sábado, 5 de novembro de 2011

1618 - O TERREMOTO DE LISBOA

A Gazeta de Lisboa e o terramoto de 1755: a margem do não escrito1

André Belo2

No dia 6 de Maio de 1998 ocorreu um pequeno sismo na cidade da Covilhã. No dia seguinte, o jornal Público trazia a seguinte breve:

"Um sismo de intensidade três na escala de Mercalli foi ontem registado, pelas 5h19, na Covilhã, sem que tenha causado danos pessoais ou materiais, informou o Instituto de Meteorologia. O abalo teve o epicentro 52 quilómetros a norte de Castelo Branco, próximo da Covilhã, e foi registado na rede sismográfica do Instituto de Meteorologia".

Tratando-se de um acontecimento menor, sem danos, o texto é sucinto e o relato do sismo não vai além do lead jornalístico. Com esta breve, presume-se, o leitor do Público ficou a saber tudo o que lhe podia interessar sobre o assunto. Se não tiver sabido da notícia por outras fontes, a breve ter-lhe-á dado uma informação em primeira mão, fazendo nascer em si o pequeno acontecimento da véspera. Sem a mediação abstracta de um jornal de grande circulação, é de presumir que o sismo não tivesse chegado ao seu conhecimento.


Pelas 9h40 da manhã de 1 de Novembro de 1755 um grande terremoto, seguido de um maremoto e de um enorme incêndio que viria a durar vários dias, abalou e destruiu parcialmente a cidade de Lisboa, matando e ferindo muitos milhares de pessoas. Cinco dias depois, o semanário Gazeta de Lisboa, única publicação periódica portuguesa em circulação na altura, noticiava:

"O dia 1º do corrente ficará memorável a todos os séculos pelos terramotos e incêndios que arruinaram uma grande parte desta cidade; mas tem havido a felicidade de se acharem na ruína os cofres da fazenda real e da maior parte dos particulares". (Gazeta de Lisboa [GL], n° 45, 1755)

Só a referência ao carácter "memorável a todos os séculos" dos sismos e incêndios nos permite deduzir estarmos diante de um acontecimento da maior importância. A enorme ruína de Lisboa também é referida, mas aparece na frase noticiosa de forma subordinada e vaga - "grande parte desta cidade". Quanto ao mais, a Gazeta cala-se sobre tudo o que o leitor actual poderia considerar essencial relatar relativamente às circunstâncias e os efeitos precisos do grande terremoto: nenhum detalhe sobre as partes da cidade e os edifícios que ficaram destruídos, onde e quando foram sentidos os sismos, quando e como se iniciaram os incêndios, quantas vítimas houve, quantas réplicas, o que aconteceu ao rei e à família real, como reagiram os lisboetas, que medidas urgentes de resposta à calamidade foram tomadas nos dias seguintes. O que a notícia acaba por sublinhar com maior grau de precisão e actualidade é mesmo o facto de, entre as ruínas, se irem encontrando os bens preciosos da Coroa e dos particulares.


O confronto entre estas duas notícias permite-nos calcular uma distância e, com um movimento brusco, coloca-nos de imediato diante da paisagem informativa que aqui me interessa descrever. Ao leitor de hoje impressionará a brevidade da segunda notícia, mais pequena do que a breve actual do Público. Um acontecimento brutal, uma catástrofe maior da história de Portugal e da sua capital, com repercussões de todo o género na vida do Reino, e ecos distantes e prolongados em toda a Europa de então, merece cinco linhas no jornal da Corte. Já no minúsculo sismo da Covilhã, com recurso à tecnologia mais recente, são-nos dadas sucintas informações com um grande grau de detalhe: a hora precisa do sismo, o grau de intensidade segundo uma convenção de medição universal, a exacta localização do epicentro. De facto, não é apenas a dimensão destes dois acontecimentos sísmicos que é incomparável: é a mediação informativa - forma e conteúdo das notícias - feita num e noutro caso que é de natureza radicalmente distinta. Na comparação, o quase silêncio noticioso da Gazeta ressalta de forma surpreendente. É um silêncio que fala muito alto e que merece ser interpretado. Este artigo pretende ir nessa direcção, procurando responder à pergunta mais geral que se esconde por trás desse silêncio: no Antigo Regime, o que era um jornal?


Uma primeira hipótese de resposta virá da constatação do carácter restrito da circulação da Gazeta de Lisboa de então, quando comparada com a dos jornais na era da comunicação de massas: em meados do século XVIII a tiragem do periódico andava pelos 1500 exemplares3. A Gazeta devia chegar a várias regiões, dentro e fora do Reino, mas era presumivelmente lida sobretudo em Lisboa, meio urbano macrocéfalo de um território largamente rural e analfabeto. Ela não informava o grande público. E numa época em que a informação adquirida atraves de textos era menos importante do que aquilo que se via e do que aquilo que se transmitia oralmente, pode-se começar por dizer que na capital do Reino ninguém soube do grande tremor de terra pelo jornal. O terramoto de 1755 não é notícia. O grande acontecimento passa praticamente implícito na Gazeta: vivido por todos, ele é previamente conhecido, não assume estatuto de novidade quando passa ao periódico. É no interior do acontecimento que, aí sim, podemos encontrar factos particulares dignos de registo como a sorte dos cofres da Fazenda Real.


