quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

8523 -= HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

Para uma História da Sociologia
no Brasil: a Obra Sociológica de
Florestan Fernandes - Algumas
Questões Preliminares
Miriam Limoeiro-Cardoso
Texto disponível em www.iea.usp.br/artigos
As opiniões aqui expressas são de inteira responsabilidade do autor, não refletindo necessariamente as posições do IEA/USP.
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Para uma História da Sociologia no Brasil:
a Obra Sociológica de Florestan Fernandes
Algumas Questões Preliminares1
Miriam Limoeiro-Cardoso2
Este texto tem caráter assumidamente preliminar, já que coloca preocupações e
perspectivas de uma pesquisa iniciada há apenas três meses. Não pretende, pois, apresentar
resultados, ainda que parciais, mas propor à discussão encaminhamentos e hipóteses que
organizam o projeto "Para uma história da sociologia no Brasil", em curso neste Instituto
de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.
O texto consta de duas partes. A primeira procura situar a pesquisa no contexto da
história das ciências, especificando o seu sentido e caracterizando a sua diferenciação de
investigações de outro tipo que estão sendo desenvolvidas entre nós. A segunda parte
levanta algumas hipóteses de leitura da obra de Florestan Fernandes e começa a sua
elaboração.
Se esta apresentação produzir algum debate, levando a observações e a críticas, terá
alcançado seu objetivo principal, como documento de trabalho que é.
I – INDICAÇÕES INICIAIS PARA SITUAR O PROJETO NA PERSPECTIVA DA
HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS
Quem se dispõe a fazer estudos com vistas à elaboração de uma história de uma
dada ciência, precisa considerar as condições contemporâneas nas quais esta ciência se
produz. Como o pensamento pós- moderno alcançou também a sociologia, nestas
condições se inclui necessariamente a discussão de questões decorrentes desse novo
relativismo, tais como a possibilidade da representação e da verdade, a pertinência da
teoria, a relação autor/texto/leitor, a morte do sujeito, etc. No meu entendimento, porém,
numa pesquisa como esta, é conveniente começar pela colocação da perspectiva segundo a
qual o próprio objeto da pesquisa está sendo desenhado.
Este projeto se inscreve no campo da história das ciências, cujo sentido, portanto, é
necessário especificar. O desenvolvimento da pesquisa deverá produzir essa especificação
1 Texto da conferência proferida no IEA em 16 de dezembro de 1994.
2 Universidade Federal do Rio de Janeiro – Ciências Sociais.
2
quanto à ciência particular em pauta (sociologia) produzida nesta região específica (Brasil).
No entanto, desde já cabe oferecer algumas indicações e algumas demarcações de caráter
mais geral, observações que dizem respeito à própria concepção de história das ciências a
adotar, envolvendo problemas como: o seu objeto próprio, se o conhecimento científico é
ou não cumulativo, se sua acumulação se opera por continuidade ou descontinuidade, até
que ponto cabe considerar a fundação de uma ciência, se o passado que ela contém deve
ser admitido apenas como superado/abandonado, ou se o presente científico (ou cada
momento do saber científico) se elabora sempre como produto de uma relação forte (ainda
que de ruptura) com esse passado, se cabe ou não pensar em termos de progresso científico
e tantos outros problemas do mesmo tipo.
Podemos tomar como referência inicial a questão colocada a Foucault pelo Círculo
Epistemológico da École Normale Supérieure: "A noção de ruptura epistemológica serve,
desde a obra de Bachelard, para designar a descontinuidade que a filosofia e a história das
ciências acreditam marcar entre o nascimento de toda ciência e o 'tecido de erros positivos,
tenazes, solidários' retrospectivamente reconhecidos como a precedendo." (M. Foucault,
Dits et écrits, t.I., p. 696).
A possibilidade de uma história das ciências supõe desde o início o inacabamento
essencial do conhecimento científico, o que equivale à não plenitude desse conhecimento e
ao seu caráter não absoluto enquanto verdade. Mas supõe também uma distinção
fundamental: a diferença entre uma verdade que contém erro — erro esse que só se
descobre por meio de uma verdade que, ao reelaborar o conhecimento anterior, duvidando
dele e o criticando, reconhece nele um erro e o ultrapassa — e o "tecido de erros positivos,
tenazes e solidários" (G. Bachelard, La Philosophie du Non,8) que caracterizam um
domínio pré-científico ou não-científico. Uma coisa é uma verdade que admite ser
incompleta e aproximada, que contém erro e que, portanto, é, neste sentido, relativa. Outra
coisa é o erro que se supõe ou se afirma como verdade, e verdade plena, e que, deste modo,
se constitui como obstáculo epistemológico ou como um tipo de ideologia.
Considerando o conhecimento enquanto verdade aproximada, que, portanto,
contém erro, a história dos conhecimentos é uma história sempre refeita, que também
precisa ser sempre refeita por quem a reconstrói como história, história que é reconstruída,
sempre feita "para trás", retrospectivamente. As primeiras grandes questões em torno das
quais essa história se articula são a relação verdade/erro e a relação de descontinuidade que
marca a construção dessas verdades. Assim, o conhecimento científico sempre tem um
passado. No caso das grandes transformações que a história das ciências revela, é contra
3
esse passado que a nova verdade se constrói, o que coloca como chave dessa construção a
noção de retificação. A descontinuidade como marca da construção do conhecimento
científico conduz a uma concepção de história das ciências enquanto história das
diferenças de construção desta ciência, especialmente com referência às mutações
experimentadas por ela ao longo do tempo da sua constituição, definindo momentos que
podem ser sucessivos, mas são descontínuos.
Gaston Bachelard nos diz que "há ruptura entre o conhecimento sensível e o
conhecimento científico". (id. 10). Acredita que "o progresso científico manifesta sempre
uma ruptura, perpétuas rupturas, entre conhecimento comum e conhecimento científico,
desde que se aborde uma ciência evoluída, uma ciência que, pelo fato mesmo de suas
rupturas, traga a marca da modernidade" (G. Bacherlard, Le Matérialisme rationnel, 207).
Com a sua Filosofia do Não, Bachelard procura entender cada grande ruptura constitutiva
de uma ciência como "uma reorganização do saber sobre uma base ampliada" (G.
Bachelard, La Philosophie du Non, 135). Nesta filosofia, "a generalização pelo não deve
incluir o que ela nega" (id.,137). Nesse sentido, Bachelard insiste "sobre o valor dilemático
das novas doutrinas, como a geometria não-euclidiana, a medida não-arquimediana, a
mecânica não-newtoniana com Einstein, a física não-maxwelliana com Bohr, a aritmética
de operações não-comutativas que se poderia designar como não-pitagórica". (G.
Bachelard, Le Nouvel Esprit Scientifique, 7) Adverte, no entanto, que "não há nada de
automático nestas negações e não se deverá esperar encontrar uma espécie de conversão
simples que possa fazer entrar logicamente as novas doutrinas no quadro das antigas.
Trata-se antes de uma extensão verdadeira. A geometria não-euclidiana não é feita para
contradizer a geometria euclidiana. Ela é antes uma espécie de fator adjunto que permite a
totalização, o acabamento do pensamento geométrico, a absorção numa pangeometria.
Constituída à orla da geometria euclidiana, a geometria não-euclidiana delineia de fora,
com uma luminosa precisão, os limites do antigo pensamento." (id., 8).
A noção de extensão verdadeira merece uma palavra de esclarecimento, sem a qual
ela talvez possa indicar equivocadamente algo no sentido da continuidade ou da nãoruptura.
Mas Bachelard é muito claro a esse respeito. Para a sua concepção de extensão
verdadeira convergem as noções de progresso científico, de verdade aproximada e do que
Canguilhem tão adequadamente colocou como a primeira característica da epistemologia
bachelardiana — o primado teórico do erro (cf. G. Canguilhem, “Sur une Épistémologie
Concordataire", 5). Defensor de uma filosofia do inexato, Bachelard afirma a "existência
inegável de um erro que não pode, por natureza, ser totalmente eliminado e que nos obriga
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a nos contentarmos com aproximações" (G. Bachelard, Essai sur la Connaissance
Approchée,13) Conseqüentemente, ele assume "como postulado da epistemologia o
inacabamento fundamental do conhecimento" (id.). Neste quadro, o progresso em uma
ciência consiste em, sobre uma dúvida específica, questionar o conhecimento estabelecido,
nele descobrir um erro e ser capaz de propor uma efetiva retificação deste erro, fazendo,
assim, avançar o processo sem fim de aproximação, em busca de uma verdade sempre
inexata e, portanto, sempre passível de ser retificada.
