domingo, 1 de abril de 2012

LINGUAS DA AMAZÔNIA

evolucionista, próprio a seu tempo, ‘O Selvagem’ é inquestionavelmente simpático à
população indígena e mestiça, buscando valorizá-la enquanto verdadeira e mais fiel
representante da nacionalidade brasileira (Machado 1998: 13).
Quando se discutia ainda o indianismo como instrumento de construção da
identidade nacional, Couto de Magalhães recolocou a temática indígena em bases mais
objetivas, retirando-a do terreno do folclore, “do pitoresco, do plano simplesmente
sentimental a que o romance de Alencar e a poesia de Gonçalves Dias, sem dúvida
respeitáveis, o haviam conduzido.(Moreira 1975:10) Com paixão, mas sobretudo com
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método, ele implodiu a etnografia fantasiada vigente, que reduzia os índios aos padrões dos
romances de cavalaria e propôs um novo caminho, que acabou alimentando o movimento
modernista.
3.6.2 – A literatura regional
Martha – Eu sou filha de Monte Alegre...as cunhãs da minha terra...
Manuel – O que é cunhã?
Martha – É cunhã-tem ou cunhã-mucu
Manuel – Entendo cá o que tu dizes!
Marta – Na sua terra não se fala a língua geral?
Manuel – Ó Martha, tu estás a caçoar comigo?! A língua dos tapuios
não se fala...senão onde há tapuios.
Martha – E em Portugal, não os há? Como isso por lá deve ser triste!
Cunhã quer dizer – mulher; e a mulher donzela chama-se cunhã-mucú.
( Diálogo entre uma tapuia e um português, na peça ‘Ódio de Raça’, de
Francisco Gomes de Amorim (1869 : 113-114).
A Língua Geral, que veiculou a literatura oral na Amazônia, no século XIX, vai estar
presente também na produção literária regional em língua portuguesa, cabendo destacar aqui,
entre outros autores, Lourenço da Silva Amazonas (1803-1864), Francisco Gomes de Amorim
(1827-1891) e Herculano Marcos Inglês de Souza (1853-1918).
Lourenço Amazonas, nascido na Bahia, era capitão-tenente da Armada e foi
nomeado Comandante Militar da Comarca do Alto Amazonas, onde viveu durante muitos
anos, em meados do século XIX. Autor de um dicionário topográfico sobre a Comarca do
Alto Amazonas, publicado em Recife, em 1852, ele compôs um ´Dicionário Túpico-
Português e Português-Túpico, que permaneceu inédito, e escreveu um romance histórico
– Simá (1857) - que reflete a situação de línguas em contato na região (Amazonas
1852:112). 17
17
O dicionário permanece inédito até hoje. A família de Lourenço Amazonas doou os originais manuscritos ao
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Submetido ao parecer de Braz da Costa Rubim, ele pronunciou-se
contra a publicação: “O manuscrito não é outra coisa mais do que um apanhamento geral de grande parte
dos glossários impressos” (RIHGB, 29:397-401, Rio de Janeiro, 1866). Edelweiss considerou o parecer
“estranho”, sobretudo levando-se em conta que o parecerista acabou publicando na mesma revista um
Vocabulário, que aparece como sendo de sua autoria. (Edelweiss 1969:200). Já o romance Simá foi publicado
também em Recife, em 1857. O exemplar que consultamos na biblioteca do IHGB, autografado pelo autor
para o Cônego Pinheiro, está bastante danificado pelas traças.
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Esse romance regional, complementando as fontes históricas tradicionais,
dimensiona a relevância da questão lingüística na identidade amazônica e configura o papel
das línguas, não só como parte da temática indígena, mas como um recurso na construção de
uma narrativa realista. O uso da Língua Geral na própria composição do texto - mesmo
esporádico e ainda que com glosas - representa o fato dela fazer parte das práticas e
intercâmbios sociais. Nesse sentido, Lourenço Amazonas emprega em sua narrativa o mesmo
tipo de recurso que outros dois escritores regionais, Francisco Gomes Amorim e Inglês de
Souza.
A ambientação do romance histórico Simá, cuja ação se desenrola no
período de 1738 a 1758, é uma rebelião de índios, que abalou o rio Negro um século antes,
nas duas últimas décadas de vigência da escravidão indígena. Um dos cenários é o Sítio da
Tapera, lugar de residência de dois personagens, o índio manau Marcos/Severo, e sua neta
Simá, a ´Helena do Rio Negro´. A estratégia do narrador é a de pressupor o
desconhecimento da região por parte do leitor: – “Suponde-vos em viagem no Amazonas” -
de forma que, glosando as palavras de origem tupi, em processo de incorporação ao
português regional, torna ‘inteligível’ a região para o forasteiro. A primeira palavra glosada
é o nome do sítio. “Tapera é, em Língua Túpica (conhecida no país por língua geral), as
ruínas de uma povoação, fazenda ou casa, invadida pelo mato” (Amazonas 1857:3).
