quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

6286 - ESCRITORES DA GUIANA FRANCESA

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 95-116, jan./abr. 2007 95
A questão da diversidade na experiência escolar de
jovens na Guiana Francesa
Izabel Galvão*
Universidade de São Paulo
Jean-Jacques Schaller
Universidade Paris 13
Resumo
O artigo apresenta uma pesquisa realizada em dois colégios (5ª à
8ª séries do Ensino Fundamental) da cidade de Caiena, na Guiana
Francesa, e analisa práticas discursivas produzidas por alunos, visando
compreender como se manifesta a questão da diversidade
e como ela participa da construção da experiência escolar. O dispositivo
empírico consistiu em entrevistas coletivas e individuais
e se apoiou numa perspectiva compreensiva das práticas sociais,
que valoriza a capacidade de ação e reflexão dos atores.
Examina-se o modo como esses alunos constroem sua experiência
escolar numa sociedade dependente e marcada pela diversidade
cultural e lingüística, numa escola que combina a retórica da
igualdade de oportunidades e um clima fortemente competitivo.
A sociabilidade entre pares se destaca como importante dimensão
da experiência escolar e os jovens relatam como ela é balizada
pelas imagens de si e do outro, construídas a partir de elementos
próprios ao mundo escolar, ao universo das culturas juvenis, ao
contexto sociocultural da Guiana. Os alunos fazem eco às diferentes
visões sobre a escola na Guiana e, situando-se entre a crítica
e a adesão ao modelo e às práticas da escola francesa, expressam
suas expectativas, formulam suas perspectivas. Por trás das críticas
que tecem, os adolescentes formulam a demanda de serem
reconhecidos como pessoa singular, questão que se situa no
cerne dos processos de sua construção subjetiva.
Palavras-chave
Diversidade – Experiência escolar – Jovens e educação – Guiana
Francesa.
Correspndência:
Izabel Galvão
izagal@usp.br
Jean-Jacques Schaller
schaller@lshs.univ-paris13.fr
*Artigo elaborado durante pós-doutorado
na Universidade Paris 13, com
bolsa da CAPES.
96 Izabel GALVÃO e Jean-Jacques SCHALLER. A questão da diversidade ...
The issue of diversity in the school experience of
youngsters in the French Guiana
Izabel Galvão*
Universidade de São Paulo
Jean-Jacques Schaller
Universidade Paris 13
Abstract
The article presents a study conducted with two schools (5th to 8th
year of fundamental school) in the city of Cayenne, French Guiana. It
analyzes discursive practices produced by pupils with the purpose of
understanding how the issue of diversity is manifested, and how it
takes part in the construction of the experience of schooling. The
empirical device consisted of collective and individual interviews, and
was supported by a perspective sensitive to the social practices,
recognizing the value of the agents’ capacity for action and reflection.
The text examines the way in which these pupils construct their
school experience in a dependent society, marked by cultural and
linguistic diversity, at a school that combines the rhetoric of equal
opportunities with an intensely competitive atmosphere. The sociability
between peers stands out as an important dimension of the school
experience, and the youngsters describe how it is oriented by the
images of the self and of the other constructed from elements of the
world of school, of the universe of youth culture, and of the socialcultural
context of the Guiana. The pupils echo the different visions of
the school in the Guiana and, caught between the criticism of the
model and practices of the French school and the adhesion to it,
express their expectations and formulate their perspectives. Behind the
criticism they make, the adolescents demand being recognized as singular
people, an issue that sits at the core of the processes of their
subjective construction.
Keywords
Diversity – School experience – Youngsters and education – French
Guiana.
Contact:
Izabel Galvão
izagal@usp.br
Jean-Jacques Schaller
schaller@lshs.univ-paris13.fr
*This article was written during a
post-doctoral stay at the University
Paris 13 under a CAPES scholarship.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 95-116, jan./abr. 2007 97
Embora adquira contornos peculiares na
Guiana, a diversidade dos públicos escolares é
uma questão que atinge todos os sistemas que
se encaminharam à universalização do acesso.
As escolas brasileiras enfrentam agudamente os
desafios que decorrem da bem-vinda e ainda
inacabada democratização do acesso. Este estudo1
sobre escolas na Guiana, departamento
ultramar da república francesa, permite que se
vejam num outro contexto elementos presentes,
com outras configurações, na realidade brasileira.
Este artigo não se pretende, contudo, um
estudo comparativo, mas situa os dados da pesquisa
realizada na problemática do sistema de
ensino francês e no contexto sociocultural da
Guiana. Privilegiando o ponto de vista dos alunos,
aborda como a questão da diversidade participa
da construção de sua experiência escolar.
O sistema de ensino francês
em face da diversidade do
público escolar
No sistema de ensino francês, a diversificação
do público escolar se torna especialmente
visível e aguda no collège2, etapa comum e obrigatória3
que condensa as ambigüidades decorrentes
da tentativa de conciliar o provimento de uma
escolaridade comum para todos e a seleção de
talentos segundo o princípio do mérito (Dubet,
2003). Segundo Derouet (2003), a progressiva
implantação do ‘colégio único’ a partir de 1975
respondeu ao desejo de radicalizar o ideal de
uma escola que permitisse a qualquer criança,
independente de sua origem social, chegar à
melhor posição social possível, graças a critérios
de seleção e orientação intrínsecos à personalidade
e não como efeito da origem social. Após a
chamada Reforma Haby, os ramos diferenciados
nos quais antes eram distribuídos os alunos
desde a 5ª série, em função dos resultados
obtidos no primário, foram progressivamente
abolidos e a todos deve ser oferecida a mesma
escolaridade. Contudo, o lycée4 continua
estruturado em carreiras fortemente hierarquizadas5
e sem mobilidade entre elas. A colocação num ou
noutro tipo de liceu (e no interior de cada um, nos
diferentes ramos) depende do histórico escolar e da
obtenção do brevet, exame nacional ao qual devem
se submeter todos os alunos na 8ª série. Além
da pressão que o brevet e a perspectiva de ingresso
no liceu exercem sobre as práticas escolares da
etapa anterior, o ‘colégio único’ foi implantado
calcado no modelo do secundário, privilegiando
os saberes abstratos e a acumulação de conhecimentos
visando a realização de estudos longos,
isto é, voltados para o ingresso na universidade
(Dubet; Duru-Bellat, 2000). Assim, a despeito dos
textos oficiais que determinam que a orientação do
aluno aos diferentes ramos do liceu deve ser feita
com base nos ‘gostos’ e nas ‘aptidões’ individuais
(Merle, 2003), os encaminhamentos são feitos de
acordo com o rendimento no colégio – sendo os
alunos aconselhados a escolher em função do que
os seus resultados lhes possibilitam – e das expectativas
e das estratégias das famílias, favorecendo
as que conhecem melhor o complexo funcionamento
do sistema. Assim, as carreiras mais seletivas
(liceu geral) continuam acolhendo jovens de
camadas sociais mais favorecidas, ratificando as desigualdades
sociais. Se antes da massificação a seleção
dos alunos era anterior ao ingresso no colégio,
etapa então acessível somente para alguns,
agora ela é feita durante o colégio, pois a implantação
do colégio único não quebrou a lógica
seletiva (Dubet, 2004).
Diante desse quadro, as classes heterogêneas
tornam-se o grande entrave para o trabalho
pedagógico e, a despeito das orientações oficiais
do colégio único, os estabelecimentos encontram
1. O estudo se inscreveu num convênio de pesquisa entre a Universidade
de São Paulo, a Universidade Paris 13 e o Rectorat da Guiana. A pesquisadora
brasileira recebeu auxílio da Fapesp e, nas fases iniciais do projeto,
da Pró-Reitoria de Pesquisa e da Comissão de Cooperação Internacional,
instâncias da Universidade de São Paulo.
2. Etapa correspondente ao segundo ciclo do Ensino Fundamental, isto é, da
5ª à 8ª séries. O termo francês será traduzido, nesse artigo, por colégio.
3. Na França, a escolaridade obrigatória vai até os dezesseis anos.
4. Correspondente ao Ensino Médio, será traduzido por liceu.
5. Tentando traduzir em poucas linhas a complexa miríade de ramos e especializações
na qual se divide o sistema de Ensino Médio francês, podemos
destacar que são três os tipos de liceu: o liceu geral, que dá acesso aos estudos
superiores universitários; o técnico, que forma técnicos de nível superior, dirigentes
de nível intermediário; o profissional, que forma os agentes operacionais
situados nas posições mais baixas da hierarquia profissional.
98 Izabel GALVÃO e Jean-Jacques SCHALLER. A questão da diversidade ...
formas de criar agrupamentos mais homogêneos.
Essas soluções respondem às demandas dos professores,
que se vêem despreparados para lidar
com a diversidade crescente entre os alunos, mas
também dos alunos e das famílias mais ‘competitivos’
que exercem pressão por uma educação
seletiva (Van Zanten, 2001). A opção pelas línguas
estrangeiras representa uma das soluções. No
leque de opções que o aluno deve cursar durante
o colégio6, há línguas mais valorizadas e seletivas
do que outras, como é o caso do alemão, que
atrai os ‘bons alunos’ e favorece a constituição de
‘classes de elite’. A opção pelo latim, língua clássica
não obrigatória que, a partir da 7ª série, pode
ser cursada além das duas línguas modernas,
constitui outro filtro para criar ‘boas’ classes7.
Além do fato de a criação de ‘boas’ classes
ter por conseqüência inevitável a criação de
classes ‘ruins’, como bem lembra Agnès Van
Zanten (2001), existem outros mecanismos que
favorecem a permanência das segregações que
a proposta do colégio único pretendia eliminar.
