sábado, 5 de junho de 2010

424 - OS ROMANOS

Brevíssima história da teoria da tradução... 11
BREVÍSSIMA HISTÓRIA DA TEORIA DA TRADUÇÃO
NO OCIDENTE
I. OS ROMANOS
Mauri Furlan
UFSC
O presente artigo constitui a primeira parte de um estudo sobre
a história da teoria da tradução no Ocidente, desde a época clássica
romana até o Renascimento1 . Ao repassar a prática tradutora
realizada no período proposto, nossa preocupação se centra nos
modos em que dita prática pode efetivar-se em seus momentos
mais expressivos. A tradutologia ainda está se articulando para a
constituição de uma história do pensamento sobre a tradução; no
entanto, importantes contribuições têm sido oferecidas depois que
se reconheceu a teoria retórica como o código principal da teoria
da linguagem na Antigüidade, um código que deu um marco teórico
fundamental para as discussões atuais sobre a tradução produzida
até o século XVIII.
Os Romanos
A tradição escrita ensina que no II milênio a.C., na Ásia Menor,
assírios, babilônios e hititas realizavam um trabalho especializado
de escritura: traduziam a correspondência oficial dos estados
(Mounin 1965: 30). Mas, à parte os períodos pouco claros da história
da tradução e o da Septuaginta – a primeira grande tradução (séculos
III a.C. – I a.C.) conhecida em nossa cultura, feita do hebraico ao
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grego, “carente de mérito literário y plagada de hebraísmos”
(García Yebra 1989: 302) –, a primeira tradução literária de uma
língua a outra (Highet 1996: 169) foi realizada por volta do ano 250
a.C., com a tradução ao latim da Odisséia de Homero por Lívio
Andrônico, o “primeiro tradutor europeu” (Ballard 1992: 38).
Curiosamente sua língua materna era o dórico, um dos quatro
principais dialetos da língua grega. Fez sua tradução em versos
saturninos. Fragmentos desta obra revelam que “la traducción era
exacta, el estilo – de ordinario – simple y preciso, con algunos
logros, pero muy lejos de la flexibilidad cambiante del griego, y en
ocasiones desviado, lleno de epítetos inútiles” (Bayet 1996: 48). A
partir de então, vários autores latinos se serviram de modelos gregos
seja como fonte para traduções mais ou menos livres, seja como
inspiração para suas (re)criações mais ou menos pessoais. A gênese
da literatura latina está na tradução e imitação de modelos gregos.
A primeira época na história da tradução literária ocidental
consiste pois em traduções do grego ao latim. Contudo, os romanos,
embora tenham constituído sua literatura sobre modelos gregos,
não tinham uma necessidade imperiosa de traduzir do grego, uma
vez que sua sociedade era basicamente bilíngüe. Suas traduções
revelam antes seu interesse pelas criações literárias, pelos
conhecimentos científicos de outros povos, e o desejo de erigir sua
própria literatura. Rita Copeland lembra que os romanos
reconheceram a língua grega como a mais ilustre e que, por isso, a
tradução do grego ao latim pode ser descrita como um movimento
vertical descendente do maior ao menor (1991: 11). A exaltação
dos modelos gregos por parte dos romanos tem sido vista também
como prova de sua falta de originalidade. No entanto, esta é uma
crítica que desconsidera o papel da mímesis na criação literária da
Antigüidade (Ritoré 1994: 604), assim como o fato de que os
romanos se consideravam continuadores dos modelos gregos, e que
seu sistema literário tinha criado uma hierarquia de textos e autores
que superava os limites lingüísticos: este sistema refletia o ideal
romano do estado hierárquico, centralizado e tutelador, baseado
Brevíssima história da teoria da tradução... 13
na lei da razão (Bassnett 1980: 43).
Pode-se, não obstante, afirmar, como o faz Folena, que o
fenômeno da tradução era para os romanos muito mais importante,
habitual e familiar que para os gregos. Para estes, o conceito cultural
de tradução é praticamente inexistente até aproximadamente a época
alexandrina, e a terminologia permanece genérica e muito pouco
técnica, enquanto que o latim apresenta para o conceito do traduzir
“articolazioni complesse e sottili, con una sinonimia ben
differenziata in nozioni e connotazioni particolare” (Folena 1991:
8). Na tradução artística, uma invenção latina, se produziu uma
romanização não só da expressão mas também do conteúdo, com
ênfase no texto de chegada, e a este novo valor se denominou com
os verbos uertere e o compuesto conuertere, transuertere e imitari.