Na semana seguinte, a 13 de Novembro, a Gazeta continuava na mesma linha, escrevendo:

"Entre os horrorosos efeitos do terremoto, que se sentiu nesta cidade no primeiro do corrente, experimentou ruína a grande torre chamada do Tombo, em que se guardava o Arquivo Real do Reino e se anda arrumando; e muitos edifícios tiveram a mesma infelicidade". (GL, n° 46, 1755)

Lacónico sobre os efeitos do terramoto em Lisboa, o periódico foi incluindo neste mesmo número descrições bastante mais pormenorizadas sobre o impacto do sismo em Córdova, Cádiz e Sevilha. Das oito páginas da edição, cerca de seis foram preenchidas com informação sobre o sismo na Andaluzia, enquanto Lisboa merecia apenas as seis linhas citadas. A relevância de informar sobre os efeitos do terremoto em cidades do Reino vizinho, fazendo a mediação noticiosa entre regiões relativamente distantes, parece confirmar o carácter não abstracto das notícias da Gazeta. Trata-se de um noticiário localizado, mas inversamente: um pouco às avessas de um periódico de âmbito local que só trouxesse informação sobre a sua região, a Gazeta reproduz a informação distante e omite as notícias próximas.


Nos números seguintes, no final de 1755 e nos primeiros meses de 1756, os relatos sobre o abalo vêm do Algarve (cerca de três páginas), de Castelo de Vide (duas páginas), de Guimarães, de Alenquer (em dois números seguidos), de Linhares, de Mafra, da Ericeira. Até Agosto de 1756 continuarão a surgir na Gazeta referências aos efeitos do terramoto à distância - por exemplo em Mazagão - e diferidos no tempo, com notícias publicadas largos meses depois do dia da catástrofe. Todas elas são de maior circunstância do que a informação sobre o que ia acontecendo em Lisboa, que apenas pontualmente reaparece. Três meses depois do sismo é dada a informação de que a Corte continuava a residir em Belém e de que "várias providências" estavam a ser tomadas para reedificar a cidade de Lisboa e remediar a situação dos seus habitantes. Esta notícia foi retomada praticamente sem desenvolvimentos em Abril de 1756, adiantando-se apenas que as principais ruas da cidade começavam a ficar desimpedidas de ruínas.


Nestes breves relatos o que se evidencia é o que não é noticiado - uma espécie de grande texto que vai ficando implícito, aquilo a que se pode chamar a margem de não escrito da Gazeta de Lisboa. Para a tentar percorrer e descrever, a explicação pelo carácter não abstracto das notícias, tanto mais valiosas e procuradas quanto vindas do exterior, parece-me um bom ponto de partida. Ela remete para uma paisagem de comunicação de tipo diferente da contemporânea. Mas, por si só, essa explicação parece-me insuficiente, demasiado genérica. Não foi apenas pelo facto de o sismo ter assumido maiores proporções no local onde o periódico era feito que as notícias saíram tão poucas e tão curtas. Nos nossos dias, se um sismo daquela intensidade se verificasse em Lisboa, os seus habitantes também não tomariam dele conhecimento pelos jornais, rádio ou televisão, e nem por isso deixariam de recorrer avidamente aos meios de comunicação para se informarem, para voltarem a olhar para o grande acontecimento. Guardadas as distâncias, não foi muito diferente em 1755: o terramoto de Lisboa deu azo a uma importante literatura em vários registos, não apenas explicativa ou polémica, também descritiva e informativa. Esses textos, manuscritos ou impressos, começaram a circular bastante depressa em Portugal e na Europa. Na própria Gazeta isso se torna visível: de entre os regulares anúncios de livros e folhetos para venda que ela publicava, na sua maioria de obras portuguesas acabadas de imprimir, o primeiro título que se refere directamente ao sismo de Lisboa sai ainda em 17554. Ao longo do ano seguinte, são anunciados doze novos títulos que fazem alusão directa ou indirecta à catástrofe, número que representa mais de um terço das obras anunciadas no periódico nesse ano5. Em síntese, aquilo a que chamei atrás de silêncio noticioso da Gazeta contrasta com o muito que se disse e escreveu na época sobre os acontecimentos do terrível dia 1 de Novembro de 1755 em Lisboa.


Em boa verdade, porém, a importante quantidade de notícias relativamente extensas que a Gazeta foi publicando em 1755 e 1756 sobre o que aconteceu noutras localidades mostra como o terramoto esteve bastante presente nas páginas do periódico. A afirmação que comecei por fazer, de não foi dada informação sobre a resposta dada à calamidade não é totalmente verdadeira, embora seja preciso procurá-la numa curta e vaga notícia dada três meses depois. Isto obriga-nos a corrigir um pouco o sentido das comparações iniciais, sem anular a estranheza que resulta delas: a Gazeta acompanha o sismo de uma forma muito indirecta e aparentemente paradoxal para uma publicação noticiosa periódica. Situada no centro do sismo6, ela quase não produz noticiário directo sobre Lisboa e, quando o faz, é extremamente lacónica. Passemos então a procurar respostas directamente no periódico, tentando perceber melhor a sua estrutura e concepção.



