domingo, 1 de abril de 2012

LINGUAS DA AMAZÔNIA

não
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era a indígena, mas os negros africanos, que deveriam ser importados em grandes quantidades,
à semelhança do que ocorrera na Bahia e no Rio de Janeiro.
A língua portuguesa devia fortalecer-se na região com a chegada dos novos colonos,
com os casamentos mistos e com a educação escolar. O governador Furtado trouxera
instruções precisas para o funcionamento desta escola, em língua portuguesa, em toda a
colônia, devendo para este fim obter a colaboração dos colonos, a quem o governador chegou
a ameaçar com tirar-lhes os índios se eles – colonos – não cumprissem esta determinação.
Cada aldeia devia abrigar duas escolas, uma para o sexo masculino e outra para o feminino. As
meninas aprenderiam a fiar, costurar, fazer renda “e os demais misteres próprios da mulher.
Era proibido o uso da chamada língua geral... era obrigado a fazer vulgarizar a língua
portuguesa, não consentindo que se falasse outra nas escolas” (Accioly 1883: 78).
Na realidade, da mesma forma que chamar uma aldeia de vila e trocar seu nome
indígena por um topônimo português não fundava, por si só, cidades, também a criação formal
de escolas não garantia seu funcionamento, sobretudo porque em muitas delas não havia
professores. O ouvidor Sampaio, que em 1774-1775 percorreu toda a região em viagem de
correição, concluiu em carta ao governador João Pereira Caldas: “As escolas, não as há em
todas as povoações, por faltarem pessoas na maior parte dellas que possão servir de
mestres” (Sampaio 1985: 24). O cônego André Fernandes de Souza, vigário do Rio Negro,
onde viveu por mais de 37 anos, lamenta “que não tenha lá havido um só professor de
primeiras letras no espaço de quarenta anos” (Souza 1848:502). Contudo, até mesmo nos
lugares onde havia professores, nem sempre eles podiam atuar. E isso porque o projeto de
Pombal, apoiado em condições conjunturais do mercado mundial de algodão e açúcar,
acabou falindo, com a extinção da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão em 1778.
Os produtos agrícolas, neste período, não chegaram a adquirir maior importância que os
produtos extraídos da floresta, o que iria repercutir na organização das aldeias e no
programa escolar, uma vez que o trabalho de coleta absorvia os índios completamente fora
das aldeias. O Diretório de Índios, órgão encarregado de organizar o trabalho compulsório
indígena, canalizava todos os braços para a coleta das chamadas drogas do sertão, deixando
as aldeias e as escolas vazias. Nos raros casos onde continuava a existir um missionário –
os carmelitas permaneceram no Pará - o ensino do português não prosperava porque, como
observou um testemunho ocular da época para a região do rio Madeira, “os índios de
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nenhuma sorte consentem que os filhos seus menores se apartem do seu seio e não querem
se unir às vilas e lugares pela opinião que entre eles há, que os querem escravizar” (in
Moreira Neto 1971,13).
No que se refere ao aspecto demográfico, apenas no território do Maranhão e no baixo
Amazonas houve um incremento populacional não-indígena, devido sobretudo ao contigente
de escravos africanos e, em menor escala, de colonos portugueses; a Amazônia ocidental, por
seu lado, permaneceu intocada, neste aspecto. Quanto ao casamento de brancos com índias, ali
onde ocorreu, o seu resultado não foi aumentar o número de falantes do português como se
pretendia. O mesmo ouvidor Sampaio observou, em sua viagem pelas freguesias, que esses
casamentos “têm sido pela maior parte pouco afortunados; porque em lugar de as índias
tomarem os costumes dos brancos, estes têm adoptado os daquellas” (Sampaio 1985:127).
Acontece que os filhos desses casamentos, quase sempre, não tinham sequer um parente
português, conviviam somente com a família da mãe e, desta forma, se tornavam falantes da
língua materna, que era a Língua Geral ou outra língua de origem indígena.
Portanto, apesar da vontade manifesta da Coroa de portugalizar rapidamente a
região, nesse período, tal não ocorreu. O projeto fracassou, registrando-se apenas o início da
penetração lenta da língua portuguesa na parte oriental – atual Estado do Pará – enquanto na
Amazônia ocidental, antiga capitania do Rio Negro, hoje Estado do Amazonas, a Língua
Geral permaneceria por mais um século ainda como língua franca.
3.3.5 - A hegemonia do português e a escola
“Os índios foram abandonando o seu idioma materno para se render afinal, à
beleza sem par da língua portuguesa”. (Fernandes 1961, 52).
A adesão do Estado do Grão-Pará à Independência do Brasil ocorreu em agosto de
1823, trazendo implicações no plano das políticas de línguas, que deixaram de ser formuladas
apenas pelo governo central, passando também para a competência do poder local. A Lei das
Reformas Constitucionais de 14 de agosto de 1834 concedeu ampla autonomia às Assembléias
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Legislativas Provinciais, para legislarem e decidirem sobre os destinos dos índios, o que elas
passaram a fazer de imediato. Na província do Pará, os primeiros debates se dão em torno de
um projeto de novo Regulamento para a Civilização dos Índios, elaborado por Antônio
Ladislau Monteiro Baena, um oficial de artilharia nascido em Lisboa. O projeto continha “um
novo método de fomentar a população com índios”, uma vez que “a população branca não
tem força numérica”, envolvendo ainda o seqüestro de índios menores para obrigar os seus
pais a trabalharem. Definido pelo próprio autor como “um regime policial compulsório”,
previa a presença de “policiais em cada aldeia” para, em língua portuguesa, “promover a
instrução [dos índios] na religião e moral” :
“Os índios meninos serão doutrinados gratuitamente na escrita e na prática das
quatro operações fundamentais da Aritmética, nos princípios sentimentais da
moral e nas máximas relativas à obediência devida às Leis, e o respeito devido ao
Monarca e a todas as Autoridades Públicas” (Baena 1831:264)
A discussão sobre política de línguas inserida nas propostas sobre educação foi
interrompida, no entanto, pela Cabanagem, um movimento popular armado pouco estudado,
apesar de sua importância para a história regional e nacional (Pinheiro:2001). Os cabanos
foram dura e exemplarmente reprimidos, o que contribuiu para diminuir, de forma drástica, o
número de falantes da Língua Geral: os 40.000 mortos apresentados nas estatísticas oficiais,
vítimas de cinco anos de repressão (1835-1840) eram, quase todos, usuários dessa língua,
conforme veremos no próximo capítulo. O debate sobre a questão educacional, envolvendo a
variável língua, foi retomado depois da Cabanagem, no quadro da reestruturação políticoadministrativa,
ocorrida em 1850, quando a antiga Capitania do Rio Negro separou-se do Pará
e foi transformada na Província do Amazonas, conquistando assim autonomia para montar o
seu próprio aparelho de estado local. Coube a este aparelho e às Assembléias Legislativas
Provinciais do Pará e do Amazonas tomar medidas para conseguir aquilo que o colonizador
luso não havia logrado: portugalizar a região (Freire 1983:66).
A província do Amazonas, recém-criada, constituía a última unidade política do Brasil
com uma população majoritariamente indígena, que não falava o português como língua
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materna. Os dados globais dos arrolamentos censitários serão apresentados no próximo
capítulo, onde se discutirá a proporção entre as diferentes matrizes étnicas que compunham a
população amazônica naquele momento, permitindo-nos algumas deduções no que diz
respeito ao uso das línguas. Por ora, é interessante destacar que, no censo de 1852, a proporção
de ‘brancos’ não ultrapassava os 6% em toda a província, incluindo Manaus - a capital - e os
principais núcleos urbanos. Essa população ‘branca’, falante do português, herdeira do espólio
político e ideológico do colonizador, ocupava todos os assentos do parlamento provincial,
responsável pela elaboração das políticas em relação aos índios, tanto os índios considerados
como ‘bravios’, de línguas diversificadas, quanto os destribalizados, falantes da Língua Geral,
como é possível verificar nos Anais da Assembléia Legislativa Provincial (APA 1852-1853).
A preocupação com os índios ‘bravios’ mereceu a atenção imediata dos parlamentares.
Na terceira sessão da primeira legislatura da história da Província do Amazonas, isto é, no
terceiro encontro que tiveram os primeiros deputados amazonenses, ocorrido no dia 9 de
setembro de 1852, foi apresentado o primeiro projeto de número 02 (o projeto 01 foi o que
aprovou o Regimento Interno). A celeridade da tramitação dá uma idéia da importância do
tema para os legisladores e seu conteúdo permite avaliar como o poder político local tratava a
questão indígena. Os três primeiros artigos do projeto estabelecem:
1. Fica livre a todo morador poder ir contratar a troca dos indígenas bravios com
os principais das nações selvagens;
2. Feita a troca, o indivíduo apresentar-se-á com os indígenas perante o juiz de
paz mais vizinho para assinar um termo de educação (sic) por espaço de dez
anos;
3. Concluídos os dez anos de que trata o artigo antecedente, poderá o índio ser
aldeado (APA 1852: 5)
A educação desses índios não passava mais pela Língua Geral, devendo ser feita,
evidentemente, em português. O seu preço – dez anos de trabalho forçado – poderia sugerir
que o ensino da língua portuguesa era um negócio altamente lucrativo. Na realidade, a menção
à educação era apenas uma justificativa, empregada desde os tempos coloniais, para enquadrar
os chamados ‘índios bravios’ num sistema de trabalho compulsório, uma prática que
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continuou sendo corrente no Amazonas, sem necessidade até então de ser regulamentada por
lei (Freire: 1983 b).
