sábado, 3 de novembro de 2012

HISTÓRIA DA PIRATARIA

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Pirataria Marítima Moderna:

História, Situação Atual e Desafios1

Osvaldo Peçanha Caninas*

Resumo

Este artigo analisa a evolução da pirataria marítima notadamente

na Inglaterra dos séculos XV e XVI. Além disso, mostra as

dificuldades em torno de uma única definição abrangente e aceita.

A pirataria marítima que, apesar de sua semelhança com os

episódios do passado, tem causas diferentes e complexas. O

principal propósito deste trabalho é, a partir desta aparente

semelhança, realçar que os eventos são diferentes, especialmente

no tratamento dado na atualidade que não deve pretender reviver

soluções do passado.

Neste artigo discutimos três tópicos. O primeiro deles é a

dificuldade em definir o crime de pirataria no Direito

Internacional. No segundo, apresentamos a maneira como a

pirataria influencia o sistema de transporte de mercadorias de

um mundo cada vez mais globalizado usando a definição de

“boa ordem no mar” de Geoffrey Till. A última parte aborda

assuntos que estão a merecer tratamento por parte dos Estados

tendo em vista as implicações na segurança do tráfego marítimo

(caso do Sistema de identificação automática, AIS), direitos

humanos (pedidos de asilo por piratas) e a difícil tipificação do

crime de pirataria.

Palavras-chave: Pirataria - Direito Internacional.

Abstract

The main purpose of the paper is to analyse how piracy has evolved

through time and that, although it has similar “forms of

expression”, its causes are multiple and diverse, showing that the

modern day attacks despite being similar to the old ones performed

in the sixteenth century Britain have different causes and forms.

Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, no 14 (2009), p. 101-122

1 Este artigo é fruto de pesquisas preliminares sobre o assunto. Para uma abordagem um

pouco mais elaborada, sugiro o artigo Modern Maritime Piracy: Challenges to International

Law, Peace, and Security, que foi apresentado na ISSS/ISAC Annual Conference 2009,

Insecurity and Durable Disorder: Challenges to the State in an Age of Anxiety na cidade de

Monterey, California, EUA em 16 out. 2009.

* Capitão-de-Fragata, Mestrando em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal

Fluminense do Rio de Janeiro.

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Another topic discussed is the difficulty in defining the crime of

piracy in international law. Secondly we present the intertwined

aspects of globalization and maritime piracy using the definition

of good order at sea contained in Geoffrey Till´s book “Sea Power:

a guide for the twenty first century”. Finally, we discuss some

issues that require the attention of state authorities such as the

Automatic Identification System and the fear of pirates seeking

asylum.

Keywords: Piracy - International Law.

Introdução

A pirataria marítima sempre esteve envolta em uma atmosfera de mito

e glamour, fruto da maneira romantizada por que Hollywood apresenta o

fenômeno. As aventuras do Capitão Jack Sparrow ou de Long John Silver2 (A

Ilha do Tesouro) não nos deixa perceber o quanto o fenômeno permanece

presente e atuante.

No imaginário popular, a pirataria está intimamente associada à era

da navegação a vela e estórias de aventuras. Nas últimas décadas, no entanto,

vimos crescer o número de ataques, trazendo o assunto novamente aos foros

internacionais3. Entretanto, a pirataria atual guarda, em certo sentido, poucas

semelhanças com os eventos do passado, pois passou por mudanças em seu

padrão geográfico de ocorrência, finalidades e motivações. Nascida sob os

auspícios do Estado, a pirataria lentamente se emancipou deste e passou a

percorrer um caminho próprio, com fins privados e, alguns afirmam, com

conexões terroristas4.

Por isso, chamar todos os atos de “pirataria” é deixar de notar a

diversidade de eventos que o termo retrata. Os ataques piratas na Somália são

diferentes dos perpetrados no Estreito de Malaca que, por sua vez, são diferentes

dos pequenos furtos dos portos de Santos e da área do Golfo da Guiné.

A primeira parte deste trabalho apresenta um pequeno esboço histórico

dos primórdios da atividade. Nossa intenção é mostrar as continuidades do

fenômeno, ou seja, até que ponto ele é uma atualização de atos do passado e

em que medida temos situações totalmente novas.

2 Personagem do romance a Ilha do Tesouro de Robert Louis Stevenson e que foi interpretado

no cinema por diversos atores, entre eles, Charlton Heston, Orson Welles e Anthony Quinn.

3 Ver LICHE. La piraterie – Grande criminalité en mer. Artigo publicado pelo Capitão-de-

Corveta Liche da Marinha Alemã na Revista La Tribune do Collège Interarmées de Défense

(CID), número de abril, 2007.

4 PLANT, Glen. The Convention for the Suppression of Unlawful Acts against the Safety

of Maritime Navigation. The International and Comparative Law Quarterly, v. 39, n. 1, Jan.

1990, p. 27- 56. LUFT, Gal; KORIN, Anne. Terrorism Goes to Sea. Foreign Affairs, v. 83,

n. 6, Nov.- Dec. 2004, p. 61.

Pirataria Marítima Moderna

103

A segunda parte do artigo aborda as dificuldades de se estabelecer um

consenso em torno do conceito de pirataria. Este consenso é mais complexo

pois envolve questões econômicas, de soberania territorial e de direitos

humanos.

A terceira parte apresenta o conceito de “boa ordem no mar” e como os

ataques piratas podem prejudicar o comércio mundial.

Finalmente, analisamos alguns assuntos que necessitam atenção das

autoridades, dada as implicações na segurança do tráfego marítimo (o caso

do AIS), a difícil tipificação do crime de pirataria e no tocante aos direitos

humanos (pedidos de asilo por piratas).

A Pirataria na História

A pirataria sempre esteve presente no sistema internacional5 e

permanece tendo alcance global. Podemos assumir, provisoriamente,

pirataria como sendo a atividade de ataque a navios para fins privados, de

modo a capturar a carga, o navio, ou ambos. Essa definição permitir-nos-á

estabelecer um ponto inicial de entendimento para explorar o conceito que

será visto, com rigor, mais adiante.

