sábado, 5 de junho de 2010

429 - OS ROMANOS

MORTE E VIDA NA ARENA ROMANA: A
CONTRIBUIÇÃO DA TEORIA SOCIAL
CONTEMPORÂNEA*
Renata Senna Garraffoni**
Universidade Federal do Paraná – UFPR
resenna93@hotmail.com
Pedro Paulo A. Funari***
Universidade Estadual de Campinas – Unicamp
ppfunari@uol.com.br
RESUMO: Nos últimos anos, no contexto das discussões sobre o caráter heterogêneo e multifacetado das
sociedades, o estudo do mundo antigo tem passado por reflexões críticas aos modelos normativos, que
tendiam à homogeneidade e à ênfase no consenso social. O estudo dos espetáculos de vida e morte nas
arenas romanas mostrou-se campo de reflexão privilegiado para a crítica aos modelos normativos. A
partir de estudo de documentação arqueológica original, mostramos como morte e vida assumem
contornos pouco usuais, vistos à luz das reflexões epistemológicas recentes.
ABSTRACT: In the last few years, in the context of discussing the heterogeneous and varied character of
social life, the study of the ancient world has been submitted to a critical assessment of normative
interpretive models. These models were keen to emphasize homogeneity and social cohesion. The study
of Roman shows in the arena is a particularly good subject to criticize normative models. Studying
original archaeological evidence, we show how life and death can be interpreted through the lenses of
updated epistemological standpoints.
PALAVRAS-CHAVE: Gladiadores – Império Romano – Morte e Vida
KEYWORDS: Gladiators – Roman Empire – Life and Death
* Este artigo, com algumas alterações, foi originalmente apresentado no III Seminário Internacional
Archai – Morte e vida às origens do Pensamento Antigo, realizado de 7 a 9 de dezembro de 2005, na
UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).
Agradecemos aos organizadores do Seminário Internacional Archai, em particular ao Prof. Dr. Gabriele
Cornelli, assim como a Monique Clavel-Lévêque e a Richard Hingley. Agradecemos, ainda, o apoio
institucional do CNPq, FAPESP, NEE/UNICAMP, CPA/IFCH/UNICAMP, UFPR, Universidad de
Barcelona. A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores.
** Pesquisadora-Associada do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/UNICAMP).
*** Coordenador-Associado do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/UNICAMP), Pesquisador-
Associado da Illinois State University e Universidad de Barcelona.
Fênix – Revista de História e Estudos Culturais
Janeiro/ Fevereiro/ Março de 2007 Vol. 4 Ano IV nº 1
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Introdução
Nas últimas décadas, a História tem passado por uma profunda revisão
epistemológica. A partir dos questionamentos dos anos de 1960, diversos intelectuais,
entre eles Michel Foucault, propuseram outras maneiras de se pensar e escrever a
História. Buscando métodos e fontes que pudessem manifestar a pluralidade das
relações sociais, estes estudiosos combateram a narrativa dos acontecimentos e
buscaram meios de se interpretar o cotidiano de diferentes camadas da população.
O estudo da Antigüidade Clássica não ficou alheio a estes acontecimentos.
Embora predomine entre os estudos clássicos uma perspectiva mais tradicional, ao
longo dos últimos anos, arqueólogos e historiadores, a partir de uma postura
interdisciplinar, têm procurado por caminhos alternativos para interpretar o passado
romano. Inspirados pela busca de perspectivas mais dinâmicas que sensibilizassem os
homens que os elementos do presente do pesquisador são fundamentais no processo de
escrita do passado, estes estudiosos têm propiciado um repensar do mundo antigo e
enfatizado a urgência de se rever os conceitos e modelos interpretativos para que seja
possível perceber a experiência de outros sujeitos históricos, além dos membros da elite
romana que esteve em cena por todos estes anos.
Neste sentido, a presente reflexão se insere em um contexto crítico da idéia de
neutralidade e da universalidade do conhecimento histórico. Dito de outra maneira
procuramos, nas páginas seguintes, caminhos alternativos para entender uma prática
comum aos romanos e que nos causa um profundo estranhamento: as lutas de
gladiadores. Para tanto, organizamos nossas reflexões em dois eixos principais. Em um
primeiro momento procuraremos apresentar uma discussão epistemológica sobre como
concebemos o conhecimento histórico para, em seguida, tratar do tema específico as
lutas de gladiadores e as concepções de vida e morte entre os romanos. Esta estratégia
possibilita uma reflexão teórico-metodológica evidenciando nossa preocupação em
construir modelos interpretativos mais fluidos que enfatizem as diferenças e as
descontinuidades. Iniciemos, então, com uma reflexão sobre a escrita da História.