Todo o peso na difusão da língua portuguesa recaiu, de fato, sobre a escola,
encarregada pelo governo da nova Província de incorporar à sociedade brasileira os
amazonenses falantes da Língua Geral - índios destribalizados, caboclos e mestiços. Por isso,
é oportuno avaliar o seu funcionamento, que pode ser estudado através dos relatórios anuais
da Diretoria de Instrução Pública, quase sempre anexados às falas e mensagens dos
presidentes da província (APA 1858-1880). Dois desses relatórios merecem uma atenção
especial, em primeiro lugar porque constituem a única avaliação sistemática que se tem do
funcionamento do sistema escolar, com menção às línguas; e depois, porque o seu autor foi o
poeta Antônio Gonçalves Dias, nomeado pelo presidente da Província do Amazonas, em
1861, para o cargo de visitador das escolas públicas de primeiras letras existentes em
diferentes freguesias.
No cumprimento de sua tarefa, Gonçalves Dias viajou pelo rio Solimões até os
limites com o Peru e Colômbia e pelo rio Negro até Cucuí, na fronteira com a Venezuela,
visitando escolas em cada localidade, onde encontrou uma população majoritariamente
indígena, que sequer falava o português. Em alguns lugares, assistiu a aulas; em outros,
entrevistou professores, folheou cadernos de alunos, confrontou o número de estudantes
formalmente matriculados com os que estavam presentes, re-elaborou dados estatísticos do
censo escolar, verificou horários de funcionamento, calendário escolar, currículo, livros
didáticos, observou os mobiliários e utensílios e registrou a situação dos professores. No
final, redigiu os dois relatórios, contendo suas apreciações. 13
Ele reclama do pouco tempo que teve para visitar as escolas, ficando totalmente na
dependência da demora do vapor em cada lugar. Nas freguesias onde a carga e descarga de
mercadorias eram feitas rapidamente, o contato com a escola tornava-se bastante
superficial. O autor questiona, então, a eficácia de uma tal avaliação, argumentando que as
visitas - ocasionais e transitórias - eram insuficientes e desta forma “o visitador não pode
13 O primeiro relatório, publicado em 1861, avalia as escolas das freguesias do rio Solimões, com menção
específica a Coari, Tefé, Alvarães, Nogueira, Fonte Boa, São Paulo de Olivença e Tabatinga. O segundo,
sobre o Rio Negro, só ficou conhecido em 1943, quando foi transcrito por Lúcia Miguel Pereira, que levou
três meses para decifrar a parte mais importante de seu conteúdo, escrito a lápis, de modo quase ilegível,
debaixo de chuva e sob o balanço da canoa. Ambos foram re-editados em 2002 pela Academia Brasileira de
Letras (Montello 2002).
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por si mesmo tomar cabal conhecimento da escola; nem estudar os seus defeitos ou
apreciar os esforços do professor, e o progresso de seus discípulos (...), ficando “à mercê
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de informações extra-oficiais que podem não ser isentas de favor ou de ódio” (Dias
1861:19). Em conseqüência, ele sugere um mecanismo de supervisão permanente, com a
contratação de inspetores locais, residentes nas próprias aldeias. Mesmo assim, em suas
visitas, ele teve tempo para verificar, em algumas localidades, o plano de ensino, a
administração e o regime das escolas, observando os compêndios e livros de leitura usados,
os métodos de aulas e as condições de exercício do magistério.
Gonçalves Dias considera como um dos mais graves problemas justamente a
formação de professores. “A primeira falta que se nota é a insuficiência dos mestres. Nada
se tem feito para criar um pessoal habilitado para o ensino público” (Dias 1861:5), ele
escreve, depois de mostrar as mais variadas situações: professores sem alunos no rio Negro;
alunos sem professor no Solimões; alunos e professores sem escolas em pelo menos uma
freguesia; exercício do magistério por pessoal não habilitado: diretor de índios, juiz,
subdelegado de polícia, inspetor de quarteirão, pároco e até sacristão.
Outro problema extremamente grave continuava sendo a evasão escolar. Pela
legislação então vigente, o ensino primário já era obrigatório, sendo passível de multa os
pais que não cumprissem a lei. No entanto, em todas as escolas visitadas, o número de
alunos presentes representava aproximadamente a metade dos alunos matriculados e isto
por dois motivos: de um lado, a migração, com constantes mudanças de residência: “a
gente menos remediada retirou-se com os filhos para outros lugares” e, de outro, as
exigências do trabalho, que impunham “uma espécie de férias de cinco meses: de agosto a
dezembro (...) toda a pobreza, e ainda os chamados ricos, correm à pescaria, levando toda
a família consigo e principalmente os filhos, que por mais verdes que sejam sempre podem
e sabem governar a canoa” (Dias 1861:12).
O visitador constata que os padrões de povoamento na Amazônia indígena não
favoreciam o funcionamento daquele modelo de escola, o que levou ao fracasso da
alfabetização, porque as crianças desaprendiam no longo período de recesso o que haviam
aprendido no curto período escolar. No entanto, ele admite que o Estado não pode obrigar
os pais a enviar seus filhos à escola, porque isso seria “ordenar-lhes que mudem
radicalmente a sua norma de vida”. Quanto à imposição de multa, ele esclarece: “Hoje
impô-la a um índio é tomar-lhe a palhoça e portanto obrigá-lo a procurar nova residência,
ao que eles já de si são tão propensos” (Dias 1861:22).
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O relatório critica a ausência, em algumas escolas, de papel, caderno, livro,
carteiras, mesas e outros objetos indispensáveis, questionando também o currículo,
especialmente o de aritmética, bastante defasado, pois ensinava ainda as tabuadas
portuguesas com o seu antigo sistema de pesos e medidas, quando inclusive em Portugal já
se havia adotado o ensino do sistema decimal. No entanto, uma das conclusões mais
importantes de Gonçalves Dias está relacionada ao ensino da leitura e da escrita em língua
portuguesa. Precursor de uma etnografia da sala de aula, ele assistiu ao professor em plena
atividade, inspecionou os cadernos dos alunos e observou que estavam com “muitos erros
de ortografia e lastimável emprego de letras grandes”, verificando em seguida que os
erros não estavam apenas nos cadernos, mas nos próprios livros de onde as cópias eram
feitas. O problema consistia em que livros impressos eram “modelos de cacografia em vez
de translados” (Dias 1861: 23).
Gonçalves Dias concluiu que o sistema de ensino não funcionava, porque a língua
empregada na escola - o português - não era a língua falada pelas comunidades locais. O
uso do português, como língua oficial, era obrigatório na escola, mas a maioria da
população desconhecia esta língua e falava, além de um idioma materno, a Língua Geral.
Apesar dessa constatação, o poeta-visitador recomenda ao Presidente da Província para
que mantenha o português, pois “a vantagem da freqüência das escolas estaria
principalmente em se desabituarem da Língua Geral, que falam sempre em casa e nas
ruas, e em toda parte” (Dias, 1861:16).
Nestas aldeias, o meio acabou convertendo-se em mensagem. A função da escola
não era tanto transmitir conhecimentos e valores que não podiam ser veiculados num
idioma desconhecido pela população, mas impor a própria língua, como explicita o
visitador:
“No falar a língua portuguesa já vai uma grande vantagem, e tal que,
quando mesmo os meninos não fossem à escola para outra coisa, ainda assim
conviria na atualidade e ficaria ainda sendo conveniente por bastante tempo,
que o governo com esse fim criasse e sustentasse as escolas primárias do
Solimões” (Dias 1861:16).
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Dez anos depois de Gonçalves Dias, Couto de Magalhães, com diferente
perspectiva, faz outro balanço, desta vez trágico, das escolas indígenas do Pará, Mato
Grosso e Goiás, províncias por ele governadas em diferentes períodos e conclui que a
metodologia por elas aplicadas, que efetivamente era etnocêntrica, representava “um
atentado contra o senso comum”. Em 1871, ele vai criar o Colégio Isabel, destinado a
alunos de diferentes etnias do Araguaia, buscando, em forma pioneira, “conservar-lhes o
conhecimento da língua materna (...), seus costumes, sua alimentação e seu modo de vida”.
Tratou-se de uma experiência isolada, sem maiores conseqüências para o sistema escolar da
época, que acabou, ao que parece, contrariando os objetivos do seu autor (Magalhães
1876:136).
Os relatórios de Gonçalves Dias acabam recuperando o discurso etnocêntrico do
período colonial, que representa as línguas indígenas como ‘desarticuladas’, ‘imperfeitas’,
‘deselegantes’. Este mesmo discurso se reproduz no século XX, quando pretende explicar a
extinção das línguas indígenas não pela violência de todos os níveis cometida contra os seus
falantes, mas pela rendição dos índios “à beleza sem par da língua portuguesa” (Fernandes
1961:52).