A SEGPA, Seção de Ensino Geral e Profissional
Adaptado, que acolhe, em classes separadas
dentro do colégio comum, alunos a quem se
atribuem grandes dificuldades de aprendizagem,
distúrbios de comportamento ou deficiências
leves, constitui-se em ramo paralelo, com
pouca comunicação com as classes comuns e
do qual o aluno raramente sai. As classes de
acolhimento aos alunos estrangeiros, embora
projetadas como estruturas provisórias destinadas
à rápida integração nas classes comuns
daqueles que ao ingressarem no sistema não
dominam a língua francesa, também tendem a
se perenizar e a manter segregados crianças e
adolescentes que, embora colocados na mesma
categoria, podem se encontrar em situações
muito distintas (Berque, 1985; Lazaridis, 2001).
Ao lado dessas soluções regressivas que
tentam restaurar a homogeneidade perdida e
cujo efeito é aumentar a distância entre os bons
e os maus alunos (Duru-Bellat, 2002), constata-
se a emergência de dispositivos que buscam
a redução dessas distâncias. Kerlan (2003) faz
um levantamento dos numerosos dispositivos que
visam construir uma escola na qual o ideal de
igualdade de chances passe pelo reconhecimento
das diferenças, mas mostra como permanecem
soluções marginais às práticas dominantes.
A maior autonomia que as diretrizes oficiais
atribuem aos colégios desde a década de
1990 possibilita tanto a construção de projetos
pedagógicos comprometidos com a redução
das desigualdades como a criação de dispositivos
que atendam às pressões do ‘mercado
escolar’, corroborando a seletividade dos alunos
e a competitividade entre os estabelecimentos
(Broccolichi; Ben-Ayed, 2003; Dutercq,
2003). Essas pressões são recobertas pelas
desigualdades geográficas e sociais e, a despeito
do princípio de unidade do sistema, caro à
escola republicana francesa, as desigualdades
entre as escolas situadas no ‘centro’ e as da
‘periferia’ são cada vez mais visíveis. Estudos
como os de Van Zanten (2001), Payet (1995) e
Charlot, Beautier e Rochex (1992) trazem importante
contribuição para compreender a dinâmica
de funcionamento dessas escolas e o modo
como os alunos inseridos em contextos que
tendem a se configurar como guetos sociais e
étnicos constroem sua experiência escolar. A
coincidência entre a concentração de crianças
de camadas sociais desfavorecidas e de origem
estrangeira nas classes ou nos estabelecimentos
desvalorizados revela que o colégio ainda não
conseguiu neutralizar os efeitos das desigualdades
sociais e culturais.
Como bem insiste Duru-Bellat (2002), as
práticas escolares não são simples canais de reprodução
das desigualdades herdadas da sociedade,
mas espaço de produção de novas desigualdades.
Os processos escolares que produzem
desigualdade são diluídos no seu modo de funcionamento
e se traduzem pelas sucessivas seleções
e orientações que marcam inexoravelmente
a vida dos estudantes. Esses processos são cal-
6. São duas as línguas estrangeiras a serem cursadas: a primeira a
partir da 5ª série; e a segunda a partir da 7ª série.
7. A criação de ‘classes européias’, onde os alunos têm o ensino de uma das
línguas estrangeiras reforçado, é outra estratégia de homogeneização, já que
tais classes são compostas pelos alunos com melhores rendimentos.
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cados na retórica da igualdade de oportunidades
que permite justificar a produção de desigualdades
numa sociedade democrática em que
o nascimento e a tradição não são aceitos
como justificativa. Os indivíduos são vistos
como iguais no início e se diferenciariam de
acordo com seus méritos, o que tornaria, aos
olhos dessa retórica, a competição justa. Ocorre
que, ao não reconhecer situações que de início
representam chances desiguais, essa retórica
favorece a legitimação das desigualdades sociais
pela chancela do mérito escolar. Os que
perdem essa competição são objeto de desprezo
e humilhação além de responsabilizados
pelo próprio fracasso. Posicionando-se do lado
dos ‘vencidos’ do sistema, Dubet (2004) aponta
os limites do princípio do mérito e alerta para
a necessária articulação com outros princípios
de justiça.
Além das desigualdades traduzidas pelo
nível socioeconômico, alguns autores enfatizam
a necessidade de considerar a variável étnica,
pois há uma forte coincidência entre esses dois
elementos. No entanto, esse não é um debate
simples na França. Ignorando-se como país de
imigração, o debate público francês só toma
consciência desse fato a partir da retração econômica
iniciada na década de 1970, quando a
numerosa presença de imigrantes, em sua maior
parte vindos das ex-colônias da África do Norte8,
passa a ser vista como um ‘problema social’.
Segundo J.-P. Payet (1996), o postulado
indiferenciador da escola republicana impede
que a variável étnica ou cultural seja reconhecida,
tanto no âmbito do discurso dos atores
institucionais como na produção científica,
donde a timidez das pesquisas sobre o tema.
Lorcerie (2003) sugere que, embora tirado do
currículo explícito, o etnonacionalismo que
sacraliza a França como nação do universal
democrático e exclui da representação da nação
o aporte de outras culturas que não a
‘gaulesa’ continua agindo no currículo oculto.
O paradoxo é que, paralelamente à ocultação
da variável étnica e cultural, constata-se inflação
de explicações etnicizantes sobre o fracasso
ou a violência escolar, nutridas pelo contexto
social de crescente xenofobia. Ao lado do discurso
de ‘indiferença às diferenças’, convive um
discurso preconceituoso que convoca categorias
como ‘estrangeiro’, ‘não-francofônico’,
‘oriundo de imigração’, ‘classe popular’ para
explicar, de modo simplificador, condutas ou
resultados escolares. Além de abranger realidades
muito distintas, esse tipo de explicação
desconsidera o fato de que as identidades étnicas
não são um dado estanque, mas um elemento
dinâmico que se constrói nas interações
sociais, atravessadas pelas relações de dominação
e desconsidera, sobretudo, que o espaço
escolar participa ativamente da construção da
etnicidade (Guénif-Souilamas, 2000; Tichit,
2001; Alamartine, 2003).
Um território francês na
Amazônia
Fato muito presente para quem mora na
região Norte, a fronteira do Brasil com a França
pode passar por ficção aos olhos de um
habitante da região Sudeste... No entanto, a
Guiana Francesa, que se estende por uma superfície
de 91.000 km2, possui quase 700 km de
fronteira com o Brasil, dividindo as águas do rio
Oiapoque com o estado do Amapá. A chegada
do Império colonial francês nessas terras amazônicas
se deu em 1604 e a Guiana viveu sob
o estatuto de colônia até 1946. Nessa data, a
chamada ‘lei de assimilação’ a transforma em Departamento9
Ultramar da República Francesa, juntamente
com as ilhas da Martinica, de Guadelupe
– nas Antilhas – e a da Reunião, no oceânico
Indico. Os sujeitos coloniais guianenses ganham o
estatuto de cidadãos franceses e a Guiana, território
nacional francês, passa a ter seu espaço político e
8. Nacira Guénif-Souilamas (2000) mostra como a categoria ‘imigrante’
é associada a uma origem específica – os ‘magrebinos’ – e como essa
última designação, hetero-atribuída, é por sua vez redutora, na medida em
que assimila a uma mesma origem (Magreb, região que compreende o
Marrocos, a Tunísia, a Argélia) povos que se consideram fortemente distintos
entre si.
9. O departamento é uma das principais divisões administrativas do
território francês: são 96 na França metropolitana e 4 no ultramar.
100 Izabel GALVÃO e Jean-Jacques SCHALLER. A questão da diversidade ...
institucional organizado segundo os mesmos
moldes dos demais departamentos da França hexagonal.
Essa solução atende à reivindicação das
elites locais (Farraudière, 1989), favorece a
estruturação dos serviços públicos (educação,
saúde etc.) e a ampliação dos benefícios sociais.
O intenso fluxo de recursos vindos do Estado
francês desde a departamentalização – e mais
recentemente da União Européia – possibilita
um nível de vida superior ao dos demais territórios
amazônicos, mas não se inscreve num
projeto que impulsione o desenvolvimento local.
Se a aquisição do estatuto de Departamento
representa importante avanço em relação à
condição de colônia, essa solução não rompe
com a situação de extrema dependência. A
continuidade existente entre esses dois períodos
se expressa, aliás, no uso do termo ‘metrópole’
pelo qual os habitantes da Guiana se referem à
França hexagonal.
Considerada sobretudo como apoio para
a colonização das Antilhas, a Guiana foi uma
colônia de segundo plano, cujas hesitantes
tentativas de valorização foram marcadas por
sucessivos fracasso (Jolivet, 1990). As tentativas
de impulsionar as atividades econômicas na
Guiana sempre foram vinculadas à política de
povoamento e à necessidade de importação de
mão-de-obra. A economia açucareira que, diferente
das colônias das Antilhas sempre foi frágil,
desmoronou com a abolição da escravidão
em 1848: os escravos libertos se recusam a
exercer atividades que remetessem aos tempos
de escravidão (Jolivet, 1982) e os colonos
brancos retornam à metrópole. As tentativas de
revitalização por parte do Governo determinaram
o primeiro movimento de imigração de
trabalhadores livres, os quais vieram da África,
Índia e China (Mam-Lam-Fouck, 1997a).
A implantação do bagne – prisão de
trabalhos forçados – oficializada por Napoleão
III em 1852, pretendia, além de livrar a metrópole
de seus prisioneiros submetidos à pena de
degredo, responder às necessidades de povoamento
e de desenvolvimento econômico da
colônia. Impedidos de voltar à Europa, os prisioneiros
representavam mão-de-obra em potencial.