As várias referências à LGA contêm informações sobre a atitude dos seus
falantes em relação a ela, no contexto do bilingüismo social, vivenciado por grande parte da
população de Manaus á época em que o romance foi escrito. Proporcionam também, ao
mesmo tempo, dados sobre o grau de avanço do bilingüismo, assim como as soluções que
os falantes encontram para essa situação de contato, usando vocabulário de uma língua
(LGA), quando interagem em outra (português) “É mui bem sabido no País quanto os
indígenas se penhoram de que se lhes fale na Língua Geral e assim também, se falando-selhes
em Português, empregam-se palavras daquela língua em designação e encarecimentos
de certos objetos” (Amazonas 1857:125).
Nesse sentido, é de relativo interesse a incorporação ao texto de uma
composição poética que aparece no capítulo XIII, quando o personagem Regis, comerciante
português, oferta a Simá, neta de índio, um buquê de flores, acompanhado de um poema
bilingüe:
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Beijos da aurora / Mimosas flores /Ide a meu bem / aos meus amores,
Ornar-lh´o peito / Peito inocente,/ Catu poranga / que amor não sente.
Que quando amor / lugar lhe pede / Co´inti maan / amor despede.
Às borboletas, / e aos passarinhos,/ Dizei adeus, / não mais beijinhos.
Ditosas flores/ Eré cr´utem, /Jam´ru catu / Sois com meu bem”
(Amazonas 1857: 125).
Embora pareça um texto criado pelo autor, o modelo apresenta uma relativa
convergência com o material recolhido por Couto de Magalhães na região, mencionado
anteriormente. O poema apresenta uma característica lingüística, própria do bilingüismo
social, isto é a alternância das duas línguas num mesmo texto, em que a métrica e a rima
fazem parte constitutiva da sua unidade, ainda que a predominância seja da língua portuguesa,
como parte da caracterização do personagem.
O bilingüismo social na Amazônia do século XIX, especialmente em suas duas
cidades – Belém e Manaus - está representado no discurso literário como uma situação de
oposição e não de complementaridade, de tensão e de conflito e não de harmonia, como
será analisado mais adiante. No capítulo quarto de Simá, quando, numa reunião com os
espanhóis da Comissão de Demarcação, o personagem Régis, comerciante português,
manifesta sua vontade de casar com a neta do índio manau, seu amigo Loiola responde,
zombando de todos os valores indígenas amazônicos, incluindo aí objetos e costumes que já
haviam sido incorporados pela sociedade regional, como a rede, o cachimbo, o tipo de
pente, a forma de se vestir e – como não podia deixar de ser – a língua geral, que era o
elemento mais forte de identidade:
- “Então o meu amigo se casa? E com quem? Com a Mameluquinha
do Remanso? Que ocorrência! Como não há de ser interessante ver o senhor
Régis em seu novo estado! Enfronhado em uma nova importância! Dono de
uma casa a moda do país, mobiliada de redes! Ao procurá-lo, ver aparecer a
Senhora Dona, vestida de descalça, com seu pente de meia lua, carregado de
perendengues, apresentando por toda honra da casa um furioso cachimbo, e a
um obsequioso gracejo, a uma galanteria respondendo-lhe – inti maa -...oh
como não há de ser isto engraçado(...) (Amazonas 1857:59).
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A ironia no discurso do personagem é o recurso do autor para apresentar, através
da fala de um europeu, a manifestação da atitude frente à LGA, seus usos e funções na
sociedade. Nesse sentido, essa postura discriminadora faz parte da realidade multilingüe da
Amazônia que, desenvolvida com agudeza no registro literário, nem sempre é reconhecida
na documentação histórica tradicional. Lourenço Amazonas, que produziu nos dois tipos de
registro, permitiu-se avançar em Simá, aquilo que deixou de explicitar no verbete Língua
Geral do seu Dicionário Topográfico, ou seja, que o bilingüismo vivido pelos moradores
de Belém e Manaus se dava sob fortes condições de dominação e de opressão, num quadro
no qual a língua materna da elite econômica e política era uma, e a dos fornecedores da
força de trabalho era outra. Uma tinha tradição escrita e, também por isso, era considerada
língua dominante, de prestígio. A outra, sem produção escrita, era discriminada como
língua dominada, inferior.
O diálogo com essa situação de contato entre a Língua Geral e a portuguesa vai
estar presente também na obra de outro autor, o português Francisco Gomes de Amorim. Com
dez anos de idade, ele deixou o seu povoado natal, próximo a Póvoa de Varzim, no norte de
Portugal, e viajou para o Pará, onde viveu durante nove anos. Aprendeu a Língua Geral e, de
volta a Portugal, escreveu, entre outros, os romances ‘Os Selvagens’ e ‘O Remorso Vivo’,
cuja ação se desenvolve no período inicial da Cabanagem, em 1835. Publicou ainda várias
peças de teatro, entre as quais ‘Cedro Vermelho’, em cinco atos, cuja ação se desenvolve
também em plena Cabanagem, em 1837, e ‘Ódio de Raça’, um drama de três atos, focalizando
a escravidão negra na Amazônia.