1. Entre o livro e o folheto

O primeiro ciclo de existência da Gazeta de Lisboa, que se inicia em 1715 e termina em 1760, foi recentemente abordado em teses académicas de uma forma relativamente aprofundada7, permitindo uma ultrapassagem das referências escassas e superficiais que ele foi merecendo na historiografia e filologia portuguesas ao longo deste século. Do trabalho sobre aquela publicação periódica ressaltam um perfil e uma quantidade de pistas de investigação que permitem, de forma fecunda, alinhar o que hoje sabemos sobre a Gazeta com os vários trabalhos que, nomeadamente em França, Inglaterra e Estados Unidos, se têm produzido de há 20 anos para cá sobre as publicações periódicas no Antigo Regime8. É, portanto, ao aprofundamento de um trabalho de tipo comparativo que o estudo sobre um objecto como a Gazeta de Lisboa convida. Tanto mais que ela era feita à imagem de outras Gazetas europeias, sendo semelhante a elas no aspecto, na concepção, na periodicidade. Tanto mais ainda quanto as várias gazetas europeias se alimentavam entre si de informações, sendo traduzidas de país para país e formando uma rede interdependente de notícias impressas de conteúdo maioritariamente internacional.


A análise pode começar pelo próprio objecto tipográfico. A Gazeta de Lisboa encontra-se num ponto de transição entre o livro impresso e o jornal, se considerarmos estes nos seus formatos clássicos - o primeiro iniciando-se no século XV com a invenção da imprensa, o segundo nascendo no século XIX com a entrada desta técnica na sua era industrial. Este é um traço característico da generalidade das Gazetas europeias ao longo do século XVII e ainda boa parte do XVIII, e também de outro tipo de publicações periódicas como os Mercúrios ou os jornais literários.


A composição e impressão da Gazeta era semelhante à dos livros, feita com os mesmos materiais e nas mesmas oficinas tipográficas. Ela saía todas as semanas em dia certo sob a forma de um folheto, com um número de páginas que começou por ser de quatro e aumentou progressivamente até às doze, e com um formato in quarto (19,5 x 14 cm); ao mesmo tempo, ela era concebida tendo em vista um possível reagrupamento em volumes anuais. Existia uma continuidade explícita entre os vários números da Gazeta, atestada pela numeração de página em sequência de edição para edição. Era no próprio acto de impressão semanal do periódico que se antecipava o volume anual, permitindo a prazo o encadeamento dos folhetos e a sua eventual encadernação. Ao fim de um ano de publicação de Gazetas podia ler-se e guardar num livro todos os números que ao longo de cerca de 52 semanas tinham sido publicados. São estes livros com gazetas - de mais fácil preservação do que os exemplares soltos - que no essencial sobreviveram até aos nossos dias, constituindo os fundos disponíveis nas bibliotecas portuguesas.


Coexistiam assim ritmos diferentes na vida da publicação periódica. A eles correspondiam formas distintas, complementares ou alternadas, de a vender e de a ler. Uma ilustração exemplar deste fenómeno é-nos dada por Salvador José Mañer, que, no início da publicação do seu Estado Politico de la Europa (Madrid, 1740), escreveu: "nosotros publicaremos un pliego cada semana, a fin de que se pueda leer la obra al paso que se vaya imprimiendo de manera que al fin de tres meses se puedan leer como los libros"9. No caso da Gazeta de Lisboa, a leitura era feita sob a forma avulsa do folheto semanal e/ou sob a forma de colecção encadernada anual. Estes ritmos diferenciados iam inclusivamente mais além da aquisição semanal ou anual. Os vestígios disponíveis mostram que as colecções de gazetas foram sendo compradas como qualquer outro livro, sem que aparentemente a passagem do tempo as desactualizasse. Em 1752, por exemplo, a colecção completa da Gazeta desde 1715, em 46 tomos, era vendida pelo livreiro lisboeta Manuel da Conceição10. Dispomos de outro indício que vai no mesmo sentido: várias das colecções anuais que se preservam da Gazeta de Lisboa foram guarnecidas com folhas de rosto impressas numa época mais tardia do que os números do periódico que constam dessas colecções11. Sem excluirmos completamente a hipótese de terem existido reimpressões de números atrasados, podemos ver aqui um indício de encadernações feitas a posteriori para satisfazer eventuais pedidos de clientes interessados em completarem para trás a sua colecção. Os impressores e editores da Gazeta, que foram vários entre 1715 e 1760, terão procurado escoar números mais antigos ao mesmo tempo que vendiam os que iam saindo.


