quinta-feira, 8 de novembro de 2012

CAÇA AOS TESOUROS NAUFRAGADOS










ISSN 1807-1783 atualizado em 09 de novembro de 2004













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O futuro do passado ameaçado



por Gilson Rambelli







George F. Bass, Gilson Rambelli e Pilar Luna



Reflexões sobre a Carta “Arqueólogos, mergulhadores desportivos e caçadores de tesouros”, de George F. Bass, de 1984







Há 20 anos, no dia 12 de outubro de 1984, George F. Bass [1] encaminhava uma carta de apoio à Legislação Federal em prol do Patrimônio Cultural Subaquático nos Estados Unidos da América. Esta passou pela Câmara dos Representantes, mas morreu no Senado. Publicada no ano seguinte em Perspectives (Journal of Field Archaeology, Boston, 1985), cujo conteúdo expressa argumentos que contestam os discursos utilizados pela caça ao tesouro como justificativa de atuação, resolvemos reproduzi-la em História e-História.







O texto está apresentado na íntegra, para que o leitor – já familiarizado e/ou familiarizando-se com os problemas que envolvem está temática no Brasil – tire suas próprias conclusões. Podemos dizer que os argumentos utilizados por Bass na época podem muito bem ser empregados hoje em nosso país. Isso devido a atual realidade brasileira que segue as determinações impostas pela caça ao tesouro e não pela ciência arqueológica. Desta forma, cabe chamar atenção para o discurso dos caçadores de tesouros no Brasil que é idêntico ao de 20 anos atrás e, portanto, pouco criativo, mas, infelizmente, eficiente.







Assim, vale a pena ler a Carta de Bass e fazer uma reflexão! Principalmente neste momento (última semanas) em que a mídia continua informando sobre a Arqueologia Subaquática erroneamente. É lamentável que o Patrimônio Cultural Subaquático ainda seja compreendido pelos meios de comunicação, apesar da produção científica nacional, como objetos exóticos recolhidos do fundo do mar para, simplesmente, ilustrar em museus a história trágico-marítima.



Ora, enquanto este equívoco se mantiver, a presença de "aventureiros" em nosso litoral vai continuar parecendo algo normal e interessante, sem expor a ameaça que de fato representa à memória coletiva nacional.







Sobre os projetos que ocuparam, nas últimas semanas, espaços preciosos em jornais, revistas (impressos e eletrônicos), e, até mesmo, em noticiários de TV, poderíamos perguntar: Qual o objetivo de fato destas pseudo-pesquisas que envolvem em alguns casos renomados aventureiros internacionais? O que se pretende produzir de conhecimento (e não estamos falando de colocar objetos em museus)? Quem é o arqueólogo responsável ou quem são os arqueólogos responsáveis por esses projetos arqueológicos, pois as matérias intitulam essa ciência e esses profissionais e, em nenhum momento, citam-nos e/ou os entrevistam?







Talvez as respostas para essas nossas perguntas possam ser encontradas na Lei Federal 10.166, de 27 de dezembro de 2000, que permite a exploração comercial desse nosso patrimônio cultural, ou seja: o lucro! A compreensão da construção deste momento histórico acarretado por essa Lei, que favorece uma minoria em detrimento de uma maioria (leia-se humanidade), se tornará evidente com a leitura da Carta de Bass.







Acreditamos que nossa legislação (que se estrutura no velho discurso da caça ao tesouro), além de ferir a Constituição Brasileira de 1988 e de colocar o Brasil na contramão do mundo, é o que justifica o "interesse científico" desses não arqueólogos (brasileiros e estrangeiros) em fazer esta "pseudo-Arqueologia Subaquática" em nossas águas.







Cabe aos arqueólogos gritarem, uma vez que as autoridades fingem não escutar, para que a sociedade brasileira – principal prejudicada – manifeste-se e consiga mudar este quadro. É importante deixar claro que a Arqueologia Subaquática é atribuição da Arqueologia, não se trata de outra ciência. Ou se entende isso, ou nossos bens culturais submersos irão desaparecer literalmente embaixo de nossos olhos sem que saibamos nada sobre eles, para ficarem, quando muito, expostos em museus aos olhos de quem, sem conhecer a realidade, observa peças do “fundo do mar” e, sem imaginar, contempla a verdadeira tragédia da nossa história marítima: a ganância destruindo nosso passado.