A situação de contato de línguas e as relações entre o português e a LGA fazem
parte constitutiva da obra, a ponto de o autor elaborar algumas considerações sobre o status
das línguas indígenas e usar estrategicamente a LGA na construção dos personagens, embora
com glosas, caracterizando o seu leitor como de língua portuguesa. Uma das observações
sobre as línguas indígenas reproduz a representação ideológica de contraste ‘língua bárbara/
língua polida’. Na base desta oposição está a conceituação de ‘língua’ quando tem Arte,
(gramática) e publicações, especialmente catecismos. É o caso tanto da referência que ele faz
ao quechua, a polida língua peruviana, como ao harmonioso idioma tupi (Amorim 1875:8),
que consolidaram um relativo prestígio local nas suas respectivas regiões, por tratar-se de
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línguas gerais com infraestrutura, que até serviram como instrumento de expansão. Já as
línguas particulares, de extensão reduzida, que não desempenham nenhuma função
comunicativa interétnica são referidas como ‘dialetos’, consideradas menores como uma
forma de marcar a sua exclusiva caracterização oral. Numa sociedade letrada, em que a escrita
representa uma instância e até simboliza o poder, essa característica per se faz com que elas
sejam consideradas como bárbaras.
Amorim se serve do léxico em língua geral, sobretudo quando se propõe a construir
cenas interativas, que evocam a sua função oral. Em ‘Os Selvagens’, o personagem Alberto,
de nacionalidade francesa, ao ver o ouro nas mãos dos dois irmãos tapuias, grita e pula de
contentamento, para manifestar o seu entusiasmo, provocando a seguinte reação deles:
-Acánga y’ba! Murmurou Gertrudes em tupi, como se dissesse: -
doido!
-Acánga y’bá nungára! Emendou o irmão, que queria dizer: -
adoidado.
- Enganam-se! – replicou Alberto, sentando-se sobre a carga. – Sei
alguns termos da língua geral, que aprendi comerciando com os índios...Eu
não estou doido, nem sou adoidado, estou alegre, contente, feliz! (Amorim
1875:180)
O recurso utilizado é colocar a glosa em boca do personagem, que serve para
apresentar o léxico de LGA ao leitor. Por outro lado, a questão lingüística aparece
intimamente relacionada a outras práticas sociais, como pode se observar no discurso da
personagem indígena Flor de Cajueiro que, depois de “catequizada”, volta à aldeia
mundurucu e diz ao chefe:
– “Eu já não me chamo Flor de Cajueiro; fui batizada com o nome
de Maria. Aprendi a falar as línguas do branco [o português] e dos índios
mansos [o nheengatu]. Sei quem é o Deus verdadeiro e venho explicar ao
chefe.... (Amorim 1875:.56).
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A observação sobre a distribuição das funções lingüísticas está na relação
estabelecida no discurso da personagem. Primeiro, nos símbolos de identidade através dos
nomes da personagem nas duas línguas, em sua oposição, e depois na representação de saber
e verdade em relação às línguas. Isto é, o Deus verdadeiro está contido só e dentro delas. A
ordem representa a hierarquização que delas se faz em relação ao acesso dessa verdade, mas
também o discurso aponta o caráter proselitista que coube à língua portuguesa.
Quanto ao processo de deslocamento de línguas o texto incorpora algumas
informações sobre o quadro sociolingüístico regional, especialmente no que se refere à
presença da LGA e à expansão do português:
- Os Mundurucus do Tupinambarana também falam português e
tupi, que era a língua de seus pais – lhe disse o cacique, num dialeto mesclado,
mas inteligível (Amorim 1875: 167).
No que se refere ao português, o autor reproduz em diversas situações amostras da
variante regional como nessa arenga feita ‘numa meia língua de preto’, que apresenta
características similares à documentação histórica de autoria dos cabanos, analisada no
capítulo anterior.
Meuz amigo! Fômo derrotado em Cuipiranga; perdemo quasi todas
villa do sertão e não sabemo si Rio Negro inda pertence a nós. Entramo no
Madeira, com tenção di pidi os Mura que viesse todo com az outras tribu dos lago
Autaz em nossa ajuda. Os Mura acabam di sê batido dos mundurucus (Amorim
1875 :205).
No entanto, a língua portuguesa em sua norma culta, aparece em boca de
personagens tapuias, indígenas e negros, quando se trata do gênero dramático, como na peça
‘Ódio de Raça’, escrita por sugestão de Almeida Garrett, com o objetivo de contribuir na luta
contra a escravidão negra. O autor dedica um volume inteiro às notas explicativas que
representam uma metalinguagem, em que as informações sobre língua adquirem um espaço
significativamente maior. Assim, justificando porque a fala de uma personagem tapuia está
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elaborada em português padrão, numa peça que foi encenada pela primeira vez em Lisboa, no
teatro Dona Maria II, em outubro de 1854, ele escreve:
- Bem sei que a tapuia está falando em português, mas pensa em
tupi; e se não fala na sua língua é porque o autor entendeu que, neste caso,
devia sacrificar a verdade ao bom senso, e às chamadas conveniências da
cena. Quem a entenderia, e quem me pouparia se eu a deixasse dizer o seu
papel todo em tupy? (Amorim 1869:197-198)
O terceiro autor regional que dá conta da existência de uma situação de contato
entre o português e a Língua Geral é Herculano Marcos Inglês de Sousa (1853-1918). Ele
nasceu em Óbidos, no Pará, no momento em que lá, a Lingua Geral já havia perdido a
hegemonia para o português. Com onze anos, foi estudar no Maranhão e com 14 no Rio de
Janeiro. Cursou Direito em Recife. Foi deputado à Assembléia Provincial, em São Paulo
(1878). Em 1878, elegeu-se presidente da província de Sergipe. Participou da fundação da
Academia Brasileira de Letras (1896), sendo o redator de seus estatutos. É autor do primeiro
romance realista aparecido no Brasil: O Coronel Sangrado (1877). Foi estudado por Lucia
Miguel Pereira, que o considera pioneiro do realismo no Brasil. Passou quase toda sua vida
fora do Pará, mas construiu sua obra literária em cenários amazônicos, cabendo destacar, além
da já citada, ‘O cacaulista’ (1875), ‘Cenas da vida do Amazonas: história de um pescador’
(1876) e ‘O missionário’ (1891).