Na forma de livro, a Gazeta recebia um título diferente da forma folheto. Quando elas existem, com efeito, as folhas de rosto dos volumes encadernados trazem o título de Historia Annual Chronologica, e politica do Mundo, e especialmente da Europa…12. É sob este mesmo título e como um livro de formato in quarto que a Gazeta é incluída entre as obras de José Freire de Montarroio Mascarenhas, o redactor da publicação, pelo bibliógrafo Barbosa Machado no 2° volume da sua Bibliotheca Lusitana, publicado em 1747. No "Index das Matérias" da mesma compilação (4° volume, de 1759), a colecção das Gazetas é classificada na categoria da "História secular". Esta "História", escreve Barbosa Machado, "chega a 32 partes [em 1747], e cada uma sai em seu ano, a qual consta das Gazetas de Lisboa"13. De facto, a colecção anual da Gazeta apresenta-se ao leitor como uma obra de carácter histórico. Como o longo título explicita, nela se fazia memória das pessoas ilustres, das batalhas, da diplomacia, dos acontecimentos mais dignos de atenção ao longo das semanas. Ao redigir o periódico, José Freire de Montarroio -um académico e um ávido leitor, coleccionador e escritor de grande quantidade de obras de história e genealogia14 - estava a contribuir para a escrita da história do seu tempo. A conjugação entre o facto de o periódico tender para se transformar num livro e o facto desse livro incluir notícias históricas explicam também que José Freire Montarroio fosse conhecido como o "autor da Gazeta" e não como jornalista, termo presumivelmente ausente do vocabulário português da época15.


Mas o título de Historia annual…, ao mesmo tempo que explicita o carácter híbrido da Gazeta, envia-nos directamente para a caracterização sumária do seu conteúdo. Do carácter histórico das notícas da Gazeta decorrem, com efeito, uma quantidade de consequências importantes sobre a forma de nela se organizar e escrever a informação.



2. A história e o presente

Desde 1715, quando um privilégio de impressão deu origem à publicação da Gazeta, o trabalho de tradução e redacção de notícias esteve a cargo de José Freire de Montarroio Mascarenhas. Na sua própria definição, a Gazeta era escrita de acordo com um "método não só Histórico, mas Cronológico e Geográfico"16. As primeiras notícias publicadas em cada número da Gazeta eram as mais antigas, em geral provenientes das partes da Europa e do Mundo mais distantes de Portugal. Desenrolando-se ao longo do número, divididas por regiões ou Reinos e, no interior de cada uma destas rubricas, separadas apenas por parágrafos, as notícias vinham aproximando-se do tempo mais recente e da Península Ibérica17. A maioria delas apresentavam, consoante a proximidade maior ou menor da origem da informação, uma data de um a dois meses anterior à data de publicação da Gazeta. Só a última parte de cada número tinha a data do dia em que o periódico saía, sendo dedicada às notícias de Portugal e da Corte. Esta secção, que, por razões de actualidade, era também a última a entrar em composição, permaneceu sempre relativamente minoritária na economia textual da Gazeta. Uma vez mais, isto não a distingue de publicações como a Gazette francesa ou a Gaceta de Madrid. De facto, o discurso noticioso sobre o Reino, em publicações periódicas que aparecem em regime de privilégio, é alvo de uma atenção muito particular. A consciência do poder dos textos impressos como difusores de notícias, a necessidade que o poder tem de controlar a sua proliferação, motiva o forte condicionamento a que são sujeitas as gazetas 'oficiais'. Voltarei a esta questão um pouco mais à frente.


Para já, sublinho que uma das consequências importantes do método histórico utilizado por Montarroio é que a ordem do discurso da Gazeta remete a actualidade das notícias sobre o Reino para o final de cada número e lhe dá uma dimensão residual. A mais recente actualidade é um ponto de chegada de cada número e não um ponto de partida. As notícias sobre o terramoto de 1755 em Lisboa aparecem, assim, no seu lugar próprio: a última página da Gazeta.


Colocada perante a actualidade, diante de acontecimentos que sucediam num tempo presente ou num passado muito próximo, a Gazeta publicava deles uma selecção cronologicamente ordenada. O resultado, no entanto, não era propriamente uma obra histórica acabada, mas um repositório de informação, uma espécie de arquivo de materiais que podiam posteriormente servir de fonte a outros trabalhos históricos18. Isto acontecia porque o carácter demasiado recente das notícias tendia a fazer desvalorizar a solidez e a veracidade da sua informação. Desde o século XVII que os redactores de gazetas tinham disto consciência. Théophraste Renaudot, o famoso historiador e redactor da Gazette que começou a ser publicada em Paris em 1631, escreveu:

"L'Histoire est le récit des choses advenues; la gazette seulement le bruit qui en court. La première est tenue de dire toujours la vérité. La seconde fait assez si elle empêche de mentir et elle ne ment pas mesme quand elle rapporte quelque nouvelle fausse qui lui a été donnée pour véritable"19.

Esta tensão entre o carácter histórico que as notícias deviam ter e os constrangimentos provocados pela periodicidade da publicação é um dos aspectos mais interessantes do discurso noticioso das gazetas. Em 1716, no n° 40 da Gazeta de Lisboa desse ano, é publicado um aviso que mostra bem o conflito:

"o desejar dar-se aos curiosos das notícias públicas uma relação individual e exacta da batalha de Hungria, tem feito retardá-la por ser raras vezes seguro o partir com os primeiros brados dos sucessos. Agora se fica imprimindo para se publicar na semana que vem, com todas as circunstâncias, que se poderão colher de um grande número de papéis manuscritos e impressos que vieram de várias cortes".