É importante ter atenção em que, para Bachelard, as extensões verdadeiras, apesar
de extensões, constituem rupturas, rupturas intracientíficas. Diz Bachelard; "Com efeito, a
história humana bem pode, em suas paixões, em seus preconceitos, em tudo que releva dos
impulsos imediatos, ser um eterno recomeço; mas há pensamentos que não recomeçam;
são os pensamentos que foram retificados, alargados, completados. Eles não voltam a sua
área restrita ou cambaleante. Ora, o espírito científico é essencialmente uma retificação do
saber, um alargamento dos quadros do conhecimento. Julga seu passado histórico,
condenando-o. Sua estrutura é a consciência de suas faltas históricas. Cientificamente,
pensa-se o verdadeiro como retificação histórica de um longo erro, pensa-se a experiência
como retificação da ilusão comum e primeira. ... A própria essência da reflexão é
compreender que não se compreendera. Os pensamentos não-baconianos, não-euclidianos,
não- cartesianos estão resumidos nestas dialéticas históricas que apresentam a retificação
de um erro, a extensão de um sistema, o complemento de um pensamento". (G. Bachelard,
Le Nouvel Esprit Scientifique, 173-174). Retificação, extensão, complemento, sim, mas
através de rupturas. Tal sentido se explicita, por exemplo, quando Bachelard estuda a
mecânica e considera neste campo a relação de Einstein com Newton. De acordo com
Bachelard, "do ponto de vista astronômico, a refundição do sistema einsteiniano é total. A
astronomia relativista não sai de modo algum da astronomia newtoniana... Mesmo sob
aspecto simplesmente numérico, enganamo-nos, acreditamos, quando vemos no sistema
newtoniano uma primeira aproximação do sistema einsteiniano, pois que as sutilezas
relativistas não decorrem de uma aplicação aperfeiçoada dos princípios newtonianos. Não
se pode, portanto, dizer corretamente que o mundo newtoniano prefigura em suas grandes
linhas o mundo einsteiniano. É bem depois, quando nos instalamos de improviso no
pensamento relativista, que reencontramos nos cálculos astronômicos da Relatividade —
por mutilações e abandonos — os resultados numéricos fornecidos pela astronomia
newtoniana. Não há, portanto, transição entre o sistema de Newton e o sistema de Einstein.
Não se vai do primeiro ao segundo acumulando conhecimentos, redobrando os cuidados
5
nas medidas, retificando ligeiramente os princípios. É preciso, ao contrário, um esforço de
novidade total." (id. 41-42). Uma retificação deste tipo significa, assim, uma refundição
totalmente nova. Não há transição, não há passagem de um sistema a outro, embora o novo
se constitua por retificação do que lhe antecede. Só pode ser novo em relação a ele quando
rompe com ele e re-constitui o saber sobre novas bases, nova fundamentação.
Foucault contribui bastante para tornar mais nítidas as diferenças na discussão
sobre a descontinuidade. Recorre a Canguilhem, entendendo que para ele "a demarcação
das descontinuidades não é nem um postulado, nem um resultado: é, porém, mais
propriamente uma 'maneira de fazer', um procedimento que faz corpo com a história das
ciências." Foucault comenta: "A história das ciências, com efeito, não é a história do
verdadeiro, de sua lenta epifania; ela não saberia recontar a descoberta progressiva de uma
verdade inscrita desde sempre nas coisas ou no intelecto, salvo se se imaginar que o saber
de hoje a possui enfim de modo tão completo e definitivo que pode tomar a partir dela a
medida do passado. E, no entanto, a história das ciências não é uma pura e simples história
das idéias e das condições nas quais elas apareceram antes de se apagar. Na história das
ciências, não se pode dar a verdade como alcançada, mas também não se pode fazer a
economia de uma relação com o verdadeiro e com a oposição verdadeiro-falso. É esta
referência ao verdadeiro-falso que dá a esta história sua especificidade e sua importância.
Sob qual forma? Concebendo que se tem que fazer 'discursos verídicos', quer dizer,
discursos que se retificam, se corrigem e que operam sobre eles mesmos todo um trabalho
de elaboração finalizada pela tarefa de 'dizer a verdade' (dire vrai). O laço histórico que os
diferentes momentos de uma ciência podem ter uns com os outros têm, necessariamente,
esta forma de descontinuidade que constituem os remanejamentos, as refundições, a
atualização de novos fundamentos, as mudanças de escala, a passagem a um novo tipo de
objetos — 'a revisão perpétua dos conteúdos por aprofundamento e rasura', dizia Cavaillès.
O erro não é eliminado pela força surda de uma verdade que pouco a pouco sairia da
sombra, mas pela formação de uma nova maneira de 'dizer a verdade'." (M. Foucault, Dits
et Écrits, t. III, 435 e t. IV, 769-770).
A história das ciências se preocupa fundamentalmente com as interrupções, com as
rupturas, com as reformulações, com as refundições, com as mudanças de objeto, com as
revoluções científicas. Remetendo às formulações de Bachelard, de Grueroult e de
Canguilhem, Foucault diz: "De fato, é a noção de descontinuidade que mudou de estatuto.
Para a história, sob sua forma clássica, o descontínuo era ao mesmo tempo o dado e o
impensável: o que se oferecia sob a espécie de acontecimentos, de instituições, de idéias ou
6
de práticas dispersas; e o que devia ser, por meio do discurso do historiador, contornado,
reduzido, apagado para que aparecesse a continuidade dos encadeamentos. A
descontinuidade era esse estigma da dispersão temporal que o historiador tinha o encargo
de suprimir da história. Ela se tornou agora um dos elementos fundamentais da análise
histórica. Aparece aí sob um triplo papel. Primeiramente, constitui uma operação
deliberada do historiador (e não mais o que ele recebe, apesar dele, do material que tem
para tratar): porque, ao menos a título de hipótese sistemática, ele deve distinguir os níveis
possíveis de sua análise e fixar as periodizações que convêm a esses níveis. Ela é também
o resultado de sua descrição (e não mais o que se deve eliminar sob o efeito de sua
análise): porque o que [o historiador] tem a incumbência de descobrir são os limites de um
processo, o ponto de inflexão de uma curva, a inversão de um movimento regulador, os
limites de uma oscilação, o limiar de um funcionamento, a emergência de um mecanismo,
o instante de desregulagem de uma causalidade circular. Ela é enfim um conceito que o
trabalho não cessa de especificar: não é mais esse vazio puro e uniforme que destaca de um
único e mesmo espaço em branco duas figuras positivas; ela toma uma forma e uma função
diferentes segundo o domínio e o nível aos quais se a atribui ... O descontínuo passa a ser
conceito operatório para o historiador, não mais o negativo da leitura histórica (seu
inverso, seu fracasso, o limite do seu poder), mas o elemento positivo que determina seu
objeto e valida sua análise" (M. Foucault, Dits et Écrits, t.I, 698).
Apesar das grandes diferenças que os separam, no que concerne à consideração da
história das ciências pelo prisma da descontinuidade, podemos aproximar Bachelard e
Kuhn. Thomas S. Kuhn compreende "o desenvolvimento científico como uma sucessão de
períodos ligados à tradição e pontuados por rupturas não-cumulativas". (T.S. Kuhn, The
Structure of Scientific Revolutions, 208). Assim, considera "revoluções científicas aqueles
episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total
ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior" (id. 77). Para ele,
"os exemplos mais óbvios de revoluções científicas são aqueles episódios famosos do
desenvolvimento científico que, no passado, foram freqüentemente rotulados de
revoluções... Mais claramente que muitos outros, esses episódios exibem aquilo que
constitui todas as revoluções científicas, pelo menos no que concerne à história das
ciências físicas. Cada um deles forçou a comunidade a rejeitar a teoria científica
anteriormente aceita em favor de uma outra incompatível com aquela. Como conseqüência,
cada um desses episódios produziu uma alteração nos problemas à disposição do escrutínio
científico e nos padrões pelos quais a profissão determinava o que deveria ser considerado
7
como um problema ou como uma solução de problema legítimo." (id., 6) Os estudos de
Kuhn o levam a enfatizar a importância dos paradigmas, concebendo mesmo a história da
ciência como um "estudo histórico da mudança de paradigmas" (id., 94) e aceitando "como
pressuposto que as diferenças entre paradigmas sucessivos são ao mesmo tempo
necessárias e irreconciliáveis" (id., 103). Vale a pena ressaltar que cada paradigma elege
seus próprios problemas e seus próprios instrumentos e cânones de resolução. Em Kuhn, a
noção de ciência está sempre ligada à de paradigma, e esta ganha seu sentido maior quando
permite confrontar diferentes paradigmas.