O marco fundador do fenômeno (na Europa6) foi a instituição das Cartas

de Marca. A primeira carta de marca de que se tem conhecimento foi emitida

em 1354, durante o reinado de Eduardo III (1327-1377), da Inglaterra. Nestes

documentos o monarca autorizava particulares (os chamados privateers7) a

fazer uso da força para fustigar e pilhar nações inimigas8. Nelas constava o

nome da pessoa autorizada, a área, o período e contra que Estado dizia

respeito. Estes particulares possuíam autorização para vingar atos hostis

5 Entendo Sistema internacional como definido por Hedley Bull “Um sistema de estados

(ou sistema internacional) se forma quando dois ou mais estados têm suficiente contato

entre si, com suficiente impacto recíproco nas suas decisões, de tal forma que se conduzam,

pelo menso até certo ponto, como partes de um todo.”. BULL, Hedley. A sociedade

anárquica. Tradução Sérgio Bath. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,

2002, p. 15.

6 A abordagem histórica restringe-se ao mundo europeu. Para uma excelente análise da

distinção dos conceitos de pirataria no ocidente e no oriente nos séculos XIV e XV, com

excelente material sobre o uso que os portugueses fizeram da pirataria para enfraquecer

o governo da cidade de Malaca (ou Melaka) e expandir seu império, ver CHENOWETH,

Gene M. Melaka, “Piracy” and the Modern World System. Journal of Law and Religion, v. 13,

n. 1, 1996 – 1999, p. 107-125.

7 Na língua inglesa a atividade é conhecida como Privateering, ainda sem tradução em

nossa língua.

8 SIDAK, J. Gregory. The quasi war cases - and their relevance to whether “letters of

marque and reprisal” constrain presidential war powers. Harvard Journal of Law & Public

Policy, v. 28, n. 2, spring 2005, p. 468.

Osvaldo Peçanha Caninas

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contra o monarca em troca dos espólios (presa) do inimigo dentro de regras

estritas da época. A inexistência de uma marinha regular fez com que esta

bem sucedida união de interesses particulares e estatais desse fruto e

perdurasse por muito tempo.

Para Henrique IV (1399-1413), no entanto, o problema adquiriu

proporções desagradáveis, pois

[...] embora alguns crimes no alto mar fossem

atos de criminosos cujo único objetivo era o ganho

pessoal, grande parte da pirataria era trabalho de

importantes súditos do reino que navegavam como

‘unlicenced privateers’ mas que também serviam aos

interesses do rei. O rei lutava contra a espinhosa

questão de punir ou não tais violadores da trégua, os

quais normalmente recusavam restituir os bens

apresados sabedores que seus navios e homens eram

vitais para a defesa do país em tempos perigosos,

quando um conflito aberto com os franceses poderia

acontecer a qualquer momento.9"

Portanto, aproveitando-se da incapacidade do Estado em prover

segurança ao tráfego marítimo, estabeleceu-se uma rede, tendo a pirataria

como atividade central e incluindo portos protegidos, fiscais da coroa

comprados, grandes proprietários de terras, comerciantes e especuladores.

As mercadorias roubadas eram escoadas para as cidades costeiras e o interior

por um conjunto de pessoas que ganhava uma porcentagem do valor, seja

servindo de intermediários, seja provendo segurança por meio da corrupção10.

Havia refúgios seguros em Dorset, Cornwall, Irlanda e Gales, sendo que a

maioria nunca era usada para o escoamento legal de mercadorias11. O pirata

recebia um quinto do valor do butim (carga apresada) e o receptador em terra,

que assumia grande parte do risco, o restante. A ausência de navios de guerra,

especialmente na costa da Irlanda, tornava a atividade bem segura. Até mesmo

autoridades, como o Vice-Almirante comandante de Bristol, estavam

envolvidas nas transações12.

9 PISTONO, Stephen P. Henry IV and the English Privateers. The English Historical

Review, v. 90, n. 355, apr. 1975, p. 322.

10 É interessante notar que a Somália adota estrutura muito semelhante, especialmente

em torno da cidade de Eyl. Ver MIDDLETON, Roger. Piracy in Somália. Threatening

global trade, feeding local wars. Briefing paper. Chatham House. October, 2008.

Dsiponível em: < http://www.chathamhouse.org.uk/publications/papers/view/-/

id/665/ >. Acesso em 15 dez. 2008.

11 MATHEW, David The Cornish and Welsh Pirates in the Reign of Elizabeth. The

English Historical Review, v. 39, n. 155, Jul. 1924, p. 337.

12 Ibidem, p. 338.

Pirataria Marítima Moderna

105

Os Killigrew, uma das famílias mais importantes de Cornwall, eram

responsáveis pelo controle de todo o escoamento de mercadorias

provenientes da pirataria na região. Os Killigrew eram governadores

hereditários do castelo de Pendennis e John Killigrew, Vice-Almirante da

região de Cornwall. Somente para se ter uma idéia do grau de envolvimento

desta família com a pirataria, em 1597, um pirata adentrou o porto de

Falmouth com sua carga e o Capitão Killigrew foi a bordo. Na inspeção,

acertou com o comandante, Capitão Jonas, que “por 100 libras não os

prenderia, e iria escoltá-los até o interior onde os deixaria ir [em

segurança]13”.

Os ganhos com a atividade eram tão grandes que, em 1612, quando se

estava planejando o retorno do embaixador inglês na Pérsia, Sir Robert

Shirley, afirmou-se que não poderiam ser usados marinheiros ingleses, por

medo de que nestas regiões remotas, estes se tornassem piratas14. Finalmente,

em 1856, as cartas de marca foram oficialmente abolidas pela Declaração

de Paris, parte do Tratado de mesmo nome (1856), cuja função foi terminar

com a Guerra da Criméia15.

Tais episódios históricos nos mostram que a associação de pessoas

para cometer crimes no mar, com fins econômicos, não é fato recente.

Também não nos deve surpreender, portanto, a existência de uma rede

organizada de criminosos a apoiar tais atividades, visto que a história está

repleta de fatos como esses.