No entanto, essa escola referendada por Gonçalves Dias, ao desconhecer a procedência
lingüística heterogênea do alunado, não poderia cumprir os objetivos a ela atribuídos. Na
realidade, a língua portuguesa só universalizou-se, quando a inserção da Amazônia na divisão
internacional do trabalho como produtora de borracha atraiu para a região, no período de 1872
a 1910, cerca de 500.000 nordestinos, todos eles portadores da língua portuguesa (Furtado
1959:158). O afluxo desses trabalhadores provocou o desaparecimento da LGA. No entanto,
como essa discussão será retomada no próximo capítulo, interessa agora esboçar algumas
conclusões, de ordem teórica, sobre o papel do Estado nesse processo.
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3.4 - As línguas e o Estado
“Ora, a essência de uma nação é que todos os indivíduos tenham muito em comum, e
também que todos tenham esquecido muitas coisas. Nenhum cidadão francês sabe se é
burgúndio, alano, taifale, visigodo; todo cidadão francês precisa ter esquecido São
Bartolomeu, os massacres do Sul no século XIII (Renan, 1882:20).
As decisões sobre as línguas tomadas pela Coroa Portuguesa, com interferência
decisiva dos jesuítas, mas também dos próprios colonos, contou em alguns casos com a
resistência ou com a colaboração dos índios, que desta forma – eles também - interferiram
no processo. A resistência indígena, para a qual temos algumas pistas aqui e ali, é pouco
conhecida, diferentemente do papel da administração colonial.
A escolha do Tupinambá para desempenhar as funções de língua franca merece
destaque. Os estudos na área de sociolingüistica têm reforçado a proposição de que uma
língua se converte em língua nacional, quando a vitória da circulação mercantil unifica um
território. A unificação lingüística de uma região seria resultado, portanto, da expansão
comercial. O contrário - a fragmentação lingüística - teria uma explicação na ausência de
um sistema de intercâmbio econômico. O que sabemos hoje sobre a América pré-colonial
fortalece essa hipótese, pois as áreas com menor diversidade lingüística são justamente
aquelas onde ficou comprovada a existência de uma rede comercial de ampla difusão, como
é o caso, por exemplo, do quechua no mundo andino, estudado por Alfredo Torero (1974)
ou do Nahuatl no México, analisado por Heath (1977).
Na Amazônia, havia uma enorme diversidade lingüística, o que pressupõe a
inexistência de um comércio intertribal. No entanto, as informações dos primeiros cronistas
que navegaram pelo rio Amazonas dão conta de uma rede de trocas, embora frágil, ao
mesmo tempo em que proporcionam dados sobre a possibilidade de, com a ajuda de
intérpretes de língua tupi, fazer-se entender em grande parte da calha central do rio. É
possível, portanto, que existisse, mesmo em estado embrionário, um processo de formação
de língua franca antes da chegada do europeu. Neste caso, o sistema colonial, ao escolher o
tupinambá como língua geral, teria utilizado um padrão de interação já existente,
ampliando seu raio de ação e dando-lhe outro direcionamento.
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Quanto às demais medidas políticas relacionadas às línguas na Amazônia, um bom
ponto de partida para discuti-las, numa perspectiva histórica, pode ser o modelo proposto
por Anderson (1983), construído a partir do processo ao qual estiveram submetidas as
línguas da Europa e do Sudeste asiático. Ele considera que a natureza do Estado é
determinante nesta questão e estabelece uma diferença básica entre, de um lado, as políticas
de línguas dos reinos dinásticos e, de outro, aquelas formuladas pelos Estados nacionais
modernos, incluindo aqui as dinastias que adquiriram “um cunho nacional”.
No primeiro caso, podemos situar as medidas da Coroa Portuguesa até meados do
século XVIII, escolhendo o português como língua administrativa e adotando a Língua
Geral como língua de catequese e de comunicação interétnica. Essas medidas seriam
produtos de um ‘desenvolvimento gradual, não deliberado, pragmático, para não dizer
casual’. Obedeceriam sobretudo a conveniências internas e não a interesses políticos de
‘impor sistematicamente a língua às diversas populações submetidas ao dinasta’. Tratavase,
portanto, de ‘um processo não intencional, em grande medida não planejado’, pelo
menos no início, e que não obedecia a nenhum ponto de vista nacionalista, já que a
legitimidade da dinastia nada tinha a ver com a condição nacional. Anderson observa com
muita propriedade que as dinastias de Portugal e Espanha formularam suas políticas, não
com o objetivo de “hispanizar” ou “portugalizar”, mas antes, simplesmente de converter
pagãos e selvagens. A motivação seria, portanto, mais religiosa do que geopolítica ou,
traduzido em outros termos, o político se manifestava através do religioso. Essa hipótese
parece válida para a Amazônia, pelo menos até antes do projeto pombalino, em meados do
século XVIII, na medida em que a formulação e a execução das políticas de línguas recaem
muito mais sobre os missionários do que sobre os funcionários da administração colonial,
como foi visto aqui. Neste caso, é necessário deslocar todo o peso da análise da Coroa
Portuguesa para a Igreja. A catequese pode, então, ser abordada como um importante
instrumento de reprodução das línguas, equivalente ao papel desempenhado pelas escolas
nas sociedades modernas. (Anderson 1983:51-55,88,97-98)
No segundo caso, estão as decisões tomadas pela Coroa Portuguesa, na segunda
metade do século XVIII, depois da ascensão de D. José I e de Pombal como seu primeiro
ministro, que proibiram a Língua Geral e oficializaram o português. Essas medidas foram
‘intencionais, planejadas, produtos de um maquiavelismo consciente’, como aquelas
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decisões de modernos Estados nacionais, diante da ascensão de nacionalismos lingüísticos
hostis ou como as decisões do estado brasileiro nos séculos XIX e XX, em relação às
línguas indígenas.
O modelo de Anderson, no entanto, não considera, na formulação das políticas de
línguas, as motivações de ordem econômica, o que sem dúvida alguma deve ser feito para o
caso da Amazônia, onde a força de trabalho indígena era absolutamente indispensável para
a manutenção do sistema colonial. Nesse sentido, uma análise da política de mão-de-obra
pode trazer respostas muito mais relevantes sobre o destino das línguas que um estudo
limitado às particularidades da política de línguas. Essa parece ter sido também conclusão
do naturalista alemão Von Martius, que viajou pela Amazônia no século XIX, quando
mostrou, de forma clara e contundente, como a Língua Geral serviu de instrumento para
organizar a força de trabalho indígena na Amazônia. Ele generalizou a partir da própria
experiência pessoal no trato com índios tripulantes de suas embarcações: “quase todos os
remeiros eram de tribos diferentes, cada um ignorando a linguagem dos outros”, o que
estimulava a desordem, a desobediência e a preguiça. No entanto, “quando todos falavam
a língua geral”, isto facilitava “a organização de ofícios”, permitindo que “reinassem a
ordem, o sossego e até a alegria” (Martius 1863: ix e x).
Para que uma língua pudesse cumprir esse objetivo de organização, foi necessária a
intervenção do Estado, seja pragmática e casual, seja planejada e intencional, o que acabou
contribuindo para reordenarar o quadro geral de línguas na Amazônia. Nesse processo, essas
línguas – a portuguesa e as indígenas - desempenharam ao longo de todo o período colonial
diferentes funções, que merecem ser aqui destacadas.
3.5 - As línguas e suas funções
“Que seja necessário o uso da língua própria para se civilizarem os povos, é sem
controvérsia; porém se não pode absolutamente desterrar o uso da língua do
paiz, quando por meio della devem ser instruídos e catechizados os novamente
convertidos”. Ouvidor Pestana da Silva, 1775 (Reis 1961: 498)
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As línguas costumam despertar em seus falantes e nas pessoas que entram em
contato com elas, comportamentos, sentimentos e atitudes de identificação ou de
estranhamento, funcionando, aqui e ali, como fatores de identidade étnica e de coesão
social. Desde 1970, a sociolingüística vem estabelecendo uma série de classificações para,
a partir delas, discutir as funções sociais da língua. Pode ser útil, aqui, retomar a proposta
de Heath (1972: 11-17), que baseando-se nos trabalhos da Escola de Praga, discrimina as
seguintes funções comunicativas: corrente, familiar, técnico-prática, técnico-científica e
literária. Podemos acrescentar, além disso, a função de instrumento de memória e de
transmissão das experiências históricas.
Numa sociedade multilingüe, como a amazônica, essas funções foram
historicamente atribuídas a diferentes línguas, como decorrência de um conjunto de fatores
de ordem social, política, econômica, geográfica, etnográfica, demográfica. Neste capítulo,
vimos como a Língua Geral desempenhou um papel historicamente relevante como língua
de comunicação, como língua de identidade e até mesmo como instrumento
político, com uma expansão territorial considerável até o final do século XIX, quando
começa seu declínio. Por outro lado, a língua portuguesa estava, naquele momento,
tornando-se hegemônica, num processo que é bastante recente e que ocorreu sob condições
particulares de opressão e exploração sócio-econômica. No entanto, esses fatos não fazem
parte, hoje, do discurso histórico e foram apagados da memória coletiva da grande maioria
dos atuais falantes de português, cujos antepassados, em época bastante recente, ainda
falavam a Língua Geral, da mesma forma que foram também esquecidos pelos que no
presente a continuam falando.