Uma outra perspectiva sobre a história das ciências que é interessante recolher, num
momento de construção de objeto de investigação como o nosso, encontra-se em
Feyerabend. Discutindo a idéia de aproximação (idéia que, neste autor, não corresponde
exatamente à apresentada por Bachelard) e a própria idéia de verdade, Feyerabend dá uma
outra dimensão à história de uma ciência. Para ele, "o conhecimento... não é uma série de
teorias coerentes, a convergir para uma doutrina ideal; não é um gradual aproximar-se da
verdade. É, antes, um oceano de alternativas mutuamente incompatíveis (e, talvez, até
mesmo incomensuráveis), onde cada teoria singular, cada conto de fadas, cada mito que
seja parte do todo força as demais partes a manterem articulação maior, fazendo com que
todas concorram, através desse processo de competição, para o desenvolvimento de nossa
consciência. Nada é jamais definitivo, nenhuma forma de ver pode ser omitida de uma
explicação abrangente. Plutarco ou Diógenes Laércio e não Dirac ou von Newmann são os
modelos para a apresentação dessa espécie de conhecimento, onde a história de uma
ciência se faz porção inseparável da própria ciência — essencial para seu posterior
desenvolvimento, assim como para emprestar conteúdo às teorias que encerra em qualquer
momento dado." (P. Feyerabend, Contra o método, 40-41, grifado do original) (3). Porque
"nada é jamais definitivo", fica justificado o princípio que metodologicamente rege
Feyerabend: "tudo vale" (id., 34). Deste ponto de vista, qualquer formulação — de "cada
teoria singular" a "cada conto de fadas" — deve ser tratada como "parte do todo",
entendido este apenas como o conjunto de todas as formulações disponíveis, o seu "oceano
de alternativas mutuamente incompatíveis (e talvez até mesmo incomensuráveis)". A
história de uma ciência guarda, assim, as contribuições passadas que, com as que se
encontram no presente, formam aquele "oceano". Curioso é que, apesar dessa concepção,
3 Toda vez que houver palavras ou expressões sublinhadas nas citações e não houver menção de que foi
grifada por mim, M.L.C, estará grifado no original.
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Feyerabend não descarta a noção de "desenvolvimento", quer o desenvolvimento de uma
ciência, quer "o desenvolvimento de nossa consciência".
Se não fosse pela sua importância mais geral, pelo menos em vista de uma
concepção como essa ressalta a necessidade de considerar a questão da fundação de uma
ciência. Kuhn se refere a "período pré-paradigmático": "Após o período pré-paradigmático,
a assimilação de todas as novas teorias e de quase todos os novos tipos de fenômeno
exigiram a destruição de um paradigma anterior e um conseqüente conflito entre escolas
rivais de pensamento científico." (T.S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, 96)
A ciência, portanto, começa com a constituição de um paradigma, que corresponde à
constituição de uma comunidade científica, porque "um paradigma é aquilo que os
membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica
consiste de homens que partilham um paradigma" (id., 176). As discussões que Kuhn
adianta no seu famoso Posfácio de 1969 sobre a melhor maneira de se referir àquilo que é
partilhado por uma comunidade científica como sendo um paradigma, uma teoria, um
conjunto de teorias ou uma "matriz disciplinar" não vem tanto ao caso aqui. Importa mais
neste momento para nós a sua menção ao "período pré-paradigmático".
Bachelard ficou muito conhecido nas décadas de 1960 e 1970 pelo conceito — que
seria seu — de "corte epistemológico", especialmente pelo uso que dele fez Althusser, que
o remetia explicitamente a Bachelard. Bachelard distingue "três grandes períodos" do
pensamento científico: "o estado pré-científico, o estado científico e a era do novo espírito
científico" (G. Bachelard, La Formation de l'Esprit Scientifique, 6-7). Mas seu trabalho
epistemológico fica quase todo concentrado na caracterização do novo espírito científico,
marcadamente quanto à ruptura que o constitui em relação ao estado científico da ciência
em questão. De acordo com E. Balibar, o conceito de "corte epistemológico" é um conceito
original de L. Althusser — e não de G. Bachelard. Assim, nesta questão, Althusser parece
dever menos a Bachelard do que ele próprio fez acreditar. Para Balibar, no que se refere ao
conceito de corte epistemológico, Althusser "deve 'alguma coisa' a Bachelard e repousa
sobre certos pressupostos comuns, mas visa de fato um objeto completamente diferente e
abre um campo de investigação completamente diferente." (E. Balibar, Écrits pour
Althusser, 11).
Além do próprio Althusser, foram especialmente M. Pécheux e E. Balibar que mais
insistiram sobre a questão do corte epistemológico, tentando distinguir e precisar bem —
talvez de forma excessivamente formal e exagerada — os conceitos de corte
epistemológico, de ruptura intraideológica e de ruptura intra-científica. Pécheux e Balibar
9
advertem, num texto que consiste numa espécie de introdução ao livro de Fichant e
Pécheux Sur l'Histoire des Sciences: "o conceito de corte (coupure) é antes de tudo
aplicado aqui à história da física. A utilização adequada deste conceito para a análise da
constituição científica de tal ou qual outra disciplina exige, a cada vez, um trabalho
epistemológico sobre a história da disciplina considerada, referida ao campo diferencial da
história das ciências." (Pécheux e Balibar - "Definitions", 12, nota 7). Nesse mesmo texto,
eles esclarecem: "no processo histórico de formação da física científica chamaremos corte
(coupure) epistemológico o ponto de 'não retorno' (segundo a expressão de F. Regnault) a
partir do qual esta ciência começa." (id. 8) É neste sentido específico que retomam a
questão althusseriana da fundação de uma ciência, uma espécie de ponto zero, decisivo,
revolucionário, a partir do qual esta ciência tem efetivamente o seu começo, rompendo por
meio de um corte (depois do qual não há retorno possível) com as concepções que antes
dele dominavam e que com ele têm o seu questionamento levado até o ponto de passarem a
constituir o que então pode ser possível designar como pré-ciência (que acaba sendo por
eles identificada com ideologia). Naquela definição deve-se acentuar os termos "corte
epistemológico", "ponto de não retorno" e "começo".
Pécheux e Balibar esclarecem ainda que "falar de começo significa que o corte
constituinte de uma ciência se efetua necessariamente numa conjuntura definida, onde as
origens (as filosofias e as ideologias teóricas que definiam o espaço dos problemas)
sofreram um deslocamento para um novo espaço de problemas." (id., 9) Cada ciência,
portanto, na sua história não tem origens, mas sim um começo efetivo, começo este que se
situa numa conjuntura específica de deslocamento de um determinado conjunto de
problemas para "um novo espaço de problemas". Esse "espaço de problemas" será
precisado num conceito próprio, o de problemática, que discutirei adiante.
No seu intuito de definição rigorosa dos conceitos, Pécheux e Balibar chamam de
"demarcações (ou rupturas intra-ideológicas) os aperfeiçoamentos, correções, críticas,
refutações, negações de certas ideologias ou filosofias precedendo logicamente o corte
epistemológico da física" (id. 10). Admitem, ainda, que a partir do corte a ciência nova
compreende "rupturas intra-científicas ou, segundo a expressão de F. Regnault, refundições
da problemática teórica, que intervêm na história de uma ciência" (id. 11-12). Trabalham,
pois, com o conceito de corte epistemológico instituinte ou fundador de uma ciência,
diferenciado pela sua radicalidade das rupturas (intra-ideológicas) que o antecedem — as
quais também chamam de demarcações —, como ainda das rupturas (estas intracientíficas)
que o sucedem — que também chamam de refundições. Na verdade, pretendem estar
10
lidando com três tipos de rupturas: a do corte (instituinte ou ponto de não-retorno), as intraideológicas
ou pré-científicas e as intra-científicas. É especialmente sobre estas últimas que
Bachelard mais trabalha, caso a caso, em diferentes ciências.
Uma das contribuições mais importantes de Bachelard consiste no conceito de
obstáculo epistemológico, conceito que, segundo Canguilhem, torna Bachelard "um
inovador genial" (G. Canguilhem, Études d'Histoire et de Philosophie des Sciences, 176).
Diz Bachelard: "é em termos de obstáculos que é necessário colocar o problema do
conhecimento científico" (G. Bachelard, La Formation de l'Esprit Scientifique, 13).