A Definição do Crime e sua Imprecisão

A pirataria é o mais antigo e talvez o único crime sobre o qual haja

uma jurisdição universal reconhecida nos termos do direito internacional

consuetudinário16 (customary international law). A Convenção das Nações

Unidas sobre o Direito do Mar17 (1982), conhecida como Convenção da

13 Ibidem, p. 340.

14 CRAVEN, Frank. The Earl of Warwick, a Speculator in Piracy. The Hispanic American

Historical Review, v. 10, n. 4, Nov. 1930, pp. 458.

15 Na verdade a Declaração de Paris aboliu as cartas de marca somente entre os países

signatários. O texto afirma que “The present Declaration is not and shall not be binding, except

between those Powers who have acceded, or shall accede, to it”. Dessa maneira, afirmar que a

Declaração de Paris acabou com a pirataria não é de todo correto. Para ser mais preciso,

a Declaração aboliu, especificamente, a atividade de privateering, ainda sem tradução em

nossa língua.

16 HALBERSTAM, Malvina. Terrorism on the High Seas: The Achille Lauro, Piracy and the

IMO Convention on Maritime Safety. The American Journal of International Law, v. 82, n. 2,

Apr. 1988, p. 272.

17 Conhecida pela sigla CNUDM (português) ou UNCLOS (inglês).

Osvaldo Peçanha Caninas

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Jamaica18, em seu artigo 101 define pirataria como sendo:

Atos ilegais de violência e detenção ou atos de depredação cometidos

para fins privados pela tripulação ou passageiros de um navio privado ou

aeronave dirigidos contra:

- No alto mar contra outro navio, aeronave, contra pessoas ou

propriedade a bordo deste navio ou aeronave.

- Contra navio, aeronave, pessoas ou propriedade em lugar em que não

haja a jurisdição de um estado.

Qualquer ato de participação voluntária na operação de navio ou

aeronave de que se saiba praticar atos de pirataria.

Qualquer ato que incite ou facilite os atos definidos anteriormente (Grifo

nosso)

De acordo com esta definição, para tipificar os atos de pirataria há

necessidade que os crimes tenham três critérios: objeto, localização geográfica

e finalidade.

O objeto do ato deve ser um navio, aeronave ou passageiros/tripulantes

destes veículos. O critério geográfico, por sua vez, estipula que o crime tem que

ser perpetrado em alto mar ou em lugar onde não haja a jurisdição de um

estado. Por este critério, deixariam de ser considerados todos os atos cometidos

nas águas interiores19, mar territorial20 e zona econômica exclusiva (ZEE) 21.

Os dois primeiros critérios — objeto e localização — são objetivos.

Entretanto, a finalidade é subjetiva por natureza, podendo comportar

diferentes interpretações. Por exemplo, não há consenso entre os juristas se o

animus furandi, a intenção de roubar, é elemento necessário ou se atos de

insurgentes procurando derrubar seu governo devem ficar fora da definição22.

A jurisprudência das cortes nos Estados Unidos da América e Reino Unido

têm adotado que qualquer ato não autorizado de violência cometido no alto

mar é pirataria23.

18 Para saber mais sobre a Convenção e sua situação atual ver a página da ONU em <

http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/convention_overview_

convention.htm >. Cabe ressaltar que, até a presente data, vários países não ratificaram a

Convenção tais como EUA, Irã, Israel, Líbia, Nigéria, Síria, Turquia, Peru, Colômbia,

Equador e Venezuela.

19 Abrangem tanto as águas doces dos rios, lagos e poços existentes no território do país,

como as águas marinhas situadas entre a costa e o marco de início do mar territorial.

20 O mar territorial estende-se a partir das linhas de base da costa até o limite de 12 milhas

náuticas (uma milha náutica equivale a 1.852 metros).

21 A zona econômica exclusiva se estende por 200 milhas a partir da linha de base. Ela

pode chegar até 350 milhas de acordo com o artigo 76 da Convenção da Jamaica.

22 HALBERSTAM, op. cit., p. 272.

23 Ibidem., p. 273.

Pirataria Marítima Moderna

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A definição da Organização Marítima Internacional (IMO)24

A fim de evitar as imprecisões conceituais, a IMO utiliza, para fins

práticos, uma definição que inclui, além dos atos compreendidos pelo artigo

10125, os atos de roubo armado (armed robbery), ainda que praticados em águas

que não o alto mar, incluindo aí as águas interiores, mar territorial e ZEE.

A IMO define26 “armed robbery” como “qualquer ato ilegal cometido com

violência ou detenção ou qualquer ato de depredação ou ameaça, que não seja

classificado como pirataria, dirigido contra embarcação ou pessoas ou

propriedade a bordo desta embarcação na área de jurisdição de um estado27”.

Com isso, a IMO evita os problemas de especificar uma definição abrangente e,

ao mesmo tempo, acentua a gravidade dos problemas, devido à quantidade de

atos informados28. A definição mais abrangente da IMO faz com que muitos

ataques, que seriam considerados como crimes comuns, perpetrados em água

que não as internacionais, sejam computados como atos de pirataria. A

imprensa, por vezes, se utiliza desta definição informando que este ou aquele

ataque foi de piratas o que contribui para a confusão em torno do termo.

A imprecisão conceitual apresenta alguns óbices quanto à extensão de

jurisdição para crimes de pirataria cometidos em águas territoriais. O primeiro

óbice é a inviolabilidade da soberania no mar territorial e águas interiores

(absoluta) e a da ZEE (relativa). A criação de um conceito abrangente

certamente feriria o princípio de soberania dos estados estipulado na

CNUDM. Além disso, chocar-se-ia frontalmente contra os interesses de países

centrais que não concordariam em ter marinhas estrangeiras perseguindo

embarcações piratas em suas águas. Nessa linha, a declaração do governo

do Reino Unido é paradigmática ao afirmar que

It would be unacceptable to the UK for the navy

of a foreign state to be able to claim jurisdiction over

24 A Organização Marítima Internacional (IMO) foi criada em 1948 e é uma agência

especializada das Nações Unidas que tem por propósito instituir um sistema de colaboração

entre governos no que tange a questões técnicas da navegação comercial internacional e

segurança do tráfego marítimo.

25 Da CNUDM.

26 Resolução A.922(22), anexo, parágrafo 2.2 do Code of Practice for the Investigation of the

Crimes of Piracy and Armed Robbery Against Ships.