Explicare também compartilha estas noções, mas em São Jerônimo
assume o significado de acentuação sobre a funcionalidade
semântica mais que sobre o ornato retórico. Outras acepções latinas
oferecem os verbos interpretari, que parece colocar a atenção sobre
o conteúdo, a dependência e o esforço de fidelidade da cópia;
exprimere, que parece enfatizar a marca formal do calco; e reddere,
que indicaria a correspondência formal não literal entre original e
tradução. No latim tardio e na Idade Média vai predominar o termo
transferre, e, ainda mais, de seu derivado participial, o verbo
translatare, que oferece o substantivo translatio e o agente translator.
Outros termos surgiram em diferentes países europeus durante a
Idade Média, alguns conseguindo manter-se por um tempo maior
que outros. O francês antigo acunhou o verbo romancier, com o
significado de ‘colocar em língua romance’, ‘expor’, ‘colocar em
rima’, ‘narrar’, e da mesma raiz o espanhol tirou romançar,
romancear. O italiano criou o verbo volgarizzare, que decai a partir
do Trecento, passando a dominar o traslatare com um valor mais
genérico, indicando as traduções tanto de outras línguas vernáculas
como do latim ao italiano, e de outras línguas ao latim. A raiz dos
modernos ‘tradurre’ (1420) italiano; ‘traduire’ (1480) francês;
‘traducir’ (1493-95) castelhano; ‘traduir’ (1507) catalão; ‘traduzir’
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(1537) português; ‘a traduce’ rumeno, originados de traducere,
começa no Humanismo, com Leonardo Bruni (Folena 1991: 8-10;
17-19; 34;71).
Na história destes termos, segundo o relato de Folena, a primeira
aparição de traductio se dá junto ao verbo traducere numa carta de
Bruni datada de 5 de setembro de 1400. Traductio seria uma
inovação semântica fundada sobre uma passagem de Gelio em
Noctes Atticae (I, 18, 1) onde se fala de um “uocabulum Graecum
traductum in linguam Romanam”. Pode-se questionar se se trata
de um forçamento intencional ou de um malentendido, um erro
semântico de tradução. O vocábulo traductio é já usado por Cícero
(De oratore, III, 42, 167) como um tecnicismo retórico, indicando
a introdução material na língua de chegada de um vocábulo
estrangeiro, ou seja, um empréstimo. É a atuação oposta ao
transferre ou interpretari (Folena 1991: 72). George Steiner, por
um lado, afirma que “Bruni interpretó mal una frase de las Noches
áticas de Aulo Gelio, donde el latín significa en realidad ‘derivar
de, llevar a’” (1998: 302). Folena, por outro lado, crê que Bruni
não se equivocou, mas que muito conscientemente escolheu um
vocábulo novo,
non consunto come transferre, dove l’operazione di trapianto
d’una in altra lingua si manifestasse con maggior energia e
plasticità: e traduco non solo era piú dinamico di transfero,
ma rispetto al suo piú vulgato predecessore conteneva, oltre
al tratto semantico dell’ “attraversamento” e del
“movimento”, anche il tratto della “individualità” o della
causatività soggettiva (si pensi o duco/dux rispetto a fero),
sottolineando insieme l’originalità, l’impegno personale e la
“proprietà letteraria” di questa operazione sempre meno
anonima (Folena 1991: 72).
Com uma postura distinta, Aires Nascimento apresenta a
hipótese de que os termos traducere e traductio deviam estar
Brevíssima história da teoria da tradução... 15
ocorrendo já anteriormente ao tratado bruniano, uma vez que um
neologismo deste tipo “representaria uma concessão menos
esperada por parte de um purista da língua latina como era aquele
humanista” (1998: 133), e que, se fosse um neologismo, teria
merecido alguma explicação.
Em Rhetoric, Hermeneutics, and Translation in the Middle Ages,
1991, Rita Copeland faz uma excelente análise sobre a concepção
da tradução entre os romanos, enfocada a partir do marco teórico
da retórica e da gramática, da qual vale recordar algumas idéias.