Entende que esses obstáculos se encontram no objeto (complexidade e fugacidade dos
fenômenos), no sujeito (fraqueza dos sentidos e do espírito humano) e no ato mesmo de
conhecer (causas de estagnação, de regressão, de inércia). Bachelard se detém nos
obstáculos que se encontram no ato mesmo de conhecer, chamado a atenção para que
aquilo que se julga saber claramente ofusca o que se devia saber, quando a idéia científica
demasiadamente familiar se torna obstáculo para levar adiante o saber. Se, por um lado, é
preciso saber para melhor interrogar, a invenção científica requer verdadeiras revoluções
espirituais. Nada mais consistente como obstáculo para o desenvolvimento da ciência do
que um conhecimento não questionado. É preciso, pois, trabalhar melhor sobre o vínculo
do desenvolvimento do saber científico com o saber constituído.
Refletindo sobre a existência de obstáculos no plano do objeto, quando esse objeto
é sociedade e quando a sociedade é dividida, se a diferenciação social que resulta dessa
divisão não é apenas superficial e secundária, mas fundamental e estruturante, a própria
divisão social objetiva cria condições materiais (objetivas) distintas, constituindo sujeitos
diferenciados e estabelecendo limites objetivos para a constituição desses sujeitos. Este
tipo de reflexão deve incluir necessariamente um grande cuidado para evitar estabelecer de
forma mecanicista as relações de determinação, especialmente a relação entre a
diferenciação social objetiva e a diferenciação de pontos de vista, com suas conseqüências
em termos de possibilidades ou impossibilidades de conhecimento objetivo. Para uma
sociologia da sociologia, tal cuidado é fundamental. Tratando dos obstáculos no objeto,
portanto, nas ciências da sociedade é preciso acrescentar à fugacidade e complexidade dos
fenômenos a divisão interna da sociedade, com a conseqüente organização diferenciada da
complexidade e fugacidade da realidade social.
Quanto aos obstáculos epistemológicos no plano do sujeito, parece-me necessário
ter presente questões relativas à ideologia e à dominação ideológica. Bachelard formula
que "diante do mistério do real, a alma não se pode fazer ingênua por decreto" (id., 14). O
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conhecimento do real nunca é imediato e pleno e a verdade, sempre aproximada, decorre
de um passado de erros. No ensinamento bachelardiano, se conhece contra um
conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal feitos. Mas, o que constitui esse
conhecimento anterior? Por um lado, o passado próprio da ciência em questão, se ela já
está constituída, ou o passado de um determinado domínio que, ao ser constituído como
científico, determina retrospectivamente como pré-científico aquele passado com o qual foi
preciso romper. Aí se encontram autores e suas "obras", caracterizando cada um desses
momentos constitutivos. Por outro lado, o conhecimento anterior inclui a opinião, que G.
Bachelard identifica com as pré-noções e é aquela que traduz necessidades em
conhecimento, não pensa e constitui, assim, o obstáculo epistemológico primeiro. A
opinião "já sabe" e nada cria mais obstrução ao processo de saber do que já saber. Esta
questão se complica quando se recorre ao conceito de cultura e, mais ainda, ao de
ideologia, porque então a opinião não é mais meramente dispersa, mas é formada, ou
conformada, como parte de processos em que o subjetivo e o objetivo se constituem
articuladamente numa formação social. Admitindo a sociedade internamente dividida e
atravessada por relações de exclusão, de exploração, de expropriação, as ideologias fazem
parte da divisão dessa sociedade e permeiam todas essas relações que a constituem. Podese
falar em dominação ideológica quando formulações compatíveis com posições
determinadas e particulares nessa sociedade são apresentadas, difundidas, inculcadas como
se fossem universais e, portanto, igualmente compatíveis com outras posições sociais
fundamentalmente diferentes. Essa universalização forjada apaga diferenças e exclui as
formas e os meios de diferenciação e, conseqüentemente e prioritariamente, os meios e as
formas de exclusão, de exploração e de dominação. Neste sentido, a subjetividade
conformada por um processo de dominação ideológica pode ser adequadamente
considerada como um obstáculo epistemológico construído como tal. Por isso que, na
presença dele, o conhecimento não se faz se não conseguir distinguí-lo e superá-lo,
rompendo com ele, num processo que de forma alguma é apenas racional, o que já é uma
nova questão. Por enquanto, fiquemos apenas em que não se trata mais somente de
reconhecer que para conhecer é preciso ir contra um conhecimento anterior, "destruindo
conhecimentos mal feitos", porque aí se permanece no interior do campo científico ou que
se pretende como parte desse campo. Os supostos conhecimentos que dão forma a uma
dominação ideológica não são conhecimentos mal feitos, nem são exclusividade de um
campo pretensamente científico. Eles atravessam a sociedade inteira, ainda que nem
sempre da mesma maneira. E mais, havendo uma ideologia dominante, é ela a
12
problemática por excelência da sua sociedade enquanto persistir como dominante, ou seja,
é ela que define o campo no interior do qual se pensa essa sociedade e se problematiza
dentro dela.
Então, todo conhecimento tem um passado, mas não se conhece, ou não se faz
avançar o conhecimento, sem ir contra o conhecimento anterior no qual foi possível
descobrir um erro. Creio que é conveniente entender essa anterioridade, não apenas no
sentido cronológico de uma seqüência de constituição de um conceito num domínio
determinado do saber, mas também, no sentido mais propriamente social, embora sempre
histórico, desse conhecimento. Em termos de uma teoria da ideologia, uma sociedade se
constitui num campo de conhecimento, ou, como diria Althusser, num campo de
conhecimento/desconhecimento, dela mesma. Esse campo de saber que se configura numa
ideologia dominante é, por assim dizer, uma primeira anterioridade, logicamente pelo
menos, para quem pretende produzir conhecimento sobre essa sociedade. Se há um
conhecimento anterior sobre o qual e contra o qual o conhecimento em processo de
constituir-se vai se fazer, e se imediatamente esse conhecimento anterior pertence ao
campo da ciência (de fato ou pretensamente), não tão imediatamente, mas também de fato,
esse conhecimento anterior remete ao campo ideológico dentro do qual se encontram os
conjuntos de conhecimentos disponíveis científica, filosófica e ideologicamente.
Essas reflexões me levam a um conceito que para mim é chave para pensar a
produção de conhecimentos, seja em que área for: o conceito de problemática. Dominique
Lécourt considera, creio que com toda pertinência, que a noção de problemática é um dos
conceitos fundamentais da epistemologia de Bachelard. Essa noção é tratada como
destaque em Bachelard, como também em Althusser e ambos a tratam nos limites estritos
do pensamento científico. Julgo que se deve acolher bem suas contribuições, mas acho que
é necessário, ou pelo menos proveitoso, ir além.
Diz Bachelard: "Tudo irá se esclarecer se colocarmos o objeto de conhecimento
numa problemática, se o indicarmos num processo discursivo de instrução" (G. Bachelard,
Le Rationalisme Appliqué, 55). Propõe como necessária a idéia “de uma problemática
antecedente a toda experiência que se pretenda instrutiva, uma problemática que se
fundamente, antes de se tornar rigorosa, numa dúvida específica, numa dúvida especificada
pelo objeto a conhecer." (id., 56). Os problemas não se colocam por si. "Antes de tudo, é
preciso saber colocar os problemas", diz Bachelard, "é necessário ter o senso do problema
". A pesquisa científica contemporânea começa com um problema, mas esse problema a
razão não detecta, é ela que o formula. Assim, o problema não pertence propriamente ao
13
plano do objeto, porque ele é resultado de uma reformulação, que, porém, se faz numa
determinada situação. Para Bachelard, "a ciência instrui a razão",..."o imediato deve ceder
o passo ao construído".(G. Bachelard, La Philosophie du Non, 144) Radicalizando sua
argumentação, Bachelard afirma que "a aritmética não é fundada sobre a razão. É a
doutrina da razão que é fundada sobre a aritmética elementar. Antes de saber contar, não se
sabia muito o que era a razão. Em geral, o espírito deve se dobrar às condições do saber.
Ele deve criar em si uma estrutura correspondente à estrutura do saber. ... Que seria uma
função sem as ocasiões de funcionar? Que seria uma razão sem as ocasiões de raciocinar?
A pedagogia da razão deve, pois, lucrar com todas as ocasiões de raciocinar. Deve procurar
a variedade de raciocínios, ou melhor, as variações do raciocínio." (id., 144-145). O
ensinamento bachelardiano é, portanto, de que é a ciência que instrui a razão, no sentido
preciso de que cada problemática científica constitui uma variação do exercício da razão.