Segue a Carta de Bass:







“Arqueólogos, mergulhadores desportivos e caçadores de tesouros” [1]



Gostaria de expressar os meus pontos de vista em relação ao Projeto de Lei 1504 do Senado. Para fins de identificação, sou fundador e Diretor de Arqueologia do Institut of Nautic Archaeology, e Professor Emérito de Antropologia da Universidade do Texas A & M; além disso, dirigi a primeira escavação completa dos restos de uma embarcação naufragada no fundo do mar (1960), desenvolvi muitas das técnicas de registro arqueológico que fizeram da Arqueologia Subaquática uma busca científica e estive envolvido na descoberta de dezenas de embarcações antigas.



Os opositores ao Projeto de Lei 1504 do Senado (e ao 3194, seu equivalente na C.R.) baseiam muitos dos seus argumentos em pressupostos errôneos ou, em alguns casos, em mitos da sua própria invenção. Gostaria de corrigir algumas declarações que tenho lido ao longo dos anos.







1. Os caçadores de tesouros reclamam continuamente a livre iniciativa, como se dela tivessem o monopólio.



O Institut of Nautical Archaeology opera por todo o mundo sob o sistema da livre iniciativa. A maior parte de seus recursos financeiros provém de gente de negócios que investe na busca de conhecimento; esta atrai dinheiro ao propiciar um bom produto. Todo o pessoal do Instituto prescindiu de melhor remuneração, de empregos com maior segurança, para trabalhar abaixo do limiar da pobreza, apostando em pleno êxito do Instituto. Causa estranheza, no entanto, ler que os caçadores de tesouros são “pobres diabos” tentando levar, com muito esforço, uma vida decente, desprotegidos pelo guarda-chuva financeiro do governo e das instituições acadêmicas.



Deve-se dizer que os homens que legal, mas inadvertidamente, derrubaram templos gregos para da pedra fazerem cal, em séculos recentes, também representavam a livre iniciativa. Hoje, a sociedade lamenta os seus atos.



A controvérsia nada tem a ver, portanto, com a livre iniciativa.







2. Muitos mergulhadores amadores opõem-se ao Projeto de Lei porque o acham muito restritivo.



Eu dirigi prospecções subaquáticas na costa italiana e não encontrei nada; restos de naufrágios após restos de naufrágios, todos os sítios arqueológicos foram destruídos e pilhados por caçadores de suvenires amadores e por saqueadores profissionais. Alguns destes sítios contiveram, durante muito tempo, vestígios de navios fenícios, e assim o mundo viu desaparecer as possibilidades de saber como é que os mais famosos marinheiros antigos construíam seus navios – e futuras gerações de mergulhadores recreativos italianos perderam a oportunidade até mesmo de verem destroços de navios antigos. Eu diria que, enquanto é tempo, os mergulhadores amadores norte-americanos deveriam trabalhar para proteger restos de naufrágios históricos tal como tem de proteger os recifes de coral e proteger o peixe de caçadores submarinos, ambos estranhos ao seu interesse pessoal. Que alternativa sugerem eles?







3. Alguns mergulhadores amadores sentem que os arqueólogos profissionais se opõem a que eles tenham qualquer papel na Arqueologia dos navios afundados.



Eu nunca trabalhei sem mergulhadores amadores entre o meu pessoal. O atual Presidente do Institut of Nautical Archaeology, iniciou sua carreira como mergulhador amador voluntário, durante vários verões; os melhores graduados em Arqueologia Náutica da Universidade do Texas A&M envolveram-se inicialmente nas nossas escavações como mergulhadores amadores.



O arqueólogo Alan Albright, do Instituto de Arqueologia e Antropologia da Universidade da Carolina do Sul, tem um fantástico recorde de cooperação entre a sua equipe profissional e os mergulhadores amadores voluntários de seu Estado, na vanguarda da melhor Arqueologia sobre os navios afundados nos Estados Unidos. O seu modelo merece atenção.



A maior parte dos mergulhadores que atualmente escavam um dos restos náuticos do General Cornwallis em Yorktown, na Virgínia, são voluntários amadores.



O problema é que a maior parte das pessoas não compreende a verdadeira natureza da Arqueologia Subaquática. Apesar de eu ter sido responsável por cerca de vinte mil mergulhos profundos, com descompressão, sinto que mergulhar não é mais importante para a Arqueologia Subaquática do que é dirigir um jipe para a Arqueologia em terra. O nosso pessoal gasta em média dois anos em conservação, ilustração, fotografia, investigação e publicação para cada mês de mergulho; em outras palavras, o mergulho é a mais barata e a mais breve parte da escavação de um navio afundado, embora atraia mais a atenção pública porque é fotogênico. Geralmente, os arqueólogos subaquáticos amadores têm falta de verbas e de tempo para levar adiante as etapas posteriores essenciais, sem as quais a escavação é simples destruição.