27 No original: “Armed robbery against ships means any unlawful act of violence or detention or

any act of depredation, or threat thereof, other than an act of “piracy”, directed against a ship or

against persons or property on board such ship, within a State’s jurisdiction over such offences”.

28 Para mais informações sobre o número de ataques e outras definições, recomenda-se a

página da Organização Marítima Internacional em http://www.imo.org, especialmente

a do Maritime Safety Committee.

Osvaldo Peçanha Caninas

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an act of maritime armed robbery within the UK’s

territorial waters. This would be the unfortunate

consequence of wrapping an act of piracy and an act

of maritime armed robbery into one definition29(Grifo

nosso).

Cabe ressaltar que a inviolabilidade de embarcações no alto-mar é a

base da Convenção da Jamaica, por extensão do princípio da

extraterritorialidade além de ser visto por analistas como fundamental à

“mobilidade global dos Estados Unidos da América”30. Byers afirma que

[...] U. S. Merchant vessels, whether flagged at

home or abroad, depend on the protection afforded

by the requirement of flag state consent, as do foreign

vessels carrying goods to or from the United States31.

Apesar de concordar com grande parte do contido na CNUDM, até o

presente momento, os EUA não aderiram à Convenção; o país assinou mas

nunca a ratificou32. Embora não o tenham feito de direito, o fizeram de facto,

pois obedecem à maioria de seus princípios, além de terem grande participação

na discussão de todos os seus assuntos, especialmente na Comissão de

Limites da Plataforma Continental33.

O testemunho do então Assessor para assuntos legais do Departamento

de Estado, William Howard Taft IV é claro a respeito das implicações para os

EUA em não ratificar a CNUDM:

Joining the Convention will advance the

interests of the U.S. military. As the world’s leading

maritime power, the United States benefits more than

any other nation from the navigational provisions of

the Convention. […] Beyond those affirmative reasons

for joining the Convention, there are downside risks

of not acceding to the Convention. U.S. mobility and

access have been preserved and enjoyed over the past

twenty years largely due to the Convention’s stable,

29 REINO UNIDO. HOUSE OF COMMONS- Transport committee- Piracy- Government

Response to the Committee´s Eighth Report of Session 2005-06. HC 1690. London: The Stationary

Office Limited, 2006, p. 4.

30 BYERS, Michael. Policing the High Seas: The Proliferation Security Initiative. The American

Journal of International Law, v. 98, n. 3, Jul. 2004, p. 527.

31 Ibidem., p. 527-528.

32 Para uma visão crítica da adesão dos EUA ver BANDOW, Doug. Don´t ressurect the

Law of the sea treaty. Journal of International Affairs. V. 59, n. 1, Fall/winter 2005, p. 25-41.

33 Ver a página da Comissão em: < http://www.un.org/Depts/los/clcs_new/

clcs_home.htm >.

Pirataria Marítima Moderna

109

widely accepted legal framework. It would be risky

to assume that it is possible to preserve indefinitely

the stable situation that the United States currently

enjoys. Customary international law may be changed

by the practice of States over time and therefore does

not offer the future stability that comes with being a

party to the Convention (grifo nosso)34.

A Convenção para a repressão de atos ilícitos contra a segurança da

navegação35, mais conhecida pela sigla SUA, é outro documento que trata de

atos de pirataria. Esta convenção foi fruto do incidente ocorrido a bordo do

Achille Lauro, um navio de cruzeiro de bandeira italiana, seqüestrado no

trajeto de Alexandria para Port Said em outubro de 1985. Os seqüestradores,

membros da Frente de Libertação da Palestina, uma facção da Organização

pela Libertação da Palestina (OLP), ameaçavam matar os passageiros a menos

que Israel libertasse cinqüenta prisioneiros palestinos. Além disso, afirmavam

que explodiriam o navio em caso de tentativa de resgate. Na tarde seguinte,

ao não terem suas demandas atendidas, os seqüestradores executaram Leon

Klinghoffer, um judeu de nacionalidade americana, com um tiro e lançaram

seu corpo junto com sua cadeira de rodas ao mar36. Em conseqüência do

incidente, em novembro de 1986, ocorre um movimento para elaborar uma

legislação que protegesse o tráfego marítimo, à semelhança da convenção

para reprimir seqüestros de aeronaves. A IMO criou, então, um comitê

preparatório Ad Hoc para dar início ao processo de elaboração da convenção.

O principal propósito da convenção é garantir as ações adequadas em

caso de atos ilegais contra navios, incluindo sua captura pela força, atos de

violência contra pessoas a bordo e introdução de dispositivos que podem

destruir ou danificar os navios. A despeito da obrigação dos governos em

extraditar e instaurar um processo contra os acusados, isto está longe de ser

uma tarefa fácil. Não obstante, a Convenção serviu para diminuir o vácuo

legal em casos como o do Achille Lauro, em que se tornou difícil provar a

motivação para “fins privados”, contido na definição de pirataria.

34 UNITED STATES SENATE. Testimony on the accession to the 1982 Law of the Sea

Convention and ratification of the 1994 agreement amending part XI of the Law of the Sea

Convention before Senate Armed Services Committee on April 8, 2004. Senate Treaty

Document 103-39. Senate Executive Report 108-10. Disponível em: < http://

www.senate.gov/~armed_services/statemnt/2004/April/Taft.pdf >. Acesso em: 20 abr.

2008, p. 3 e 8.

35 Convention for the Suppression of Unlawful Acts Against the Safety of Maritime Navigation.

Entrou em vigor em março de 1992. Disponível em:

.

Acesso em: 14 mai. 2009.

36 HALBERSTAM, op. cit. p. 269.

Osvaldo Peçanha Caninas

110

Entretanto, a SUA lida com um crime que ainda não tem uma definição

aceita no Direito Internacional: o terrorismo marítimo, cuja tipificação também

não é amplamente aceita pelas legislações internas de vários países. Se por um

lado a pirataria é um crime que, junto com a escravidão e o genocídio, é tratado

como jure gentium (de jurisdição universal), por outro, os crimes definidos pela

SUA têm um tratamento controverso nas legislações nacionais, causando

problemas de interpretação quando surge a ocasião de aplicá-las37.

Desde então, os assuntos de pirataria e terrorismo no mar têm encontrado

abrigo neste documento cada vez mais inclusivo e abrangente.