Contudo, as severas condições de
encarceramento deixaram poucos sobreviventes,
frustrando-se mais essa tentativa de povoamento
por colonos brancos. Extinto somente em
1938, o bagne contribuiu para a intensificação
da imagem negativa da Guiana.
Nesse período (de 1855 a 1930), o garimpo
é a atividade que impulsiona a economia,
atraindo garimpeiros e comerciantes das Antilhas
(Santa Lúcia, República Dominicana,
Martinica, Guadelupe) e dos países vizinhos,
datando dessa época uma primeira onda de
migrantes brasileiros. O garimpo promove também
aproximação com parte das populações
quilombolas instaladas na fronteira com a então
Guiana Holandesa (atual Suriname), os
businenge ou noirs marrons, cujas habilidades
na navegação dos rios eram muito úteis para
exploração e escoamento do metal10. O desenvolvimento
econômico que promove é efêmero,
mas favorece o enriquecimento de algumas
famílias guianenses, de comerciantes antilhanos
e franceses, que tendem a fortalecer o processo
de urbanização da cidade de Caiena
(Jolivet, 1990). Vale ressaltar que o garimpo é
ainda hoje muito explorado, em sua maioria de
modo clandestino e com meios precários, causando
graves problemas ambientais, de violência,
além de evasão de recursos.
A imigração brasileira se intensificou a
partir de 1965, com a construção do Centro
Espacial Francês na cidade de Kourou, que
contou também com mão-de-obra de
venezuelanos, marrons saramaka e outros grupos
imigrantes. A instalação desse projeto
tecnológico de ponta representou mais uma
iniciativa para o desenvolvimento da Guiana,
mas 40 anos após sua instalação, o hoje Porto
10. Essas comunidades constituíram-se entre meados do século XVII e
final do século XVIII. Os grupos de evadidos reuniam africanos ou afrodescendentes
de diferentes línguas e tradições que construíram formas de
vida comuns adaptadas à região de floresta em que se implantavam, vindo
a se constituir diferentes grupos étnicos, quatro deles – saramaka,
paramaka, aluku, ndjuka – presentes no território francês (Price; Price,
2003). A guerra civil do Suriname (1986-1992) é um dos fatores que
levou à presença crescente dos businenges em território francês.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 95-116, jan./abr. 2007 101
Espacial da Europa ainda não foi bem assimilado
(Le Hir, 2003) e essa vitrine tecnológica
parece frear a diversificação dos projetos locais
de desenvolvimento.
As condições de vida forjadas pela
departamentalização fizeram da Guiana território
extremamente atrativo para habitantes dos
países próximos em busca de melhores perspectivas,
estimulando os índices elevados de
imigração espontânea e clandestina. Segundo
os dados do censo de 1999 (Charrier, 2002), os
brasileiros foram os primeiros a chegar e hoje
cerca de 5% da população da Guiana é de
nacionalidade brasileira, o que representa a
terceira comunidade estrangeira. A posição de
primeira comunidade estrangeira é ocupada
pelos surinameses, que representam, em 1999,
cerca de 14% da população. Essa posição foi
antes ocupada pelos haitianos, cuja onda migratória
se intensificou em meados da década
de 1970 e se atenuou ao final da década de
1980, hoje segunda comunidade estrangeira,
representando 9% da população11. O departamento
recebeu ainda populações a quem o
governo francês concedeu asilo político, como
é o caso dos hmongs que vieram refugiados do
Laos e foram instalados em comunidades agrícolas
no interior da Guiana.
A presença de imigrantes chineses é significativa
e as ondas recentes se distinguem da
imigração durante o período colonial, quando
os chineses, menos numerosos, misturaram-se
à população crioula por meio de casamentos
mistos. A imigração recente tende a se organizar
em colônias com pouca mistura com a
população local e forte solidariedade interna, a
ponto de membros dessa comunidade terem
adquirido o quase monopólio do varejo de
produtos alimentícios (Jolivet, 1990).
Diferentes povos indígenas habitam esse
território desde antes da colonização, atualmente
divididos em seis grupos12 e situados, sobretudo,
em regiões de floresta do interior ou às
margens dos rios que fazem fronteira com o
Brasil e o Suriname. Desde os anos 1970, apresentam
crescimento demográfico e se fazem
mais visíveis no debate público pela reivindicação
do reconhecimento de direitos e pela afirmação
da identidade indígena (Collomb, 1999).
A Guiana oferece uma ótima ilustração
das tensões entre a formação de um conjunto
de tipo nacional e a afirmação de identidades
étnicas singulares. Se há uma identidade coletiva
predominante, uma guianidade, ela se
apóia principalmente na comunidade crioula,
que historicamente goza do maior peso
demográfico e do poder político local13. Marie-
José Jolivet (1990; 1997) distingue dois momentos
do que podemos chamar de guianidade.
Marcados pela experiência da escravidão, os
crioulos forjaram sua identidade pela assimilação
dos valores ocidentais franceses. Identificando-
se com a ‘Civilização’, definiram-se pela
rejeição aos grupos indígenas e businenge, vistos
por eles como símbolo de um estado ‘selvagem’
do qual queriam se distanciar. A
integração dos demais grupos, chamada de
crioulização, se dava desde que estes partilhassem
alguns pilares dos valores ocidentais.
Essa dinâmica se modifica a partir dos
anos 1970, com a perda do peso demográfico
do grupo crioulo acarretada pelos fluxos migratórios
recentes (Mam-Lam-Fouck, 1997b), as
desconfianças em relação aos efetivos benefícios
da departamentalização e a presença no
debate público das reivindicações identitárias
dos povos indígenas e businenge. Os crioulos
(elites urbanas) partem em busca de definir a
substância de sua ‘crioulidade’14, num processo
de reconstrução identitária em que a ancestralidade,
as raízes são valorizadas, determinando
11. Segundo Charrier (2002), em 1999, por volta de 30% da população era
de nacionalidade estrangeira. É importante observar que as referências aos
dados demográficos são sempre acompanhados da ressalva de que se trata de
estimações imprecisas, dado à dificuldade de recenseamento da população.
12. Ka’lina, Wayana, Arawak, Palikur, Emerillon, Wayampi (mantivemos
a grafia em francês).
13. Segundo Jolivet (1997), o termo créole vem do espanhol crioullo e designa,
inicialmente, a pessoa nascida na colônia. Na Guiana, o termo foi logo reservado
para designar os descendentes de africanos, sobretudo após a abolição, quando
os crioulos brancos voltaram para a Europa. É utilizado para designar o grupo
social, a cultura e a língua. Utilizado em todas as antigas colônias, o sentido do
termo varia conforme o lugar e mesmo conforme a época.
14. Essa noção foi forjada por autores antilhanos (Bernabé; Chamoiseau;
Confiant, 1989), cuja contribuição participa do debate guianense.
102 Izabel GALVÃO e Jean-Jacques SCHALLER. A questão da diversidade ...
a reconciliação, no âmbito do imaginário, dos
grupos ‘primitivos’ antes rejeitados. Segundo
Hidair (2003), a partir desse momento, é possível
distinguir duas ideologias opostas na base
dessa construção identitária – assimilação e
raízes – que definem duas atitudes extremas –
metro-afirmativa e afro-militante – em cuja
busca de equilíbrio se funda a identidade crioula.
Quanto aos grupos de imigrantes mais
recentes, as relações que os crioulos guianenses
mantêm com eles são oscilantes e ambivalentes,
sobretudo num momento em que sua posição
dominante se vê ameaçada. Conforme as circunstâncias,
a crioulidade de certos grupos será
incorporada ou rejeitada e o certificado de
guianidade pode ser outorgado a uma comunidade
até então deixada de fora (Cherubini,
2002). Segundo Mam-Lam-Fouk (1997b), no
momento atual, a fragilidade da posição de
dominação, ameaçada pela entrada de novos
atores, cria reações defensivas que favorecem a
atitude de recusa ao estrangeiro.
A dinâmica flutuante pela qual se organiza
a identidade crioula pode ser compreendida
à luz do conceito de etnicidade proposto
por Frederik Barth (1995), segundo o qual um
grupo étnico se define menos pelos conteúdos
de sua cultura do que pelas fronteiras que o
separam dos outros grupos.
Sociedade de imigração, a paisagem
sociocultural da Guiana é estruturada a partir das
relações de trabalho e produção. Para Lena
(1997), embora a Guiana possa de fato ser bem
caracterizada pela sua diversidade cultural e étnica,
ainda é marcada pela convivência justaposta
entre várias sociedades de peso demográfico e
político muito desigual, que se ladeiam, sem verdadeiramente
se conhecer. A imagem de um ‘mosaico’
é comumente utilizada para descrever sua
população. Segundo Chalifoux (1997), essa imagem
– utilizada nos documentos oficiais que
pretendem valorizar a diversidade cultural – veicula
uma visão irredutível das distâncias culturais
e representa as relações interculturais como essencialmente
relações de exclusão. A hipótese de
que as fronteiras entre os grupos são menos permeáveis
nas sociedades em que a organização das
identidades étnicas é ligada à repartição diferenciada
das atividades do setor econômico (Poutignat;
Streiff-Fénart, 1995) me parece útil para a interpretação
das relações interculturais na Guiana.
Para Collomb (2001), recentemente15 se
define um novo momento da guianidade, o qual
gira em torno da noção de interculturalidade,
resultado do temor da fragmentação social que
pode decorrer das afirmações identitárias das
diferentes comunidades. As imagens de fusão e
síntese, pilares das representações anteriores da
crioulização são substituídas pelas imagens de
relação e de troca entre grupos humanos portadores
de identidades particulares. Segundo
esse autor, a construção de uma guianidade a
partir da noção de interculturalidade permite, em
princípio, que a diversidade cultural seja vista
como elemento que enriquece e não como obstáculo
a ser reduzido, posição potencialmente
favorável à integração das novas populações
presentes na Guiana, embora contraditória à
dominação política e cultural ainda exercida pelo
grupo crioulo.