Os diferentes momentos históricos pelos quais, nos últimos quatro séculos, passaram
as línguas em contato na Amazônia geraram diversos tipos de bilingüismo, pouco
documentado do ponto de vista lingüístico. A dinâmica desse processo exigiu de cada língua o
desempenho de funções diferenciadas. Num primeiro momento, as línguas indígenas
permaneceram como línguas de comunicação intragrupal e como elemento de identidade
étnica; a Língua Geral assumiu a função de comunicação intergrupal, de caráter supra-étnico e
de identidade regional, enquanto o português constituiu-se em língua da administração, de
comunicação para fora, com a Metrópole.
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Na passagem do século XVII ao XVIII, quando muitos povos incorporados ao sistema
colonial já haviam abandonado sua língua de origem, a Língua Geral passou a desempenhar a
função de comunicação intragrupal. Ela tornou-se o instrumento de comunicação interna e seu
uso era, fundamentalmente, familiar, corrente e, em certa medida, escolar; era a língua da
catequese, a língua de uso sobretudo oral, enquanto o português era a língua do poder, a língua
oficial da colônia, a língua da administração, das leis, dos cartórios, dos contratos comerciais e
da instância judiciária, a língua usada na Câmara do Senado, enfim, a língua escrita, servindo
desta forma de elo comunicativo entre a colônia e a Metrópole. Todos os relatórios da
administração local, toda a correspondência e toda a documentação oficial eram redigidos em
português.
Na segunda metade do século XIX, o português passou a ser a língua falada pela
maioria da população amazônica, tornando-se a língua dominante de comunicação regional: a
força de trabalho e as demais mercadorias eram compradas e vendidas quase sempre em
português, usado na família, na escola, na rua, nos meios de comunicação, na igreja, nos
tribunais, nos sindicatos, no trabalho, na comunicação cotidiana, preenchendo plenamente as
funções de comunicação corrente e técnico-prática. Este fato, de caráter irreversível, permitiu
romper as barreiras de isolamento da Amazônia, possibilitando a sua integração com a
comunidade brasileira e criando um forte vínculo de identificação nacional. Resta, no entanto,
investigar em que medida o português já havia atingido naquele momento o nível de
comunicação literária, servindo como instrumento para elaborar a criação coletiva e para
registrar e transmitir as experiências históricas e a vivência regional. Esta função pressupõe a
existência de um corpo – de uma elite – de especialistas que, além de produzir literatura,
exerce uma certa influência normativa sobre o resto dos usuários da língua e sobre a
identificação que com ela se possa ter.
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3.6 – Língua Geral e literatura
Acutipuru ipurú nerupecê
Cimitanga-miri uquerê uaruma 14
No momento em que o romantismo nativista começava a dar sinais visíveis de
esgotamento, podemos destacar pelo menos cinco estudiosos que se preocuparam em
coletar e transcrever manifestações de literatura oral - denominada atualmente por alguns
autores como etnoliteratura - que circulavam em Língua Geral na Amazônia:
1. José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), nascido em Diamantina (MG),
numa fazenda de gado de seu avô, foi embalado em sua infância – como ele lembra muito bem
- por “lendas tocantes e poéticas, metade cristãs, metade indígenas”. Cursou direito em São
Paulo e, uma vez formado, foi nomeado presidente de várias províncias: Goiás (1862-63),
Pará (1864-65), Mato Grosso (1866-1868), e finalmente, São Paulo (1888). Depois de
procurar “as cores do país” em arquivos e bibliotecas, foi buscá-las nos grotões do Brasil
profundo, realizando pelo menos dez grandes viagens, quando aprendeu a Língua Geral. Sua
obra mais conhecida - O Selvagem, com algumas edições em português (1876, 1913, 1975) -
foi traduzida e editada em várias línguas: francês, inglês, alemão e italiano. Reúne três ensaios:
um estudo etnográfico sobre as etnias do Brasil central, que já havia sido publicado
separadamente dois anos antes; um curso de tupi-língua geral e um conjunto denominado pelo
autor de lendas tupis coletadas durante suas viagens (Magalhães, 1876b: 64 e 90-81).
2. Charles Frederick Hartt (1840-1878), geólogo e geógrafo canadense, aluno do
naturalista Louis Agassiz, com quem veio ao Brasil pela primeira vez (1865) na missão que
estudou a fauna ictiológica da bacia amazônica. Voltou várias vezes ao país, quando foi
nomeado chefe da Comissão Geológica do Império (1875). Dirigiu o Museu Nacional (1876).
14 Canção de ninar em Língua Geral, cantada pelas mulheres tapuias e caboclas da Amazônia, conforme
registro do cônego Francisco Bernardino de Souza, responsável pela tradução ao português: “Acutipuru, me
empresta o teu sono, para minha criança também dormir” (Souza 1873:213). O acutipuru é um mamífero
roedor de cauda comprida e enfeitada, que dorme o dia todo, depois de passar a noite em plena atividade.
Vários grupos do rio Negro acreditam que é sob a forma de acutipuru que a alma das pessoas sobe ao céu,
logo que o corpo acaba de apodrecer (Stradelli1929: 362).
124
Aprendeu o Nheengatu e, em suas viagens, coletou os mitos amazônicos sobre a tartaruga.
Morreu no Rio de Janeiro (Hartt 1885 e 1938)
3. João Barbosa Rodrigues (1842-1909), filho de um comerciante português de
Minas Gerais. Estudou no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, de onde foi também professor.
Viajou para Manaus em 1872, onde residiu e dirigiu o Museu Botânico. Explorou alguns rios,
incluindo a área dos índios conhecidos na época como Jauaperi, hoje Waimiri-Atroari.
Aprendeu o Nheeengatu e coletou narrativas orais, contos e cantigas nessa língua, publicadas
no Poranduba Amazonense. Com a proclamação da República, foi demitido do Museu em
Manaus e assumiu a direção do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro (Rodrigues, J.B 1888;1890
e 1905)
4. Conde Ermano Stradelli (1852-1926). Nasceu na Itália, de família nobre. Veio
para o Brasil em meados de 1879. No ano seguinte, viajou pelo rio Purus e depois pelo Rio
Negro e muitos outros rios da região. Trabalhou inicialmente como auxiliar de Barbosa
Rodrigues. Viveu durante 47 anos no Amazonas, onde aprendeu o Nheengatu e coletou mitos
indígenas. Morreu em Manaus. Existe uma biografia dele, feita por Câmara Cascudo. Depois
de sua morte, o IHGB publicou o dicionário de sua autoria Nheengatu-Português e Português-
Nheengatu, com uma versão do mito do Jurupari (Stradelli 1929).
5. Antônio Brandão de Amorim (1865-1926), nasceu em Manaus, filho de um
rico comerciante português radicado no Amazonas, criador da empresa que fez a navegação
direta de Liverpool a Manaus. Estudou o curso secundário no Porto e o universitário em
Coimbra. Foi secretário de Barbosa Rodrigues, no Museu Botânico de Manaus. Dono de
seringal, coletou tradição oral no Rio Negro, publicando 35 relatos em edição bilingüe.
Morreu em Belém do Pará (Amorim, A.B. 1987)
A importância desses autores na história da literatura brasileira ainda não foi
devidamente avaliada, apesar de existirem algumas evidências sobre o papel desempenhado
por eles como inspiradores do movimento modernista, não só para a linguagem, como
também para a trama de suas obras pioneiras. Mário de Andrade, com Macunaíma, e Raul
125
Bopp, com Cobra Norato, talvez tenham sido os escritores que mais dívidas contraíram
com eles, conforme o deslumbramento manifestado por Bopp, quando descobriu os mitos
amazônicos coletados por Brandão Amorim:
“Foi uma revelação. Eu não havia lido nada mais delicioso. Era um
idioma novo. A linguagem tinha, às vezes, uma grandiosidade bíblica. No seu
mundo, as árvores falavam. O sol andava de um lado para outro. Os filhos do
trovão levavam, de vez em quando, o verão para o outro lado do rio” (Amorim
1987: 9).
3.6.1 – A literatura oral: Couto de Magalhães
Te mandei um passarinho, / Patuá miri pupé
Pintadinho de amarelo, / Iporanga ne iaué.15
A literatura oral registrada por esses estudiosos revela, de um lado, a
permanência vigorosa de narrativas indígenas em Língua Geral, que continuavam
circulando oralmente no século XIX em algumas áreas como a bacia do rio Negro e do alto
Solimões, e de outro, em cidades como Belém e Manaus, uma situação de bilingüismo
Língua Geral-português, bastante generalizada, porém ignorada pelos historiadores da
região.