Globalização e Pirataria

Desde o século XIX, ocorre um crescimento incessante das trocas

econômicas mundiais. O surgimento de tecnologias como o rádio, a televisão

e a internet, faz com que transações comerciais que, antes levavam meses,

hoje sejam feitas em segundos. Apesar da rapidez com que é concluído, o

transporte de mercadorias, mesmo com os imensos avanços da aviação e

dos navios, segue um ritmo bem mais lento. Ritmo este que ainda está sujeito

a intempéries, acidentes, problemas de descarregamento, impostos,

terminais sobrecarregados e roubos. É exatamente sobre esse sempre

crescente volume de trocas que a pirataria vem atuando. Desta maneira, se

as trocas não cessam de aumentar em volume e valor, é previsível que os

ataques também aumente em número e, por que não, audácia, visto as presas

se tornarem mais valiosas.

Geoffrey Till38, professor da cátedra de Maritime Studies no Defence

Studies Department do King´s College da Universidade de Londres, e analista

dos reflexos da globalização na atividade marítima, em obra recente39,

introduz o conceito de “boa ordem no mar” (good order at sea). Para ele, o

mar possuiria quatro atributos que teriam sido usados para o

desenvolvimento humano: o mar como recurso, como meio de transporte e

comércio, como meio de troca de informações e fonte de poder e domínio40.

37 Uma fonte excelente a respeito dos problemas da jurisdição universal aplicada aos atos

de pirataria é GOODWIN, Joshua Michael. Universal jurisdiction and the pirate: time for

an old couple to part. Vanderbilt Journal of Transnational Law, v. 39, n. 3, May 2006, p. 973-

1011.

38 Para saber mais sobre as obras e o perfil do Professor Dr. Till, ver a página da Universidade

de Londres em http://www.kcl.ac.uk/schools/sspp/defence/staff/acad/gtill.

39 TILL, Geoffrey. Seapower. A guide for the twenty-first century. London: Frank Cass publishers,

2004.

40 Ibidem, p. 310.

Pirataria Marítima Moderna

111

Tais atributos estão interligados e interdependentes e a pirataria estaria

inserida no mar como meio de transporte.

As atividades no mar estariam interligadas dessa maneira:

41 Ibidem. p. 17.

Osvaldo Peçanha Caninas

Fonte: TILL, Geoffrey. Seapower. A guide for the twenty-first century. London: Frank

Cass publishers, 2004, p. 20.

Recursos do mar

Comércio marítimo Poder naval

de um país

Supremacia no mar

Este ciclo virtuoso não deveria sofrer rompimentos sob pena de

provocar um profundo choque em toda a estrutura. Sir Walter Raleigh já

afirmava que “aquele que comanda o mar, comando o comércio e aquele

que é o senhor do comércio mundial é o senhor da riqueza do mundo41”. Se

esta afirmativa era correta no século XVI, nos dias atuais ela se aplica ainda

mais devido ao fenômeno da globalização do comércio internacional. A

pirataria poderia causar aumento do preço do seguro, em cuja composição

o preço do frete é significativo. Dependendo do número de ataques, poderia

haver um movimento para que os mercantes fossem escoltados por navios

de guerra, gerando uma forte demanda sobre as marinhas do mundo em

desenvolvimento.

É importante notar que a pirataria não é privilégio de locais sem

movimento, pois um dos estreitos mais movimentados do mundo, com média

de 50.000 navios por ano — o estreito de Malaca —, é um dos principais em

ataques piratas, junto com o Mar da China meridional (South China Sea),

Golfo da Guiné e a Indonésia. A figura abaixo apresenta a distribuição

geográfica dos ataques, com predominância para a Ásia e África Oriental

(especialmente Somália).

112

Figura 2: Estatística anual de atos de pirataria e roubo armado por área (2008)42.

Fonte: ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ORGANIZAÇÃO MARÍTIMA

INTERNACIONAL. MSC.4/Circ.133. Reports on acts of piracy and armed robbery

against ships. 2008 Annual report. London: Maritime Safety Committee, p. 17.

Algumas Iniciativas Contra a Pirataria

A IMO vem se esforçando para estabelecer um projeto mundial

antipirataria. No entanto, as iniciativas esbarram nas dificuldades em

padronizar as legislações nacionais, aumentar a interoperabilidade dos

centros de coordenação e até mesmo resistências políticas.

Com este fim, foi assinado, em novembro de 2004, por 16 países da

Ásia, o Regional Co-operation Agreement on Combating Piracy and Armed Robbery

against ships in Asia (RECAAP) tendo como órgão de coordenação o RECAAP

Information Sharing Centre (ISC) a fim de permitir o compartilhamento de

informações entre os participantes.

Também estão sendo conduzidas reuniões regionais nas áreas afetadas

pela pirataria. A primeira delas teve lugar em Sanaa, no Iêmen, em abril de

2005 (para países lindeiros ao Mar Vermelho e Golfo de Aden) e a segunda

em Omã em janeiro de 2006. Em setembro de 2005, foi a vez do Meeting on the

Straits of Malacca and Singapore: Enhancing Safety, Security and Environmental

Protection, em Jacarta, Indonésia.

42 Caso seja difícil a leitura, as barras significam, da esquerda para a direita: ataques em

águas internacionais, em águas nacionais e no porto.

Pirataria Marítima Moderna

113

Till afirma que uma das grandes armas contra a pirataria é criar uma

consciência da importância do mar, a que ele denomina de “maritime

awareness”. Dentro deste conceito, a divulgação dos ataques de maneira rápida

facilitaria a coordenação entre os países e a ação imediata por parte dos

envolvidos. Nesse sentido, a IMO divulga relatórios com atos de pirataria e

roubo armado informados pelos Estados-membros. Os relatórios contêm

nome e descrição das embarcações, posição, dia da ocorrência, conseqüências

para a tripulação, navio ou carga e as ações tomadas pela tripulação e

autoridades costeiras43.

