sábado, 5 de junho de 2010

467 - OS ROMANOS

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Antigüidade Clássica: os romanos (séculos 6 a.C – 5 d.C.)
3.1
Contextualização: as civilizações grega e romana
Em uma retrospectiva da prática tradutória dos romanos na Antigüidade
Clássica, faz-se necessário, logo de início, um breve esclarecimento a respeito das
civilizações romana e grega dessa época não só pelo fato de qualquer prática
tradutória estar condicionada ao seu contexto histórico, como também por não
haver registros de traduções romanas a partir de outras línguas que não o grego.
3.1.1
A civilização grega
A civilização grega surgiu entre os séculos 12 e 11 a.C. A língua falada era
o grego, em várias modalidades: “o grego ocidental, o grego dórico e do Noroeste,
o grego pré-dórico, o grego eólio e o jônico, de que o ático era um sub-dialeto; e o
grego arcádio-cipriota” (Jaguaribe, 2002: 280). Essa civilização compreendeu três
períodos principais: “o arcaico, do século 11 ao 7 a.C.; o clássico, do século 6 ao 4
a.C.; e o helenístico, do século 3 ao 1 a.C.” (ibidem).
A visão de mundo dos gregos passou das cosmogenias mitológicas para a
compreensão racional da natureza e da realidade, empreendida pela filosofia.
Os gregos entendiam sua cultura como uma cultura de excelência, e
mesmo superior às demais. Sem dúvida eles produziram obras artísticas
incomparáveis e um pensamento filosófico que sustentou toda a filosofia
ocidental. Autores como Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, os três grandes trágicos,
mantêm-se até hoje como referências obrigatórias na dramaturgia, assim como
Sócrates, Platão e Aristóteles formam o tripé do nascedouro da filosofia no
Ocidente.
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3.1.2
A civilização romana
A civilização romana, que conheceu um desenvolvimento gradual, teve seu
início por volta do século 7 a.C. Esse processo compreendeu cinco fases
principais:
“(1) a fase inicial, que corresponde ao período monárquico e ao princípio da
República; (2) o período da República tardia; (3) o Principado, de Augusto a
Marco Aurélio; (4) a grande crise do terceiro século; e (5) o período da
Antigüidade tardia, com a divisão entre leste e oeste e as sucessivas épocas
pagã e cristã” (Jaguaribe, 2002: 365).
A marca genuína e duradoura da civilização romana foi seu pragmatismo a
serviço da cidade-estado e, posteriormente, a serviço do Império. Essa praticidade
se materializou de forma notável nos campos da oratória forense, do direito e da
jurisprudência; da engenharia civil e militar; da arquitetura e do urbanismo.
Ao longo de três séculos, o Império Romano estendeu seu domínio da
península italiana a toda uma vasta área mediterrânea e à vasta região a oeste da
Índia, com exceção da Pérsia. No século 1 a.C. era o maior império da
Antigüidade. O mundo jamais conheceu império tão duradouro.
Apesar da enorme potência do Império Romano, a opulência cultural da
Grécia antiga constituiu objeto de desejo dos romanos, que se acercaram dessa
cultura, levando-a para a sua. Os romanos absorveram não apenas o magnífico
imaginário grego representado na mitologia, mas também suas representações
artísticas – da arquitetura à escultura, por exemplo –, além da filosofia, da
ciência natural e da teoria política. A literatura romana – cujos maiores
expoentes foram Cícero, Virgílio, Horácio e Ovídio – também foi fortemente
influenciada pela literatura grega. Não é de se estranhar, portanto, que os
romanos tenham traduzido o acervo cultural grego.
3.2
A prática tradutória dos romanos
A grande influência cultural da Grécia sobre Roma deveu-se, em parte, ao
reconhecimento dos romanos relativamente à superioridade intelectual e artística
dos gregos:
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From the beginning, Roman authors were highly conscious of their
dependence on Greek literary models. One expression of this was a complex
range of attitude devoted to the notion of imitation – the term given to using
Greek sources as a basis for creating works in Latin. (Montgomery, 2000:
31)
O interesse dos romanos pelo patrimônio artístico grego devia-se ao desejo
daqueles em erigir uma literatura. Traduzir literatura – bem como filosofia –
significava trazer elementos da cultura grega para a cultura romana.