A historiografia como parte da História
O estudo da História, com esse nome, começou com os gregos, quando
Heródoto de Halicarnasso dedicou-se a escrever suas pesquisas (em grego, historia)
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sobre o conflito entre gregos e persas e suas origens mais remotas. Heródoto ligava o
presente ao passado de forma muito direta, em uma busca das causas dos embates entre
os povos mediterrâneos. A escrita da História, ou historiografia, constituiu-se como um
gênero literário, uma maneira elaborada de se tratar de eventos recentes e menos
recentes. Os historiadores antigos, mesmo quando afirmavam que desejam ser
imparciais, escrever sine ira et studio (sem raiva e sem amor), na famosa frase do
historiador romano Tácito, não deixavam de ressaltar que não era possível descrever, de
forma neutra, sem seus interesses subjetivos, o passado. Para esses historiadores, não
havia passado que não fosse ligado ao presente, prenhe de significado e lições, a
História magistra uitae (mestre da vida).
Toda essa tradição literária e subjetiva viria a ser questionada modernamente,
quando do surgimento da ciência positivista, no início do século XIX, com o início da
ciência histórica. Desde o século XVIII, o racionalismo e o iluminismo começavam a
revolucionar o cenário das universidades. Surgidas em plena Idade Média, serviam a
uma formação de cunho religioso cristão, católico ou protestante, universalista. A
História, gênero literário, era encarada sob o prisma de uma leitura literal do texto
bíblico, com a criação do mundo, Adão e Eva, o Dilúvio universal e a intervenção direta
de Deus na História. A revolução humanista em curso na passagem do século XVIII
para o XIX contrapunha-se a essa presença divina e procurava explicar a História pela
ação humana apenas. Em 1823, Leopold von Ranke definiu os termos dessa disciplina
nascente, a História, como aquele que busca os fatos verdadeiros, tais como eles
efetivamente aconteceram wie es eigentlich gewesen, na expressão que se tornou
clássica. A ênfase da famosa assertiva estava tanto no verbo “ser” (“aquilo que foi”),
como no advérbio eigentlich (“propriamente”), derivado da quintessência da
modernidade, o “próprio” (eigen), do qual deriva a noção mesma de “propriedade”
(Eigentum). O individual, próprio, como critério de existência, objetiva, do passado
adquiria importância decisiva.
Neste momento, o presente foi separado, radicalmente, do passado. O
historiador, neutro e distante, deveria restabelecer os fatos, as verdades, aquilo que
qualquer observador isento podia constatar como acontecimento. Essa segurança ficou
conhecida como ‘objetividade positivista’. Essa certeza na objetividade dos fatos
históricos relegaria o presente a uma mera contingência, um detalhe irrelevante ou
mesmo nocivo. Aquele que se debruça sobre o passado deveria despir-se de sua época,
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imparcial observador. Essas posturas, ainda que nuançadas e modernizadas, continuam
a fazer-se sentir entre os historiadores.
Tudo que dizemos ou escrevemos sobre o passado é um discurso, uma
interpretação, no presente, mesmo quando pretendemos que nada fazemos, senão
recriarmos o que aconteceu.1 Ao positivismo, seguiu-se uma reação subjetivista, que
colocava no centro de qualquer visão sobre o passado o autor dessa visão, que vê de
determinada posição social, econômica, histórica, de gênero (homem, mulher). Seria
possível despir-se dessas subjetividades e descrever uma ‘verdadeira História’? Seria
possível sair do presente e ir direto ao passado? Parecem perguntas retóricas, mas estão
profundamente relacionadas com a maneira como encaramos a vida e a morte. A vida e
a morte não são somente fenômenos naturais, biológicos, mas revestem-se de
construções inseridas na História e na diversidade e heterogeneidade dos grupos sociais,
a cada momento em constante mutação. A História é uma construção, um discurso, com
autoria e há, assim, muitas histórias sobre a vida e a morte.