O método de Montarroio aparece aqui de forma clara: era necessário proceder à triagem de informação que ia chegando, uma vez que os primeiros ecos dos acontecimentos não eram considerados credíveis - eram o barulho que vem da história de que falava Renaudot. Era necessário submeter as notícias a exame, procurar resolver eventuais contradições entre as fontes, eliminar as notícias que o passar do tempo e o confronto de testemunhos revelavam ser vagas, pouco fundadas. Estas eram, segundo uma expressão utilizada pelos jornalistas-historiadores da época, "notícias apócrifas". A consequência imediata deste trabalho de crítica era fazer retardar a actualidade das notícias.


O exame prévio das notícias, com a distinção entre boa e má informação, baseava-se numa hierarquização pelo redactor da Gazeta das fontes e canais pelas quais elas chegavam. Alguns critérios de credibilização das notícias parecem dominantes: o canal que transmite a informação, com a fonte escrita bem identificada a sobrepôr-se geralmente à oralidade; o crédito maior ou menor atribuído aos correspondentes que enviavam notícias por carta, e a certas gazetas em detrimento de outras; a qualidade maior ou menor da pessoa ou instituição que transmitia a informação ao redactor20; a proximidade relativa do acontecimento do transmissor da notícia ou do próprio redactor . Na base desta hierarquia ficavam os "primeiros brados dos sucessos", o rumor e o murmúrio sem autor identificado, e, abaixo de tudo, a voz do povo, veículo por excelência da informação vaga e instável.


Nas descrições sobre o terramoto temos também exemplos desta operação de atribuição de credibilidade desigual às notícias consoante as fontes: para a região de Guimarães, a fonte da notícia é uma testemunha ocular não nomeada, mas que é apresentada como "um Fidalgo dos bem conhecidos desta Província" (GL, n° 2, 1756). A descrição dos estragos produzidos nalgumas igrejas da região é acompanhada da confirmação in loco por uma testemunha que a posição social contribui para qualificar - "o que depois viu ser verdade o mesmo Fidalgo". Inversamente, o mau presságio de um fenómeno celeste que os camponeses de Linhares diziam ter visto na noite anterior ao terramoto, é trazida à luz pelo redactor, mas prontamente posta em dúvida: "porém como é asseveração de pessoas rústicas fica a fé deste sucesso ao arbítrio dos que o ouvirem" (GL, n°8 de 1756, de 26 de Fevereiro).


Uma das funções essenciais da Gazeta, anterior à de difundir informação, era assim digerir e domesticar as notícias de maneira a retirar delas apenas o que se revelava mais sólido e digno de ser levado à estampa. Era evidentemente impossível controlar totalmente a veracidade das informações publicadas cada semana, pelo que com frequência o periódico se tornava lugar de publicação de desmentidos e erratas. Estas tentativas para ir repondo uma verdade, para ir compensando o carácter precário que a periodicidade dava às notícias, não anulam o essencial: no discurso das gazetas, no fundo, o que se inscreve é uma relação problemática com o tempo. Falta sempre um pouco de duração à informação publicada21. Por isso, não é exagerado falar em "horror da actualidade" no tratamento que a Gazeta faz da informação. O inesperado, enquanto irrupção de uma desordem no ritmo regular dos acontecimentos, é afastado dela ou retardado até poder ser confirmado e inserido num sentido histórico familiar. A Gazeta tinha a pretensão de ir esfriando os eventos, de lhes ir retirando a sua carga de novidade actual. Os acontecimentos do presente deviam ir sendo transformados em passado à medida que sucediam e a Gazeta era um laboratório onde se fazia essa mediação, onde uma distância relativamente ao que acontecia ia sendo criada22. O recurso às fontes escritas, com um eventual confronto entre várias, constituía uma maneira de o fazer. Assim, certas notícias escritas de fora, desde que abonadas por fontes fidedignas, cabiam melhor no periódico do que outras, porventura demasiado próximas.


A forma de escrever as notícias denuncia também esta repulsa pelo imediato, pelo acontecimento dado demasiado a quente. Para dar outro exemplo: quando, em 1743, os acontecimentos militares na Europa - vivia-se a Guerra da Sucessão da Áustria - justificaram a redacção, no primeiro número do ano, duma síntese do estado militar e diplomático da Europa, ela foi intitulada por Montarroio de "introdução às futuras notícias do presente ano"23. Uma introdução deste tipo -um dos raros momentos em que o redactor assume uma função editorial explícita- tinha como função esconjurar o carácter imprevisto e acidental do que sucedia, e imediatamente integrar essas notícias numa sequência com um sentido histórico. A informação que vinha de trás devia amparar as notícias que no futuro viessem a acontecer. A continuidade explícita entre os vários números do periódico, fazendo encadear as notícias entre si de uma semana para a outra e dando forma progressiva a um anuário noticioso, percebe-se melhor à luz desta ideia: os periódicos de Antigo Regime não cultivam o gosto da informação imediata e perecível24. A continuidade do discurso noticioso, com um respeito estrito pelos canais tradicionais de onde a informação vinha, sobrepunha-se à sua actualidade. A periodicidade adquire assim um sentido diferente do que conhecemos hoje: periódica nesta altura é uma publicação que difunde notícias regulares no tempo presente, mas fá-lo de forma repetitiva, instaurando uma duração e uma continuidade na leitura. Eis o que tem outra consequência interessante e aparentemente paradoxal: como nas Gazetas conviviam vários níveis de temporalidade das notícias, era possível que uma mesma informação fosse veiculada duas vezes desde que a sua fonte fosse distinta. Quando, no início de 1725, um conflito diplomático motivou a retirada abrupta da Corte de Lisboa do Abade de Livry, embaixador francês, a Gazette francesa publicou, na secção das notícias de Paris, uma primeira notícia sobre o assunto; duas semanas depois, a mesma informação aparecia na secção de notícias vindas de Lisboa, sem que a primeira notícia tivesse o efeito de desactualizar a segunda25. A redacção das notícias não se afastava deste modelo, em que a coerência interna dos relatos por razões de actualidade era menos importante do que a ordem de um fluxo noticioso continuado no tempo.