As escolas romanas praticavam um modelo de ensino semelhante
ao das escolas gregas, e em ambas a disciplina de gramática
compreendia não somente o estudo técnico da linguagem mas
também o comentário ou crítica textual, e a disciplina de retórica
ensinava como produzir argumentos persuasivos e discursos
públicos. A maior diferença entre estas escolas, e que nos interessa
aqui, é que na romana a tradução era uma prática comum tanto no
aprendizado de gramática como de retórica. Nos estudos
gramaticais, era considerada uma forma de comentário textual, e
nos de retórica, uma forma de imitação. Daí também a grande
superposição entre as práticas de comentários, tradução e imitação
literária (1991: 9-10). A tradução entre os romanos estava vinculada
à teoria e prática da imitação de modelos literários, mas
diferentemente de outras formas de imitação retórico-literária, a
teoria da tradução
is figured as a pattern of transference, substitution, and
ultimately displacement of the source. […] The aim of
translation is to reinvent the source, so that, as in rhetorical
theory, attention is focused on the active production on a new
text endowed with its own affective powers and suited to the
particular historical circumstances of its reception. […] This
aim has two causes: first, translation arises from an
acknowledgment of difference; and second, the Roman
reverence for Greek culture was simply a corollary of the
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desire to displace that culture, and eliminate its hegemonic hold,
through contestation and hence difference (Copeland 1991: 30).
A tarefa da tradução é concebida como a produção de uma
réplica através da diferença, do deslocamento, da substituição e da
apropriação cultural ou canônica. E a retórica oferece um modelo
de hermenêutica para a realização desta tarefa. Foi no classicismo
latino onde surgiram as primeiras reflexões mais significativas sobre
a tradução, “als die römischen Autoren sich in ihren Originalwerken
mehr von den Vorbildern lösten, und umgekehrt sich in den
Übersetzungen stärker um genaue Nachbildung bemühen konnten”2
(Stolze 2001: 18). O principal teórico da tradução e tradutor do
período clássico foi Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.).
Cícero
Duzentos anos depois de Roma ter conhecido a Odyssea, na
tradução de Lívio Andrônico, Cícero, em 46 a.C., oferece a
primeira reflexão sobre a arte e a tarefa do traduzir, principalmente
em De optimo genere oratorum3 , levantando, segundo a
interpretação de G. Mounin, o grande problema teórico que
dominará a tradução por dois mil anos: deve-se ser fiel às palavras
do texto ou ao pensamento contido nele? (1965: 31). Nas poucas
linhas que tratam da tradução, De optimo genere oratorum assinala
duas maneiras de traduzir: a do ‘orador’ e a do ‘intérprete’.
Nec conuerti ut interpres, sed ut orator, sententiis isdem et
earum formis tamquam figuris, uerbis ad nostram consuetudinem
aptis. In quibus non uerbum pro uerbo necesse habui reddere,
sed genus omne uerborum uimque seruaui. […] Quorum ego
orationes, ut spero, ita expressero uirtutibus utens illorum
omnibus, id est sententiis et earum figuris et rerum ordine,
Brevíssima história da teoria da tradução... 17
uerba persequens eatenus, ut ea non abhorreant a more nostro…
(Cícero 1996: 38; 40; V, 14; VII, 23).
Não traduzi como intérprete, mas como orador, com os mesmos
pensamentos e suas formas bem como com suas figuras, com
palavras adequadas ao nosso costume. Para tanto não tive
necessidade de traduzir palavra por palavra, mas mantive o
gênero das palavras e sua força. Não considerei, pois, ser
mister enumerá-las ao leitor, mas como que pesá-las. […] Se,
como espero, eu tiver assim reproduzido os discursos dos dois
servindo-me de todos seus valores, isto é, com os pensamentos
e suas figuras e na ordem das coisas, buscando as palavras até
o ponto em que elas não se distanciem de nosso uso…
Para Cícero, ‘traduzir como orador’ é conservar os mesmos
pensamentos e suas formas e figuras, com palavras adequadas ao
costume romano, sem necessidade de traduzir palavra por palavra
mas mantendo o mesmo gênero (qualidade, condição, caráter). O
‘intérprete’, por sua vez – se deduz –, também deveria manter o
conteúdo lógico do original e reproduzir com a maior exatidão
possível as idéias, as figuras e a ordem expositiva. A diferença
entre ambas atitudes se referiria às palavras. O intérprete traduziria
palavra por palavra (uerbum pro uerbo), reproduzindo-as inclusive
no mesmo número (adnumerare) em que se encontravam no original.