Por volta do ano 250 a.C, soldados romanos retornaram da Grécia, onde
estavam a serviço militar, com grande interesse pelo teatro grego. Escritores da
época atenderam a essa demanda com traduções sentido-por-sentido e imitações
(adaptações) de textos dramáticos gregos. O primeiro a realizar esse
empreendimento foi Lívio Andrônico, escravo grego capturado em Tarentum, que
traduziu a Odisséia, do poeta grego Homero, para o latim (ver Kelly, 1998: 495).
Quinto Ênio (239-169 a.C.), considerado o pai da literatura romana,
também traduziu o teatro grego. Prática seguida por seu sobrinho, Pacuvio (220-
130 a.C.), que teve um importante papel na transformação do latim em língua
literária. Infelizmente, muitas das traduções de dramas gregos se perderam, mas
há ainda um número considerável delas realizadas por Plauto (184 ? a.C.) e
Terêncio (190-159 a.C.), dois dos mais famosos dramaturgos romanos da
Antigüidade. Kelly (1998: 495), em seu verbete “Latin tradition” para a
Encyclopedia, considera que Terêncio tenha realizado traduções que lembram a
prática tradutória das belles infidèles dos tradutores franceses do século 17, na
medida em que grande parte dos tradutores romanos adaptava livremente os textos
dramáticos gregos.
O apogeu da tradução literária romana, segundo especialistas, situa-se no
período compreendido entre o século 1 a.C. e a metade do século 2 d.C. Vários
autores latinos utilizaram modelos gregos como inspiração para suas (re)criações.
Assim, segundo Furlan (2001: 12), “a gênese da literatura latina está na tradução e
imitação de modelos gregos”.
Na segunda metade do século 1 a.C. a retórica grega foi introduzida em
Roma e a tradução passou a ser considerada uma variação da retórica, considerada
um importante exercício de linguagem, centrado no poder da palavra (ver Kelly,
1998: 495). A retórica era um recurso de grande prestígio nas artes liberais,
ocupando, depois da gramática e da dialética, o terceiro lugar na escala do trivium
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– uma das duas áreas de estudo do sistema educacional baseado nas sete artes
liberais. A outra área de estudo era o quadrivium, que compreendia a aritmética, a
geometria, a música e a astronomia. O conjunto das disciplinas do trivium e do
quadrivium constituíam as sete artes liberais (ver Bassnett, 1980: 51). Tanto o
professor de retórica quanto o orador que a praticava ocupavam um lugar de
destaque no quadro das profissões da época (ver Rener, 1989: 147). O poder da
retórica significava o poder sobre o outro: o poder de convencer, de impor leis, de
manter a ordem e de guiar o outro para uma determinada direção. Não é de
surpreender que para os romanos, que se sobressaíram sobretudo no direito, a
retórica tenha adquirido utilidade pública. Os gregos, criadores da retórica,
dominavam bem essa arte de tornar o argumento persuasivo e os romanos
ansiaram por aprendê-la. A tradução se tornou um meio para tal.
A tradução não era encarada como mediação para os romanos cultos, já
que estes eram bilíngües e não precisariam da tradução para ter acesso aos textos
gregos (ver Bassnett e Lefevere, 1990: 15). O objetivo da tradução romana parece
ter sido, sobretudo, o exercício estilístico como recurso para aprender com os
gregos a arte da retórica, ou seja, traduzir retórica para aprender retórica, traduzir
discursos para aprender a arte do discurso.
Para os romanos da Antigüidade Clássica, o enriquecimento da língua
latina era um alvo a ser atingido, e uma das estratégias para que isso ocorresse
através da tradução era o empréstimo de palavras da língua estrangeira, além de
novos usos para palavras já existentes na língua de chegada. Horácio (65-8 a.C.),
grande poeta romano, comparou esse processo de adição de novas palavras e
desaparecimento de outras “à troca de folhas na primavera e outono” – troca não
só natural como desejável para o enriquecimento da língua (ver Bassnett, 1980:
44).
Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), grande orador e tradutor, apresentou a
primeira reflexão sobre tradução em De optimo genere oratorum (46 a.C.),
levantando, segundo Mounin, a questão teórica presente nas discussões sobre
tradução por quase dois mil anos: “deve-se ser fiel às palavras do texto ou ao
pensamento contido nele?” (apud Furlan 2001: 12).