Haveria, assim, uma razão newtoniana, diferente de uma razão einsteniana, cada qual
correspondente a uma problemática específica dentro da qual é constituída.
Ao mencionar o conceito de problemática como um dos três importantes
"empréstimos" que faz a formuladores de outras disciplinas, Althusser o vincula a Jacques
Martin (L. Althusser, Pour Marx, 24). Curiosamente, não menciona aí Bachelard. No seu
Lire Le Capital oferece com maior nitidez a noção de problemática com a qual opera. Diz
que a prática científica "não pode colocar problema a não ser sobre o campo e no horizonte
de uma estrutura teórica definida — sua problemática — que constitui a condição de
possibilidade definida absoluta, e portanto, a determinação absoluta das formas de
colocação de todo problema, num momento considerado da ciência". (L. Althusser, E.
Balibar e R. Establet, Lire Le Capital, 27).
A questão colocada pela noção de problemática decorre de duas suposições básicas.
Em primeiro lugar, a suposição de que todo conhecimento — da prática quotidiana ao
saber elaborado da ciência e da filosofia — se processa não a partir dos fatos e por meio de
mecanismos perceptivos, mas sempre e necessariamente a partir de outros conhecimentos.
Mesmo os conceitos mais rudimentares, mesmo os primeiros conceitos formados pela
criança bem pequena recorrem, no processo da sua formação, ao que a memória já
registrou, registro sem o qual não é possível reconhecer. Em segundo lugar, a suposição de
que os "outros conhecimentos" que precedem a produção do conhecimento que se forma
são organizados, ou seja, contam com uma organização, pertencem a um conjunto
articulado que possui e produz significados. Daí porque, tratando da produção do
conhecimento científico, tanto Bachelard quanto Althusser dão ênfase a este conhecimento
14
antecedente e consideram que ele, enquanto conjunto articulado, é teórico. Por isso que o
conteúdo da noção de problemática, nestes dois autores, é teórico. O próprio Althusser, no
entanto, ao definir a Generalidade I — forma pela qual ele designa a matéria-prima do
conhecimento em formação —, inclui nela tanto fatos ideológicos como conceitos
científicos, sendo estes considerados como pertencentes a uma ex-Generalidade III —
produto teórico novo de uma ciência.
Meu argumento aqui é que, se os conhecimentos disponíveis quando um novo
conhecimento se forma são organizados, como esses conhecimentos disponíveis
pertencem, pelo menos em parte, a um campo ideológico, eles estão de algum modo
inseridos na organização deste campo ideológico. Por isso que, do ponto de vista
sociológico, senão mesmo também do epistemológico, a noção de problemática deve
contemplar, além do conteúdo teórico, também um conteúdo ideológico. Suponho, ainda,
que deva existir uma articulação definida entre esses dois tipos de conteúdo.
II - A OBRA DE FLORESTAN FERNANDES COMO PONTO DE PARTIDA PARA
PENSAR UMA HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA NO BRASIL
Preciso lembrar que este é apenas um esboço de análise, e esboço preliminar, fruto
de uma primeira releitura sistemática da obra de Florestan Fernandes. Especialmente para
o objetivo de demarcação de uma problemática específica construída pela produção
sociológica de Florestan Fernandes, penso ser adequado abordá-la através de cinco planos
principais, planos em que, pelo menos no momento, me parece que ela se desdobra.
Um primeiro plano abrange um conjunto de preocupações que têm caráter éticopolítico,
como, aliás, toda a obra de Florestan Fernandes, mas em que os temas centrais
são a ciência e o intelectual (em particular a sociologia e os sociólogos), sempre tratados
em torno de uma questão central, que é a responsabilidade social do cientista, muitas vezes
apontando as tarefas que para ele se impõem na situação histórica concreta. Florestan
Fernandes aborda estas questões numa dimensão histórica e numa dimensão ética. Este
tipo de preocupação parece estar sempre presente não só na obra, como na vida de
Florestan Fernandes, orientando-o para um certo tipo de trabalho, para uma determinada
maneira de conduzir este trabalho e para o privilegiamento de certas temáticas.
Um segundo plano se refere aos objetos da pesquisa substantiva de Florestan
Fernandes. Entendo que há uma grande coerência percorrendo o conjunto dos estudos e
pesquisas que formam sua obra. A meu ver, esta coerência decorre, em primeiro lugar, do
fato de Florestan Fernandes assumir, permanentemente, o ponto de vista dos dominados,
15
no rumo de pensar, e de atuar, voltado para a transformação social. Mas não apenas porque
ele tome como objeto de estudos os dominados — o que, aliás, faz exemplarmente —, e
sim, principalmente, porque ele o faz do ponto de vista dos próprios dominados, com a
pretensão de traçar como perspectiva de construção do objeto e de adotar como perspectiva
de análise esse mesmo ponto de vista.
Não que ele tenha elaborado um projeto prévio que fosse sendo desenvolvido ao
longo do tempo. Ele mesmo esclarece que "em cada projeto estava satisfazendo a
determinados impulsos" (F. Fernandes, A Condição de Sociólogo, 84) e chega a falar em
"oportunismo na escolha dos assuntos, em função das condições do ambiente e das
oportunidades" (id., 23-24). Contudo, não é difícil entender que nem todas as
oportunidades surgidas devem ter sido aproveitadas, tendo-se oferecido possibilidades de
escolha ou de recusa, sendo que somente algumas oportunidades foram de fato admitidas
como tal e exploradas. O que me parece importante salientar, no entanto, é que, no seu
conjunto até agora, a produção de Florestan Fernandes pode ser caracterizada como
tomando como objeto o que eu chamaria de "os dominados" (termo que o próprio Florestan
Fernandes talvez preferisse substituir por excluídos, oprimidos, subalternizados),
procurando adotar a ótica da posição social dos dominados, numa grande coerência
científico/política, ou, como ele mesmo define, militante, no sentido de exercício pleno da
responsabilidade social do cidadão cientista). Assim é que Florestan Fernandes estuda: o
folclore; o índio; o negro; o Brasil ou a América Latina — enquanto sociedade de classes,
permeada, portanto, por relações de exploração e estudada do ponto de vista das classes
exploradas e dos sem-classe — e enquanto nação (ou conjunto de nações) dominada(s),
heteronômica(s), periférica(s), dependente(s); a dominação burguesa e seus limites, do
ponto de vista dos trabalhadores.
Na verdade, parece-me que o objeto privilegiado dos estudos de Florestan
Fernandes envolve os mecanismos de subalternização, as formas próprias de organização e
de resistência dos subalternizados, as possibilidades históricas da transformação dessa
dominação, as condições políticas de intervir/acelerar essa transformação.
Um terceiro plano envolve questões referentes à produção do conhecimento, por
um lado no campo das relações entre ideologia e conhecimento, discutindo as
possibilidades do conhecimento e os limites da consciência, e por outro lado no campo
mais especificamente metodológico e metateórico.
Um quarto plano é dedicado a uma das grandes preocupações de Florestan
Fernandes: a educação. Sempre a partir da compreensão do vínculo estreito entre educação
16
e sociedade, sempre na defesa da escola pública e na perspectiva de inserção das questões
da educação, em geral e da universidade, em particular, com a transformação social. Um
dos pontos que nesse plano merece sua atenção especial é a formação de sociólogos, na
qual se destaca a importância atribuída por ele ao estudo da teoria sociológica, em especial
a teoria produzida pelos clássicos, e para a qual sua contribuição é significativa não só em
termos de teoria e de método, mas também de sociologia da sociologia e de prática
profissional.
Um quinto plano inclui as reflexões e as intervenções de caráter especificamente
político, dotadas de rigor e de coerência raros, tanto no sentido teórico, quanto no sentido
prático e que singularizam a dimensão ética e a integridade pessoal, intelectual e política
de Florestan Fernandes.
Compromisso Ético da Ciência e Responsabilidade Social do Cientista (uma primeira
aproximação)
Se há um referencial constante em todo o pensamento de Florestan Fernandes é o
desenvolvimento capitalista, sempre e em primeiro lugar na sua estrutura e na sua dinâmica
em geral, internacional e, sempre em relação com elas, na sua especificidade periférica ou
dependente. Quando se preocupa com a sociologia como ciência e com o sociólogo como
intelectual socialmente responsável, Florestan Fernandes o faz contextualizando a ciência e
o cientista na sociedade burguesa, destacando as exigências e as seduções do poder
burguês e, por outro lado, os interesses de classe, diferenciados, as possibilidades e os
limites de racionalidade da atividade científica e o que entende como tarefas decorrentes
do compromisso ético do intelectual enquanto intelectual.