4. Os caçadores de tesouros argumentam que os restos de embarcações naufragadas são ameaçados pelos furacões e outras tempestades, a menos que sejam escavados (“salvos”) depressa.



Isso não é verdade, como um dos maiores especialistas em ondulação marítima do Departamento de Oceanografia da Universidade do Texas A&M demonstrou. No Caribe, eu verifiquei que os restos de naufrágios, mesmo os localizados a pouca profundidade, tinham se estabilizado a dado momento no passado e sofrem apenas pequenos estragos adicionais em subseqüentes tempestades.







5. Os caçadores de tesouros justificam que a única maneira de pagar a enorme despesa de uma recuperação subaquática é através da venda de artefatos.



Isto ignora totalmente as excelentes escavações que eu e os meus colegas realizamos nos quatro continentes durante os últimos 23 anos, sem que tivesse sido vendido o mais ínfimo fragmento de cerâmica ou madeira; esses projetos incluíram a dispendiosa conservação e restauro de cascos de madeira, coisa que os caçadores de tesouros nunca pagaram. Colegas arqueólogos da França, Austrália e outros países estão analogamente fazendo trabalho de primeira qualidade sem vender artefatos; as lascas de madeira do Mary Rose, na Inglaterra, assumidamente vendidas como recordações, para ajudar o seu salvamento e sua conservação, são a única exceção a esta regra.







6. Os caçadores de tesouros têm argumentado que não há necessidade de escavar cuidadosamente os cascos de madeira dos navios naufragados do Novo Mundo porque, ao contrário do Mediterrâneo, não estão suficientemente preservados para merecer cuidados, devido ao fato de se encontrarem a pouca profundidade e em áreas de arrebentação.



Mais uma vez, mentira. Os caçadores de tesouros alegam isto menos freqüentemente, agora que eu e os meus colegas começamos a trabalhar no Caribe, onde vi cascos de embarcações a cinco metros de profundidade em zona de alta energia, tão bem preservados como qualquer um em que trabalhei no Mediterrâneo, a 30 ou mais metros de profundidade.



Infelizmente, continuo a ver filmes de madeiramentos bem preservados sendo brutalmente desconjuntados no Caribe por “defletores de turbulência”[2], usados rotineiramente pelos caçadores de tesouros na busca de artefatos vendáveis.







7. Os caçadores de tesouros invocaram que não há necessidade de escavar cuidadosamente cascos de navios naufragados do Novo Mundo porque existem nos arquivos espanhóis planos detalhados de navios espanhóis.



Outro mito. Nós sabemos mais sobre a construção dos barcos gregos e romanos do que sobre os barcos da era das grandes navegações, como os usados por Colombo, porque os cascos foram escavados cientificamente no Mediterrâneo em vez de serem destruídos pelos caçadores de tesouros.







8. Os caçadores de tesouros divulgaram este ano na imprensa que desenvolveram 90% do equipamento utilizado para escavação subaquática.



Os caçadores de tesouros não desenvolveram equipamento de mergulho, câmaras subaquáticas, sugadoras, dragas subaquáticas, sacos elevadores, magnetômetros, sonares, detectores de metais, técnicas de registro subaquático, equipamentos de conservação, etc, etc. O que mais usam? Podem ter inventado o defletor de turbulência. Isto é 90%? Ou menos de 20%?







9. Os caçadores de tesouros afirmam que devem recuperar navios antigos porque os arqueólogos não o fazem, não os encontram nem escavam e não têm notícia de um trabalho de êxito no Novo Mundo.



Os caçadores de tesouros estão certos porque os arqueólogos norte-americanos têm resultados extremamente pobres em prospecção, escavação e publicação em seu próprio hemisfério. Contudo, não havia arqueólogos científicos na Grécia e na Turquia há duzentos anos e creio que temos sorte de que nem todos os túmulos gregos tenham sido roubados ou que nem todos os templos gregos tenham sido queimados para fazer cal, como aconteceu com alguns. Devemos pensar no futuro; um dia haverá um corpo arqueológico suficiente neste hemisfério para fazer o trabalho – se subsistirem alguns destroços de barcos que valham a pena.







10. Os caçadores de tesouros dizem que são merecedores de todo o lucro que podem realizar porque arriscam as suas vidas e perderam membros de suas equipes.



Estou consternado porque quase todos os artigos que li sobre a controvérsia entre a caça ao tesouro e a Arqueologia davam ênfase à perda da vida de caçadores de tesouros, mas nenhum mencionou a morte do mais promissor arqueólogo náutico do mundo durante um acidente de mergulho há três anos[3]; ele morreu apenas algumas semanas antes de receber o doutoramento da Universidade de Cambridge e antes da publicação de seu segundo livro. Muitos de nós vimos amigos e colegas ficarem inválidos por acidentes de descompressão e embolias, mas acreditamos que os nossos riscos diários são irrelevantes para legitimar quaisquer direitos de vender o que escavamos.