Essas diferentes etapas da definição da
guianidade constituem representações identitárias
simultaneamente disponíveis no presente, num
movimento que se aproxima ao de um caleidoscópio,
cujas formações são determinadas também pelo
cenário político, pelo contexto socioeconômico e
pelas relações de dominação entre os diferentes
grupos e entre os poderes centrais franceses e os
poderes locais.
O colégio na Guiana
As escolas públicas da Guiana pertencem
ao sistema nacional de ensino16. A maior
parte dos professores vem de fora e desconhece
as especificidades regionais. Mesmo os professores
nativos são formados na metrópole, pois
a habilitação para o magistério em nível do
15. Esse modelo se expressou claramente no Colóquio “A identidade
guianense em questão”, realizado em Caiena em 1995, que mobilizou
pesquisadores, lideranças políticas e representantes da sociedade civil.
16. A Guiana é uma das 30 academias em que se divide o sistema francês.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 95-116, jan./abr. 2007 103
colégio é ainda muito incipiente17. Para alguns,
sobretudo os que são lotados nas escolas mais
afastadas, a Guiana é uma etapa inicial da carreira
no magistério e, nesses casos, ao desconhecimento
das questões locais se acrescenta a
pouca experiência profissional.
Os programas de ensino são unificados
nacionalmente, embora as orientações oficiais proponham
certa flexibilidade. Por exemplo, a necessidade
de “melhor adaptar o ensino à realidade
intercultural da Guiana” é apresentada como um
dos eixos do Projeto Acadêmico (período 2000-
2003), documento que orienta a política do Ministério
da Educação Nacional em cada unidade administrativa.
Apesar dessa abertura, as tentativas de
uma efetiva inserção das práticas escolares no
território da Guiana se limitam essencialmente ao
primário. No colégio, os livros didáticos utilizados
são produzidos na metrópole e escolhidos dentre
o elenco distribuído nacionalmente, constituindo
recurso que reforça a exterioridade da escola ao
território local. A submissão aos exames nacionais
se, por um lado, possibilita a obtenção de equivalência
pelos alunos, pressiona as práticas pedagógicas
em direção à padronização e desestimula a
invenção de novas práticas.
Um desvio na história ajuda a situar esse
modelo. Lorcerie (2003) esclarece que, na política
colonial francesa, a despeito da escassez dos estabelecimentos
acessíveis aos nativos, a escola foi
importante vetor da doutrina da ‘assimilação’. Em
relação ao caso específico da Guiana, Farraudière
(1989) relata que, no período colonial, os crioulos
aderiam ao modelo de escola francesa e que esta
teve importante papel na consolidação desse grupo
em torno de Caiena e dos valores da francidade,
assim como os fortaleceu frente aos demais grupos
implantados no território. Segundo a autora,
essa adesão correspondia a um dos meios que esse
grupo tinha de se afirmar frente à potência colonial
e de conquistar mais dignidade aos olhos dela.
Desde que a implantação da escola republicana
leiga triunfou também na Guiana, em fins do século
XIX, seu funcionamento tem sido caracterizado
pela busca de total similitude com o funcionamento
da escola na metrópole. Historicamente, se
houve adaptações, elas resultaram, sobretudo, da
necessidade de lidar com as restrições financeiras
impostas às escolas das colônias.
As escolas da Guiana sofrem de modo
agudo com as questões que atingem os estabelecimentos
de ensino situados na França hexagonal.
Às dificuldades resultantes da tentativa de
conciliar democratização do acesso e da função
seletiva, elas se ressentem dos desajustes entre
o sistema de ensino, unificado nacionalmente, e
as especificidades históricas, geográficas, sociais
e culturais desse território.
O exame de alguns dados produzidos pelo
Ministério da Educação Nacional (2003)18 e pelo
serviço de estatística da academia da Guiana
(2003-2004)19 referentes ao colégio permite uma
aproximação desse complexo panorama. De uma
população estimada em 172.000 habitantes em
200220, 52,6% correspondem a crianças e jovens
de até 26 anos, o percentual de longe mais elevado
dentre o conjunto das academias. O atendimento
dessa população escolar em constante
crescimento – de 2002 para 2003 constata-se
uma elevação de 4,7% do efetivo atendido pelos
23 colégios públicos da Guiana – é dificultado
pelo intenso fluxo migratório, com a chegada
continuada de novos habitantes em idade escolar21.
Embora registre ligeira baixa em 2003, a
porcentagem de estrangeiros escolarizados no
colégio ainda é significativa: 26,2% dos 23.406
alunos inscritos nesse nível (em 2002 a porcentagem
era de 26,6%).
Em termos de rendimento escolar, as
estatísticas oficiais indicam a Guiana como a
academia com resultados mais baixos em diver-
17. Atualmente, o Instituto Universitário de Formação de Professores
(IUFM) da Guiana forma somente professores de letras modernas e de
tecnologia para o nível do colégio.
18. Ministère de l’Education Nationale (2003). Indicateurs Généraux:
Aide au diagnostic, au pilotage des académies et à la contractualisation;
Académie de Guyane.
19. Note d’information, n. 1, novembre 2003; Note d’information, n. 2,
décembre 2003; Note d’information, n.3, mars 2004; Note d’information,
n. 4, Claude Michaud, Académie de Guyane.
20. A estimativa produzida pelo INSEE, órgão nacional de recenseamento,
em 2004, é de 184.400 habitantes.
21. Acrescente-se a isso a dificuldade de calcular e localizar os imigrantes
em idade escolar – que o Estado francês tem por obrigação
escolarizar – já que muitos são clandestinos.
104 Izabel GALVÃO e Jean-Jacques SCHALLER. A questão da diversidade ...
sos aspectos. O atraso escolar (dois anos ou
mais) atingia, em 1999, 9,41% dos alunos,
sendo que em 1996 era de 17%. Apesar da
queda, ainda está distante do índice de 1,17%
da metrópole ou dos 2,60% dos demais departamentos
de ultramar (DOM). O número de reprovações
é elevado. Em 2002, do total de
alunos na 5ª série, 23,8% são reprovados, contra
8,6% de média na metrópole e 11,70% para
os outros DOM. Na 9ª série, o índice de reprovação
é de 8,7% contra 6,7% da média da
metrópole e 6,1% para os outros DOM.
O índice de aprovação no brevet está em
progressão: foi de 73,3% em 2002, contra os
64,5% em 1995. A média da metrópole, em
2002, é de 78,6% e nos outros DOM, de
67,2%. As orientações ao final da 8ª série
mostram uma grande porcentagem sendo encaminhada
para o ensino profissional: 33,9% vão
integrar o liceu profissional, contra 24% da
média metropolitana e 40,6% dos jovens vão
integrar um liceu geral ou técnico (contra
59,1% na metrópole). Num cálculo aproximativo,
a adição dessas porcentagens suscita a
pergunta sobre o destino dos 25% dos jovens
que não figuram em nenhum tipo de liceu: ou
eles vão para outras formações profissionais
ainda menos qualificadas ou param de estudar.
Quanto aos resultados obtidos no
baccalauréat, exame que permite a entrada no
Ensino Superior, eles são muito inferiores à
média metropolitana: em 2002, 32,2% dos jovens
guianenses de uma mesma faixa etária
obtiveram o bac (incluindo os três tipos: geral,
tecnológico e profissional), ao passo que na
metrópole o efetivo correspondeu a 61,8%.
Como veremos mais adiante, essa posição
desfavorável no conjunto do sistema de
ensino francês participa da experiência escolar
dos jovens.
A pesquisa
O estudo de que trata este artigo foi
realizado em dois dos cinco colégios da cidade
de Caiena. A investigação com os alunos22
fez-se mediante encontros em grupo e entrevistas
individuais, num dispositivo empírico inspirado
na ‘intervenção sociológica’ de Alain
Touraine (1978) e nos trabalhos de François
Dubet (1994; 1996), inscrevendo-se numa
perspectiva compreensiva das práticas sociais.
Ao se construírem em oportunidade de
reflexão, expressão e debate, as discussões em
grupo e as entrevistas individuais buscaram
favorecer a apreensão do modo como os jovens
constroem sua experiência escolar, isto é, como
articulam diferentes lógicas de ação e que sentidos
atribuem ao conhecimento, às situações
escolares, às relações estabelecidas nesse espaço,
à escolaridade em seus projetos de vida.
Mais especificamente buscou-se compreender
como a diversidade, manifestada nas inúmeras
diferenças que podem traduzi-la, participa da
construção dessa experiência.
Nas entrevistas coletivas, a fala dos adolescentes
foi desencadeada a partir de uma
pergunta aberta – “contem-nos como é a vida
de vocês no colégio” – que remete a um registro
descritivo e permitiu que tratassem de diversos
aspectos do dia-a-dia na escola – as atividades
escolares, os professores, as relações
entre os alunos, as regras – bem como de seus
projetos de vida. As entrevistas individuais se
constituíram em ocasião de aprofundamento
dos temas tratados no grupo e de aproximação
com a história social e familiar dos adolescentes
voluntários.
Perfil dos alunos
Gozando de boa reputação, o Colégio Z
atrai um alunado com nível socioeconômico
mais favorecido do que o do colégio R23. Este
tem seu prestigio em queda, mas ainda consegue
preservar ‘bons alunos’ graças à oferta das
opções ‘alemão’ e ‘latim’. Ambos possuem clas-
22. A investigação com professores foi dimensão importante dessa
pesquisa, mas não será analisada neste artigo.