Há dois temas que sobressaem como organizadores nesse campo: a contaminação
burguesa do trabalho intelectual e a dependência cultural. A eles contrapõe a autonomia
intelectual, bem como uma concepção da ciência enquanto intrinsecamente revolucionária
e do intelectual responsável e comprometido com a liberdade. Entende que o "primeiro ato
de autonomia intelectual do sociólogo desenha-se nesse plano de auto-afirmação como e
enquanto cientista: a ciência o compromete eticamente tanto com os seus critérios de
verdade (e de verificação da verdade), quanto com as transformações do mundo que
possam resultar da aplicação de suas descobertas". (F. Fernandes, A Sociologia no Brasil,
129).
O desenvolvimento da ciência sob o capitalismo é tratado em termos de
"contaminação burguesa". Para Florestan Fernandes, "a sociedade capitalista expôs a
17
ciência (e com maior razão a tecnologia, que possui essa função) a uma relação
instrumental com a defesa e o fortalecimento da ordem — com a consolidação e a
perpetuação da burguesia como classe dominante (e de modo tanto mais intenso e
conservador e violento quanto essa dominação passou a ser mais ameaçada). O que
significa que o elemento revolucionário, intrínseco à ciência e à tecnologia baseada na
ciência, é cortado, inibido, neutralizado, ou congelado de acordo com interesses ou com
valores que não partem do horizonte intelectual do cientista ou do tecnologista, mas que se
impõem a partir da base econômica, da organização social e dos dinamismos políticos da
sociedade capitalista.
A contaminação burguesa visível ou invisível do pensamento racional intrínseco à
ciência e à tecnologia científica opera nesse plano irremediável... A ciência e a tecnologia
científica convertem-se em servas de um sistema de dominação e de poder, a tal ponto que
elas realizam, dentro e sob o capitalismo, essa dominação e esse poder." (F. Fernandes, A
Natureza Sociológica da Sociologia, 24). Há nesse pensamento uma clara oposição entre a
racionalidade histórica da burguesia (que se transforma de acordo com os momentos
históricos que a própria burguesia constrói quando conquista revolucionariamente o poder
e depois quando o consolida e se torna classe dominante) e a racionalidade tida como
intrínseca à atividade científica (que é facilitada ou é cerceada em cada um daqueles
tempos históricos distintos).
Essa reflexão se estende, naturalmente, à sociologia. Florestan Fernandes entende
que "a burguesia revolucionária precisou da sociologia, como 'técnica de autoconsciência',
de previsão histórica e de ação social construtiva. No momento atual, de contra-revolução,
as burguesias do 'centro' ou da 'periferia' não apelam mais para a imaginação criadora dos
cientistas sociais. Elas dependem de uma tecnologia incorporada à ordem e que gravita em
torno do terror organizado e institucionalizado, para o qual o sociólogo só interessa se
deixar de ser um investigador, para ser um 'funcionário'." (F. Fernandes, A Sociologia no
Brasil, 127). Assim, os vínculos da sociologia com a sociedade mostram desde o início um
forte comprometimento com a ordem. Florestan Fernandes chega mesmo a dizer que, "em
linguagem de Gramsci: os sociólogos nascem como 'intelectuais orgânicos da ordem'." (F.
Fernandes, A Natureza Sociológica da Sociologia, 26).
Analisando "como a alteração do status da burguesia repercute no íntimo do
'pensamento burguês'", afirma: "como classe dominante, a burguesia deixa de ser portadora
de uma imagem revolucionária da 'transformação do mundo'. Nem por isso ela podia aderir
a uma 'visão estática do mundo'. Deixar de ser portadora de uma teoria crítica da
18
sociedade, é uma coisa; atrelar-se a um pensamento 'historicamente vazio', outra. Não
podemos nos esquecer de que o aparecimento da sociologia coincide com a consolidação
da burguesia como classe dominante. Uma classe dominante 'em consolidação' necessita de
uma teoria da sociedade dotada de um mínimo de racionalidade e de historicidade. Em
contraponto, a negação da ordem procede das fissuras da classe dominante. A pressão de
baixo para cima oferece uma base material para a aceitação e a propagação de uma teoria
da sociedade dotada de um mínimo de crítica da sociedade 'anti-burguesa'." (id., 20)
Deixando de lado, por enquanto, a afirmação de que "a negação da ordem procede das
fissuras da classe dominante", afirmação que precisa ser cotejada com outras do próprio
Florestan Fernandes sobre o mesmo tema, quando estuda especificamente essa questão da
relação de classes, o que sobressai aqui é sobretudo a relação muito íntima entre sociologia
e burguesia. Florestan Fernandes fala em "infiltração direta e maciça de idéias, ideais,
valores, ideologias e utopias burgueses" na sociologia, caracterizando "a contaminação
burguesa do pensamento sociológico" como uma "fatalidade histórica". (id. 25). Pensando
na fase considerada clássica da sociologia, entende que então a contribuição dos sociólogos
se relacionava com "a hegemonia cultural e com a eficácia política daqueles setores
(burgueses) na sociedade global. Por essa razão, ela vem tão impregnada — e fica assim
até hoje, em muitas de suas correntes — de componentes liberal-conservadores de
legitimação da ordem, de reforço ideológico da dominação burguesa, de mistificação ou
ocultamento das bases materiais do sistema capitalista de poder (e, especialmente, de suas
fissuras, contradições, catástrofe potencial, etc.). Indo mais ao fundo dessa conexão: a
sociologia se propunha descobrir 'alternativas' para o uso racional dos recursos materiais e
humanos da sociedade em um momento dado e para a seleção racional de transformações
inevitáveis, dentro de uma estratégia de defesa e consolidação da ordem existente (note-se:
segundo gradações que vão do reacionarismo ao conservantismo e ao reformismo). O que
fez com que as manifestações centralmente burguesas do pensamento sociológico tivessem
funções científicas determinadas (como codificação abstrato-formal de polaridades
ideológicas e, mesmo, utópicas do 'movimento burguês', reacionário, conservador ou
reformista-radical)." E conclui: "Esses aspectos da formação do pensamento sociológico
têm sido negligenciados pelos historiadores da sociologia." (id. 26). Deste modo, a pressão
da sociedade para a formação e a consolidação da sociologia como ciência é, de fato,
essencialmente pressão burguesa, que, por isso mesmo, no entendimento de Florestan
Fernandes, se estimula, também limita o desenvolvimento desta ciência.
19
"Queiramos ou não", diz Florestan Fernandes, "sob o capitalismo e dentro de uma
sociedade capitalista ('forte' ou 'fraca'; 'democrática' ou 'autocrática'), os controles externos
e a repressão da imaginação criadora corroem tanto a sociologia como ciência, quanto os
papéis intelectuais construtivos do sociólogo". (id., 13). Mas isso não é tudo, claro. Porque,
afinal, a sociedade burguesa é uma sociedade de classes, portanto diferenciada,
contraditória. Florestan Fernandes entende que "a sociologia reflete o caráter antagônico da
civilização capitalista". Para ele, "a sociologia não se estilhaçou em nossos dias. Ela nasceu
estilhaçada e não poderia ser diferente, dada a sociedade que a engendrou e os dilemas
sociais que ela enfrentava." (id., 27) Se a sociologia nasce com a implantação da ordem
burguesa e serve a ela, como a sociedade burguesa é "estilhaçada", a sociologia reflete esse
estilhaçamento. É ainda por meio da noção do "estilhaçamento" objetivo da realidade
social capitalista que Florestan Fernandes lida com as divisões teóricas e metodológicas
que a sociologia apresenta. Diz ele "...o referido estilhaçamento tem uma função
construtiva. Graças a ele, antes do aparecimento do relativismo na física e na química, as
ciências sociais exploraram os vários caminhos e conseqüências que resultam de uma
compreensão adequada e das soluções das implicações da posição do sujeito na
investigação científica". (id., 27-28) É por aí que busca explicação para o desdobramento
das várias problematizações dos diferentes sociólogos. Pergunta-se ele:
"Por que tantas tendências e tantas 'pugnas' teóricas ou metodológicas dentro da
sociologia? Eis o fato capital: antes da crise do capitalismo e de sua civilização, as
contradições do capital industrial, do regime de classes e do Estado capitalista cindiram
irremediavelmente a sociologia, tanto metodológica, quanto lógica e ontologicamente."