Subjetividades e identidades sociais: a variedade de vidas e mortes
Aristóteles, o filósofo grego do século IV a.C., considerava que o ser humano é
definido por viver em coletividade (“o homem é um animal político”, entendido político
como pertencente a uma cidade, polis). O mesmo Aristóteles utilizava-se do conceito de
comunidade (koinonia, em grego), para dizer que as pessoas partilhavam coisas comuns
(origens, língua, costumes, crenças) e, por isso, formavam uma comunidade. Essas
pessoas que compartilhavam um ethos (caráter, índole, costume) formulariam suas
próprias leis para que essa comunidade pudesse funcionar em ordem. A norma (nomos)
leva à ordem social (taxis) e, como toda regra tem exceção, o desrespeito à norma ou
sua ausência (anomia) leva à desordem (ataxia). Aristóteles tratava da vida e da morte,
em associação com a sujeição social, ao afirmar que “[...] o escravo é uma ferramenta
viva, e a ferramenta é um escravo sem vida. Não pode haver portanto amizade em
relação a um escravo enquanto escravo”. (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1161a)
Os conceitos de compartilhamento de valores viriam a ser importante também
em modelos interpretativos de nossa época e não cabe dúvida que sua influência
1 Sobre esta questão e sua repercussão no mundo antigo, confira, por exemplo, FUNARI, P. P. A. A
Antigüidade Clássica, a História e a Cultura a partir dos documentos. 3. ed. Campinas: Ed.
Unicamp, 2003; GARRAFFONI, R. S.; FUNARI, P. P. A. História Antiga na sala de aula. Campinas:
IFCH/UNICAMP, 2004.
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continuaria mesmo em autores muito recentes.2 A vida associada à táxis, à rigidez da
estrutura social, enquanto a morte foi associada, muitas vezes, tanto à submissão como
ao desfecho de uma vida desonrosa. Vida e morte, pois, associadas à ordem social.
O estudo da sociedade, seu funcionamento e transformações desenvolveram-se
a partir de fins do século XIX, quando dos inícios das disciplinas Sociologia e
Antropologia. A primeira estava preocupada em explicar nossa própria sociedade,
aquela em que vivemos, enquanto a segunda voltou-se, de início, para o estudo das
sociedades dos outros, chamados de primitivos. Outros termos usados para diferenciar
nossas sociedades das outras foi definir as nossas com adjetivos enobrecedores, tais
como ‘sociedades complexas’, ‘civilizadas’, ‘ocidentais’, por oposição a ‘sociedades
simples’, ‘selvagens’, ‘orientais’. Em ambos os casos, uma primeira preocupação foi
entender e explicar como as sociedades funcionam e se reproduzem. Por isso, já se
diferenciavam muito da História, surgida para explicar a mudança e o caráter irrepetível
do fato histórico. Enquanto a História ocupava-se do ocasional, o estudo da sociedade
esforçava-se para formular teorias para explicar a manutenção de valores, costumes,
tradições. A Antropologia e a teoria social, em geral, contribuíram, de forma decisiva,
para o redimensionamento das questões históricas.3
As discussões da teoria social das últimas décadas foram importantes para
criticar os modelos normativos, ainda muito difundidos, em contribuição significativa
para os estudos também das sociedades do passado. Estudos empíricos e reflexões
teóricas apontaram para o caráter heterogêneo da vida social, da fluidez das relações, e
das contradições e conflitos sociais. No lugar de normas e desvios às normas, surge uma
pletora de comportamentos e visões de mundo. Outro aspecto importante, proveniente
das reflexões filosóficas e antropológicas, consiste no papel central dos conflitos na vida
social. À tendência de se enfatizar a reprodução social, contrapôs-se a atenção aos
conflitos. Na tradição marxista, já se havia ressaltado que as contradições de classe
eram o motor da História, na famosa assertiva do Manifesto Comunista de 1848.
Contudo, a tradição sociológica do século XX, tributária de Max Weber ou de Émile
Durkheim, havia relevado o conflito à categoria de anomalia, doença social, desvio da
2 Sobre esta questão: Cf. FUNARI, P. P. A. A Antigüidade, o Manifesto e a historiografia crítica sobre o
mundo antigo. In: COGGIOLA, O. (Org.). Manifesto Comunista, Ontem e Hoje. São Paulo: Xamã,
1999.
