quinta-feira, 3 de junho de 2010

199 - CIVILIZAÇÃO CHINESA

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Texto de Análise - Marcel Granet e a Civilização Chinesa

A civilização chinesa merece mais do que a simples curiosidade. Ela pode parecer singular, mas (é um fato) nela se encontra registrada uma grande soma de experiência humana. Nenhuma outra serviu de vínculo a tantos homens, durante um Período tão grande. Quem pretende ter o título de humanista, não deve ignorar uma tradição de cultura tão atraente e tão rica em valores duráveis.

Esta tradição aparece formada desde o início da era cristã - na época em que a terra chinesa, enfim reunida, forma um imenso império. A civilização que se criou na China espalha-se logo por todo o Extremo Oriente. Graças a inúmeros contatos ela se enriquece. Os Chineses, entretanto, esforçam-se para realizar um ideal tradicional que definem com um rigor crescente.

Eles lhe são tão dedicados que o apresentam, facilmente, com a primeira herança de sua raça.
Vários milênios antes de era cristã, seus ancestrais (eles não se permitem duvidar) foram iniciados por sábios na disciplina de vida que fez sua força. A pura civilização das primeiras épocas foi o princípio de uma coesão perfeita. A China maior data dos tempos mais antigos. Sua unidade se desfaz ou se restaura conforme resplandece ou enfraquece uma ordem de civilização que é, em princípio, imutável.

Essa visão sistemática tem valor de dogma e corresponde a uma crença ativa. Ela inspirou todas as tentativas de síntese histórica; durante muitos séculos, exerceu uma influência decisiva sobre a conservação, transmissão e restauração dos documentos: não possuímos nenhum que possa ser considerado novo ou autêntico. Historiadores, arqueólogos, exegetas sentem-se impregnados de um respeito tradicionalista, mesmo quando um espírito crítico parece animá-los. Eles determinam os fatos e as datas, estabelecem os textos, eliminam as interpolações, classificam as obras sem objetividade, na esperança de tornar mais aguda e mais pura, neles mesmos e em seus leitores, a consciência de um ideal que a História não saberia explicar, pois a antecede.

Nós nos inspiraremos em idéias diferentes. Os ocidentais, até pouco tempo, contavam a história da China à moda chinesa (ou quase), sem mesmo assinalar seu caráter dogmático.
Hoje, eles se esforçam para distinguir, nas tradições, o verdadeiro do falso. Eles utilizam os trabalhos da crítica autóctone. Eles se esquecem, freqüentemente, de ressaltar os postulados. Eles se mostram, em geral, pouco sensíveis às insuficiências de uma exegese puramente literária. Apesar de uma atitude crítica, eles raramente confessam que os fatos permanecem incompreensíveis.

É suficiente datar um documento para que imediatamente os dados se tornem utilizáveis?
Quando se tornou uma posição, por exemplo, sobre a data e o valor dos documentos chineses relativos às formas antigas da posse da terra, que realidade foi apreendida se não se observou que o lote de terreno designado, segundo eles, a um cultivador, é cinco ou seis vezes menor do que o campo considerado necessário, atualmente, para alimentar um único homem nas regiões mais férteis e mais bem trabalhadas? A história literária dos rituais é de grande interesse, mas será possível fazê-la bem, se não se tiver o cuidado de observar: 1.° - que entre os objetos mencionados pelos rituais não há quase nenhum que tenha sido encontrado em escavações; 2.° - que entre os objetos encontrados graças às escavações há muito poucos sobre os quais os rituais fornecem alguns esclarecimentos? As escavações estão ainda no começo. A arqueologia chinesa inspira-se num espírito livresco. Convêm advertir, inicialmente, que os documentos de que dispomos apresentam um caráter utópico. Resta ver se, tais como se mostram, eles são sem valor.