(id., 28). E continua: "Se a sociedade capitalista não fosse intrinsecamente antagônica, as
diversas problematizações da sociologia e as 'soluções metodológicas' correspondentes
convergiriam para uma superposição e uma coordenação em termos de
complementaridade, de imediato, e de unificação teórica, a médio prazo." (id. 29).
Reafirma, assim, que "a fratura da sociedade reproduziu-se na fratura da ciência". (id. 29)
Persistindo nesse nível de subordinação das idéias (no caso, uma ciência específica) à
"realidade objetiva" coloca, de um lado "estilhaçamento" teórico e metodológico, podendo
ou não, e devendo ou não, estabelecer uma relação de complementaridade entre os
"estilhaços"; e de outro lado, a "unificação teórica". Considera que tal unificação teórica
"não pode ser proposta apenas como um problema epistemológico, já que o estilhaçamento
da sociologia só pode ser superado após a desagregação da ordem social antagônica
existente". (id. 27-28). Quer dizer, enquanto a sociedade for dividida (o conceito
20
subjacente à sua análise é o conceito de sociedade de classes), a sociologia será também
irremediavelmente dividida entre tendências, para as quais, porém, curiosamente, Florestan
Fernandes aponta a possibilidade de tratamento em termos de complementaridade, o que
foge drasticamente da sua própria compreensão do tipo de relações existentes ao nível da
realidade social nas sociedades de classes, que absolutamente não são tidas como de
complementaridade, mas de exclusão, exploração, dominação. Esse é um problema
importante a esclarecer no pensamento de Florestan Fernandes, num estudo que, porém,
cabe melhor no plano das suas preocupações especificamente metodológicas e
metateóricas.
Só como indicação de mais uma dimensão a considerar nesse mesmo problema, a
solução que fica até então apontada é a da unificação teórica e metodológica e não
qualquer tipo de confronto no plano científico entre a diferentes "explicações", com a
localização de avanços e de recuos e com alguma possibilidade de superação de corpos
teórico-metodológicos sobre outros corpos teórico-metodológicos. E essa unificação
parece depender inteiramente da existência real de uma sociedade unificada, pensada como
um futuro possível, e desejado, para além de uma revolução capaz de abolir efetivamente a
sociedade de classes.
Todas essas determinações mais gerais sobre a sociologia e o papel dos sociólogos
são pensadas através da origem e do pertencimento de classe desses intelectuais e dos
mecanismos institucionais dentro dos quais exercem o seu ofício. No seu belo trabalho
sobre "A geração perdida", Florestan Fernandes esclarece várias das indagações que vimos
de fazer. Numa análise concreta como esta, não só as classes, mas os conflitos de classe e
as contradições emergem, dando densidade explicativa à análise. E a participação ativa e
efetiva nestes conflitos e nestas contradições se torna decisiva para a compreensão das
potencialidades e dos limites da atividade intelectual. Diz Florestan Fernandes: "Nenhuma
geração escapa às limitações da sociedade a que pertence. E concretamente se se trata de
uma sociedade de classes, nenhuma geração pode compensar, por si mesma, as debilidades
dos conflitos de classe ou a sua sufocação, se elas existirem como realidade histórica.
Quando estamos sob a égide do capitalismo, as gerações só podem dar contribuições mais
ou menos ricas e revolucionárias em função dos antagonismos irreconciliáveis em que se
imiscuírem, não por si mesmas, mas por suas vinculações com a irrupção e a violência
construtiva dos conflitos de classe". (F. Fernandes, A Sociologia no Brasil, 239 - grifado
por mim, M.L.C.). A análise não se faz mais somente relacionando, abstratamente, idéias
de um lado, e realidade objetiva de outro, esta determinando aquelas. O que aparece em
21
determinados escritos como determinação que parece simples e direta, aqui se esclarece e
alcança um outro nível, em que é a participação ativa que estabelece os nexos através dos
quais aquela determinação se realiza e em que o plano das idéias também pode
desempenhar um papel ativo no processo de determinação, que, portanto, já não é mais
simples, nem direto, nem pleno.
As condições objetivas do exercício da atividade intelectual, as identificações
sociais (sempre ao mesmo tempo políticas) dos intelectuais e sua base institucional, além
dos mecanismos de cooptação dos intelectuais, demarcam os limites da sua liberdade de
imaginação e de criação, bem como do seu radicalismo e da sua autonomia intelectual.
Refletindo sobre sua própria geração, Florestan Fernandes a localiza socialmente: "a
maioria dos intelectuais tinha uma origem de classe pequeno-burguesa ou burguesa".
Lembra "a ambivalência das classes médias, que tendem a oscilar para opções nascidas das
classes dominantes" e recorda que "o que os setores médios realmente queriam no Brasil,
no fim do Império e durante todo o período 'republicano'" era "pura e simplesmente,
desnivelar o privilégio, ter acesso ao privilégio, ao poder de mando ou de decisão que ele
conferia". (id. 240). As conclusões a que a análise produzida nesses termos conduz
permitem desnudar duramente, pelo menos aquela geração de intelectuais, descobrindo,
como diz Florestan Fernandes, "algo que não é muito agradável. Um radicalismo de classe
média insosso e informe, intrinsecamente oportunista, frágil e covarde, pronto a compor-se
com as manipulações conservadoras ou reacionárias das elites das classes altas e
dominantes. Como parte dessa classe média e de sua 'falta de tradição política' — tratavase
de um setor médio em aparecimento e em crescimento — o intelectual que tinha essa
origem não se dispunha a separar, brusca e radicalmente, a sua posição como intelectual da
sua posição de classe. Ao contrário, aquela servia de base material para a ascensão, a
manutenção ou a melhoria desta. Cumpria, acima de tudo, preservar ou adquirir um estilo e
um padrão de vida que convertia o intelectual em prisioneiro de sua classe e de sua
situação de classe... Um radicalismo intelectual 'puritano' e 'inconformista', dentro dos
muros da instituição: sim! Um intelectualismo radical que ameaça e destrói a posição de
classe: não! Mesmo restringindo a descrição aos fatos mais evidentes, por aí se vê por que
nem toda a geração se radicalizou intelectualmente, a ponto de assumir coletivamente a
atitude política inerente à parte militante da intelligentsia crítica, e por que, no fundo, tão
poucos foram verdadeira e congruentemente inconformistas na esfera do pensamento, da
imaginação e da ação". (id., 240-241). Se por um lado, a sociedade pede "a participação
apologética do intelectual" (F. Fernandes, A Condição do Sociólogo, 55), por outro lado
22
"os próprios. intelectuais minam a 'liberdade intelectual' e a 'responsabilidade do cientista
social', pois, na medida em que estão presos umbilicalmente aos interesses das profissões
liberais e às posições elitistas, atuam na prática como forças de manutenção e de
fortalecimento da democracia restrita". (id., 163-164). Deste modo, por sua origem e sua
posição de classe, tendem em geral a desenvolver, quando muito, um radicalismo intramuros
institucionais, tratando instrumentalmente o pertencimento ao quadro "dos
intelectuais" como forma de ascensão social individual e de fortalecimento da ordem.
Nesse sentido, a base institucional se convertia "na cidadela de um inconformismo
intelectual que não pretendia 'agredir a sociedade', mas apenas fornecer-lhe uma alternativa
de transformação cultural e de compreensão de si mesma". (F. Fernandes, A Sociologia no
Brasil, 242). As análises que Florestan Fernandes produz sobre o espaço institucional,
principalmente a universidade, são complexas e merecem atenção detida. Alguns pontos
precisam ser melhor esclarecidos. Aqui ele fala na instituição enquanto cidadela de um
inconformismo intelectual restrito e intra-muros, o que está de acordo com a análise da
estrutura espacial da USP, segundo ele "montada para facilitar o isolamento, para
pulverizar o intelectual" (F. Fernandes, A Condição de Sociólogo, 143). Mas, pelo menos
numa primeira aproximação, não parece estar tão de acordo com a idéia de que "o
intelectual podia ser mais radical no plano externo, de sua relação com a sociedade, que no
plano interno, de sua relação com a instituição inovadora (na universidade), pois dentro
desta o poder de controle conservador era mais concentrado e perigoso", o que traz o efeito
negativo de que "as 38 opções ideológicas 'conservadoras', 'liberais' e 'radicais-liberais' são
toleradas e expõem os estudantes a uma irradiação sistemática de ideologias compatíveis
com a ordem, com o controle conservador do poder e com a chamada 'neutralidade ética'
do intelectual, algo incompatível com a atitude política de qualquer intelligentsia
militante". (F. Fernandes, A Sociologia no Brasil, 228,229). Parece-me que Florestan
Fernandes está tocando em algumas das especificidades e contradições da nossa
universidade, espaço institucional que abriga um certo inconformismo dentro da ordem e
limitado pelo próprio espaço institucional, o que é muito pouco diante das exigências de
liberdade e de crítica do exercício pleno da função intelectual, mas que, por outro lado, em
certas circunstâncias históricas de fragilidade da situação social e cultural, pode se
constituir em refúgio para intelectuais que ficam "à mercê de artifícios para abrir um
espaço cultural e político suscetível de alimentar as expressões de imaginação criadora
verdadeiramente inconformistas ou revolucionárias". (id, 239).