3 Cf. FUNARI, P. P. A.; ZARANKIN, A.; STOVEL, E. (Eds.). Global Archaeological Theory,
Contextual voices and contemporary thoughts. New York: Springer, 2005.
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reta via. As últimas décadas do século XX, entretanto, testemunharam uma série de
lutas sociais, intensas, como a luta pelos direitos civis, contra a discriminação racial,
contra a guerra, pela diversidade sexual, pela emancipação feminina, mas também
movimentos em sentido contrário, como o fundamentalismo religioso e o nacionalismo
xenofobista. Sociedades dilaceradas pelo conflito armado ou civil multiplicaram-se e
muitos estudiosos não hesitaram em retomar e melhor explorar o caráter
intrinsecamente conflitivo das relações sociais. O mundo romano, em particular, tem
sido estudado a partir de uma crítica aos modelos normativos, com estudos sobre os
mais variados temas, da transgressão4 às identidades sociais.5
A diversidade de fontes para o estudo da vida e da morte
Desde o início do estudo científico da História, no século XIX, os documentos
são definidos como os escritos de uma época, aquilo que autores contemporâneos
escreveram sobre determinado tema. O estudo do mundo antigo centrou, por muito
tempo, na tradição literária, produto de uma elite letrada, às vezes muito distante, tanto
física como subjetivamente, dos homens e mulheres descritos, cujas sociabilidades
podiam ser muito diversas daquelas do escritor. Os vestígios materiais, ao contrário,
podem apresentar uma diversidade muito mais ampla, dados sobre o quotidiano e a vida
daqueles que nunca escreveram ou deixaram qualquer relato por escrito.6
A Arqueologia, à diferença das fontes escritas, não nos diz tanto, nem tão
diretamente, a respeito de eventos singulares e únicos, como, por exemplo, sobre a
morte de um gladiador, descrita em um documento com detalhes, ainda que fantasiosos.
Contudo, a Arqueologia permite-nos estudar as permanências, as séries, aquilo que se
repete, como as inscrições e pinturas parietais que se referem às lutas de gladiadores. A
Arqueologia é muito importante, também, para podermos, não tanto confirmar as fontes
escritas, como para, em primeiríssimo lugar, contrastar, contrapor e completar as
informações fornecidas pela tradição textual. Como categorias independentes, fontes
4 Cf. GARRAFFONI, R. S. Bandidos e Salteadores na Roma Antiga. São Paulo: Annablume, 2003.
5 Cf. DENCH, E. Romulus´ asylum. Roman identities from the age of Alexander. London: Routledge,
2005; HINGLEY, R. Globalizing Roman Culture. London: Routledge, 2005; com referências
abundantes e atualizadas em ambas as obras.
6 FUNARI, P. P. A.; ORSER, C. E.; SCHIAVETTO, S. N. O. Identidades, discurso e poder: estudos da
Arqueologia contemporânea. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2005.
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materiais e escritas podem permitir uma discussão mais aprofundada e contextualizada
de um tema ou questão.
Neste sentido, a interdisciplinaridade torna-se uma estratégia profícua para
buscar interpretações menos normativas do passado romano, assim como possibilita
olhares multifacetados das concepções destes homens e mulheres sobre a vida e a morte.
Refletir sobre estes temas em uma sociedade plural como a romana significa estar atento
às diferentes relações que se estabelecem nos diversos contextos sociais. Assim,
acreditamos que tecer alguns comentários sobre as lutas de gladiadores seria um
caminho instigante para repensarmos este fenômeno particular do mundo romano e
perceber como as relações de vida e morte são construídas e reconstruídas em cada
arena espalhada pelos mais longínquos territórios.
Morte e vida nas arenas romanas no início do Principado
O estudo dos espetáculos romanos tem sido intensificado nos últimos anos e,
neste contexto, as interpretações sobre as lutas de gladiadores têm sido revistas, em
especial no que tange a questão da violência implícita a este tipo de competição.7 Talvez
a grande quantidade de interpretações e de estudos sobre o tema esteja vinculada com a
variedade de fontes que chegaram até nós sobre este aspecto da vida dos romanos. Se
pensarmos do ponto de vista das fontes escritas, muitos autores clássicos referem-se a
diferentes tipos de combates de gladiadores, seja como sátira, como registro histórico ou
como parte de pensamento filosófico, Sêneca, Petrônio, Juvenal, Suetônio, entre tantos
outros escritores romanos, nos deixam suas percepções sobre o mundo dos teatros e
anfiteatros.