Este pensamento de Cícero se prestou, ao longo dos séculos, a
interpretações muito distintas, tendo sido utilizado freqüentemente
para justificar a tradução fundada sobre uma apreensão global do
sentido, em oposição a uma tradução literal: “non uerbum pro uerbo
necesse habui reddere, sed genus omne uerborum uimque seruaui.”
Opondo-se a uma longa tradição, Valentín García Yebra, ao
investigar a tradução em Cícero, afirma que “nada justifica que se
le considere el primer teórico o preceptista de la traducción” (1980:
152), afirmando: 1) a menção feita ao “intérprete” objetiva somente
marcar a diferença entre a maneira de trabalhar deste e a de Cícero;
2) apenas indiretamente se pode deduzir sua concepção de ‘tradução
18 Mauri Furlan
de intérprete’; 3) Cícero nunca quis oferecer preceitos para a
atividade dos tradutores (1980: 152). E além disso, o testemunho
de São Jerônimo, em sua epístola Ad Pammachium de optimo genere
interpretandi, “confirma que o conuertere ou uertere de Cícero
não era ‘traduzir’, mas, ‘parafrasear’, ‘refundir’ ou ‘adaptar’”
(1980: 151):
Quanta in illis [Cicero] praetermiserit, quanta addiderit, quanta
mutaverit, ut proprietates alterius linguae suis proprietatibus
explicaret… (Jerônimo 1996: 50; V, 2).
… todas as omissões, acréscimos e mudanças que [Cícero]
introduziu nessas traduções com o objetivo de trasladar as
expressões próprias da outra língua servindo-se daquelas da
sua.
Seguindo esta linha de pensamento, Michel Ballard (1992) lembra
que a reflexão de Cícero, apresentada como um prefácio à tradução
de dois discursos, um de Ésquines e outro de Demóstenes, não foi
elaborada num tratado específico de tradução mas num tratado de
eloquência, sobre um gênero, a imitação, no qual o próprio autor
assinala não ter praticado um trabalho de tradutor mas um tipo de
imitação: “nec conuerti ut interpres, sed ut orator”. A tradução de
que fala Cícero seria uma forma de imitação e seu raciocínio
apresentaria contradições:
ce désir de privilégier la laangue d´arrivée par souci
d´efficacité est certes défendable, mais une sorte de cécité
linguistique l´empêche de voir qu´il ne peut prétendre donner
une idée d´un style en latinisant le texte grec, et qu´il a une
sorte de contradiction à prétendre offrir un texte où “les pensées
restent les mêmes, ainsi que leur tour et leurs figures” et où
“les mots sont conformes à l’usage de notre langue” (Ballard
1992: 41).
Brevíssima história da teoria da tradução... 19
Seria, portanto, no marco de uma atividade imitativa onde Cícero
falaria da tradução, num tratado cujo objeto é a aquisição da
eloquência pela imitação de oradores gregos, e onde afirma não
ter feito tradução mas imitação. Neste sentido, mas com distintas
conclusões, para Rita Copeland a teoria da tradução contida nos
escritos de Cícero foi formulada “not with the express aim of
defining the practice of translation itself, but rather as a way to defining
the status of rhetoric in relation to grammar. […] and to conserve the
status of rhetoric as the master discipline” (1991: 9; 96).
No entanto, dos textos ciceronianos se depreende uma concepção
de tradução (ut orator), cujo método e finalidade se asemelham às
versões que se faziam comumente do grego, os quais podem ser
melhor entendidos quando iluminados pelos escritos de Quintiliano.
Numa das passagens de sua Institutio oratoria (X, 5, 2-5) que
abordam o tema, o professor de retórica expõe a tradução como
um exercício retórico, que deve fazer uso de recursos desta arte e
competir com seu modelo; comenta também que Cícero traduziu
desta forma obras de Platão e Xenofonte:
Vertere Graeca in Latinum ueteres nostri oratores optimum
iudicabant (X, 5, 2).
Et ipsis sententiis adicere licet oratorium robur, et omissa
supplere, effusa substringere (X, 5, 4).