Na construção do seu texto, o autor investe nos diálogos como parte da
narrativa, destinados a criar uma representação da oralidade. Nesse sentido, em sua obra, a
LGA desempenha uma função importante. Na caracterização dos personagens -
relacionamentos entre caboclos, e de caboclos com outros grupos - a maior parte do léxico
de natureza interativa - saudações, comentários, fórmulas de cortesia, interjeições - estão
em LGA.
O Coronel Sangrado está repleto de exemplos, como no diálogo entre a viúva de um
português e seu compadre caboclo:
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- Aré, Aré, sinhá dona, isto já vão sendo horas de a gente voltar para o
sítio. Até curi. (em nota de pé de página esclarece: curi = logo) (Sousa
1877: 106).
Ou então, na fala de outro personagem:
- Eré, minha gente, avia... (Eré, sim, de acordo).
No Cacaulista, escrito em Recife, em 1875, o autor apresenta, no final, notas com um
pequeno glossário, que permite a compreensão de diálogos como este:
- Como tem passado, tia Maria?
- Miri-miri, nhô tenente, como uma pobre velha que S. Bom Jesus dos
Passos ainda deixa andar por este mundo (....) A caroára não me deixa...
(Sousa 1973: 104).
Também, no diálogo da viúva de um português, dona Ana, falando com um caboclo
remeiro:
- Eanecuema, nha branca – disse então tirando o chapéu.
- Eanecuêma (bom dia) – respondeu a viúva do João Faria (Sousa 1973:9)
Quando o autor, como narrador, descreve os ambientes locais, também usa um
léxico de LGA, embora na maioria já integrado ao português regional e, muitas vezes, já
dicionarizado: urupema, cunhatã, curumim, taquari, pindoba, tipiti, cuiambúca, caroára e
outros.
Se a hipótese sobre este autor é a de que ele foi efetivamente um dos pioneiros do
realismo no Brasil, podemos supor que a presença da LGA no texto significa a
representação de que essa língua fazia parte das práticas sociais de interação e, portanto,
estava presente na identidade regional, demarcando as relações entre o português e a LGA.
Assim, as situações lingüísticas de passagem de código e o uso das duas línguas num
continuum nas práticas conversacionais representam as relações sociais entre ambas as
línguas.
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A importância da oralidade na composição do texto pode ser também avaliada na
abordagem da própria língua portuguesa. Na elaboração da fala de alguns personagens,
índios ou caboclos falando português, um certo ‘naturalismo’ leva o autor a representar
essas falas com uma tentativa de fidelidade fonética, isto é, reproduzindo graficamente
alguns fenômenos de transferência da LGA ao português que, por exemplo, altera a
qualidade vocálica, como nesse diálogo, que aparece em ‘O missionário’, travado entre os
dois personagens: um padre e uma tapuia.
- Não haverá aqui por esta vizinhança alguma embarcação? perguntou Padre
Antonio de Morais.
Não havia. Onde havera de sê incontrá ua igarité por estes mondo? responderalhe
a tapuia na linguagem dura e arrastada.
Para cima do rio, continuou, gesticulando gravemente, cantando as palavras
uma a uma, prolongando as vogais, na impassibilidade de quem fala somente
para se ouvir a si próprio (...) E depois, respondendo a uma pergunta que
adivinhava nos olhos do Padre:
- ‘Stão na sarga, disse com um gesto largo, indicando distância.
E prosseguiu no tom dolente e monótono das caboclas, cortando as frases para
acentuar uma palavra, prolongando o som das vogais até penetrarem bem no
ouvido do interlocutor.
- Haverá dê achá...canua. Só sê fosse alguma...montarizinha...de pescá, como seu
Guierme...tem...uma...,munto....velha, bem velhi...nha...que nem nhá vó.
- Onde está essa montaria? Indagou sofregamente Padre Antônio.