23. No colégio R, 55,2% dos alunos recebem bolsa do Ministério da
Educação (destinada a cobrir despesas com material e alimentação) ao
passo que no colégio Z a porcentagem é de 37,8%.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 95-116, jan./abr. 2007 105
ses européias, uma Segpa e classes para acolhimento
de estrangeiros recém-chegados à Guiana.
Interviemos em três grupos, dois com alunos
das classes comuns e um da Segpa. Os grupos
das classes comuns foram compostos mediante
convite feito aos alunos pelos professores que
participavam da pesquisa: ao todo, foram feitos
sete encontros, alguns deles quando cursavam a 7ª
série, outros quando já estavam na 8ª série. O último
encontro juntou os alunos aos professores,
visando o confronto entre os pontos de vista dos
dois atores. O terceiro grupo reuniu alunos da 7ª
série da Segpa, com quem realizamos dois encontros.
Paralelamente às discussões coletivas, foram
feitas treze entrevistas individuais com alunos das
classes comuns. O conjunto dos dados foi gravado
em áudio e a análise baseou-se nas transcrições.
Do ponto de vista do desempenho escolar,
a média global dos alunos das classes comuns
permite caracterizar os grupos como compostos
por alunos com desempenho de médio
para bom e, em alguns casos, excelente.
Nos grupos das classes comuns, a presença
de meninas foi muito superior à de meninos,
tendência que ficou ainda mais marcada
nas entrevistas individuais, já que dos trezes entrevistados,
doze são meninas.
No que concerne ao componente étnicocultural,
os grupos traduzem a maioria crioula ainda
presente na cidade de Caiena, expressando
também as ambigüidades que essa categoria comporta:
boa parte de nascidos na Guiana ou na
metrópole, durante deslocamento dos pais, ou nas
Antilhas francesas, onde muitos têm família instalada.
Compuseram-se também de alguns imigrantes
do Haiti, da República Cooperativa da Guiana
(ex-Guiana inglesa), do Brasil e de metropolitanos.
Os jovens e as imagens de si e
do outro: entre diversidade e
desigualdades
A análise dos enunciados dos jovens destaca
a importância que atribuem às relações
interpessoais estabelecidas no espaço escolar.
Esse aspecto aparece com muito mais força do
que a relação com o conhecimento. A relação
com os professores emerge como tema desde
que lhes perguntamos o que é uma boa aula,
um curso relevante. Da rápida menção sobre as
matérias do programa, passam ao clima que se
instaura entre professor e alunos e assimilam
boa aula a bom professor. Produzem denso
material discursivo sobre como vêem e o que
esperam das relações com os professores.
Para este artigo, nossa análise baseia-se
sobre o que nos contam das relações entre pares.
O destaque que os depoimentos dão a essas relações
sugere a importância da sociabilidade entre
pares na construção da experiência escolar. Para
muitos, o sentido que ir à escola tem no presente
é justamente o de encontrar os amigos, dimensão
que faz da escola um espaço muito apreciado.
As relações são de diferente natureza — amizade,
‘colegagem’, hostilidade – e a distinção
entre um amigo “com quem a gente pode se
abrir” e um colega “para quem a gente dá oi”
determina o sentido do que se diz ao outro:
quando dito a um amigo, um insulto é só para
divertir, ao passo que a mesma expressão dita a
alguém que não se considera amigo pode desencadear
sério conflito. A inserção das afinidades
pessoais em turmas ou clãs é uma característica
da sociabilidade juvenil, que descrevem como
presente no espaço do colégio, e as rivalidades
entre grupos ou indivíduos são evocadas, sobretudo,
para descrever os momentos em que elas
degeneram em briga ou agressão física.
A análise desses relatos permite destacar
as imagens de si, isto é, o modo como se sentem
vistos pelo outro e como vêem o outro,
como elemento que desempenha papel decisivo
na sociabilidade entre pares. Permite a identificação
de elementos que parecem ser mais
determinantes na construção dessas imagens,
elementos que remetem às especificidades do
universo escolar, ao universo das culturas juvenis,
ao contexto sociocultural da Guiana, ao
processo de subjetivação do adolescente. Passemos
então ao que nos dizem os adolescentes.
A questão do gênero se evidencia pela
própria composição dos grupos participantes
106 Izabel GALVÃO e Jean-Jacques SCHALLER. A questão da diversidade ...
da pesquisa, predominantemente femininos.
Tendo em vista que a participação foi voluntária
e o convite foi feito por atores institucionais,
essa composição ilustra o vínculo diferenciado
que meninos e meninas estabelecem com o
universo escolar. Nas entrevistas individuais com
as meninas e nas duas entrevistas coletivas com
um grupo exclusivamente feminino, foi possível
perceber a ambigüidade destas frente ao
sexo oposto: ao mesmo tempo que denunciam
a “imaturidade” dos meninos da classe, contam
da sedução que exercem os mais velhos e o
quanto são freqüentes as situações em que
meninas brigam por causa de algum menino.
Os resultados escolares são importante
componente da imagem de si e do outro. Os
alunos sabem as notas recebidas pelos colegas
(é comum os professores as anunciarem em voz
alta) e ter bons resultados é fonte de grande
valorização. Esse elemento participa da construção
da imagem individual e também da imagem
das classes, sobretudo num dos colégios
onde as ‘boas classes’ são bem identificadas. As
entrevistas individuais que fizemos com diferentes
membros de uma classe considerada a
melhor das 8as séries do colégio R revelaram a
existência de uma forte tensão entre as primeiras
colocadas no ranking das médias e um outro
grupo de meninas cujas médias não atingem
o mesmo grau de excelência, embora sejam
também boas alunas. Numa rivalidade explícita,
as primeiras dizem não gostar das segundas
porque elas são ‘hipócritas’ e as segundas, mostrando-
se pessoalmente atingidas, dizem se sentir
muito diminuídas em face das colegas que se
vangloriam de ter as melhores notas.
“Quando eu vejo as meninas da minha classe
que são muito boas, eu tenho a tendência
de me desvalorizar, a achar que eu não
sou boa.” (aluna da 8ª série, classe comum)
Os depoimentos ilustram como o clima
competitivo impregna a imagem que cada um
faz de si e do outro e que a posição desfavorável
na classificação escolar pode ser percebida
como legítima avaliação do valor da pessoa.
A dinâmica conflitual presente na ‘classe boa’
indica que a ‘homogeneidade’ é uma ilusão. No
âmbito de uma classe, sempre se constroem
diferenças e elas tendem a ser transformadas
em desigualdade se inseridas num contexto
seletivo. No âmbito do colégio, a classificação
em ‘bons’ e ‘ruins’ cristaliza a fronteira entre
‘nós’ e ‘eles’, e quando essa fronteira se sobrepõe
a agrupamentos hierarquizados pela instituição,
a posição de inferioridade pode ter efeitos
ainda mais determinantes.
A figura paradigmática da ‘classe ruim’ é
a Segpa, e o pertencimento a esse grupo constitui
um estigma. Os alunos dessas classes se
percebem como alvo de discriminação: as condições
e a localização do edifício que utilizam
são piores que as das classes comuns, eles têm
acesso restrito a materiais e equipamentos vistos
como abundantes para os demais alunos,
são sempre apontados como responsáveis por
todo problema que acontece no colégio. Eles
dizem ter vergonha de fazer parte dessa seção
e tentam ocultar esse fato:
“Eu tenho vergonha de estar na Segpa, porque
a gente é sempre malvisto em relação às
[classes] comuns. Eles acham que a Segpa
só tem gente burra, boboca, que não sabe
falar, que não sabe ler. Não é porque a gente
tem dificuldade que a gente não é igual às
pessoas. Para nós, tudo vem atrasado, sempre
depois. Para eles, é sempre primeiro,
tudo certo. Nós, é como se fossemos um
lixo.” (aluna da 7ª série, classe Segpa)
O tom desse depoimento é de ressentimento.
Ao denunciar as discriminações, essa
jovem demonstra importante capacidade de
distanciamento, de ‘descolamento’ em relação ao
modo como a instituição classifica os alunos da
Segpa. Essa capacidade de refletir sobre suas
experiências, confrontá-las e colocá-las em palavras
representa um recurso importante de
distanciamento. Além do recuo que o espaço de
fala pode propiciar, os alunos das classes espeEducação
e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 95-116, jan./abr. 2007 107
ciais relataram situações em que a necessária
distância é buscada por meio da ação. Na impossibilidade
de se fazerem respeitar pelo mérito,
resta-lhes a possibilidade de se fazerem respeitar
pelo medo. Isso ficou claro com o relato de
um episódio de conflito entre uma das meninas
do grupo e uma aluna de classe comum. A garota
narra em detalhes os golpes desferidos, os
desdobramentos que a briga provoca na direção
do colégio e, apesar da duração que nos parecia
já excessiva, seu relato é atentamente seguido
pelos colegas, que completam aqui e ali com
mais uma precisão. Deixam nítido que a reputação
de força e temeridade adquirida por ela
beneficiou o grupo todo e possibilitou o deslocamento
de uma posição dominada na qual eles
se viam colocados: “agora precisam nos respeitar!