Atualmente as regiões da costa da Somália e do Golfo de Aden têm sido

palco de grandes e espetaculares 44 ataques. Logo, em janeiro de 2009, no

Djibuti, houve uma reuniçao de alto-nível liderada pela IMO. Nesta reunião

foi estabelecido um Código de conduta para a repressão da pirataria e roubo

armado em navios no Oceano Índico Ocidental e Golfo de Aden (Code of

Conduct concerning the Repression of Piracy and Armed Robbery against Ships in

the Western Indian Ocean and the Gulf of Aden). O Código reconhece o problema

e declara sua intenção de compartilhar informações por meio de um sistema

de pontos focais e centros de informação, além de interditar navios suspeitos

de pirataria.

As ações que cada estado deve tomar para incrementar a segurança de

seu tráfego marítimo também são um fator importante para evitar os atos de

pirataria. Para tal, a IMO emitiu, recentemente, as circulares MSC.1/Circ.1333-

Recommendations to Governments for preventing and suppressing piracy and armed

robbery against ships suggests possible counter-measures e MSC.1/Circ.1334-

Guidance to shipowners and ship operators, shipmasters and crews on preventing

and suppressing acts of piracy and armed robbery against ships45. Estas, são uma

tentativa de codificar boas práticas a fim de padronizar procedimentos.

Tais iniciativas são bem vindas, mas não suficientes, tendo em vista

que o comércio marítimo se faz entre diversos países, sujeitos, pois, a uma

variedade de legislações e visões sobre o assunto. É importante que haja o

efetivo envolvimento e integração dos órgãos, não somente das marinhas,

mas dos ministérios da defesa, transportes, comércio e indústria, polícias,

guarda portuária, etc. A seguir, veremos alguns assuntos que estão

necessitando de maior atenção por parte da comunidade internacional.

43 Para uma relação mensal dos ataques e estatísticas anuais ver: < http://www.imo.org/

Circulars/mainframe.asp?topic_id=334 >.

44 Espetaculares no sentido de atraírem a atenção da mídia mundial.

45 Ambas aprovadas pelo The Maritime Safety Committee, em sua 86º sessão (27 mai-5

jun. 2009). Disponível em < http://www.imo.org/Circulars/mainframe.asp?

topic_id=327>. Acesso em: 12 ago. 2009. Estas circulares revogam as antigas MSC/

Circ.622/Rev.1 and MSC/Circ.623/Rev.3 (2002), respectivamente.

Osvaldo Peçanha Caninas

114

Assuntos a Requerer Atenção

Este artigo pretende levantar algumas questões importantes, sem ter a

pretensão de esgotar a discussão.

A primeira delas é o sistema identificador automático (automatic

identification system ou AIS). O AIS, criado pela Convenção para salvaguarda

da vida humana no mar46 (SOLAS), consiste de um conjunto transmissorreceptor

em que são transmitidas informações sobre a embarcação como nome,

tipo, posição, velocidade, situação da navegação e outras informações de

segurança47. Além de apresentar estas informações em uma tela, o AIS

pretende auxiliar os oficiais de serviço dos navios e permitir que as

autoridades marítimas acompanhem o movimento dos navios. O AIS trabalha

integrando um transceptor de VHF padrão com um sistema de navegação

eletrônica como o LORAN- C (LOng RAnge Navigation versão C) ou o Sistema

de Posicionamento Global (GPS) além de outros sensores dos navios como

bússolas, indicador de rate de guinada48, etc. Dessa maneira, qualquer

tripulante de posse deste equipamento, teria acesso à uma série de informações

sobre o tráfego mercante da área. Da mesma forma, bastaria que um pirata

tivesse um destes receptores, para que pudesse “escolher” a presa que mais

lhe aprouvesse, tendo, inclusive, dados como posição, velocidade, nome do

navio e carga.

Quaisquer navios, ou aeronaves, dotados de um receptor, teriam acesso

a tais informações a fim de evitar colisões no mar. John Grubb, do

Departamento de Transportes do Reino Unido49, protesta dizendo que “os

movimentos dos navios são públicos demais”; e continua, “It is easy to track

[ships] even if you tried not to make this too well known because you can work out

exactly where a ship is going to be. I do not think you can actually minimise the

information you give to criminals, they can get what is publicly available” 50 (grifo

nosso). Para completar, um relatório do Parlamento Inglês afirma que “se

operado por piratas, o AIS permitirá que eles acompanhem o movimento de

determinados navios baseado, por exemplo, no valor de sua carga51”. Como

46 Capítulo V da convenção, revisado em 2000.

47 O regulamento se aplica a todos os navios construídos a partir de 1 de julho de 2002 e

navios engajados em viagens internacionais de acordo com as seguintes datas: navios de

passageiros, até 1 julho de 2003, navios-tanque até a primeira vistoria de segurança; os

demais navios acima de 50.000 toneladas brutas até 1 de julho de 2004.

48 Equipamento que informa a velocidade com que o navio muda de rumo.

49 REINO UNIDO, HOUSE OF COMMONS- Transport committee- Piracy- eighth report on

session 2005-2006. HC 1026. London: The Stationary Office Limited, 2006, p. 24.

50 Ibidem, p. 24.

51 Ibidem, p. 24.

Pirataria Marítima Moderna

115

se já não fosse suficientemente problemática a divulgação dos movimentos

dos navios, há pelo menos dezesseis empresas que, por meio da internet,

veiculam dados de posicionamento e tipo de carga de navios ao redor do

mundo. Entre elas, temos a MarineTraffic.com52 (especialmente da região da

Grécia) e a ShipAIS.com53, especializada em navios do Reino Unido. Cientes

do perigo que estes dados publicados na internet podem causar, a IMO, na

sua 79ª sessão, em dezembro de 2004, reprovou a divulgação destas

informações e solicitou aos estados-membros que desencorajassem sua

exibição pública54, determinação ainda sem nenhum efeito prático.

O governo do Reino Unido alertou mestres de embarcações de navios

de bandeira inglesa e do Red Ensign group55 para que cessem

temporariamente as transmissões do AIS quando em alto mar (especialmente

em águas onde se sabe da presença de piratas), se assim julgarem que a

segurança do navio não é comprometida56.

52 Ver o site em http://www.marinetraffic.com/ais/.

53 Ver em http://www.shipais.com.

54 Disponível em: < http://www.imo.org/Safety/mainframe.asp?topic_id=754 >. Acesso

em: 10 junho 2008.