-Stá nu purto, respondeu a tia Teresa. E continuou a deleitar os ouvidos do Macário
com sua melopéia plangente.(Souza 1998:169)
Esses três autores regionais – Lourenço Amazonas, Francisco Gomes de Amorim e
Inglês de Sousa - podem ser estudados também na perspectiva do campo denominado por
Carlos Pacheco de ‘literaturas alternativas’. Segundo Pacheco, a introdução da escrita
alfabética por parte dos europeus no momento da Conquista, longe de constituir uma
simples mudança técnica, significou a inauguração de uma prática cultural inédita que
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afetou de maneira drástica todo o continente, onde predominava a oralidade. Nesse sentido,
em seu trabalho “La Comarca Oral”, ele defende a existência desse campo novo, para os
estudos literários, composto por um conjunto sumamente numeroso e diverso de textos
antigos e modernos. Esse conjunto, caracterizado pela interculturalidade, se define pelo seu
vínculo com fontes orais tradicionais de raiz indígena ou mestiça, com todas as implicações
retóricas e culturais que decorrem daí. Ele destaca três enfoques possíveis:
1. O estudo do sistema de textos denominado “literatura
testemunhal”, cuja autoria se deve geralmente a escritores profissionais ou a cientistas
sociais, mas sempre com base em coleta com informantes qualificados, tentando preservar
na obra resultante a estrutura narrativa e o estilo peculiar de sua fonte oral. Aqui
poderíamos situar os numerosos relatos recolhidos por Couto de Magalhães, Barbosa
Rodrigues, Stradelli, Brandão Amorim no século passado ou a recente publicação de
autoria de dois índios Desana do alto Rio Negro – Panlon Kumu e Kenhiri - recolhidos por
Berta Ribeiro, intitulado “Antes o Mundo Não Existia”.
2. A análise de diversas formas de apropriação e elaboração estética
dos elementos provenientes de fontes míticas indígenas ou africanas em obras como as do
poeta amazonense Elson Farias, ou de Miguel Angel Asturias e José Maria Arguedas, entre
outros.
3. O estudo das diversas soluções encontradas para o problema do
bilingüismo e da diglóssia em áreas socioculturais, onde uma língua de origem européia
concorre com uma língua vernácula, insubstituível na comunicação de certos conteúdos
vinculados em geral à esfera da intimidade, da afetividade, da vida familiar e comunitária,
da religião e dos mitos. Aqui podemos talvez enquadrar os autores acima citados (Pacheco:
1992: 12-13).
A abordagem que pretendemos dar à trajetória das línguas na Amazônia colonial
tem como pressuposto a relação com esse campo da denominada “literatura alternativa”,
entendendo que o imaginário da língua sustenta-se na existência de um conjunto de obras que
contribuem para proporcionar-lhe coesão e que as manifestações literárias desempenham um
papel capital na delimitação social das línguas.
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A discussão aqui apresentada, com uma proposta de periodização e uma síntese do
processo histórico desde o período colonial, pretendeu caracterizar e localizar essas línguas,
espacial e temporalmente, de forma que nos permita, no próximo capítulo, aprofundar a
análise sobre a situação da Língua Geral no século XIX e identificar as razões que
motivaram o seu declínio.
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4. A LGA NO SÉCULO XIX: A HEGEMONIA PERDIDA
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4.1 - De volta à aldeia
“É singular costume o das índias que tendo o hábito de falar português
envergonham-se de falar tupi; e só recorrem à língua natal quando se
embriagam!” (Amorim, F.G 1869:299).
No século XVII, a Língua Geral Amazônica se tornou a língua “a que aprendem as
novas nações que vão saindo dos matos e a que estudam os missionários brancos”,
passando por um crescente processo de expansão social e geográfica, que se prolongou por
todo o século XVIII. Saiu dos limites das aldeias Tupinambá, alastrou-se pelos aldeamentos
missionários do Grão-Pará, unificando agrupamentos que eram formados, como regra geral,
por “trinta a quarenta nações diversas, com idiomas tão diferentes que não têm conexão
alguma entre si”, segundo avaliação feita por um missionário jesuíta, em 1767, depois de
século e meio de colonização e catequese (Daniel 1976 t.II: 227). Desta forma, a LGA
subiu os rios Amazonas e Solimões, galgou os seus principais afluentes, infiltrou-se em
vilas e povoações, ganhou as cidades, deu mostras de vitalidade e vigor, atingindo uma
universalidade regional, na medida em que era usada por todos os indivíduos, incluindo
portugueses e africanos, qualquer que fosse o seu lugar na produção, seja como língua
materna ou como segunda língua, numa variedade de funções. Cresceu com um relativo
apoio institucional, que pode ser observado na publicação e circulação de Artes,
Vocabulários e Catecismos, assim como em algumas medidas ‘protecionistas’ por parte da
administração colonial, estimulando seu uso, seja no aparelho escolar, seja nas práticas
burocráticas ou religiosas.
Depois de haver analisado a formação e expansão da LGA, com ênfase nos dois
primeiros séculos de colonização, vamos centrar o foco no século XIX, quando começa o
seu declínio, com a perda progressiva de usos e usuários para a língua portuguesa. A LGA
foi afastada, então, do perímetro ‘urbano’ e, portanto, das práticas sociais de maior
prestígio, abandonando grandes áreas onde era hegemônica, como o rio Solimões e o baixo
Amazonas, para ficar confinada nos núcleos indígenas do rio Negro. Assim, no século XX,
bastante transformada, ela permanece nas malocas, como uma língua definitivamente
indigenizada, circunscrita apenas às aldeias e aos usos restritos das práticas sociais nelas
exercidas. As evidências desse processo serão apresentadas aqui, a partir de uma reflexão
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sobre a questão demográfica, relacionada com os falantes das línguas, que proporcionem
elementos para reconstruir o mapa da LGA no século XIX e sua distribuição, tanto nas
cidades, quanto nas vilas, povoações e aldeias.