Eles não revelam o menor dos fatos históricos e não permitem descrever, com alguma precisão, o lado material da civilização chinesa. Ignoramos, do mesmo modo, os pormenores das guerras e das intrigas políticas, os usos administrativos, as práticas econômicas, o modo de vestir, etc. Em troca, possuímos inúmeros testemunhos preciosos sobre as diversas atitudes sentimentais ou teóricas que foram adotadas na China em meios diferentes, a respeito do costume, da riqueza, da arte administrativa, da política ou da guerra...Estamos informados, sobretudo, a respeito das atitudes defendidas pela ortodoxia. Mas os Chineses não querem perder nada do passado, mesmo quando tomam o cuidado de apresentar uma reconstituição totalmente ideal: eles deixaram subsistir uma grande quantidade de informações que contradizem as teorias ortodoxas. Não há, no momento (se desconfiarmos de precisões ilusórias), nenhum meio de escrever um Manual de antiguidades chinesas. Não é impossível, pelo contrário, introduzir-se, bastante mesmo, no conhecimento da China, se limitarmos nossa tarefa a definir um conjunto de atitudes que caracterizam o sistema social dos Chineses da antiguidade.

Tentar determinar o sistema social dos Chineses, tentar indicar o que ele pode ter de específico - na vida política, nos costumes, no pensamento, na história do pensamento e na dos costumes - tentar, também, indicar o que ele encobre de grande experiência humana, deixando entrever que, de civilização em civilização as simbolizações, freqüentemente, diferem; tentar, enfim, fazer aparecer este sistema de comportamentos na ordem e no movimento que lhe são próprios, foi neste espírito que concebi essa obra. Este também é o espírito que inspirou minhas pesquisas preparatórias. Publiquei uma parte destas últimas, acentuando seu caráter de estudo indutivo e enfrentando, progressivamente, o exame crítico dos fatos, das idéias e dos documentos. Hoje posso apresentar uma exposição de conjunto.
Precisei proceder de modo dogmático. Isto me levou a dissociar a história dos fatos políticos e dos fatos sociais e a história do pensamento. Esta última fornecerá o tema de um volume complementar: nele se verá que o pensamento chinês, em conseqüência de um desenvolvimento estreitamente ligado à evolução dos costumes, tende, desde a época dos Han, a uma escolástica que corresponde a uma disciplina ortodoxa da vida.
Este pensamento, entretanto, conserva uma notável capacidade concreta, poética e plástica, uma espécie de jogo livre que se dissimula sem dificuldade e como que protegido por um revestimento de formas convencionais. Essas conclusões confirmarão, completando-as, as ilações deste volume. A evolução dos costumes atesta a preeminência sucessiva de ideais próprios a diferentes meios. Ela parece tender (como a uma espécie de ponto morto) à glorificação de um conformismo extraordinariamente rígido. Assim se assinala a ação dominante que, desde a fundação do Império, as classes oficiais exercem na vida da nação: esta ação é, na aparência, soberana, pois o papel do Estado e o da Administração reduzem-se, teoricamente, ao ensino das atitudes morais e intelectuais que caracterizam um homem honesto e qualificam o funcionário. A história chinesa dificilmente se resigna a consignar as sobrevivências e, mais dificilmente ainda, a registrar as renovações. Pode-se, no entanto, presumir que, sob o revestimento de uma ortodoxia que pretendia reinar sem contestações, a vida moral continuou a se desenvolver livremente. Índices preciosos deixam entrever que ela não cessou de se inspirar em ideais antigos, conservados sem um empobrecimento verdadeiro. Ela soube, também, renovar seus ideais sob a pressão dos fatos, pois a fundação da unidade imperial acompanhou-se de uma distribuição nova da atividade social.

Marcel Granet, Civilização Chinesa. Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1979 – original, 1932

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Quem sou eu
Orientalismo
André Bueno / Professor de História e Filosofia da FAFI-UV (Paraná); Doutor (Alas!) em Filosofia na Universidade Gama Filho, 2002-2005, com a Tese A Justa Medida em Confúcio e Aristotéles; Mestre em História na Universidade Federal Fluminense, 2002 com a Dissertação Roma, China e o sistema Mundial entre os séculos I - III d.C.; Bacharel em História no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1998 com a Monografia Interações econômicas e culturais entre Roma e China nos séculos I ao III d.C.; Licenciatura em História na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1998. Atua nas áreas de Filosofia e História Asiática, com especialização em China Antiga. Já teve oportunidade de proferir e/ou publicar mais de sessenta textos. Enfim......apenas leia os artigos desta página - tudo mais o Céu cuida, pois ele sempre é generoso. Para ver meu currículo completo, visite a página do Lattes em http://lattes.cnpq.br/4958851883736557
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