Dos cinco coletores de narrativas indígenas, Couto de Magalhães - seguramente
o mais avançado de todos, do ponto de vista epistemológico – merece um tratamento à
parte. Interessa, aqui, destacar suas observações empíricas sobre a trajetória tanto do
português como da Língua Geral na região, em sua dimensão literária. A viagem de estudos
por ele realizada em 1873-74 pelos rios da Amazônia, com o objetivo de pesquisar
15 De uma canção recolhida no Pará por Couto de Magalhães em 1874, quando ainda era cantada com muita
freqüência. Trata-se de um texto bilingüe português-nheengatu, onde ambas línguas conviviam em situação
de bilingüismo coordenado, sem que houvesse predomínio de uma ou outra (Magalhães 1876: 89). Significa:
“Te mandei um passarinho, dentro de uma gaiolinha, pintadinho de amarelo, e bonito como você”.
126
demografia e línguas indígenas, permitiu-lhe coletar no Pará um rico material de literatura
oral, explorando os dados lingüísticos nele contidos. A partir desse corpus, realizou um
conjunto de observações agudas para recortar uma realidade sociolingüística daquilo que
ele próprio já denominava como “língua posta em contato com outra”, que só muito mais
tarde, na década de 1950-60, seria objeto de estudo da lingüística contemporânea.
Preocupado com as modificações sofridas pelas línguas em contato, ele estabeleceu três
períodos marcantes das relações entre o português e a Língua Geral, que ele denomina de
nheengatu:
1. O período de justaposição, ao qual pertence a letra da canção em epígrafe,
cantada pelas populações mestiças do interior do Pará. O autor recolheu outras canções
como essa, todas elas caracterizadas por “versos compostos simultaneamente nas duas
línguas”, ou seja, com textos bilingües - alternando simetricamente português e Língua
Geral - em que a métrica e a rima fazem parte constitutiva da unidade textual. Concluiu que
elas foram produzidas numa época, em que ambas as línguas eram “populares” e
conviviam em situação de bilingüismo, pois “as duas línguas entram na composição, com
seus vocábulos puros, sem que estes sofram modificação”. (Magalhães 1876 b : 89, 90).
2. O segundo período é caracterizado pela produção de vários textos bilingües
de inspiração popular, ainda na perspectiva do autor, nos quais desaparece a simetria entre as
duas línguas, como na seguinte quadra, recolhida também no Pará:
Vamos dar a despedida, mandu sarará
Como deu o passarinho, mandu sarará
Bateu asa, foi-se embora, mandu sarará
Deixou a pena no ninho, mandu sarará 16
.
Neste caso, o desenvolvimento temático do poema está em português,
permanecendo em Língua Geral apenas o estribilho. Couto de Magalhães observa aí uma
tendência, onde “pouco a pouco uma língua predomina e só ficam da outra algumas palavras
16 Teodoro Sampaio registra mandu como sendo uma ave pequena, da família das Bucconinae; sarará como
uma espécie de mariposa e também como um pássaro (Sampaio 1955:278, 313)
127
que, ou não têm correspondente na língua que tende a absorver a outra, ou são mais suaves
para o sistema auditivo da raça que vai sobrevivendo” (Magalhães 1876 b:90).
3. No terceiro período, o texto é monolingüe, em português, mas está
impregnado de marcas da língua que desapareceu, incluindo empréstimos de padrões
fonológicos e sintáticos. O autor identificou algumas quadras de poesia popular, onde “os
vocábulos da língua absorvida desaparecem na língua absorvente”, permanecendo, no
entanto, alguns vestígios da primeira: “o estilo, as comparações, algumas formas gramaticais
e algumas alterações de sons”. Exemplifica com uma toada, cuja letra está em português,
porém a música, cantada pelos índios há quinhentos anos, “quase não sofreu alteração”. Cita
ainda uma versão, recolhida por ele em 1861, em Ouro Preto (MG), que contêm um sistema
similar de imagens ao da quadra recolhida no Pará (Magalhães 1876 b:90):
Vamos dar a despedida, / Como deu a pintassilva;
Adeus, coração de prata, / Perdição da minha vida!
Vamos dar a despedida, /Como deu a saracura,
Foi andando, foi dizendo: / Mal de amores não tem cura.
Esta periodização feita por Couto de Magalhães é produto de um diálogo
que ele manteve com as ciências naturais e com as ciências sociais nascentes. A sua
abordagem da língua, da oralidade e dos mitos se aproxima bastante dos procedimentos que
foram adotados posteriormente pela lingüística e pela antropologia. Ele retomou, por
exemplo, as representações de língua do romantismo alemão, em especial de Humboldt
(1767-1835), que considera cada língua como dotada de uma estrutura própria, reflexo do
pensamento e da cultura de cada povo e, portanto, um elemento crucial de identidade
coletiva. Sua originalidade, porém, consistiu no fato de que ele estendeu essa representação
para as línguas indígenas, o que permitiu observar as situações históricas de línguas em
contato até então ignoradas, e possibilitou abordar o bilingüismo como forma de identidade
regional, tomando um certo distanciamento da concepção de língua nacional, hegemônica
na época. Desta forma, independentemente dos pressupostos românticos, os dados que ele
coletou nos permitem fazer outra leitura da questão.
128
A periodização por ele estabelecida foi fruto da observação das diversas
comunidades que foi encontrando ao longo do rio Amazonas. A reivindicação de um status
literário para a produção dessas versões bilingües é o reconhecimento de que estas falas mistas
não são produzidas por “semilingües”, sem competência plena em nenhuma das duas línguas,
mas constituem “um modo legítimo de comunicação” (Romaine 1995: 6). Neste sentido, o
autor se distancia do ‘senso comum’ e das políticas de línguas, que consideram estas formas
de organização social e a própria diversidade como um perigo para a hegemonia da língua do
poder, na expressão adotada por Anderson (1983). As observações de Couto de Magalhães
são importantes porque fornecem algumas pistas para a história social das línguas no Brasil,
cujas trajetórias até hoje não foram suficientemente estudadas, criando um grande silêncio
sobre o processo histórico do contato entre elas.
Couto de Magalhães debateu com os críticos que “chasquearam a propósito de
meus estudos de línguas e antigüidades indígenas”, colocando em dúvida a utilidade que
podiam ter. Numa carta dirigida a Joaquim Serra, apresenta três fortes razões que
justificavam suas pesquisas:
1º. Qualquer estudo feito com seriedade faz avançar o conhecimento e, por mais
abstrato que pareça, cedo ou tarde, traz seus frutos práticos;
2º. Se “até a mais miserável planta de nossos campos” e “o mais rude e pobre
mineral de nossos montes” merecem ser estudados, descritos e classificados, “muito mais
nobre e útil é estudar, descrever e classificar o homem americano”;
3º. O conhecimento das sociedades nativas pode ajudar a integrar um milhão de
índios à economia brasileira, com um custo muito abaixo do que se gastava com a
imigração de colonos europeus (Magalhães 1975: 137). Ele completa:
“Eis aí a razão pela qual me dediquei e continuarei a dedicar-me ao
estudo das línguas selvagens e ao de assuntos relativos aos índios. Há
brasileiros que conhecem e estudam entre nós o hebreu, o árabe e o sânscrito.
É, pois, natural, que haja alguns que se dediquem ao estudo das curiosas e
ricas línguas dos selvagens, de sua terra, estudo a que se prende, como
mostrei, a solução de um problema importante (Magalhães, 1975:140).
129
Justificada a relevância do tema, o debate podia, enfim, entrar no mérito da
questão: a imagem construída por Couto de Magalhães sobre o índio e o legado de suas
manifestações literárias. “Que o índio nenhuma tradição nos legou é fato sabido e não
carece de prova”, escreveu, contundente, um dos críticos, citado por Silvio Romero,
acionando preconceitos da sociedade nacional, ao negar qualquer contribuição indígena à
cultura brasileira (Romero, 1888, 59). O discurso colonialista havia desqualificado a poesia
e os mitos indígenas, considerando-os como uma manifestação “menor, grosseira e
extravagante, fruto da superstição” e recusando-se a enquadrá-los no campo da literatura,
por se tratar de uma elaboração em línguas ágrafas, “rudimentares e incompletas”, faladas
por povos “atrasados”. Couto de Magalhães contra-argumenta. Ele até admite que a falta
de refinamento pode existir tanto nas “crenças selvagens como nas superstições cristãs”,
mas sugere que, em ambos casos, para avaliar as qualidades estéticas de uma obra, o
estudioso deve examiná-la com rigor, o que requer inapelavelmente o conhecimento da
língua em que ela foi produzida. No caso das narrativas indígenas, ele adverte que o
pesquisador pode se surpreender, ao descobrir “a notável e profunda filosofia e poesia que
elas encerram”. Lembra que embora o seu trabalho seja o de um simples colecionador de
narrativas indígenas, prestava um grande serviço à Filologia e à Antropologia ao publicar
os mitos numa língua tupi (Magalhães 1975:108). Esse vai ser um dos primeiros princípios
metodológicos, que norteou o seu trabalho de coleta da literatura oral: o conhecimento da
língua, sem o qual qualquer juízo crítico está invalidado.