4.2 - A questão demográfica
“Assim, estabelecidos e domiciliados os naturais do país fora das Povoações, [...] não
se pode por elas computar a população, retirada às cabeceiras de inúmeros lagos,
rios e igarapés. [...].He bem sabido a repugnância do povo ainda nas maiores e mais
civilizadas de nossas cidades para se prestar ao arrolamento, e com ela o defeito, ou
erro a respeito de sua estatística (Lourenço Amazonas 1852:23).
O Estado do Grão-Pará – uma das duas colônias portuguesas da América –
permaneceu subordinado politicamente a Portugal, quando a outra – o Estado do Brasil –
proclamou sua Independência, em setembro de 1822. Quase um ano depois, em agosto de
1823, o Grão-Pará aderiu ao Brasil independente, formando juntos um único estado
nacional, que conservou o nome de Brasil, e reservou a designação de Pará para a nova
província brasileira. Desta forma, com o Pará, o novo estado incorporou um imenso
território, de mais de 3.500.000 km²., banhado pelos rios da bacia amazônica, e coberto
pela floresta tropical, que correspondia a 42% da área total do país. Incorporou também,
com esse território, a população que nele vivia: de um lado, os índios, que habitavam a
floresta, em um incontável número de aldeias; de outro, os paraenses, que residiam em duas
cidades, 44 vilas, 60 povoações e centenas de vilarejos, freguesias, lugares, sítios e
fazendas, além de seringais, barracões, castanhais, balatais, ‘colocações’ e outros pequenos
agrupamentos extrativistas (Spix & Martius 1981:40-41). Acontece que os paraenses,
estimados em 180.000 pessoas, embora chamados a assumir a identidade brasileira, não
podiam interagir com o resto do país, cuja população era aproximadamente de 4.000.000 de
indivíduos. E isto porque esses novos brasileiros, usuários em sua maioria da Língua Geral,
não falavam a língua nacional - o português – como língua materna, criando assim uma
dissonância com o resto do Brasil.
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O termo ´maioria de falantes´ é comumente empregado para caracterizar a situação
socio-lingüística da Amazônia, na primeira metade do século XIX, mas essa caracterização
não vem sustentada por dados estatísticos. A afirmação de que a LGA era majoritária tem
sido reproduzida, sem maiores questionamentos, como um axioma, da mesma forma que a
passagem de ‘língua majoritária’ para ‘língua minoritária’, na segunda metade do século
XIX, é aceita, sem o apoio de fontes demográficas, como um pressuposto que dispensa
demonstração. As referências são sempre vagas e imprecisas, sem indicação de quantos
indivíduos efetivamente a falavam, quantos a deixaram de usar, qual era a faixa etária e o
sexo deles, como eles se distribuíam pelo espaço geográfico, qual era a sua proporção em
relação aos falantes do português e de outras línguas indígenas, como é que esse quadro foi
evoluindo ao longo do século, enfim, como se deram as variações populacionais através do
tempo. As dificuldades de se encontrar respostas a estas questões são, praticamente,
insuperáveis, porque desde o período colonial até os dias atuais, não existem levantamentos
confiáveis de demografia indígena, muito menos censos que contemplem a variável língua.
O Censo Demográfico de 1940, considerado um dos melhores já efetuados no Brasil,
foi o único que se preocupou em identificar algumas línguas e quantificar os seus falantes, e
por isso, embora fora do período que nos interessa, merece ser aqui destacado. Naquele
momento, às vésperas da Segunda Guerra, o governo brasileiro tinha interesse, em função
da conjuntura internacional, de identificar e localizar os estrangeiros que viviam no Brasil.
A estratégia usada foi mapear as línguas que falavam. Com esse objetivo, duas perguntas
foram introduzidas nos boletins do censo: “o recenseado fala correntemente o português?
Que língua fala habitualmente no lar?” A tabulação dos dados mostrou que, do total dos
que não usavam o português em casa, 3.6% eram constituídos por falantes “da língua
guarani ou outra língua aborígene”, dos quais mais de dois terços estavam concentrados
na Amazônia. No entanto, os dados continuavam imprecisos, porque o guarani foi a única
língua indígena nomeada, sendo as demais diluídas na categoria de ‘outra’. Os responsáveis
pelo Censo advertiram ainda que o levantamento era incompleto e parcial, pois haviam
ficado de fora “dezenas de milhares, e talvez algumas centenas de milhares, de silvícolas”,
os quais escapavam ao controle dos órgãos governamentais brasileiros, que não tinham
acesso a eles (IBGE 1950:7, 35, 106-107).