23
Seguindo esta última linha de análise, Florestan Fernandes mostra "porque os
intelectuais surgidos com a Universidade de São Paulo se empenharam com tanto ardor em
explorar a vida institucional, com seu espaço cultural e político, para inovar. Sob certos
aspectos, com eles ocorre a primeira coincidência de uma geração ter a possibilidade de
proteger-se pela segregação espacial e pelo isolamento cultural: a instituição, sob o manto
mascarado e mistificado do elitismo cultural, introduzia no meio ambiente vias próprias de
liberdade de pensamento, de ousadia criadora e mesmo de 39 rompimento com os
'costumes' ou com a 'ordem'." (id., 239). Mas adverte: "Não era a ordem burguesa que
conferia essa liberdade e essas possibilidades; elas apareciam como uma conexão do
elitismo, do fato de as 'escolas superiores' sempre terem sido instituições conservadoras e
da inexperiência intelectual das classes dominantes na era em que a eclosão modernizadora
de São Paulo rasgava um clarão em uma sociedade de classes tão provinciana e parca de
'inquietação burguesa'." (id., 239-240). No fundo, o que parece mover Florestan Fernandes
nessas análises é sua preocupação fundamental com as possibilidades e os limites da
autonomia intelectual e do grau de liberdade que o intelectual consegue, social e
institucionalmente, para o exercício da sua função.
Com todo o condicionamento histórico, social e institucional, Florestan Fernandes
trabalha com a idéia de uma caracterização própria da atividade científica e da atividade
intelectual, no sentido de que há papéis que são inerentes à função intelectual e
características que são inerentes ao fazer ciência. E esses papéis e essas características
envolvem liberdade, crítica e compromisso social contra a dominação, a opressão, a
exploração. Florestan Fernandes é claro é incisivo a respeito. Diz: "Não compartilho da
idéia-refúgio de que a 'neutralidade científica' e a 'condição profissional' isentam o
sociólogo da responsabilidade intelectual e política (não só como um 'momento de opção
moral ou teórica', mas também como um 'momento de opção prática': o que quer dizer que
defendo toda a carga possível da saturação-limite dos papéis intelectuais dos sociólogos —
não servos do poder, porém agentes do conhecimento e da transformação do mundo)". (F.
40 Fernandes, A Natureza Sociológica da Sociologia, 15). O entendimento de Florestan
Fernandes vai no sentido de que aquela responsabilidade intelectual e política a que se
refere alcança a própria sociologia como ciência. Assim é que, segundo ele, "depois de
muita mistificação sobre a 'neutralidade científica' e sua implicações, o sociólogo descobre
que a explicação sociológica, ao nível macro-histórico, não pode ser dissociada do
pensamento crítico e de uma posição militante sem se preverter". (Florestan Fernandes, A
Sociologia no Brasil, 125). Ciência e ordem social iníqua aparecem como eticamente
24
incompatíveis. "Há os que 'defendem a ordem', e assim prolongam a própria crise; e há os
que 'aceleram a história', e assim aprofundam a crise para se verem livres dela e de suas
iniqüidades." Diante disso, Florestan Fernandes afirma: "Eu próprio estou deste lado, que
me parece intrínseco à opção com a qual o cientista deve se identificar, qualquer que seja o
seu campo de especialização. Uma ordem social que se torna o reduto do pensamento
reacionário e a base material da opressão institucionalizada divorcia-se por completo e
definitivamente do pensamento científico. Não se pode, em nome da ciência, conviver com
ela. A verdadeira ciência começa, então, com a pergunta: como enfrentar e destruir, da
maneira mais rápida possível, essa ordem social?" (id., 128) Há aí não apenas uma
identificação da "verdadeira ciência" com a transformação social, mais num sentido que
não se esgota na explicação teórica, porque há mais do que meramente uma sugestão para
o seu desdobramento numa prática que Florestan Fernandes identifica como "militante".
Aprofundando a análise sobre a neutralidade ética do cientista, Florestan Fernandes
acaba por identificar nela uma forma de controle do poder estabelecido sobre a ciência e a
tecnologia. Afirma que, "de fato, não existe tal neutralidade e ela é incompatível com o
raciocínio científico, que exige, preliminarmente, a rejeição consciente de toda e qualquer
contaminação que os idola possam levar à explicação científica e ao uso racional de suas
descobertas. Aí está, em seu sentido mais elementar, o caráter intrinsecamente
revolucionário do raciocínio científico e porque a 'neutralidade ética' acaba se impondo
como uma condição de controle externo da ciência e da tecnologia científica pelos idola
consagrados pelo capitalismo e pelo monopólio burguês do poder." (id. 129).
Esse campo de preocupações de natureza ético-política tem repercussões em todos
os demais planos da atividade de Florestan Fernandes. Amparado nessas concepções do
compromisso ético e da responsabilidade social histórica da ciência e do cientista,
Florestan Fernandes é construtor e articulador de um projeto, que é profissional, mas
também é político. É um projeto intelectual ao mesmo tempo ambicioso e exigente, que o
torna um produtor e um propulsor de uma ciência comprometida com padrões rigorosos e
de alta qualidade — com a conseqüente proposta de formação compatível com esse nível
científico — e com uma produção científica relevante não apenas para o desenvolvimento
científico, mas também e necessariamente relevante socialmente.
Diz ele, numa definição bem clara e direta: "minha atividade sociológica, como eu
a entendo e pratico: um meio de relação crítica com a sociedade brasileira e de confronto
com os dilemas históricos de nossa época." (F. Fernandes, Circuito Fechado, 1).
25
Como o vínculo institucional que estabelece com a USP foi fundamental para a
definição das linhas de pesquisa e para a maneira de proceder para desenvolvê-las, não só
metodologicamente, como também organizativamente, é bom lembrar como ele próprio
pensou o desdobramento dessa produção. Diz que, "em termos dos sociólogos que
brotaram da chamada experiência paulista, a evolução mencionada envolve três etapas de
desenvolvimento histórico-sociológico da sociologia:
1) precisão científica: o essencial era 'fazer ciência': implantar a sociologia e a investigação
sociológica em nosso meio, segundo os cânones mais rigorosos do raciocínio científico;
2) atividade negadora: a 'ciência' e a 'investigação sociológica' exigiam reflexão crítica — e
reflexão crítica metódica, sistemática, pela qual submetíamos a sociedade brasileira a um
novo crivo crítico. Portanto, o fim da década de 50 e o começo da década de 60 marcam a
existência de um pensamento sociológico propriamente dito no Brasil. Ligado com a
sociologia clássica e com as correntes contemporâneas da sociologia, mas centrado, como
pensamento crítico e negador, na análise da sociedade de classes do capitalismo periférico,
dependente e subdesenvolvido;
3) atividade política concreta: a sociologia que havíamos construído servia-nos, agora,
como escora: com o pensamento crítico e negador tínhamos uma posição militante. ...A
sociologia passa, pois, de autoconsciência crítica à condição de arma de combate. Isso não
abrangia a todos, nem era para todos,... À pressão científica e à atividade negadora foi
adicionada a atividade política concreta, por intersticial, pulverizada, insatisfatória que ela
seja". (F. Fernandes, A Natureza Sociológica da Sociologia, 16-17).
Estou convencida de que tal projeto, tantas vezes confundido com
uma "escola", que seria a suposta "escola paulista de sociologia", através de sua
formulação e de seu desenvolvimento objetivo, que produziu obras e ações variadas,
constituiu uma problemática própria específica, singular. É para a identificação desta
problemática que meu atual projeto de pesquisa se volta, problemática que espero possa ser
caracterizada na sua particularidade, com os temas e problemas que privilegie, com as
formas de problematização com as quais opere preferencialmente e com as diferenciações
que estabeleça com outras problemáticas que a antecedem e a sucedem.
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