Os gladiadores também ficaram imortalizados em fontes materiais: grafites
narrando suas vitórias e fracassos, seus desejos e conquistas amorosas, assim como suas
lápides funerárias, nos ajudam a repensar fragmentos de suas vidas. Ainda no campo
das fontes materiais, as pinturas de parede tão apreciadas em Pompéia, também
constituem ricas fontes para pensarmos os espetáculos públicos. Além disso, os próprios
anfiteatros e teatros de pedra remanescentes podem nos fornecer uma noção espacial do
âmbito em que tais espetáculos se transformaram, um dia, em explosões de cores e vida.
7 Cf. GARRAFFONI, R. S. Gladiadores na Roma Antiga, combates e paixões cotidianas. São Paulo:
Annablume/FAPESP, 2005.
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Imaginar estas cenas fere nossa sensibilidade moderna: pensar que milhares de
homens e mulheres se reuniram em diferentes arenas para assistir a espetáculos que
envolviam vida e morte é, para nós, no mínimo embaraçoso. É por este motivo que
estudiosos tem repensado os combates de gladiadores e procurado, nas últimas décadas,
compreendê-los dentro do contexto sócio-cultural romano, pois de nada adiantaria
simplesmente taxá-los de bárbaro ou sangrento. Neste sentido, perceber o aspecto
religioso no qual os combates estavam envolvidos, por exemplo, torna-se uma estratégia
importante para construir uma interpretação mais dinâmica do significado destes
espetáculos.
Clavel-Lèvêque, em seu livro O império em jogo afirma que os combates eram,
antes de tudo, um jogo e, por isso, se inserem em uma forma particular de relações dos
homens com seu mundo, expressando uma função simbólica, em especial quando
ligados a um culto.8 A alegria que se manifesta no jogo, segundo esta mesma autora, é
parte constitutiva da relação dos homens com seus deuses. No caso dos romanos, os
jogos fazem parte de sua religião e os combates de gladiadores seria seu grande
símbolo.
Se pensarmos a partir desta ótica, os combates deixam de ser crueldade
desmedida, como muitos classicistas já afirmaram,9 e adquirem outros significados
dentro da cultura romana e de suas concepções de vida e morte. Mais do que afirmar
que este controverso aspecto da vida cotidiana romana residia em simples gosto pelo
sangue ou práticas sádicas, esta perspectiva possibilita a compreensão combates de
gladiadores no início do Principado a partir de um outro ângulo. Neste sentido, é
possível interpretar tais combates como um tipo particular de espetáculo público e,
conseqüentemente, como um meio de comunicação entre aqueles que assistiam e os que
atuavam no centro das arenas.
Esta proposta, inspirada no trabalho de Clavel-Lèvêque, implica em um
constante diálogo com a Antropologia e nos introduz a uma série de reflexões sobre a
vida e morte na arena que não pode passar despercebida. Ao considerarmos os combates
um tipo particular de comunicação entre os indivíduos, abrimos um espaço para
8 Cf. CLAVEL-LÈVÊQUE, M. L’Empire en jeux – espace symbolique et pratique sociale dans le
monde Romain. Paris: Editions du Centre Nacional de la Recherce Scientifique, 1984.
9 Sobre esta questão, conferir, por exemplo: AUGUET, R. Crueldad y civilización: los juegos romanos:
Barcelona: Ediciones Orbis, 1985; GRANT, M. El Mundo Romano. Madrid: Ediciones Guadarrama,
1960; ______. Gladiators. London: The Trinity Press, 1967.
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explorar seus sentimentos particulares e sua participação na construção de visões de
mundo. Neste processo, a diversidade de elementos está presente e atuaria de maneiras
diferentes nos distintos níveis sociais, expressando a complexidade do fenômeno que
inclui ciclos da vida individual, familiar, das práticas sociais e da relação com a morte.10
Além disso, teatros, anfiteatros e circos eram estruturas fundamentais na
ordenação do espaço urbano, assim como os calendários dos espetáculos no cotidiano
das cidades. No que concerne aos combates de gladiadores em específico, Clavel-
Lèvêque afirma que o anfiteatro era um local de contradições sociais no qual se
expressavam práticas simbólicas, religiosas, míticas, cerimoniais e relações com a
Natureza em sua multiplicidade. Neste sentido, sua postura critica a concepção
universalizante dos combates e os situam no campo das diferenças: diferenças de
camadas sociais, de regiões, de origens e, portanto, de visões de mundo. Os combates,
em sua opinião, sempre foram acompanhados de contradições tanto em sua forma como
em seu conteúdo, expressando uma visão de mundo complexa e heterogênea.