55 O Red Ensign Group é composto de pelos navios registrados no Reino Unido, UK Crown

Dependencies (Isle of Man, Guernsey e Jersey) e os territórios de ultramar (Anguilla,

Bermuda, British Virgin Islands, Cayman Islands, Falkland Islands, Gibraltar, Montserrat,

St Helena e as Turks & Caicos Islands).

56 REINO UNIDO. HOUSE OF COMMONS- Transport committee- Piracy- Government

Response to the Committee´s Eighth Report of Session 2005-06. op. cit, p. 9.

Fonte: http://www.marinetraffic.com/ais/.

Osvaldo Peçanha Caninas

Figura 3: Amostra de informações do AIS disponíveis na Internet nas

proximidades do porto do Rio de Janeiro

116

Outra questão é a perseguição e apreensão de embarcações piratas, cujas

repercussões são grandes sobre o direito e as relações internacionais. A

jurisprudência sobre o assunto é extensa, porém há um caso que ilustra bem a

complexidade do relacionamento entre o Direito Internacional e as legislações

internas. Em 1933, durante o julgamento de um ataque pirata, o Privy Council57

foi instado a responder se o roubo, propriamente dito, era parte fundamental

da tipificação do ato de pirataria e se a tentativa já seria suficiente para tipificálo58.

O Conselho esquivou-se em dar uma definição de pirataria, contudo, o

mais interessante é comentar as circunstâncias que motivaram a consulta.

Duas pequenas embarcações chinesas foram atacadas por outro barco chinês

em alto mar. Os piratas foram interceptados, levados a Hong Kong por um

navio de guerra britânico e acusados de pirataria. Posteriormente, foram

julgados culpados pelo júri, ainda que o roubo propriamente dito não houvesse

sido perpetrado. No entanto, a Corte Superior (Full Court of Hong Kong) teve

outra interpretação, afirmando que o roubo, propriamente dito, era necessário

para tipificar a pirataria. Os acusados foram então soltos, deixando uma lacuna

e levando o comitê instituído (Judicial Committee) para assessorar sobre a questão

a afirmar, na mais fina ironia britânica, que

When [...] armed men sailing the seas on board a

vessel, without any comission from any State, could attack

and kill everybody on board another vessel, sailing under a

national flag, without committing the crime of piracy unless

they stole [...] their Lordships are almost tempted to say that

a little common sense is a valuable quality in the interpretation

of international Law59.

O fato de o crime de pirataria ter uma vertente que depende das leis de

cada Estado, quando cometido em área distinta da estipulada pela Convenção

da Jamaica, aumenta em muito a complexidade do assunto e o tratamento

disperso dado a ele.

A terceira, e última questão que abordaremos, é que a pirataria também

pode ter desdobramentos no terreno dos direitos humanos. A marinha britânica

57 Comitê composto pelos conselheiros mais próximos ao monarca inglês. Fazem parte

dele o gabinetes dos ministros, além de ex-ministros designados pelo soberano.

58 JOHNSON, D. H. N. Piracy in Modern International Law. Transactions of the Grotius

Society, v. 43, Problems of Public and Private International Law, Transactions for the Year

1957, p. 69-70.

59 Piracy Jure Gentium, 1934. In: JOHNSON, D. H. N. Piracy in Modern International Law.

Transactions of the Grotius Society, v. 43, Problems of Public and Private International Law,

Transactions for the Year 1957, p. 70.

Pirataria Marítima Moderna

117

(Royal Navy) vem envidando grandes esforços para coibir a pirataria em alto

mar, especialmente na região da Somália e Caribe. Recentemente, o Ministério

das Relações Exteriores Britânico (Foreign Office- FCO) advertiu a marinha de

que os piratas mandados para julgamento na Somália poderiam ter seus direitos

humanos afetados visto que, pela Lei Islâmica, estariam sujeitos à decapitação

(em caso de homicídio) ou a ter suas mãos cortadas, em caso de roubo. Neste

caso, o Ministério afirma que os acusados poderiam via a solicitar asilo ao

Reino Unido. A advertência do ministério foi duramente criticada pelo

parlamentar Julian Brazier que afirmou que

These people commit horrendous offences. The solution

is not to turn a blind eye but to turn them over to the local

authorities. The convention on human rights quite rightly

doesn’t cover the high seas. It’s a pathetic indictment of

what our legal system has come to60.

O medo das conseqüências de uma grande quantidade de pedidos de

asilo provavelmente motivou as autoridades dos Estados unidos e União

Européia a entrar em entendimentos com um terceiro país, o Quênia, conforme

mostram os documentos a seguir.

Em 2 de junho de 2008, o Conselho de Segurança das Nações Unidas

(CSNU) adotou a resolução 1816 (2008) pedindo a todos os Estados que

cooperem na investigação e promoção da ação penal correspondente para os

responsáveis por atos de pirataria e roubo armado nas costas da Somália. A

seguir, o CSNU promoveu uma ação conjunta (2008/851/CFSP) com a União

Européia para perseguir piratas nesta região (Operação Atalanta).

Esta ação conjunta previa que os capturados pela Operação Atalanta

pudessem ser transferidos para um terceiro país a fim de que este exercesse

jurisdição. Para que isto acontecesse, deveria existir um acordo com este

estado e este deveria se comprometer a respeitar os direitos humanos e não

submetê-los à pena de morte.

Finalmente, pelo artigo 24 do Tratado da União Européia, uma troca de

cartas de intenções61 com o governo do Quênia estabeleceu as condições e

60 WOOLF, Marie. Pirates can claim UK asylum. The Sunday Times. London, 13 abril

2008. Disponível em < http://www.timesonline.co.uk/tol/news/uk/article3736239.ece

>. Acesso em 1 junho 2008.

61 UNIÃO EUROPÉIA. Official Journal of the European Union. 25 march, 2009. Exchange

of Letters between the European Union and the Government of Kenya on the conditions

and modalities for the transfer of persons suspected of having committed acts of piracy

and detained by the European Union-led naval force (EUNAVFOR), and seized property

in the possession of EUNAVFOR, from EUNAVFOR to Kenya and for their treatment after

such transfer. L 79, p. 49- 59. Disponível em < http://eur-lex.europa.eu/

Notice.do?val=491702:cs&lang=en&pos=1&phwords=piracy~&checktexte=checkbox >.