11. O arqueólogo empregado por uma empresa de caça ao tesouro sugere que sejam dados por lei, aos arqueólogos, seis meses para estudar os artefatos antes de serem vendido, garantindo assim que nenhum conhecimento histórico e científico seja perdido pelos caçadores de tesouros.



Isto indica a mentalidade de pelo menos alguns arqueólogos que trabalham com caçadores de tesouros. Como se afirmou anteriormente, são necessários muitos, muitos anos para conservar convenientemente artefatos provenientes de antigos sítios de naufrágios. Temos uma equipe de conservadores trabalhando o ano todo na Turquia em materiais escavados entre 1977 e 1979, e este trabalho continuará por mais cinco ou dez anos. Se nós tivéssemos vendido os artefatos após seis meses, pouco teríamos aprendido sobre aqueles testemunhos particulares do navio.







12. Os caçadores de tesouros dizem que não há inconveniente em vender artefatos duplicados.



Usando novas técnicas, estivemos estudando recentemente artefatos aparentemente idênticos aos que escavamos vinte anos antes, e aprendemos o suficiente para escrever novos capítulos e artigos sobre eles. Somos capazes de fazer um novo estudo apenas porque os artefatos estão ainda juntos num museu em vez de terem sido dispersos através das vendas.







13. Os caçadores de tesouros dizem que os arqueólogos podem falar facilmente sobre deixar os seus achados ao estado ou à nação onde foram encontrados, porque os arqueólogos não lidam com artefatos monetariamente valiosos.



Os arqueólogos também encontram ouro, prata e estátuas clássicas em bronze de valor incalculável. Uma garrafa de vidro encontrada em minha última escavação – de um navio afundado do século XI – foi avaliada em cerca de US$ 65.000,00 para o caso de ser posta a venda; temos 80 vasos de vidro intactos só deste sítio, e cerca de mais de 10.000 fragmentos que os nossos conservadores estão reconstituindo. Isso não é um tesouro?







14. Os caçadores de tesouros foram considerados na imprensa como bons arqueólogos subaquáticos amadores, mais competentes do que muitos arqueólogos profissionais com formações universitárias.



Quem iria a um dentista amador? Qual a diferença entre um arqueólogo amador e um neurocirurgião amador? Há pessoas bem intencionadas que invocam curas de cancro e de outras doenças, às vezes citadas na imprensa, mas a sociedade não as autoriza a praticar sem as credenciais adequadas. Estive eu perdendo o meu tempo estudando arqueologia durante tantos anos, quanto os futuros médicos estudam medicina?







15. “Há inúmeros navios naufragados. Porque é que os arqueólogos querem ficar com todos?”.



Há inúmeros sítios arqueológicos em terra. Porque não dar a maioria deles para caçadores de antiguidades? Porque não deixar alguns caçadores de tesouros, em regime de iniciativa privada, ter algumas pirâmides egípcias e metade dos templos clássicos do mundo – há tantos por aí fora.



Os arqueólogos não querem “possuir” navios afundados, pois acreditamos que pertencem ao domínio público tal como os monumentos históricos terrestres. O nosso trabalho é compreendê-los e divulgar, para outros estudiosos e para o público em geral, o nosso conhecimento através dos meios apropriados; fizemos isso através de numerosos programas de televisão, livros de divulgação (incluindo uma seleção do Clube Livro-do-Mês traduzido em cinco idiomas), criação de museus, mostras e exposições itinerantes e artigos muito freqüentes em revistas que atingem um grande público.







Poderia continuar esta listagem, mas espero ter deixado claro o meu ponto de vista. Não creio que a comunidade dos arqueólogos tenha produzido um número semelhante de falsos argumentos, sendo essa uma das principais razões que me levam a preferir ver os restos de navios escavados e publicados por arqueólogos.



Sinceramente,



George F. Bass











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[1] - George F. Bass - “Arqueólogos, mergulhadores desportivos e caçadores de tesouros” in Perspectives (Journal of Field Archaeology), Boston - 12.2: 256 - 258, 1985. (Tradução de Francisco ALVES e Adília ALARCÃO para Portugal, 1993 / Gilson RAMBELLI para o Brasil, 2004).



[2] - Equipamento acoplado ao hélice da embarcação para levantar os sedimentos do fundo (nota do tradutor).



[3] - Keith Muchelroy (nota do tradutor).





















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