A etnografia moderna só começa a existir no início do século XX, a partir do
momento em que o pesquisador troca seu gabinete de trabalho pelo lugar onde vai efetuar
sua própria pesquisa, através da observação direta. Para obter rigor e precisão na coleta e
descrição dos fatos observados, o trabalho de campo exige que o etnólogo tenha domínio da
língua da cultura que ele estuda. Franz Boas (1858-1942), um dos fundadores da etnografia
moderna, foi o primeiro a mostrar que a tradição oral devia ser recolhida pelo próprio
etnólogo na língua de seus interlocutores (Laplantine 1987: 75 e 78).
Décadas antes de Boas, Couto de Magalhães teve a intuição sobre a importância
do conhecimento da língua, a partir de uma necessidade sentida na própria pele, em dois
episódios cruciais narrados por ele. O primeiro aconteceu durante a guerra do Paraguai. Ele
viajava uma noite pelo rio, a bordo de um vapor, descansando no passadiço, debaixo do
130
qual um grupo de marinheiros se distraía conversando. Ouviu, então, um deles, apelidado
“Pára-tudo”, filho de índios Kadiweu, contar uma série de histórias em que o jabuti era o
personagem principal. “Foi esta a primeira vez que minha atenção foi despertada para os
mitos nacionais”, comenta. No entanto, ele não conseguiu entender parte da narrativa,
porque apesar de feita em português, era intercalada, de vez em quando, com expressões
em Língua Geral, intraduzíveis. Nesse momento, percebeu que, sem o acesso à língua, não
era possível entender os mitos (Magalhães 1975:107)
Uma alternativa podia ser recorrer ao tradutor, como ocorreu no outro episódio
que ele vivenciou, em 1865, durante uma estadia de quatro meses nas cachoeiras da
Itaboca, no Tocantins, onde havia naufragado. Uma noite, o tuxaua dos índios Anambé
narrou-lhe a lenda de Ceiuci, “infelizmente no tempo em que eu não falava ainda a língua e
em que, portanto, para entender o que ele dizia, necessitava de servir-me de um
intérprete”. Couto de Magalhães desconfiou da versão traduzida. Insatisfeito, publicou-a
assim mesmo, apresentando Ceiuci como uma espécie de “fada indígena”, uma velha
gulosa, que vivia perseguida por eterna fome. Mas decidiu aprender a língua para, de forma
mais fidedigna, “recolher uma tradição melhor do que esta que coligi em 1865, quando
apenas começara meus estudos desta matéria” (Magalhães 1975: 131).
Depois desses dois episódios, Couto de Magalhães começa a aprender a Língua
Geral ou Nheengatu, falada por índios e mestiços da Amazônia, para assim apropriar-se da
literatura oral que circulava nessa língua. O conhecimento dela lhe permite, entre outras
coisas, criticar textos traduzidos no passado pelos jesuítas, como algumas orações, que ele
condena por serem traduções literais, sem sentido algum para os índios, quando o que os
missionários deveriam ter feito era “conservar o sentido fielmente e traduzi-lo de modo que
o selvagem entenda esse pensamento”. Um exemplo de sua proposta pode ser encontrado
na versão do auto de batismo do neto de D. Pedro II, feita em Nheengatú pelo próprio
Couto de Magalhães. Ele traduziu a palavra ‘imperador’ pelo vocábulo ‘muruxáua reté’ –
grande chefe, e ‘batismo’ pela expressão tupi ‘cerúcaçáua’ – cerimônia de imposição do
nome ao recém-nascido, da mesma forma que ‘conselheiros de estado’, ‘deputados’,
‘senadores’ e ‘corpo diplomático’ passaram a figurar em Nheengatu como ‘homens de
governo da nossa pátria’ e ‘homens de governo de outras pátrias’. Ao recusar a tradução
131
literal, ele pondera: “traduzindo em uma língua viva não me era lícito o uso de expressões
que nela não são inteligíveis” (Magalhães 1975: 134 , 137).
Sua preocupação última era, em realidade, com as manifestações literárias. A
língua lhe interessava como instrumento de coleta, de registro e de compreensão da tradição
oral. Na medida em que não era viável para isso o uso de intérpretes e de tradutores, a
aprendizagem da língua se fazia indispensável. É quando Couto de Magalhães organiza
uma viagem ao Pará com o objetivo específico de aprender Nheengatú. Adquiriu tanta
habilidade em seu uso, que chegou a ser considerado “o mais perfeito conhecedor do
nhihingatú no Brasil” pelo bispo do Amazonas, D. José Lourenço, autor de um catecismo
cristão escrito nessa língua (Magalhães 1975:17).
Num depoimento sobre sua competência em línguas indígenas, Couto de
Magalhães fez a seguinte auto-avaliação:
“Eu só conheço bem uma língua na qual falo e escrevo, que é o tupi
ou Nheengatú, que se falava em quase todo Estado de São Paulo ao tempo de
Anchieta, e em quase todo o Brasil; conheço mal o guarani, que aprendi com
os prisioneiros paraguaios que fizemos quando comandei as forças de Mato
Grosso, e isso só para ler; não falo nem escrevo; conheço algumas frases do
Caiapó e carajá e nada mais (Magalhães 1975: 145).
O interesse pelo conhecimento do Nheengatu não se limitou ao seu uso na fala e
na escrita, havendo dedicado estudos específicos, que culminaram na publicação de uma
gramática descritiva, elogiada por uns e criticada por outros. Silvio Romero, por exemplo,
que não falava a língua, considerou-a como sendo de “pequeno alcance científico”.
(Romero 1888: 140). O certo é que a partir dessa descrição, Couto de Magalhães organizou
um curso de Língua Geral, segundo o método de Ollendorf, “método que os modernos
filólogos europeus hão inventado para vulgarização das línguas vivas (VII). Os exercícios
gramaticais que ele propõe para o seu ensino, na opinião do bispo do Amazonas, “estavam
tão de acordo com a língua tupi, que qualquer índio da vasta região do Rio Negro e Alto
Solimões os entendia facilmente” (Magalhães 1975: 17).
132
O discurso etnocêntrico colonialista que considerava as línguas indígenas como
“línguas pobres, desarticuladas, ininteligíveis, incapazes de expressar poesia” é refutado
com poderosa argumentação por Couto de Magalhães, para quem as línguas indígenas
enriquecem o patrimônio nacional. A língua era para ele, pesquisador, um instrumento do
trabalho de campo que lhe permitia pensar e sentir as emoções das manifestações literárias
indígenas, da riqueza da tradição oral, conforme confessa, num texto que Franz Boas ou
Malinowski certamente assinariam embaixo:
“Como houvesse empregado quase todo o ano de 1873 em estudar a
forma amazônica da língua tupi, com a qual consegui familiarizar-me, achei-me
preparado com o principal e mais indispensável instrumento para observação (...)
daquilo que cada povo tem de mais íntimo, e escapa quase completamente à
observação dos viajantes, enquanto não puderem falar a língua do selvagem.
Pude assim conseguir parte da preciosa mitologia zoológica da família tupi”
(Magalhães1975: 105).
Couto de Magalhães, para estudar os mitos, foi se deixando aprisionar, no processo
de coleta da tradição oral, pela originalidade e beleza das narrativas indígenas. Talvez não
seja exagerado afirmar que a simpatia dele pelos índios veio através das manifestações
literárias. Apaixonou-se pelos índios, porque conheceu e rendeu-se aos encantos de suas
criações literárias. Aí, então, ele ficou dividido entre o atraso dos índios defendido pelas
teorias dominantes de sua época e a beleza da literatura oral indígena, que ele ia recolhendo.
Toda a sua obra está marcada por essa contradição: cada vez que se refere genericamente às
sociedades indígenas, num plano mais teórico, usa adjetivos como “atrasadas”, “rudes”,
“rudimentares”, “selvagens”, até mesmo para legitimar seu discurso, enquadrando-o na
ciência de seu tempo; no entanto, quando se refere a determinadas etnias com as quais
conviveu e que podem ser identificadas no tempo e no espaço, os adjetivos são outros: “a bela
língua tupi, suas admiráveis instituições familiares”, etc. (Magalhães 1975: 69 e 136) O
atraso, neste caso, não implica mais inferioridade e passa até mesmo a ser virtude. Ele próprio
revela o impacto que sofreu ao descobrir no início da coleta a sofisticação dos mitos indígenas:
133
“Eu estava muito longe de supor que existisse nos selvagens do Brasil,
que atingiram tão pequeno grau de cultura intelectual, um sistema mitológico
idêntico em substância ao sistema dos vedas (Magalhães 1975: 107).
O Selvagem, considerado pelo seu autor como “o monumento mais autêntico e
curioso que se tem até hoje publicado” sobre a produção intelectual indígena, contém
histórias originais e belas, que falam por si mesmas de uma herança literária milenar, baseada
no cotidiano, nas crenças e vivências dos índios, colocando-nos em contato com um mundo
onde a transmissão oral é um canal importante de aprendizagem da vida social e religiosa, que
assegura e reproduz as formas de vida. Maravilhado com a coleção de nove “lendas da
raposa” que ele recolheu – “verdadeiro colar de pedras finas, tanto pelo espírito e animação
do enredo, como pelo laconismo, sobriedade das cenas e clareza” - não hesita em situá-las
no quadro da literatura universal, afirmando que elas “sofreriam, sem desmerecer, o confronto
com as fábulas de Esopo, Fedro e Lafontaine”. Em outra passagem, Couto de Magalhães
compara os mitos coletados com “os poemas de Homero, os Niedelugen, os poemas de
Ossian”, sustentando que os primeiros,“debaixo do ponto de vista antropológico são mais
importantes, por serem os vestígios da literatura espontânea de um povo antes que qualquer
gênero de convenção, interesse ou espírito de seita e partido houvesse modificado as
produções espontâneas do espírito humano” (Magalhães 1975: 105, 126-128).