151
Era esse o quadro precário, na metade do século XX, quando já existiam instituições
e centros especializados dedicados exclusivamente a coligir dados populacionais com fins
estatísticos. Mesmo hoje, no início do século XXI, o Brasil não sabe, com precisão, quem
são – e sequer quantos são - os falantes atuais de línguas indígenas, embora o uso de
computadores e de técnicas refinadas facilite, agora, a coleta e o processamento de dados
censitários. Se isso ocorre nos séculos XX e XXI, podemos inferir as dificuldades
intransponíveis de acompanhar o número de falantes de LGA, através do século XIX, num
período classificado pela demografia histórica de proto-estatístico, quando não existiam
dados numéricos populacionais em séries contínuas, longas e representativas,
indispensáveis para avaliar a estrutura, os movimentos e a evolução da dinâmica
populacional. As iniciativas censitárias de caráter geral, no Brasil, são tardias e irregulares,
com o primeiro recenseamento nacional só ocorrendo em 1872.
Diante dessas dificuldades, a questão demográfica, considerada como terreno
movediço e minado, não foi trabalhada adequadamente pelos especialistas da área,
deixando de oferecer aos estudiosos da Amazônia, inclusive de sua história econômica e
social, as informações pertinentes. No entanto, qualquer análise histórica pressupõe
hipóteses, implícitas ou explícitas, sobre a maior ou menor densidade demográfica da
região, o que obrigou os estudos regionais a operarem com estimativas sobre a população,
umas mais arbitrarias e subjetivas que outras, algumas partindo de critérios menos
rigorosos que outros, mas todas assumindo alguns pressupostos demográficos, sem os quais
é impossível interpretar os fatos econômicos e sociais. A própria situação dos falantes da
Língua Geral na Amazônia só poderá ser devidamente equacionada, tendo como ponto de
partida o conhecimento prévio – por precário que possa ser – do tamanho e da distribuição
da população.
Os dados demográficos, no entanto, simplesmente não existem para certas áreas e
certos períodos. Quando existem, são incompletos, insuficientes, dispersos e descontínuos.
E hoje, já não é mais possível realizar um levantamento, para preencher as lacunas deixadas
no século XIX. Essas limitações, porém, devem servir, não como um impedimento para
tratar o problema, mas como um indicativo para elaborar estratégias de abordagem. A
152
demografia histórica francesa, por exemplo, conseguiu, nas últimas décadas, resultados
surpreendentes, ao “transformar os dados históricos em dados demográficos, usando para
isso técnicas especiais de tratamento” (Henry 1972: 33). Aos especialistas, cabe propor
inovações teóricas ou metodológicas na abordagem do tema; aqui, nos limitaremos apenas
a explorar algumas fontes demográficas, conhecidas mas pouco trabalhadas, que nos
permitam acompanhar as tendências gerais da população amazônica no período estudado,
com o objetivo de correlacioná-las, quando possível, com a evolução do quadro
sociolingüístico.
O quadro está configurado, mas seu contorno é ainda impreciso. Algumas evidências,
baseadas nas impressões dos viajantes, mas sem qualquer apoio estatístico, sinalizam que a
Língua Geral Amazônica teve o número de seus falantes diminuído e sua área de influência
reduzida, ao longo do século XIX, quando perdeu sua supremacia na região. Esse processo,
porém, nunca foi submetido a uma cronologia, também não foi quantificado, embora tal
possibilidade exista. Na ausência de recenseamentos oficiais, é possível encontrar dados
numéricos sobre a população em documentos produzidos pela Igreja – os censos
eclesiásticos; pela Polícia – as listas nominais dos distritos; pela Coletoria de Rendas – as
relações feitas pelos coletores da décima urbana e das rendas provinciais; pela Diretoria de
Índios – os mapas de índios aldeados; e pela administração provincial – os arrolamentos
populacionais publicados nos relatórios e mensagens dos presidentes de província,
encaminhados anualmente à Assembléia Legislativa.18 Essas fontes podem ser
complementadas e cruzadas com outros documentos não estatísticos, como os relatos dos
naturalistas e viajantes, os estudos de corografia da região, os jornais e periódicos de
circulação local e, até mesmo, as narrativas de literatura regional. No que se refere às três
últimas décadas, dispomos dos censos nacionais, organizados por um órgão especializado,
criado em 1870 - a Diretoria Geral de Estatística. Embora também deficientes e
18 As províncias/estados enviavam diretamente ao Arquivo Nacional as falas, mensagens, relatórios e outros
atos, cujo conhecimento julgassem conveniente. Anualmente, na abertura dos trabalhos das Assembléias
Legislativas Provinciais/Estaduais, o presidente da Província (e depois o governador do Estado) fazia um
balanço geral da situação da unidade política que ele governava, com relatórios anexos, abordando questões
de saúde, educação, segurança, obras públicas, orçamento, culto divino, administração de justiça, estatística e
outros. Na maioria das províncias, onde a presença indígena era marcante, esses relatórios abriam um capítulo
específico sobre a catequese e civilização de índios. Atualmente, essa documentação pode ser acessada, via
internet, através do site da Universidade de Chicago.
153
incompletos, os censos nacionais constituem a fonte mais útil e confiável de dados
demográficos, e permitem, mesmo não tendo contemplado a variável língua, algumas
importantes inferências sobre a situação de seus falantes.