Circa eosdem sensus certamen atque aemulationem (X, 5, 5).
Id Cicero sua ipse persona frequentissime praecepit, quin etiam
libros Platonis atque Xenophontis edidit hoc genere tralatos
(X, 5, 2).
Traduzir do grego ao latim era, na concepção de nossos antigos
oradores, o melhor exercício. […]
Aos pensamentos mesmos se pode acrescentar a força oratória,
suprir os incompletos, encurtar os extensos. […]
Em torno aos mesmos pensamentos haja luta e emulação. […]
Isto aconselha freqüentemente o próprio Cícero em pessoa,
20 Mauri Furlan
quem também publicou os livros de Platão e Xenofonte
traduzidos desta maneira.
Também Plínio o Jovem, ca. 100 d.C., numa carta a Fusco
(VII, 9), apresenta a tradução como um exercício de retórica, no
qual a tradução que se praticava consistia em grande parte de
paráfrases e imitação:
Vtile in primis, et multi praeceperunt, uel ex Graeco in Latinum
uel ex Latino uertere in Graecum; quo genere exercitationis
proprietas splendorque uerborum, copia figurarum, uis
explicandi, praeterea imitatione optimorum similia inueniendi
facultas paratur. Simul quae legentem fefellissent transferentem
fugere non possunt (VII, 9, 2).
Antes de tudo é útil, e muitos recomendaram traduzir seja do
grego ao latim seja do latim ao grego; porque com este tipo de
exercício se procura a propriedade e o resplendor das palavras,
a riqueza das figuras, os métodos para amplificar, e, além
disso, a faculdade para criar de maneira similar a partir da
imitação dos melhores. Ao mesmo tempo, o que haja falhado
ao leitor, não pode escapar ao tradutor.
Assim, compartilham vários investigadores a hipótese de que a
tradução à que se refere Cícero é antes imitação. Para Guillermo
Serés (1997), o que Cícero defende é a tradução definida como
imitatio ou aemulatio, a que, no fim das contas, apresenta dignidade
literária. Tradução é reelaboração. Para isso é necessário o uso da
oratória e da eloqüência, transplantando e naturalizando o modelo
original: “traducir vale tanto como suplantar retóricamente el
original, reinventar la eloquentia griega, apropiársela, o, mejor,
latinizarla” (Serés 1997: 27). Isso significa tradução retórica e
defesa do texto de chegada, como também o consideram Jean
Delisle e Judith Woodsworth, que citam Copeland:
Brevíssima história da teoria da tradução... 21
Au temps de l´Empire romain, la traduction se définissait
como “un procédé rhétorique permettant de faire voir l´écart
séparant une traduction de son original”(Delisle-Woodsworth
1995: 78).
Na interpretação de Rita Copeland, os preceitos de Cícero de
traduzir non uerbum pro uerbo, mas de manter a força e as figuras
da linguagem e as sententiae em geral, representam um princípio
de conservação dirigido não ao serviço do texto fonte, mas em
benefício da língua de chegada. Para Cícero, reconstituir o texto
verbal e estilisticamente representa um ato de resignificação, no
sentido de uma ‘mudança corrente’: todos os elementos do texto,
forma e estilo, dependem da interpretação, são adaptados ad
nostram consuetudinem, transplantados, naturalizados, transferidos
ao sistema do latim corrente, “so that the translation can virtually
supplant the original as a rhetorical model” (1991: 33-34). Para
Cícero, as reivindicações da tradução se expresam em termos de
transgressão textual, em termos de capacidade heurística da elocutio
(1991: 47). Esta interpretação de Copeland é reafirmada por Folena
(1991: 8), para quem, a tradução de que fala Cícero comporta um
pleno domínio de toda a compositio retórica, ou seja, uma articulação
harmônica e estudada do período.