Couto de Magalhães percebe o sentido simbólico dos mitos, mas confessa que lhe
faltam elementos de comparação para poder dirigir seus estudos nessa direção. O que então
passa a lhe interessar é a função educativa, bastante clara, da tradição oral. Exemplifica com
os dez episódios que coletou, relacionados ao jabuti, todos eles imaginados com o objetivo “de
fazer entrar no pensamento do selvagem a crença na supremacia da inteligência sobre a força
física”:
Cada vez que reflito na singularidade do poeta indígena de escolher o
prudente e tardo jabuti para vencer os mais adiantados animais de nossa fauna,
fica-me evidente que o fim dessas lendas era altamente civilizador, embora a
moral nelas ensinada divirja em muitos pontos da moral cristã (Magalhães
1975:110).
134
Ele vai tirar algumas conclusões originais. Se o que distingue um povo bárbaro é a
crença de que a força física vale mais do que a força intelectual, então, ensinar o contrário
“equivale a infundir-lhe o desejo de cultivar e aumentar sua inteligência” (Magalhães 1975:
110). Neste caso, o povo que criou essas narrativas demonstra um alto grau de civilização,
estágio atingido pelos índios através de suas manifestações literárias. Mas isso nem sempre foi
percebido desta forma. Noutro capítulo relativo às divindades, Couto de Magalhães comenta
uma das narrativas orais que coletou: a história de um índio que flechou uma veada recémparida,
que ainda amamentava. Quando foi apanhar sua presa, descobriu que havia sido vítima
de uma ilusão do Anhanga: a veada que ele perseguia, era sua própria mãe que jazia morta no
chão. Os missionários interpretaram a ação de Anhanga como sendo produto de uma entidade
maléfica com poderes de fazer o mal contra os homens. Couto de Magalhães, discordando dos
missionários, defende que “por muito rude e bárbara que, à primeira vista, pareça uma
instituição qualquer de um povo, ela deve ser estudada com respeito” :
“Eis aí uma ação demoníaca, dirão. Não, digo eu, esta ação não
repugna a uma divindade. É necessário estudar estas coisas debaixo do mesmo
ponto de vista de quem as imaginou; os índios tinham na caça o seu sustento; o
instinto lhes indicara que destruiriam facilmente esse sustento se não poupassem
a vida dos animais que amamentavam; e como não tinham e nem podiam ter um
código de leis para a caça, tinham um preceito religioso. Esse conto, assim como
todos os outros, encerra uma profunda lição de moral” (Magalhães 1975:84).
Couto de Magalhães propõe um modelo de crítica para as manifestações de
literatura oral, partindo de características das línguas ágrafas, “muito mais lacônicas e muito
menos analíticas” do que as línguas escritas, substituindo com muita freqüência um longo
raciocínio por imagens aparentemente desconexas para um observador menos atento.
“A poesia de nossos selvagens é assim: o mais notável é que o nosso
povo, servindo-se aliás do português, modificou a sua poesia tradicional pela dos
índios. Aqueles que tem ouvido no interior de nossas províncias essas danças
cantadas, que, com os nomes de cateretê, cururu, dança de minuanos e outras,
vieram dos tupis incorporar-se tão intimamente aos hábitos nacionais, notarão
que de ordinário parece não haver nexo algum entre os membros de uma
quadra” (Magalhães 1975: 65).
135
Segundo ele, só é possível perceber o nexo das idéias entre imagens aparentemente
desconexas, se for levado em consideração o princípio de que, para os índios, a palavra falada
é mais um meio de auxiliar a memória do que um meio de traduzir as impressões. Ele diz que
aplicou esse princípio de crítica à poesia popular, sobretudo aos cantos das populações
mestiças profundamente marcados pela herança indígena e obteve resultados surpreendentes.
Descobriu que “suprindo-se por palavras o nexo que falta às imagens expressadas por eles
em formas lacônicas, se revela um pensamento enérgico às vezes de uma poesia profunda e de
inimitável beleza, apesar do tosco laconismo da frase” (Magalhães 1975:64-65).
Silvio Romero, que decididamente não simpatiza com o autor de O Selvagem ,
admite, no entanto, que ele adquiriu um importante lugar na literatura brasileira apenas pela
parte de seu livro “que contém as lendas selvagens e que é preciosissima” (Romero, 1888:
140).
Em conferência para o tricentenário de Anchieta, publicada em folheto em 1897 –
um de seus últimos trabalhos – Couto de Magalhães lamenta que haja sobrado muito pouco da
literatura original dos índios, mas que ainda era tempo de coligi-las entre as tribos que
sobreviveram. Postula que parte da poesia popular em língua portuguesa é continuação da
poesia indígena, sendo necessário também continuar o trabalho de Silvio Romero de coleta,
transcrição e publicação desse material dotando “a nossa pátria de tesouro, com valor
superior aos arremedos da literatura européia, com que enchem nossa imprensa (Magalhães
1975: 156).
A historiadora Maria Helena Machado, que recentemente descobriu e publicou o
Diario Intimo de Couto de Magalhães afirma com muita propriedade que “apesar do pano de
fundo evolucionista, próprio a seu tempo, ‘O Selvagem’ é inquestionavelmente simpático à
população indígena e mestiça, buscando valorizá-la enquanto verdadeira e mais fiel
representante da nacionalidade brasileira (Machado 1998: 13).
Quando se discutia ainda o indianismo como instrumento de construção da
identidade nacional, Couto de Magalhães recolocou a temática indígena em bases mais
objetivas, retirando-a do terreno do folclore, “do pitoresco, do plano simplesmente
sentimental a que o romance de Alencar e a poesia de Gonçalves Dias, sem dúvida
respeitáveis, o haviam conduzido.(Moreira 1975:10) Com paixão, mas sobretudo com
136
método, ele implodiu a etnografia fantasiada vigente, que reduzia os índios aos padrões dos
romances de cavalaria e propôs um novo caminho, que acabou alimentando o movimento
modernista.
3.6.2 – A literatura regional
Martha – Eu sou filha de Monte Alegre...as cunhãs da minha terra...
Manuel – O que é cunhã?
Martha – É cunhã-tem ou cunhã-mucu
Manuel – Entendo cá o que tu dizes!
Marta – Na sua terra não se fala a língua geral?
Manuel – Ó Martha, tu estás a caçoar comigo?! A língua dos tapuios
não se fala...senão onde há tapuios.
Martha – E em Portugal, não os há? Como isso por lá deve ser triste!
Cunhã quer dizer – mulher; e a mulher donzela chama-se cunhã-mucú.
( Diálogo entre uma tapuia e um português, na peça ‘Ódio de Raça’, de
Francisco Gomes de Amorim (1869 : 113-114).
A Língua Geral, que veiculou a literatura oral na Amazônia, no século XIX, vai estar
presente também na produção literária regional em língua portuguesa, cabendo destacar aqui,
entre outros autores, Lourenço da Silva Amazonas (1803-1864), Francisco Gomes de Amorim
(1827-1891) e Herculano Marcos Inglês de Souza (1853-1918).
Lourenço Amazonas, nascido na Bahia, era capitão-tenente da Armada e foi
nomeado Comandante Militar da Comarca do Alto Amazonas, onde viveu durante muitos
anos, em meados do século XIX. Autor de um dicionário topográfico sobre a Comarca do
Alto Amazonas, publicado em Recife, em 1852, ele compôs um ´Dicionário Túpico-
Português e Português-Túpico, que permaneceu inédito, e escreveu um romance histórico
– Simá (1857) - que reflete a situação de línguas em contato na região (Amazonas
1852:112). 17
17
O dicionário permanece inédito até hoje. A família de Lourenço Amazonas doou os originais manuscritos ao
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Submetido ao parecer de Braz da Costa Rubim, ele pronunciou-se
contra a publicação: “O manuscrito não é outra coisa mais do que um apanhamento geral de grande parte
dos glossários impressos” (RIHGB, 29:397-401, Rio de Janeiro, 1866). Edelweiss considerou o parecer
“estranho”, sobretudo levando-se em conta que o parecerista acabou publicando na mesma revista um
Vocabulário, que aparece como sendo de sua autoria. (Edelweiss 1969:200). Já o romance Simá foi publicado
também em Recife, em 1857. O exemplar que consultamos na biblioteca do IHGB, autografado pelo autor
para o Cônego Pinheiro, está bastante danificado pelas traças.