”, “a geral [classes comuns] tem medo da
Segpa!” são exemplos das expressões entusiasmadas
geradas pelo relato. A narração desse
episódio possibilitou uma mudança de posição
subjetiva que se manifestou durante a entrevista:
após o relato da briga, alguns dizem não
terem mais vergonha de ser da Segpa: invertem
o discurso, dizendo-se orgulhosos em pertencer
a uma classe que contribui para a manutenção
de setores do colégio (mediante atividades feitas
nas oficinas profissionalizantes que compõem
o currículo dessa seção). “Se a Segpa não
existisse, o que as classes comuns fariam sem
nós? Felizmente estamos aqui, se não eles não
seriam nada!” Graças ao entusiasmo produzido
pelo relato de uma situação de afirmação de si,
um dos componentes das estratégias de correção
do estigma explicitadas por Goffman (1975),
a posição de inferioridade atribuída às seções
profissionalizantes é transformada em motivo de
orgulho e fonte de valorização. Impedidos de
aceder ao reconhecimento ligado ao mérito escolar,
esses jovens lançam mão da provocação,
da bravata e mesmo da violência. Sugerem que,
diante de um contexto em que as classificações
são cristalizadas, a agressão pode ser o único
meio de se aproximar do outro.
A reputação como elemento que participa
da imagem de si e do outro aparece também
nos depoimentos dos alunos das classes comuns,
que fazem várias referências aos jovens
que querem ‘se mostrar’. Ao contrário dos alunos
da Segpa, as referências são sempre a
outros que não eles próprios e o tom é de
desaprovação:
“Eles jogam papel no chão de propósito
para se mostrar mais forte, tem uns que fazem
qualquer coisa para se mostrar mais
forte do que os colegas.” (aluna da 7ª série,
classe comum)
Além da participação em brigas, a transgressão
às regras de convivência é outro meio
pelo qual um jovem pode se destacar perante
o conjunto de alunos, pode adquirir uma reputação.
Composto por alunos que no geral têm
bom desempenho, a desconfiança dos jovens
do grupo das classes comuns para com os
colegas que buscam uma reputação por meios
‘ilícitos’ sugere o quanto esse é um recurso que
tem mais apelo para aqueles que se vêem sem
chances de serem reconhecidos por critérios
validados pelo universo escolar.
A atenção aos trajes, outra importante
face da imagem de si, exprime-se pela queixa
quanto à obrigatoriedade do uso do uniforme
escolar24. Em todos os grupos, a reclamação
sobre a obrigação de vestir camiseta da cor
definida pelo colégio é feita no início da conversa
e inaugura um tom reivindicativo no discurso,
gerando intenso debate entre os alunos.
Embora expressem opiniões divergentes sobre
a eficácia do uniforme no combate à diferenciação
ostensiva entre classes sociais, dizem
concordar com as razões apresentadas pela
administração que apontam para o objetivo de
impedir as discriminações, pois se dizem incomodados
com colegas que vêm à escola usando
‘roupas de marca’ e que querem mostrar
com isso uma posição social superior, que têm
de fato ou que simulam ter. Os alunos que
24. O uso do uniforme é exigido somente dos alunos do colégio e é uma
especificidade regional.
108 Izabel GALVÃO e Jean-Jacques SCHALLER. A questão da diversidade ...
defendem o uniforme por acharem que sem ele
a discriminação entre clãs seria ainda maior
pautam sua crítica no fato de essa regra não ser
exigida igualmente de todos alunos, já que os
funcionários seriam mais tolerantes com uns,
mais exigentes com outros. Outra razão contra
o uso obrigatório do uniforme é formulada
sobretudo pelas meninas, que falam do desconforto
em não poder vestir calças com bordados
ou detalhes, camiseta sem manga ou minissaia,
sendo obrigadas a fazer parte de uma massa
vestida de uma mesma cor.
O tema do uniforme pode ser tomado
como analisador de vários aspectos da experiência
escolar. O discurso sobre a igualdade faz eco
à retórica institucional (agentes escolares, pais...)
e é desdobrado na denúncia ao arbitrário das
regras escolares, constituindo um revelador do
clima de justiça. Por outro lado, a recusa em
usar o uniforme remete ao desejo de
singularização. É o que sugerem as críticas das
meninas, sob as quais se pode inferir um desejo
de se mostrar para além do papel de aluna, em
sua singularidade e sensualidade adolescente.
Aliás, é importante notar como as meninas encontram
brechas de singularização e feminização
– pelo trançado dos cabelos, pelo esmalte colorido
sobre as unhas – à margem do uniforme. Por
fim, a insistência de alguns em ir ao colégio com
roupas de marca pode ser interpretada como a
necessidade de sinalizar que pertencem a uma
comunidade juvenil globalizada (Canclini, 1995)
que ultrapassa as fronteiras da Guiana. A importância
que o tema uniforme adquire na fala dos
jovens sugere que o modo de se vestir é um
componente da imagem de si que comporta
maior plasticidade, que corresponderia a uma
espécie de persona que pode ser construída por
cada um, representando uma possibilidade de
construção da própria imagem.
Na Guiana, sociedade marcada pela escravatura,
a segmentação racial se justapõe à
estratificação socioeconômica e a cor de pele é
um aspecto essencial do modo como as pessoas
e os grupos sociais se situam uns em relação
aos outros. As designações utilizadas para indicar
os diferentes tons de pele, que indicam
também a composição das mestiçagens, são
numerosas e dispostas numa clara hierarquia
entre o branco e o preto. Essas designações
emergem espontaneamente no discurso dos
jovens guianenses, sugerindo que, no espaço
escolar, a cor de pele pode ser um critério de
afinidade ou hostilidade entre eles. Marcados
pela história colonial, os jovens não brancos
nos dizem esse problema fundamental, experimentam
sua mestiçagem na busca de um caminho
de apoio individual e étnico, mergulhados
na frustração fundamental posta em evidência
por Frantz Fanon (1952) em Pele preta, máscara
branca, pela qual cada um parece alimentar,
aos olhos dos outros, uma relação persecutória
e prejudicial.
Os jovens relatam que expressões como
‘branco velho’ (vieux blanc) ou ‘preto sujo’
(sale noir) fazem parte do repertório de insultos
para agredir o outro, designações evocadas
para explicar as várias situações de racismo
narradas e nomeadas como tal. As entrevistas
individuais com jovens crioulos sugerem que
quando a pele negra se sobrepõe a um mau
rendimento escolar, criando uma espécie de
‘dobra’ (Deleuze, 1989) na subjetividade, a
conciliação entre as imagens sociais negativas
e uma imagem positiva de si fica mais difícil,
da qual resulta um sentimento de humilhação
e inferioridade. A situação oposta parece confirmar
essa idéia, na medida em que ao narrar
situações que identificam como de racismo,
jovens com rendimento escolar de excelência
mostram-se muito menos atingidos.
A questão da origem se articula à da cor
de pele. Origem que pode ser inferida ainda
pela língua, sotaque, nome, traços físicos e que
representa importante aspecto do modo como
os jovens vêem a si e aos outros. Tal como o
componente anterior, a origem é um elemento
da imagem de si que se insere na dinâmica de
etnicidade da sociedade da Guiana. No grupo
de alunos de Segpa, a língua foi veículo privilegiado
do tema da origem. Na situação de
entrevista coletiva, com freqüência falavam em
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 95-116, jan./abr. 2007 109
crioulo. Em geral, eram comentários dirigidos a
um colega, o que sinalizava cumplicidade entre
eles e parecia marcar uma distância com os
pesquisadores. No entanto, pudemos observar
que em algumas situações o crioulo se misturava
ao francês mesmo nos enunciados dirigidos
aos pesquisadores. Isso ocorria nas situações
em que se exaltavam, sobretudo quando
narravam episódios de violência e perigo. Por
outro lado, o tema das origens não foi objeto
de debate, o que só ocorreu com os alunos das
classes comuns. Fragilizados por uma trajetória
escolar marcada pelo fracasso e por histórias de
vida que podemos supor difíceis, os alunos da
Segpa não tomam esse tema como objeto de uma
reflexão explícita, mas o tornam presente no modo
como falam de si e do seu cotidiano na escola: é
como se, impedidos do distanciamento que permite
elaborar uma hetero-atribuição que enclausura,
não agissem sobre esta, mas ‘agidos’ por ela.
Nos grupos das classes comuns, os jovens
contam que a designação de um colega a
partir de sua nacionalidade ou grupo étnico é
prática corrente e narram situações em que a
atribuição de origem pode gerar conflito.
“Várias vezes me fizeram comentários do
tipo ‘sua branca suja, o que você está fazendo
aqui, esse não é o seu país, volta
para a França, você não tem nada para fazer
aqui. Aqui é um país negro.’ Mas eu
nem ligo, faz oito anos que eu moro aqui e
me sinto mais guianense do que francesa.”
(aluna da 7ª série, classe comum)
O depoimento dessa jovem metropolitana
descreve uma situação de recusa ao estrangeiro,
narrada também por outros jovens que consideram
esta uma conduta comum na Guiana, presente
igualmente na escola. Essa idéia coincide com a de
autores evocados anteriormente, que consideram a
recusa ao ‘diferente’ como um traço da identidade
crioula (Cherubini, 2002), intensificado nesse
momento em que o grupo vê ameaçada sua posição
dominante no cenário local. O depoimento
aponta também a imbricação entre cor e origem e
como, no confronto entre crioulo e metropolitano,
não é a nacionalidade que conta, já que os nascidos
na Guiana são, pelo menos no papel, tão
franceses quanto os franceses nascidos na Europa.
É importante ressaltar que essa mesma
aluna que, no depoimento acima, afirma sua
identidade guianense, em outro momento, afirma-
se metropolitana: conta que passa suas férias
na França, que é lá que moram aqueles
que considera seus amigos e que não pretende
passar sua vida toda na Guiana. A sinceridade
com que faz as duas afirmações, mais do que indicar
uma contradição que invalide uma delas,
ilustra uma identidade fluida e instável, ora afirmando
a identidade guianesa, ora designando
um pertencimento móvel a essa categoria.
No entanto, no ‘mercado’ das origens nem
sempre é assim que as coisas se passam. Os estrangeiros
de outras origens não dispõem da
mesma sorte que os ‘estrangeiros’ da metrópole.