3. Notícias do mundo e notícias do Reino

A Gazeta inseria-se numa rede internacional, também ela periódica, de circulação de notícias, bem estabelecida na Europa desde o século XVII26. Ao longo do século XVIII esta rede, apoiada no desenvolvimento dos correios, estabilizou e cresceu. Quando em 1715 as gazetas reapareceram em Portugal, elas vieram inserir-se nestes canais regulares de troca e mediação de informação que privilegiavam as "notícias do mundo", os acontecimentos internacionais. A dependência do noticiário das Cortes estrangeiras e a emulação do estilo discursivo praticado pelas "Gazetas do Norte" era definidora da Gazeta de Lisboa desde o acto que lhe deu nascença: o alvará régio de Maio de 1715 que concedeu ao impressor lisboeta António Correia de Lemos o privilégio da Gazeta aludia à impressão e comercialização de "todas as notícias, gazetas e mais papéis que que de fora vierem impressos que ele (…) mandar traduzir das línguas estrangeiras na Portuguesa27". Eram essas as principais fontes utilizadas por Montarroio. Da sua tradução e compilação nasciam as rubricas regulares da Gazeta, por ordem cronológica e geográfica. Significativamente, nenhuma referência era feita no privilégio à redacção original de notícias sobre Portugal.


Desde o início que a Gazeta apresentou pequenas notícias domésticas, bastante breves. Essas notícias eram comunicadas ao redactor directamente em Lisboa ou a partir de outras localidades onde ele mantinha uma rede de correspondentes. Esse espaço noticioso teve tendência a crescer ao longo deste período, mas a publicação, avessa às novidades bruscas, manteve sempre o modelo original. O relativo detalhe com que se davam notícias sobre as movimentações diplomáticas e militares de outras regiões europeias contrastava bastante com a destilada informação que geralmente era dada sobre o Reino onde a Gazeta era feita. O inverso também era verdadeiro: o pouco que foi publicado na Gazeta portuguesa sobre o terramoto de Lisboa de 1755 contrasta com o espaço e atenção que as gazetas estrangeiras deram ao assunto. O Courrier d'Avignon e a Gazette de Cologne, por exemplo, publicaram cada um mais de 50 artigos sobre o sismo de Lisboa e as suas consequências entre 22 de Novembro de 1755 e Setembro de 175628.

O espaço ocupado pelas notícias internacionais nas gazetas convida a uma nova inversão de categorias quando se procura compreender o discurso noticioso deste tipo de publicações: para além de históricos, era corrente designar as gazetas como periódicos "políticos"; mas a palavra servia para designar apenas o domínio dos acontecimentos internacionais e das relações entre as potências europeias29. A política doméstica estava por definição ausente das gazetas que existiam em regime de privilégio. Relativamente ao Reino, publicavam-se sobretudo pequenas e regulares notícias sobre o bem estar e os lazeres do rei e da rainha, os casamentos da aristocracia ou as cerimónias rituais da Corte, da Igreja ou das Academias. Um estudo mais intensivo do teor noticioso da Gazeta na sua secção dedicada à Corte poderá encontrar matizes e evoluções no tratamento que ela dá aos objectos noticiosos. Mas há um quadro geral em que esse tratamento se opera e que é possível delimitar aqui.


Sigo uma definição proposta por Habermas na sua reflexão sobre o espaço público. Pode-se dizer que os periódicos dos séculos XVII e XVIII continham relatos que constituíam "uma espécie de transplantação da representação" que emanava da Corte, limitando-se no essencial as suas notícias a fazer eco da solenidade desses gestos e cerimônias30. Ao reproduzirem um ambiente e uma hierarquia palacianos, as gazetas tinham para as Cortes europeias o valor político de prolongar a ordem ritual da monarquia, com suas precedências e hierarquias, oferecendo-se aos leitores com um discurso noticioso muito condicionado, onde não havia nomeadamente lugar para a explicitação dos conflitos e da opinião. Na Gazeta narravam-se eventos de uma forma que tendia a reproduzir e fazer reconhecer um estado inalterado dos acontecimentos, uma ordem tradicional. Ela era um palco da ordem que a monarquia exibia através da representação de si, uma espécie de teatro onde desfilavam figuras com direito a dignidade e precedência na hierarquia social. O horror à actualidade e ao acontecimento disruptores era assim, muito naturalmente, complementado com um horror à desestruturação da ordem social tal como ela vinha plasmada no elenco e na hierarquia noticiosas. Temos demonstrações disso mesmo nas fontes sobre a Gazeta portuguesa: a correspondência do seu redactor que se conserva em Évora mostra que as notícias do periódico eram alvo de sanção política da parte do monarca, que desejava resumir a informação dada sobre a aristocracia à esfera da fidalguia da Corte. Na década de 40 do século XVIII, o rei começa a enviar ordens expressas ao redactor para não publicar notícias sobre casamentos e baptismos de fidalgos da província, e a partir de 1745 chega aviso a Montarroio para não publicar nenhuma notícia sobre o Paço que não fosse de lá comunicada31.