Em um trecho de De optimo genere oratorum, Cícero refere-se a duas
maneiras de traduzir: como intérprete, ou seja, palavra-por-palavra; e como
orador, sem a necessidade de tradução palavra-por-palavra:
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Não traduzi como intérprete, mas como orador […]. Para tanto não tive
necessidade de traduzir palavra-por-palavra, mas mantive o gênero das
palavras e sua força. Não considerarei, pois, ser mister enumerá-las ao leitor,
mas como que pesá-las. (tradução de Furlan, 2001: 17)
Em uma nota de rodapé referente a esse mesmo texto, Robinson (2002: 9)
afirma que, para Cícero, “intérprete” era o tradutor literal (palavra-por-palavra).
Quanto ao “orador”, este estava mais preocupado com o impacto de suas palavras
no leitor da tradução do que com uma tradução palavra-por-palavra. Robinson
enfatiza que Cícero, na verdade, não disse que traduzir como orador era o mesmo
que traduzir sentido-por-sentido; entretanto, atribui-se a ele esse preceito. De sua
parte, Bassnett (1980: 44) diz que, para Cícero e Horácio, a tradução consistia em
produzir um texto na língua de chegada baseado no princípio de tradução sentidopor-
sentido e não no de tradução palavra-por-palavra, e que o foco deveria estar
no leitor da tradução.
Por outro lado, o professor de retórica Marco Fábio Quintiliano (35-96),
orador e escritor romano, famoso retórico e crítico literário, em sua mais
significativa obra – De institutione oratoria (95), publicada em 12 volumes e na
qual apresentou diretrizes para a formação cultural dos romanos desde a infância
até a maturidade – expôs a tradução como um exercício retórico e apresentou o
que considerou ser a melhor forma de traduzir, aconselhada, segundo ele, por
Cícero. Para Quintiliano,
traduzir do grego ao latim era, na concepção dos nossos antigos oradores, o
melhor exercício […] Aos pensamentos mesmos se pode acrescentar a força
oratória, suprir os incompletos, encurtar os extensos. (apud Furlan, 2001: 19)
Por esse comentário, pode-se dizer que Quintiliano encarava a tradução
como imitação. Plínio, o Jovem (61-113), discípulo desse orador, também
considerava a tradução uma imitação; ou seja, aquela que não tem como objetivo
nem a fidelidade semântica nem a formal, e que por isso opera deliberadamente,
no original, omissões, acréscimos e alterações:
Antes de tudo é útil e muitos recomendaram traduzir seja do grego ao latim
seja do latim ao grego; porque com este tipo de exercício se procura a
propriedade e o resplendor das palavras, a riqueza das figuras, os métodos
para amplificar, e, além disso, a faculdade para criar de maneira similar a
partir da imitação dos melhores. (apud Furlan, 2001: 20)
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E ainda aconselha:
You can also revise the speeches you have put aside, retaining much of the
original, but leaving out still more and making other additions and
alterations. (Robinson, 2002: 18 grifos meus)
A partir dos comentários de Quintiliano, de Bassnett e de Robinson, é
possível perceber que há diferentes interpretações dos comentários de Cícero
sobre tradução. Entretanto, nos registros de reflexões sobre a prática tradutória
dos romanos há claramente a indicação de que ela caracterizou-se principalmente
pela imitação.
No que diz respeito à tradução do teatro grego, foram realizadas traduções
sentido-por-sentido e, sobretudo, imitações (adaptações). Montgomery (2000)
chama a atenção para uma outra prática, menos conhecida, que era realizada na
época de Plauto e Terêncio, ou seja, no início da tradução para o teatro: alguns
textos eram traduzidos o mais literalmente possível, trocando-se o título e
retirando-se o nome do autor grego para um autor romano assumir a autoria.
A pesquisa acerca das práticas tradutórias romanas permite perceber que
elas resultaram do interesse que a elite romana tinha de alcançar o poder do
conhecimento letrado e artístico. Existia um misto de admiração e rivalidade dos
romanos em relação aos gregos. Recriar em latim o melhor da cultura grega
significava o poder de produzir novos modelos que iriam se igualar ao original
grego ou mesmo substituí-lo. Nas palavras de Montgomery (2000):
Translation, in large part, thus retained this power: it proved to be the
medium by which Roman dependence on a relatively monolithic “Greek
achievement” could be both expressed and overcome. (p. 30)

COPYRIGHT RESERVADO AO AITOR.

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