Os argumentos de Clavel-Lèvêque são importantes na medida em que rompem
visões binárias dos combates e as multiplica, fazendo com que pensemos os combates
em um contexto mais amplo, isto é, nos campos sociais, políticos, simbólicos e culturais
que ultrapassam os limites dos anfiteatros. Para organizar um combate há uma
legislação que deve ser observada, é necessário doação de recursos financeiros por
particulares, há, por fim, uma mobilização das elites locais e camadas populares: há
propaganda, anúncios, pompas, preservação da memória com a lembrança da morte de
cidadãos romanos ilustres, homenagens aos deuses e, meio a isto tudo, relações
humanas, ou seja, amigos e magistrados se encontram e torcedores exaltam seus
gladiadores preferidos.
É esta multiplicidade que acreditamos ser fundamental destacar. Adotando uma
concepção dinâmica da malha social e cultural romana, é possível interpretar o
cotidiano dos gladiadores e as suas relações com o público que enchia as arquibancadas
de uma maneira menos estática e homogênea. Assim, mesmo que o universo dos
espetáculos seja maior e os combates sejam apenas um entre diversos outros tipos
presentes no cotidiano romano, a opção por esta perspectiva de análise é, também,
10 Cf. CLAVEL-LÈVÊQUE, M. L’Empire en jeux – espace symbolique et pratique sociale dans le
monde Romain. Paris: Editions du Centre Nacional de la Recherce Scientifique, 1984, p. 87.
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inspirada na proposta de Horsfall,11 pois acreditamos que mais que reforçar a idéia de
uma massa com gostos sádicos e duvidosos, é necessário criar alternativas para
compreender o contexto sócio-cultural em que os combates se desenvolveram.
O fato de os romanos gostarem de banquetes e jogos nas arenas, por mais que
choque nossa sensibilidade moderna, não pode levar-nos a menosprezar ou julgar o
quotidiano destas pessoas. Pelo contrário, deveria estimular-nos a buscar meios
interpretativos alternativos para compreendermos tais fenômenos e, ao mesmo tempo,
ressaltar as diferentes formas de identidades e ações destes sujeitos pelos ambientes
plurais que compunham a sociedade romana no início do Principado.
Considerações finais
Os estudos sobre os combates de gladiadores constituem uma tradição que
remonta o século XIX. Há uma diversidade de análises sobre como se organizavam os
espetáculos e suas funções. Se no século XIX e início do XX as arenas foram
interpretadas como parte de uma política para alimentar e divertir a população ociosa,
nos anos de 1970 Veyne reinterpreta esta postura afirmando que estes espaços eram os
locais em que povo e Imperador se confrontavam. Mesmo que Veyne tenha proposto
uma interpretação em que as camadas populares tinham uma voz mais ativa, o foco de
análise seguia sendo o político. É somente nos anos de 1980 que os estudiosos passam a
buscar outro tipo de interpretação voltado mais para o aspecto cultural dos espetáculos.
É neste contexto que os estudos de Clavel-Lèvêque sobre a particularidade dos
espetáculos, da possibilidade de pensá-los como algo intrínseco a uma cultura militar e
escravista, abriram a possibilidade de interpretar as arenas de maneira menos unilateral.
Esta postura, atrelada a uma interpretação em constante diálogo com a
Arqueologia, tem proporcionado resultados instigantes, pois para além de trazer à tona
as vozes dispersas dos gladiadores e do público que assistia ou descrever realidades
objetivas. Este tipo de abordagem permite leituras menos monolítica e estática das
percepções de vida e morte entre os romanos.
11 Cf. HORSFALL, N. La Cultura della plebs romana. Barcelona: PPU, 1996.

COPYRIGHT À UNIVERSIDADE DE CAMPINAS.

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