoire politique du monde grec antique. Paris: Nathan, 2ª ed., 1999.
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política - filosofia política e as lições dos Clássicos. Rio de Janeiro:
Campus, 2000.
CARDOSO, Ciro Flamarion S. A cidade-Estado na Antiguidade clássica. São Paulo: Ed. Ática,
1985.
_____________. As relações entre Estado e sociedade na Antiguidade e na Alta Idade Média. In:
Ensaios Racionalistas, Rio de Janeiro: Campus, 1988.
COHEN, David. Law, Violence and Community in Classical Athens. New York: Cambridge
University Press, 1997.
DARBO-PESCHANSKI, Catherine. Condition Politique - Fondements de la politique dans la Grèce
archaïque et classique. In: L'Invention du Politique - Anthropologie et Politique en Grèce. Annales:
Histoire, Sciences Sociales, 51º Année, no. 4 , Juillet-Août, 1996.
DETIENNE, Marcel. La phalange, problèmes et controverses - In: Vernant, J-P (dir.) - Problème de la
Guerre en Grèce Ancienne - Paris: ed. Mouton, 1968.
FINLEY, Moses I.. A Política no Mundo Antigo. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
_____________. Democracia Antiga e Moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
24
GERNET, Louis. Droit et Institutions en Grèce Antique. Paris: Flammarion, 1982.
JAEGER, Werner. Paideia. São Paulo: Martins Fontes, 2ª ed. 1989.
LORAUX, Nicole. Nas origens da democracia - Sobre a "transparência"democrática, Paris: 1980.
MOSSÉ, Claude . Politique et Société en Grèce Ancienne - Le "Modele"Athénien France: Aubier, 1999.
____________. Comment s'élabore un mythe politique: Solon, "père fondateur" de la démocratie athénienne.
In: Idéologie et Politique - Annales Économies - Sociétés - Civilisations, 34º Année - n. 3
____________. Atenas - a história de uma democracia. Brasília: UnB, 3ªed., 1997.
____________. As Instituições Gregas. Lisboa: Edições 70, 1986.
RIVAS, Hernan A Ortíz. La Especulación Iusfilosófica en Grecia Antigua, desde Homero hasta Platón.
Bogotá -Colmbia: Editorial Temis, 1990.
RUBY, Christian. Introdução à Filosofia Política. São Paulo: UNESP, 1998.
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade, 2ª
ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1995.
THEML, Neyde. O público e o privado na Grécia - o modelo ateniense. Rio de Janeiro: Sete
Letras, 1998.
TRABULSI, J. A. Dabdab. Ensaio sobre a Mobilização Política na Grécia Antiga. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2001.
VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. São Paulo: EDUSP, 2001.
____________. La Grèce pour penser l'avenir. Paris: L'Harmattan, 2000.
_____________. Mito e tragédia na Grécia Antiga , Volume II. São Paulo: Brasiliense, 1991.
VIDAL-NAQUET, Pierre. A Democracia Grega - Ensaios de Historiografia Antiga e Moderna.
Lisboa: Dom Quixote, 1993.


TODOS OS DIREITOS DE COPYRIGHT AO AUTOR DO TEXTO.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Contador de visitas