Serés lembra que as diretrizes teóricas de Cícero devem ser
julgadas desde sua perspectiva histórica, isto é, deve-se considerar,
pois, que naquele tempo havia um forte sentimento de aemulatio e
de defesa da latinitas, e que havia uma grande familiaridade com a
língua grega – a sociedade culta era bilíngüe –, e por isso a finalidade
da tradução não era principalmente de informação ou ampliação
cultural para aqueles que não dominavam a língua estrangeira, mas
o “perfeccionamiento de la pericia retórica” (1997: 27). Também
Copeland crê que o objetivo geral do texto de Cícero é “to mediate
Attic principles by matching them with their Latin correspondents”
(1991: 33). Com um enfoque distinto do de García Yebra, para
Serés, Cícero ao falar de tradução ut interpres e ut orator expõe
22 Mauri Furlan
uma bipolaridade, interpretatio ad uerbum e imitatio ou aemulatio,
diferenciadora de dois tipos de tradução. A do interpres ou ad
uerbum é estritamente técnica, e objetiva explicar ou esclarecer; a
segunda, do orator ou imitatio é a literária. A finalidade da tradução
ad uerbum “tenía poco sentido […] porque el público a que se dirigía
Cicerón era capaz de leer un original griego” (1997: 26-28). A
conclusão é de que Cícero traduziu seus ‘modelos’ com um grande
desejo de configuração literária, o que se vincula estreitamente ao
conceito literário de aemulatio como reprodução competitiva (Stolze
2001: 18).
Uma das interpretações mais interessantes, por seu carácter
divergente, sobre a concepção ciceroniana de tradução é a de
Sebastiano Fausto da Longiano no Dialogo del modo de lo tradurre
d’una in altra lingua secondo le regole mostrate da Cicerone, 1556.
Fausto da Longiano (1991: §§ 71-120) defende a tese de que Cícero
traduzia ut interpres e que advogava por este tipo de tradução, o
qual se diferenciava muito pouco do tipo ut orator – a grande
semelhança entre as duas formas de tradução também é reafirmada
por Copeland –. A tradução ciceroniana dos discursos gregos a que
se refere Cícero seria antes uma exceção em sua prática tradutora,
porque se não o tivesse feito de maneira distinta à habitual não teria
dito que o fizera ut orator. Para este humanista, não se pode atribuir
a Cícero a alternativa de tradução segundo a letra ou segundo o
sentido – como interpreta Mounin, por exemplo – porque o orador
romano não fala em nenhuma de suas obras a respeito. O tradutor
fiel ao sentido – não discutido por Cícero –, trairia o estilo do original
para adequar-se ao gosto do novo público.
La differenza tra il “convertere ut interpres” – a cui va il
favore di Fausto – e il “convertere ut orator” consiste dunque
nel fatto che l’“interpres” persegue con coerenza la
riproduzione dello stile dell’originale in tutti i casi in cui la
lingua d’arrivo lo permetta, mentre l’“orator”, nel suo tentativo
di riproduzione, ricorre in misura maggiore a equivalenze
stilistiche nella lingua di arrivo (Guthmüller 1991: 41).
Brevíssima história da teoria da tradução... 23
Horácio
Cerca de trinta anos depois do comentário de Cícero sobre a
tradução, Horácio escreve a Epistula ad Pisones, ca. 13 a.C., sobre
problemas relativos à estética literária, à criação poética, e que
por seu conteúdo essencialmente teórico, é tratada como um “texto
científico” (Schäfer 1989: 56) pouco tempo depois de sua publicação,
e nomeada por Quintiliano em sua Institutio oratoria (I, 8, 3) com o
título de Liber de arte poetica. Neste texto, Horácio trata
basicamente do teatro, sendo um de seus principais postulados o de
que a criação poética é uma imitação e sua finalidade é a
representação cênica (Grimal 1968: 38).
Ao lado do texto de Cícero, os versos 133-134 da Ars poetica
fizeram história no universo da tradução, e foram interpretados e
utilizados tanto pelos defensores da tradução livre como pelos da
literal:
Nec uerbum uerbo curabis reddere fidus
Interpres.
No entanto, ao menos desde o século XVI – veja-se, por exemplo,
Jacques Peletier, o capítulo Des traductions de sua Art poétique,
1555 –, alguns estudiosos apontam um equívoco na interpretação
dos versos horacianos que, “curiosamente”, como o qualifica
García Yebra (1994), persiste até nossos dias. Ao escrever esses
versos, o poeta romano não se dirigia a tradutores mas a escritores,
aconselhando-os a buscar originalidade não no que dizem, mas na
maneira de dizê-lo. O ‘tradutor’ é um elemento de comparação: o
escritor, ao tratar um assunto conhecido, não deve fazê-lo servindose
das mesmas palavras de sua fonte, pois isso é o que faria um
‘tradutor fiel’. Horácio não estava dando preceitos para a tradução.