Os jovens nos dizem que a imagem do aluno é
fortemente determinada pela imagem do país de
que ele ou a família procedem. Segundo os relatos,
a origem mais desvalorizada é a do Haiti25,
país pobre e destruído pelos conflitos internos.
Nas entrevistas, os jovens se mostram incomodados
com os preconceitos e com as discriminações
que sofrem os originários desse país.
“Agora haitiano não é mais uma nacionalidade,
é um insulto.” (aluno da 7ª série, classe comum)
Ao ser designado pelo nome de sua nacionalidade,
o jovem pode se sentir ofendido e
reagir com violência. Aliás, nossos entrevistados
contam que com freqüência o termo usado
para agredir é ‘haichien’, numa mistura de
haitiano com cachorro (chien, em francês).
“Se um haitiano se torna um grande médico,
tenho certeza que a pessoa que vai consultar
com ele não vai dizer ‘haitiano’! [...]
as pessoas pensam que é inferior. Se uma
25. Jolivet (1982) relata que na década de 1970 eram os brasileiros o
alvo privilegiado das condutas de rejeição.
110 Izabel GALVÃO e Jean-Jacques SCHALLER. A questão da diversidade ...
pessoa é rica, ninguém vai dizer que ela é
haitiana.” (aluno da 7ª série, classe comum)
Esse depoimento deixa clara a associação
entre origem e status social, a origem haitiana
sendo hetero-atribuída para enfatizar uma posição
social desvalorizada. Os inúmeros relatos de
situações de discriminação dirigidas contra os
haitianos sugerem que a vergonha é um sentimento
comum diante da imagem negativa que
lhes é atribuída. A interiorização da inferioridade
pode levar à tentativa de negar a própria origem,
que pode se traduzir pela tentativa de ocultar o
fato de ser haitiano quando alguém pergunta ou
pelo esforço para aceder a um outro grupo de
identificação, como os dos bons alunos. Os relatos
sugerem que os alunos haitianos que conseguem
bom desempenho tendem a se distanciar de
sua comunidade, buscando outras amizades no
espaço escolar. Ao falarem do caso de uma jovem
haitiana que obtivera destaque num exame nacional,
os entrevistados exprimem surpresa, como
se tal posição fosse incompatível com as perspectivas
reservadas a jovens dessa origem, indicando
que, em alguns casos, a categoria étnica pode
prevalecer sobre outras identificações.
Ao lado da vergonha, a afirmação de orgulho
pareceu atitude mais rara. Tivemos, contudo,
um exemplo relevante. Morando há cinco
anos na Guiana, Tamires critica a comunidade
haitiana por não “mostrar o seu valor ao povo
guianense”, e seus compatriotas por reagirem com
violência quando insultados ou objeto de gozação.
Ela diz que gosta de dizer sua origem, pois
tem “orgulho de ser haitiana”, e quando perguntada
sobre o motivo do orgulho diz, sem hesitar,
a razão: “a cultura”. Ela relata também que no ano
anterior havia solicitado à diretora do colégio
autorização para fazer uma exposição sobre o
Haiti na biblioteca e que esta foi um sucesso.
Uma pista para interpretar a posição dessa
jovem é sua ativa participação numa associação
cultural haitiana, onde ela pratica danças
tradicionais e auxilia os recém-chegados de seu
país. O fato de sentir-se parte desse grupo parece
lhe favorecer a construção de um sentido
positivo à origem haitiana e reduzir a tensão
entre as hetero-identificações e a auto-identificação
(Melucci, 2005). A natureza da associação
de que ela participa reduz os riscos de
uma afirmação ostensiva e violenta, comum nas
afirmações identitárias que se dão em reação a
estereótipos sociais muito ativos.
Os relatos dos alunos mostram como as
diferenças e as desigualdades sociais adentram
o espaço escolar e participam das relações que
se estabelecem entre eles, manifestam-se por signos
diretamente ligados aos recursos econômicos,
por indicadores propriamente escolares
como as notas de rendimento, mas também pela
hierarquização das diferenças culturais e étnicas.
É de destacar que, quando narram os
conflitos entre eles, os jovens não fazem alusão
a uma eventual intervenção dos agentes
escolares. O cenário é sempre o de uma escola
sem adultos. Essa configuração pode se explicar
por uma voluntária separação que buscam
frente ao mundo adulto, mas ela remete também
à efetiva omissão dos agentes escolares,
que tendem a conceber sua ação como restrita
à instrução e a ver qualquer situação de
conflito como estorvo ao desenvolvimento dos
conteúdos programáticos (Galvão, 2004).
Fora do campo de reflexão dos atores escolares
e de suas práticas, ausência que Luiz
Alberto Gonçalves (1985) chamou de ritual pedagógico
do silêncio26, os estigmas sociais invadem
o espaço escolar e se sobrepõem à hierarquização
própria à competição de notas e resultados. Quando
essa sobreposição faz coincidir bons rendimentos
a ‘boas’ origens ou cores de pele, o resultado
é perverso, pois os preconceitos sociais
adquirem o estatuto de objetividade associado à
instituição escolar.
Se a condição de aluno representa uma
oportunidade de igualdade, esta é gravemente
desperdiçada dadas as condições de injustiça da
‘competição escolar’ e, sobretudo, dada a própria
existência dessa competição, que imprime sua
marca impiedosa nas mais diferentes situações do
26. Na literatura brasileira, cf. ainda Cavalleiro (2000) e De Souza (2000).
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 95-116, jan./abr. 2007 111
cotidiano escolar. Por mecanismos de reprodução,
na acepção de Bourdieu, a hierarquia dos desempenhos
escolares tende a coincidir com a
hierarquização das posições sociais e diferenças
culturais. Os resultados escolares atuam legitimando
as desigualdades sociais e naturalizam
estas ao fazer apelo à retórica da igualdade de
oportunidades do discurso meritocrático.
Os alunos frente a diferentes
projetos de escola, sociedade
e futuro
Das inúmeras perspectivas de análise que
abrem as práticas discursivas dos alunos, gostaríamos
ainda de abordá-las do ponto de vista
de seus ecos ao debate mais amplo sobre a
escola na Guiana.
Os enunciados produzidos nas situações
da pesquisa sugerem que a posição desfavorável
que a escola da Guiana ocupa no sistema
de ensino francês está presente na imagem que
os alunos fazem de sua escolaridade. Representam-
na como uma escolaridade de ‘nível’ mais
baixo do que o da escola na França, sugerindo
familiarização com um discurso de inferiorização
frente a uma metrópole idealizada, representada
como sem diferenças ou desigualdades internas.
“Costumam dizer que a gente não pode fazer
isto ou aquilo porque a Guiana não tem
o nível.” (aluna da 8ª série, classe comum)
Os alunos cujo percurso de excelência
lhes permite aspirar a carreiras concorridas não
parecem, contudo, se abalar com os prognósticos
pessimistas resultantes dessa imagem negativa.
Foi isso que nos sugeriram as entrevistas
com alguns alunos para quem prosseguir os estudos
em nível superior na França é um projeto
pessoal já definido antes mesmo do término
do colégio. Vale ressaltar que é muito pequena
a oferta de estudos universitários na Guiana, e a
maior parte dos jovens que obtêm o bac, passaporte
para ingresso no Ensino Superior, vão
para a França ou para as Antilhas27.
No entanto, como sugere a baixa porcentagem
dos alunos que obtêm o bac, para
uma maioria o ingresso na Universidade não é
um projeto possível. Aliás, para um bom número,
a escolaridade deixa precocemente de fazer
parte dos projetos pessoais.
Em nossa pesquisa, pudemos ver que,
para os alunos em situação de dificuldade escolar
que ainda mantêm vínculo com a instituição
de ensino, como é o caso das classes da Segpa,
a perspectiva otimista que acalentam é a de
cursar o liceu profissional, e o esforço que fazem
é o de se manter no sistema de ensino mesmo
após atingirem os dezesseis anos, idade em que
a escolaridade deixa de ser obrigatória.
“A 8ª série é mais difícil, é preciso escolher a
melhor classe para poder ir para o liceu profissional,
se não... dá medo, porque a escola
é só até os dezesseis anos, depois disso eles
não têm mais a obrigação de ficar com a
gente.” (aluna da 7ª série, classe Segpa)
Tal como para os alunos das classes comuns,
para os da Segpa, a 8ª série é momento
decisivo. O enunciado da aluna sugere que a possibilidade
de não mais ser acolhida pelo sistema
é fonte de grande inquietação. Preocupação bem
fundamentada, tendo em vista que, para um grande
número, a Segpa representa o fim dos estudos
e, para os que conseguem prosseguir, o liceu profissional
é a melhor perspectiva.
Segundo Coïaniz (2001), os jovens que pretendem
prosseguir os estudos na metrópole são em
sua grande maioria crioulos, traduzindo a distribuição
desigual das oportunidades no contexto
guianense e a adesão histórica desse grupo28 à
escola e aos valores franceses.
Pudemos ver, nas práticas discursivas dos
adolescentes, reflexos da relação ambivalente que
27. Segundo Hidair (2003), os jovens que vão estudar na França
correspondem a 55% dos que obtêm o bac.
28. Adesão que não é sem ambigüidade, a se julgar pelas conotações do
termo negropolitain, usado para designar os crioulos que retornam à Guiana
depois de uma temporada de estudo e/ou trabalho na França. Segundo os
relatos de nossos professores, o termo traduz sentimento de traição por
parte dos crioulos que ficam.
112 Izabel GALVÃO e Jean-Jacques SCHALLER. A questão da diversidade ...
baliza a identidade crioula – entre os ideais e
valores metropolitanos e as referências aos povos
e às culturas tradicionais. Essa ambivalência fica
explícita diante das perguntas que dirigem aos
professores na situação de encontro promovida
pela pesquisa. Desvelam-se dois projetos de
escola, os quais se diferenciam, sobretudo, pelo
modo de considerar a diversidade.