Que à Gazeta não convinham todo o tipo de objectos noticiosos, é algo que resulta evidente da leitura de qualquer número do periódico. O longo título da colecção anual também o revela: a qualidade das pessoas envolvidas e a dignidade do objecto noticioso são constitutivas destes relatos, que resultam de um trabalho permanente de selecção da informação disponível. O facto de se tratar da única Gazeta impressa da Corte, existente em regime de privilégio, ostentando o brazão real e, evidentemente, sujeita à censura semanal, condiciona muito o seu espectro noticioso. A informação emblemática da Gazeta, aquela que mais convinha à sua concepção da notícia, e que ela publicava regularmente, era a ausência de novidades na saúde do rei. A 30 de Outubro de 1755 a Gazeta noticiava:

"A Corte continua a sua assistência no Real sítio de Belém, logrando saúde perfeita, e Suas Majestades, e Altezas vêm algumas vezes a esta cidade [de Lisboa], para se divertirem com a representação das óperas".

Dois dias depois dava-se o desastre de Lisboa. O local em que as óperas eram representadas, a grandiosa Ópera do Tejo, ficava reduzido a escombros. E só no número de 8 de Janeiro de 1756 a Gazeta voltava a falar da Corte, registando:

"A Corte continua no Real sítio de Belém, onde SS. Majestades Fidelíssimas e SS. Altezas logram perfeita saúde. Tem-se dado várias providências para o remédio dos habitantes desta cidade [de Lisboa], e se cuida na sua reedificação"

Metade da notícia é igual à anterior. Eis o horizonte de continuidade noticiosa da Gazeta que nem o sismo vem perturbar. Política pela sua manifesta ausência de política, sensível pela sua insensibilidade à informação abundante e desordenada, na Gazeta conta tanto o que se diz, e a forma como se diz, como aquilo que se não diz. Dizer isto não implica desvalorizar a informação publicada na Gazeta: sendo tão escasso o noticiário sobre o Reino, mais visível se tornava qualquer novidade introduzida no registo tradicional.


Neste momento é preciso sublinhar que os leitores do periódico, e o seu próprio redactor, tinham clara consciência da insuficiência informativa da publicação. A Gazeta correspondia a um género noticioso bem identificado. Ela era impressa e tinha o exclusivo de uma informação de tipo histórico. A longa subsistência deste regime de privilégio teve como consequência o retardar do aparecimento de uma informação plenamente política32. Mas isto não significa que não tenham proliferado, em torno da Gazeta impressa, canais alternativos e complementares de informação. Não apenas, para quem podia, a leitura directa dos periódicos estrangeiros de que a Gazeta se servia para o grosso das suas notícias, mas também a alimentação de redes mais ou menos privadas de informação, assentes na oralidade ou na circulação de textos manuscritos.


Um desses canais, veículo e sede de selecção de informação para a Gazeta, era a correspondência. Meio ágil e rápido de obtenção de notícias, a carta é o local onde se emite opinião e se obtém informação adicional sobre as notícias em vias de publicação. A leitura das cartas de Montarroio a Rodrigo Xavier Pereira de Faria, seu correspondente de Santarém, é muito instrutiva a este respeito. Nelas, reduto do privado e da informação confidencial, o redactor revela-se um ávido interessado em variado tipo de informação, sobretudo histórica, mas também política, sobre a Corte ou sobre os boatos que corriam em Lisboa. Essas eram as notícias que não chegavam à Gazeta. As que chegavam vinham pelos mesmos canais, mas eram adequadas ao suporte impresso e à dignidade da Gazeta da Corte. As principais notícias publicadas sobre o terramoto, vindas de fora de Lisboa e publicadas com meses de atraso em relação ao sismo, resultam desta maneira habitual de proceder. Inserido numa rede em que a informação circulava em abundância, o redactor esperou pela constituição.de relatos credíveis feitos por correspondentes de confiança nas várias zonas que sentiram o sismo, recebeu-os, procedeu à sua selecção e transcrição, e inseriu no periódico as notícias à medida do espaço deixado disponível pelo noticiário internacional. O que saiu para o público foi decerto uma ínfima parte das notícias sobre o sismo acumuladas por Montarroio, ínfima parte que, de resto, não podia existir sem a enorme margem de não escrito que deixava atrás33.