A interpretação errônea parte da descontextualização dos versos.
Basta com que se considere alguns versos anteriores para chegar a
outra conclusão:
24 Mauri Furlan
Difficile est proprie communia dicere; tuque
Rectius Iliacum carmen deducis in actus
Quam si proferres ignota indictaque primus.
Publica materies priuati iuris erit, si
Non circa uilem patulumque moraberis orbem,
Nec uerbo uerbum curabis reddere fidus
Interpres nec desilies imitator in artum,
Unde pedem proferre pudor uetet aut operis lex.
(Ars poetica, vv. 128-135)
É difícil contar, com propriedade, coisas popularizadas. Tu,
porém, podes pôr em cena um canto ilíaco mais
convenientemente do que se mostrasses pela primeira vez
coisas desconhecidas e inéditas. Matéria pública será de direito
privado, se não delirares em torno de um ponto desprezível e
banal, nem fiel tradutor tratares de traduzir palavra por palavra,
nem imitador te lançares numa situação embaraçosa, de onde
a timidez ou a estrutura da obra não permita sair.
Frederick Rener crê que, nesta passagem, Horácio está
distinguindo entre o plágio (furtum) e a imitação. A imitação seria
recomendada se o poeta fosse competente, ou seja, capaz de
dissimular a fonte e incorporar o material emprestado numa nova
e coesa criação (1989: 308).
A Fausto da Longiano tampouco lhe passa despercebida a
problemática de interpretação do texto horaciano (1991: §§ 131-
137). O humanista italiano percebe que a Ars poetica oferece
distintas possibilidades de compreensão: se Horácio tratava da
imitação, a tradução a que se referia seria a das palavras, e
aconselhava ao imitador a não verter palavra por palavra, porque
isto é trabalho do ‘tradutor fiel’ e não do imitador. Por outro lado,
se Horácio falava de tradução e não de imitação, poderia estar
aludindo tanto à tradução do sentido como das palavras.
Da época dos romanos, cuja literatura nasce da tradução,
sabe-se que houve uma atividade tradutora e literária que,
Brevíssima história da teoria da tradução... 25
entremescladas, produziram o que hoje se conhece como a literatura
romana. Contudo, os poucos registros de reflexões sobre a prática
da tradução neste período não foram escritos com o propósito de
investigar o tema em si ou de oferecer preceitos sobre a melhor
maneira de traduzir, mas que se encontram de forma quase casual
em textos que tratam de outras questões. Dois dos maiores escritores
romanos, Cícero e Horácio, que têm sido citados durante séculos
principalmente em defesa da tradução livre não foram preceptistas
da tradução. No entanto, estes parcos testemunhos do passado dão
a conhecer a clara existência de ao menos duas formas de tradução
praticadas entre eles, a tradução de palavra por palavra ou “técnica”
(Serés) e a tradução parafrástica, criativa ou retórica; ou, em outros
termos, a tradução gramatical e a retórica. Dada a existência do
bilingüismo ou mesmo trilingüismo da sociedade romana e admitida
sua visão da tradução como produção literária, afirma Bassnett
que a arte tradutora então praticada foi única no gênero: o leitor
romano podia considerar a tradução um metatexto em relação com
o original, e o tradutor romano, que era julgado por sua habilidade
em usar criativamente seu modelo, podia conceber a tarefa da
tradução como exercício de estilística comparada (1980: 45).
Notas
1 Posteriormente serão publicados por esta revista outros dois artigos relativos
ao tema – “A Idade Média” e “O Renascimento” –, que abrangerão o período
proposto.
2 … “quando os autores romanos, em suas obras originais, mais se afastaram
dos modelos, e, ao contrário, nas traduções, puderam se esforçar mais intensamente
por uma reprodução exacta.” (Todas as traduções neste artigo, quando não fazem
referência ao tradutor, são de minha autoria).
26 Mauri Furlan
3 Cícero apresenta outros comentários sobre a arte da tradução em Acad., I,
10; II, 31; Leg., II, 17; Tusc., III, 41; III, 44; Ad. Att., VI, 2, 3; De fin., II, 13;
III, 15; III, 35.
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