Acesso em 20 mai. 2009.

Osvaldo Peçanha Caninas

118

modalidades de transferência dos capturados pela força naval européia

(EUNAVFOR). É interessante notar que o acordo requer que haja

full respect of United Nations Security Council

Resolutions62, the 1982 United Nations Convention on the

Law of the Sea (UNCLOS) (in particular Articles 100 to

107) and International Human Rights Law, including the

1966 International Covenant on Civil and political Rights,

and the 1984 Convention against Torture and Other Cruel,

Inhuman or Degrading Treatment or Punishment (grifo

nosso)63.

A preocupação do Reino Unido é clara, como se pode ver em declarações

do governo como esta:

These persons cannot be transferred to a third

State, including Somalia, if the conditions of transfer

have not been agreed with the third State in conformity

with the applicable international law, notably

international human rights law, in order to guarantee

that no one is submitted to the death penalty, torture

or any other cruel, inhuman or degrading treatment64.

O receio de que a prisão de piratas pudesse se tornar um “salvoconduto”

para o território dos países fica evidente pela resposta de Bob

Ainsworth, Ministro da Defesa em um debate da Câmara dos Comuns

We have no intention of providing a taxi service

for asylum seekers through the Royal Navy. We have

received the co-operation of countries in the area -

Kenya, in particular, as I have said - in bringing these

people to justice65.

Da mesma maneira, os EUA assinaram um Memorando de

Entendimentos com o Quênia. O receio de que os piratas pudessem pedir

asilo também preocupava o país como se nota no discurso de Stephen D.

Mull, assistente sênior do Subsecretário para Assuntos Políticos do

Departamento de Estado.

62 Resoluções (UNSCR) 1814 (2008), 1838 (2008), 1846 (2008), 1851 (2008) e as que se

seguirem sobre o assunto.

63 UNIÃO EUROPÉIA, op. cit.

64 UNITED KINGDOM. HOUSE OF COMMONS LIBRARY. BUTCHER, Louise. Standard

note SN/BT/3794. Shipping: Piracy. 31 march 2009.

65 REINO UNIDO, HOUSE OF COMMONS DEBATES. 1 june 2009. Volume 493, part 82,

columns 5-6. Disponível em: < http://www.publications.parliament.uk/pa/cm200809/

cmhansrd/cm090601/debindx/90601-x.htm >.

Pirataria Marítima Moderna

119

A big problem, as we can talk about later, is

figuring out what to do with the pirates once we

apprehend them. And so we have worked to secure an

agreement with Kenya that Kenya will gladly take the

pirates that we apprehend and prosecute them. We also

have a number of other discussions going on with other

states in the region to do the same thing. It is partly

funny, but it also illustrates that, for many people, if

you arrest them and then take them into custody, there

may be national laws that prevent their return if they are

found not guilty. They will say that they face persecution or

terrible living conditions in Somalia, they would like asylum.

Or they will just remain there in the country and then become

a problem for that particular nation (grifo nosso)66.

Até o presente momento (dados de 30 de abril de 2009) os Estados

Unidos já haviam transferido 52 piratas para o Quênia que se encontram

aguardando julgamento67.

Conclusão

Norbert Elias afirmou68 que os conceitos matemáticos podem ser

expressos sem referência ao contexto histórico. Os conceitos sociais, ao

contrário, adquirem diferentes nuances com o correr do tempo. Uma palavra,

que antes designava algo, muda seu significado, sem apagar seu passado.

Da mesma maneira, a palavra pirataria evoca pensamentos que estão

enraizados no processo histórico de sua construção. Neste artigo pudemos

ver que ela teve uma evolução em seu significado e importância ao longo do

tempo. Mas devemos compreender as limitações do termo ao chamar de

pirataria eventos tão díspares como os piratas de Henrique IV, os eventos

recentes na Somália e a atividade de roubo de comida em diversos portos. A

linguagem é limitada e há necessidade de estudar caso a caso. Querer criar

uma solução para o problema e que atenda todos os fenômenos é perder a

dimensão de sua complexidade.

As atividades de privateering dos séculos foram, em grande medida,

66 UNITED STATES HOUSE OF REPRESENTATIVES. International efforts to combat

maritime piracy. Hearing before the subcommittee on international organizations, human

rights and oversight of the Committee on Foreign Affairs. House of Representatives. One

hundred eleventh congress. First Session. April 30, 2009. Serial no. 111-113. Disponível

em: < http://www.foreignaffairs.house.gov/ >. Acesso em: 12 jun. 2009.

67 Idem.

68 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editor, 1994, vol I, p. 26.

Osvaldo Peçanha Caninas

120

fruto da fraqueza do Estado e da necessidade de um pacto com interesses

privados. Modernamente, o intenso comércio de riquezas pelo transporte

marítimo desperta a atenção de criminosos que exercem uma atividade

parasita ao atacar parte deste mesmo comércio. No entanto, o uso da jurisdição

universal para julgar e enforcar piratas, já não se aplica mais. Há outros

fatores a considerar como a legislação de direitos humanos, o direito do mar,

somente para mencionar alguns.

A tendência de igualar pirataria com terrorismo marítimo também não

pode ser levada a sério. Nem mesmo aqueles que alegam que os piratas seriam

inimigos da humanidade e deveriam ser sumariamente executados. A

securitização69 do assunto, isto é, retirá-lo da esfera normal da política, para

tratá-lo com medidas de emergência mediante alegações de prioridade de

ação e sobrevivência do estado é inadmissível.

Mesmo com o crescimento dos atos na região da Somália, cabe procurar

as causas de cada fenômeno em vez de imaginá-lo igual a outras ocorrências

do passado. Se a análise histórica pode nos ensinar algo, sem ingênuas

relativizações, é que não há um ato de pirataria igual a outro, mas tantos

quantos forem perpetrados. Deixar de analisar cada caso, enquadrá-lo em

uma moldura pré-concebida séculos atrás, criar respostas pré-planejadas

para todo e qualquer ataque, onde quer que ocorra, não resolverá o problema

e tenderá a agravá-lo ainda mais.

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