Outro elemento essencial desta rede, em estreita ligação também com a correspondência, eram os periódicos manuscritos. Não por acaso, alguns dos principais informadores da Gazeta eram - além do próprio Montarroio - também autores de periódicos do mesmo género, com a diferença essencial de serem reproduzidos à mão34. Também esses folhetos eram vendidos, existiam na forma noticiosa e histórica e, tal como a Gazeta, tendiam a ser armazenados em volumes anuais. Eles nasceram em estreita relação com o periódico impresso, cuja posição de exclusividade derivava do regime de privilégio que detinha. Existindo na retaguarda noticiosa do impresso, o manuscrito vinha preencher os espaços em branco que ele deixava, colmatando a sua lentidão e insuficiência noticiosa, em especial sobre o Reino. De facto, entre as razões invocadas pelo Padre Luís Montez Matoso para a criação em 1740 da série de periódicos manuscritos intitulada Anno noticioso e historico estava a publicação neles das "notícias não só de fora antecipadas à Gazeta, mas também (…) as do Reino, principalmente as que particulares não se costumam estampar"35. A comparação entre as notícias destes periódicos manuscritos e as da Gazeta permite constatar que os primeiros tinham um maior caudal noticioso sobre Portugal do que a segunda. Eles tinham um leque informativo mais alargado, incluindo nomeadamente numerosos relatos de violências, de crimes e desacatos feitos um pouco por todo o Reino, essas alterações à ordem que tanto repugnavam à Gazeta. Seria interessante ver o tratamento noticioso que neles se fez do terramoto de 1755, mas, aparentemente, não se conservam exemplares até esse ano.



4. Conclusão: o acontecimento-monstro

O ensaio de resposta à questão inicialmente colocada em torno das notícias sobre o terramoto de 1755 está dado. Ele foi feito através de uma longa circunferência englobando interrogações mais gerais sobre a concepção que presidia à redacção de um periódico na época. Evidentemente, não se tratou aqui de saber toda a verdade sobre as breves notícias do terramoto de Lisboa, e as razões particulares que levaram a que tenham sido escritas aquelas notícias e não outras. Ainda assim, a parcimónia informativa da Gazeta ganha mais sentido quando se compreende a sua forma de conceber as notícias, a sua dificuldade em relacionar-se com a actualidade, a importância da informação internacional assente em canais tradicionais, a ausência de uma informação propriamente política sobre o Reino.


O interesse em percorrer o espaço informativo em torno da Gazeta, a pretexto do terramoto, reside nisto: ela era, para retomar uma expressão empregue pelo seu redactor, um "teatro estreito". Tendo consciência disto, aspecto que aqui não foi mencionado, os proprietários da Gazeta tentaram em dado momento fazer do periódico uma publicação mais rápida e com mais informação, numa palavra, mais actual. Entre 1742 e 1752, com efeito, a publicação embarateceu, a sua periodicidade passou a ser bissemanal e o volume de texto publicado cresceu bastante, chegando a um total de vinte páginas por semana36.


O terramoto de Lisboa verificou-se num momento de refluxo, em que a Gazeta voltou a ser um folheto semanal de oito páginas. Diante da sua dimensão inaudita, pode-se chegar à conclusão de que a notícia sobre o terramoto é demasiado forte para a Gazeta. Na sua forma clássica de produzir informação, ela estava tão impreparada para o acontecimento como os habitantes de Lisboa. Diferentemente de outras notícias que corriam na época, a sua veracidade era indesmentível. Mas não se podia falar de tamanha catástrofe em tão pouco espaço e em tão pouco tempo. A periodicidade da Gazeta adequava-se bem a uma informação reiterada ao longo das semanas, mas tornava-se um constrangimento ao acompanhamento da actualidade em bruto. E o terramoto foi o exemplo extremo do acontecimento actual e subversivo. A imagem que dá melhor ideia da impreparação do periódico é a convivência lado a lado, no número de 6 de Novembro de 1755, das cinco linhas sobre o sismo que comecei por citar com uma extensa notícia de quase quarenta linhas sobre a morte do teólogo Fr. Joaquim de S. José. Esta era a notícia que tinha sido preparada com tempo pelo redactor, ocorrida duas semanas antes, a 23 de Outubro. Para falar do terramoto era preciso muito mais tempo, eram precisos outros relatos. No fundo, trata-se de um acontecimento-monstro para a Gazeta - completamente diferente desse "acontecimento-monstro" contemporâneo tal como ele foi conceptualizado por Pierre Nora, em que os acontecimentos estão em toda a parte e não podem ser dissociados dos meios de informação que os criam37. Um acontecimento transbordante, impossível de conter na publicação periódica e que ela terá procurado esfriar e reprimir. Como vimos, uma leitura mais atenta verifica que essa repressão está longe de ser completa e que o terramoto reaparece no periódico de forma quase semanal, ao longo de meses. Os seus ecos chegam por outras vias, à maneira do psicanalítico regresso do recalcamento. O lado mais actual da Gazeta vai ficando implícito. Mas como ignorá-lo quando, de novo a 6 de Novembro, ela anuncia estarem à venda, na própria loja em que era vendida, dois folhetos, um para os fiéis se protegerem contra a morte súbita e outro contra terramotos e tempestades?
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