Para uns, a presença de alunos com bagagem
e recursos escolares muito díspares é
uma situação difícil, mas que deve ser considerada
pelas práticas escolares, visando a inclusão
de todos. O trecho a seguir ilustra essa posição.
Em sua pergunta, a aluna interpela os
agentes escolares para uma transformação de
sua ação:
“Numa classe heterogênea, como vocês fazem
para adaptar o ensino a todos sem
penalizar os outros? […] porque os professores
não adaptam o nível deles ao da classe?
Em certas classes, há sempre alunos que
nunca conseguem acompanhar.” (aluna da 8ª
série, classe comum)
Para outros, a diversidade é um obstáculo
que querem eliminar. No conjunto de vozes em
que predomina a lógica da estratégia (Dubet,
1994), fica claro como buscam ultrapassar o
que consideram a ‘mediocridade local’ por uma
tenaz dedicação aos estudos e à sua carreira de
estudante. Mostram-se muito incomodadas
com o ‘baixo nível’ e, enquanto não chega a
hora de partir para a metrópole, pensam em
soluções que poderiam poupá-las do atraso que
esse contato provoca. A afirmativa de uma aluna
ilustra essa posição:
“As classes de elite são malvistas, mas é
preciso pensar em criá-las.” (aluna da 8ª
série, classe comum)
A heterogeneidade é considerada um
problema e a criação de classes organizadas,
segundo o nível dos alunos, a solução. No caso
dessa aluna, sua impaciência com os medíocres
ganha amplitude se considerarmos o fato de
que ela está numa classe que reúne alunos que
estudam alemão e línguas clássicas, de certa
forma já uma classe de elite.
Entretanto, os alunos não restringem a
questão da diversidade à heterogeneidade do ritmo
de aprendizagem, exprimem-se também sobre
a diversidade cultural que caracteriza a população
da Guiana. Essa dimensão é trazida por
aqueles que manifestam sua preocupação com o
grande número de alunos que não acompanham
as aulas. Segundo estes, a diversidade cultural
da Guiana é uma riqueza e deveria ser um beneficio
e não um handicap:
“Eu gostaria de saber se o fato de haver todas
essas diferenças culturais, essas línguas que
variam, se a gente não poderia fazer disso
algo de benéfico para nossa educação de todos
os dias.” (aluna da 8ª série, classe comum)
Essa fala inverte o discurso dominante
que atribui aos alunos estrangeiros ou nãofrancofônicos
a responsabilidade pelo ‘baixo
nível’, sugerindo que, ao contrário, é o sistema
escolar que falha ao não dispor de dispositivos
apropriados para receber pessoas de diferentes
grupos socioculturais. No entanto, os dispositivos
que essa aluna propõe se distinguem das
estruturas especializadas que segregam os ‘diferentes’
entre si. Ela questiona, por exemplo,
porque os colégios não oferecem a possibilidade
de aprender línguas dos povos tradicionais:
“A gente tem a opção latim, será que não poderiam
ensinar as outras línguas? Por exemplo,
o taki taki29, como opção. […] Quando eu falo
de língua, para mim, uma língua abrange a
cultura, as atitudes, o modo de vida, isso agrupa
tudo, tudo, tudo, não é somente o modo
de falar.” (aluna da 8ª série, classe comum)
29. Termo usado para designar, de modo indistinto, as línguas dos grupos
businenge. Trata-se, segundo Jolivet (1990), de uma simplificação que traduz
o desconhecimento sobre essas populações, além de uma tendência a
folclorizá-las.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 95-116, jan./abr. 2007 113
Por trás de novas opções de língua, essa
jovem propõe uma abertura às culturas normalmente
excluídas das referências legitimadas pelo
currículo escolar. Não é preciso dizer que essa
proposta gera fortes reações contrárias. Reações
que explicitam a defesa de uma escola onde o
interesse dos conteúdos está em sua utilidade no
mercado das carreiras escolares, o que faria do
contato com línguas minoritárias uma ‘perda de
tempo’. O debate sobre o ensino de língua estrangeira
propiciado pela situação de pesquisa é
revelador do projeto de escola que defendem.
“Agora a gente está numa comunidade européia
e eu acho que aqui a gente preferiu
aprender o português porque há o Brasil
ao lado, o espanhol com a América do Sul.
Bem, mas se a gente quer ir longe, é melhor
voltar-se para a Europa. Portugal não
é um país tão importante na Europa, eu
não penso que seja um país dominante lá.
Eu acho que o aprendizado do alemão é
outra coisa, é verdade que a Alemanha é a
maior potência da Europa também. Todo o
mundo me diz ‘ah, você está estudando
alemão’”. (aluna da 8ª série, classe comum)
Ao se opor à proposta da colega e defender
o ensino do alemão, esse enunciado
propõe uma escola voltada para a Europa.
Dessa perspectiva, a língua estrangeira é escolhida
por render status e vale mais a língua do
país mais rico (ou mais branco...). Nesse caso,
a oferta da opção ‘português’ seria pouco valorizada,
tanto em face de uma possível aproximação
com o Brasil – que valeria pouco nessa
visão em que a Guiana se volta para a Europa
– como do ponto de vista de Portugal – membro
inexpressivo da Comunidade Européia.
Esse debate apresenta, de um lado, o
projeto de uma escola voltada para a Europa,
capaz de ‘branquear’ os alunos de diferentes
origens e repertórios, ilustrando o que Hidair
(2003) chama de retórica metro-afirmativa. De
outro lado, o projeto de uma escola inserida no
território da Guiana, que valorize os conhecimentos
locais e faça da diversidade de culturas
e línguas uma riqueza e não um prejuízo.
Na tímida literatura sobre a escola na
Guiana, autores como Coïaniz (2001), Lena (1997)
e Vernon (2004) criticam a exterioridade dessa
instituição em relação ao território local, às tradições,
às línguas e às formas de saber de suas
populações. Voltam-se para questão do francês
como única língua de escolarização e atribuem a
essa limitação as grandes dificuldades encontradas
nas escolas no interior, onde há grande concentração
de populações businenge e indígenas. O
exemplo das escolas indígenas brasileiras bilíngües
é evocado como solução importante, embora sua
implementação na França não seja possível por
ferir o princípio de unidade da República.
Apoiando-se nas brechas da legislação
nacional, uma equipe de lingüistas do Institut de
Recherche et Développement – IRD (Goury et al.,
2000) desenvolve, desde 1998, uma experiência
piloto formando jovens oriundos de comunidades
não-francofônicas para atuar como mediadores
culturais bilíngües, acolhendo as crianças em sua
língua materna para facilitar sua aproximação com
a cultura escolar e com a língua francesa. Apesar
da ainda incipiente, essa experiência, que abre
perspectivas profícuas, vem ganhando reconhecimento
por parte do sistema de ensino.
Se a possibilidade do bilingüismo é pertinente
para as escolas situadas em comunidades
não-francofônicas homogêneas, o é menos
para as escolas de Caiena, onde as línguas
maternas dos alunos não-francofônicos são
muito diversas e a língua crioula, embora falada
por boa parte dos alunos no espaço familiar,
é tampouco dominada por todos.
A questão da diversidade na escola não
se reduz, portanto, à dimensão da língua e não
se resolve com a introdução de mais uma língua
para escolarização, embora esta possa ser
medida decisiva conforme o contexto, nem
tampouco se resolve com a introdução de
manifestações das culturas ditas minoritárias em
atividades periféricas do currículo ou em festas
ocasionais, numa visão estilizada e folclorizante
das identidades culturais.
114 Izabel GALVÃO e Jean-Jacques SCHALLER. A questão da diversidade ...
Além do caráter reducionista de tais representações
da diversidade, elas remetem a
nominações do ‘estrangeiro’ que reservam a
alteridade a certos sujeitos sociais (Santamaría,
2001), como se alteridade e identidade não fossem
duas faces da mesma moeda, dinâmica que
atravessa toda relação e age na definição dos
contornos de cada indivíduo ou grupo social. A
demanda insistente que os alunos dirigem aos
agentes escolares é de serem reconhecidos como
pessoa singular, não redutível a um desempenho
ou a um pertencimento hetero-atribuído.
Os sinais de reconhecimento a serem fornecidos
pelas práticas escolares não se confundem,
pois com os lugares fornecidos pelas representações
cristalizadas da diferença e pelos rígidos rituais
escolares que dificultam aos indivíduos tomarem
distância em relação a seus papéis e posições,
distanciamento necessário ao ‘devir sujeito”, o reconhecimento
da diversidade supõe reconhecer o
outro e a alteridade em si mesmo, o que é particularmente
pertinente para o adolescente cujo
agudo processo de transformação coloca face ao
estrangeiro em si mesmo (Quentel, 2004). E supõe
também a reflexão sobre a construção das diferenças
e desigualdades, trabalho de desconstrução de
categorias estigmatizantes com o qual as práticas
escolares têm muito a contribuir.
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Recebido em 22.06.05
Aprovado em 26.06.06
Izabel Galvão é doutora em Educação, com pós-doutorado na Universidade Paris 13, professora da Faculdade de Educação
da USP. Atualmente é pesquisadora associada ao Centro de pesquisas interuniversitário EXPERICE (Paris 13/Paris 8).
Jean-Jacques Schaller é doutor em Sociologia (CADIS/EHESS), professor da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da
Universidade Paris 13 (EXPERICE) e responsável pelo Master Politiques Sociales, Territoires et Stratégies de Direction.



COPYRIGHT ISABEL GALVÃO

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