137
Esse romance regional, complementando as fontes históricas tradicionais,
dimensiona a relevância da questão lingüística na identidade amazônica e configura o papel
das línguas, não só como parte da temática indígena, mas como um recurso na construção de
uma narrativa realista. O uso da Língua Geral na própria composição do texto - mesmo
esporádico e ainda que com glosas - representa o fato dela fazer parte das práticas e
intercâmbios sociais. Nesse sentido, Lourenço Amazonas emprega em sua narrativa o mesmo
tipo de recurso que outros dois escritores regionais, Francisco Gomes Amorim e Inglês de
Souza.
A ambientação do romance histórico Simá, cuja ação se desenrola no
período de 1738 a 1758, é uma rebelião de índios, que abalou o rio Negro um século antes,
nas duas últimas décadas de vigência da escravidão indígena. Um dos cenários é o Sítio da
Tapera, lugar de residência de dois personagens, o índio manau Marcos/Severo, e sua neta
Simá, a ´Helena do Rio Negro´. A estratégia do narrador é a de pressupor o
desconhecimento da região por parte do leitor: – “Suponde-vos em viagem no Amazonas” -
de forma que, glosando as palavras de origem tupi, em processo de incorporação ao
português regional, torna ‘inteligível’ a região para o forasteiro. A primeira palavra glosada
é o nome do sítio. “Tapera é, em Língua Túpica (conhecida no país por língua geral), as
ruínas de uma povoação, fazenda ou casa, invadida pelo mato” (Amazonas 1857:3).
As várias referências à LGA contêm informações sobre a atitude dos seus
falantes em relação a ela, no contexto do bilingüismo social, vivenciado por grande parte da
população de Manaus á época em que o romance foi escrito. Proporcionam também, ao
mesmo tempo, dados sobre o grau de avanço do bilingüismo, assim como as soluções que
os falantes encontram para essa situação de contato, usando vocabulário de uma língua
(LGA), quando interagem em outra (português) “É mui bem sabido no País quanto os
indígenas se penhoram de que se lhes fale na Língua Geral e assim também, se falando-selhes
em Português, empregam-se palavras daquela língua em designação e encarecimentos
de certos objetos” (Amazonas 1857:125).
Nesse sentido, é de relativo interesse a incorporação ao texto de uma
composição poética que aparece no capítulo XIII, quando o personagem Regis, comerciante
português, oferta a Simá, neta de índio, um buquê de flores, acompanhado de um poema
bilingüe:
138
Beijos da aurora / Mimosas flores /Ide a meu bem / aos meus amores,
Ornar-lh´o peito / Peito inocente,/ Catu poranga / que amor não sente.
Que quando amor / lugar lhe pede / Co´inti maan / amor despede.
Às borboletas, / e aos passarinhos,/ Dizei adeus, / não mais beijinhos.
Ditosas flores/ Eré cr´utem, /Jam´ru catu / Sois com meu bem”
(Amazonas 1857: 125).
Embora pareça um texto criado pelo autor, o modelo apresenta uma relativa
convergência com o material recolhido por Couto de Magalhães na região, mencionado
anteriormente. O poema apresenta uma característica lingüística, própria do bilingüismo
social, isto é a alternância das duas línguas num mesmo texto, em que a métrica e a rima
fazem parte constitutiva da sua unidade, ainda que a predominância seja da língua portuguesa,
como parte da caracterização do personagem.
O bilingüismo social na Amazônia do século XIX, especialmente em suas duas
cidades – Belém e Manaus - está representado no discurso literário como uma situação de
oposição e não de complementaridade, de tensão e de conflito e não de harmonia, como
será analisado mais adiante. No capítulo quarto de Simá, quando, numa reunião com os
espanhóis da Comissão de Demarcação, o personagem Régis, comerciante português,
manifesta sua vontade de casar com a neta do índio manau, seu amigo Loiola responde,
zombando de todos os valores indígenas amazônicos, incluindo aí objetos e costumes que já
haviam sido incorporados pela sociedade regional, como a rede, o cachimbo, o tipo de
pente, a forma de se vestir e – como não podia deixar de ser – a língua geral, que era o
elemento mais forte de identidade:
- “Então o meu amigo se casa? E com quem? Com a Mameluquinha
do Remanso? Que ocorrência! Como não há de ser interessante ver o senhor
Régis em seu novo estado! Enfronhado em uma nova importância! Dono de
uma casa a moda do país, mobiliada de redes! Ao procurá-lo, ver aparecer a
Senhora Dona, vestida de descalça, com seu pente de meia lua, carregado de
perendengues, apresentando por toda honra da casa um furioso cachimbo, e a
um obsequioso gracejo, a uma galanteria respondendo-lhe – inti maa -...oh
como não há de ser isto engraçado(...) (Amazonas 1857:59).
139
A ironia no discurso do personagem é o recurso do autor para apresentar, através
da fala de um europeu, a manifestação da atitude frente à LGA, seus usos e funções na
sociedade. Nesse sentido, essa postura discriminadora faz parte da realidade multilingüe da
Amazônia que, desenvolvida com agudeza no registro literário, nem sempre é reconhecida
na documentação histórica tradicional. Lourenço Amazonas, que produziu nos dois tipos de
registro, permitiu-se avançar em Simá, aquilo que deixou de explicitar no verbete Língua
Geral do seu Dicionário Topográfico, ou seja, que o bilingüismo vivido pelos moradores
de Belém e Manaus se dava sob fortes condições de dominação e de opressão, num quadro
no qual a língua materna da elite econômica e política era uma, e a dos fornecedores da
força de trabalho era outra. Uma tinha tradição escrita e, também por isso, era considerada
língua dominante, de prestígio. A outra, sem produção escrita, era discriminada como
língua dominada, inferior.
O diálogo com essa situação de contato entre a Língua Geral e a portuguesa vai
estar presente também na obra de outro autor, o português Francisco Gomes de Amorim. Com
dez anos de idade, ele deixou o seu povoado natal, próximo a Póvoa de Varzim, no norte de
Portugal, e viajou para o Pará, onde viveu durante nove anos. Aprendeu a Língua Geral e, de
volta a Portugal, escreveu, entre outros, os romances ‘Os Selvagens’ e ‘O Remorso Vivo’,
cuja ação se desenvolve no período inicial da Cabanagem, em 1835. Publicou ainda várias
peças de teatro, entre as quais ‘Cedro Vermelho’, em cinco atos, cuja ação se desenvolve
também em plena Cabanagem, em 1837, e ‘Ódio de Raça’, um drama de três atos, focalizando
a escravidão negra na Amazônia.
A situação de contato de línguas e as relações entre o português e a LGA fazem
parte constitutiva da obra, a ponto de o autor elaborar algumas considerações sobre o status
das línguas indígenas e usar estrategicamente a LGA na construção dos personagens, embora
com glosas, caracterizando o seu leitor como de língua portuguesa. Uma das observações
sobre as línguas indígenas reproduz a representação ideológica de contraste ‘língua bárbara/
língua polida’. Na base desta oposição está a conceituação de ‘língua’ quando tem Arte,
(gramática) e publicações, especialmente catecismos. É o caso tanto da referência que ele faz
ao quechua, a polida língua peruviana, como ao harmonioso idioma tupi (Amorim 1875:8),
que consolidaram um relativo prestígio local nas suas respectivas regiões, por tratar-se de
140
línguas gerais com infraestrutura, que até serviram como instrumento de expansão. Já as
línguas particulares, de extensão reduzida, que não desempenham nenhuma função
comunicativa interétnica são referidas como ‘dialetos’, consideradas menores como uma
forma de marcar a sua exclusiva caracterização oral. Numa sociedade letrada, em que a escrita
representa uma instância e até simboliza o poder, essa característica per se faz com que elas
sejam consideradas como bárbaras.
Amorim se serve do léxico em língua geral, sobretudo quando se propõe a construir
cenas interativas, que evocam a sua função oral. Em ‘Os Selvagens’, o personagem Alberto,
de nacionalidade francesa, ao ver o ouro nas mãos dos dois irmãos tapuias, grita e pula de
contentamento, para manifestar o seu entusiasmo, provocando a seguinte reação deles:
-Acánga y’ba! Murmurou Gertrudes em tupi, como se dissesse: -
doido!
-Acánga y’bá nungára! Emendou o irmão, que queria dizer: -
adoidado.
- Enganam-se! – replicou Alberto, sentando-se sobre a carga. – Sei
alguns termos da língua geral, que aprendi comerciando com os índios...Eu
não estou doido, nem sou adoidado, estou alegre, contente, feliz! (Amorim
1875:180)
O recurso utilizado é colocar a glosa em boca do personagem, que serve para
apresentar o léxico de LGA ao leitor. Por outro lado, a questão lingüística aparece
intimamente relacionada a outras práticas sociais, como pode se observar no discurso da
personagem indígena Flor de Cajueiro que, depois de “catequizada”, volta à aldeia
mundurucu e diz ao chefe:
– “Eu já não me chamo Flor de Cajueiro; fui batizada com o nome
de Maria. Aprendi a falar as línguas do branco [o português] e dos índios
mansos [o nheengatu]. Sei quem é o Deus verdadeiro e venho explicar ao
chefe.... (Amorim 1875:.56).

COPYRIGHT JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE

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