Trata-se, portanto, de explorar esses instrumentos para acompanhar as mudanças
populacionais, o que é um desafio para a demografia histórica. Aqui trabalharemos apenas
alguns desses documentos. O nosso ponto de partida é o censo do Estado do Grão-Pará,
reproduzido por Spix e Martius, que mapeou 106 núcleos populacionais de suas duas
províncias: a do Pará e a do Rio Negro. O censo eclesiástico do Pará foi elaborado, em
1820, por um religioso da época, com base nas listas nominais de habitantes das paróquias
e nos assentamentos paroquiais, que funcionavam como uma espécie de ´registro civil´; os
seus resultados se limitam a indicar o total de moradores de cada vila e povoação. Mas o
mapa da província do Rio Negro, organizado pelo ouvidor em 1814, apresenta, além disso,
o número de fogos de cada um dos lugares e discrimina a população, de acordo com sua
procedência étnica e sua condição social, usando as categorias de escravos, índios, e livres
sem índios, incluindo, nesta última, brancos, mamelucos e mestiços. Essa informação é de
grande importância, porque permite estabelecer relações de setores da população com as
línguas que falavam. No entanto, é preciso ter presente as limitações deste tipo de censo,
observadas com propriedade por Spix e Martius, quando passaram por Porto de Moz, no
Xingu, cuja população, estimada por eles em mais de 1.000 almas, contrastava com os 210
indivíduos que figuravam na lista paroquial:
“Esses dados, assim como todas as listas de população, são aqui, no país,
tirados dos livros paroquiais. Incluem, portanto, apenas aqueles que não só
freqüentam a igreja, mas também participam dos sacramentos, e, portanto
apenas uma parte mínima de índios que, em geral, só se deixam batizar pelos
padres, porque daí auferem as vantagens do compadrio” (Spix & Martius
1981: 86).
Na realidade, o resultado do censo eclesiástico era, apenas, a soma da população
religiosamente ativa de um determinado universo e não a soma de toda a população deste
154
mesmo universo. No entanto, mesmo excluindo de suas listas os moradores afastados dos
sacramentos, este censo, se usado com um certo cuidado, pode ser de grande utilidade,
porque embora não nos proporcione “absoluta certeza dos números”, nos dão, no entanto,
“uma justa idéia da proporção da população de cada lugar” (Spix & Martius 1981: 39).
A evolução demográfica do Pará, nas duas décadas seguintes, poderá ser avaliada,
usando os dados de outro arrolamento, o de 1840, igualmente incompleto, cuja fragilidade
ficou patente, quando o número de habitantes arrolados foi confrontado com o número de
casas e com o pagamento da décima urbana. Por isso, o próprio presidente da Província,
Bernardo de Souza Franco, apresenta dois resultados: um, “segundo os arrolamentos” e o
outro, “segundos cálculos aproximados”, considerando esses últimos mais confiáveis (RP -
Franco 1841:51).
Quanto à Comarca do Alto Amazonas, os dados parciais do arrolamento de 1840,
foram organizados por seu comandante militar, Lourenço Amazonas, baseado em listas de
moradores das povoações, divididos em categorias de brancos, índios e mamelucos, o que
oferece pistas para o uso das línguas. No entanto, é recomendável usá-lo com precaução, já
que os seus resultados podem ter sido adulterados pelos procedimentos de confecção das
listas, que desconsideraram as formas de vida da população amazônica e as especificidades
da economia regional. É que os moradores tinham, de fato, dois domicílios. Na maior parte
do ano, eles permaneciam ocupados com a extração de produtos naturais da floresta,
residindo em sítios ou em fazendas, às margens de inúmeros rios, lagos e igarapés, longe
das povoações, às quais retornavam somente por ocasião das festas religiosas. Desta forma,
no domicílio mais acessível, a totalidade da população podia ser encontrada apenas duas
vezes ao ano - na festa de São João e no Natal – quando as famílias atulhavam “as mais
arruinadas casas, telheiros e tijupás”, chegando algumas delas até mesmo a “morarem
nas canoas todo o tempo de sua estada”. Ficavam aí pouco tempo, com receio de serem
recrutados para o trabalho compulsório de prestação de serviços a particulares ou para as
obras públicas. No outro domicílio, formado por um labirinto de água e floresta, os
responsáveis pelos arrolamentos censitários não chegavam, deixando assim, de fora dos
mapas, um número expressivo de habitantes. Por isso, esse censo de 1840 foi confrontado,
155
pelo presidente da Província do Pará, João Antônio de Miranda, com as listas da Guarda
Nacional, para verificar, em alguns casos, a dimensão dessa lacuna (Amazonas 1852: 23-
24).
Na tentativa de acompanhar a trajetória dos falantes da Língua Geral, os dados
desses dois censos (1820 e 1840), imperfeitos e irregulares, serão explorados aqui
juntamente com documentos da década de 1860, quando a polícia era “a única repartição
aproveitável para a estatística”. Nesse período, o chefe de polícia conseguiu a participação
dos agentes policiais de cada distrito nas operações censitárias. Eles visitavam casa por
casa, anotavam e lançavam os nomes de cada um de seus moradores no caderno de censo,
com algumas informações complementares, remetendo em seguida as listas nominais para a
“repartição central, onde era feito o cálculo do censo sobre essa base positiva”. Lá, todos
os nomes das listas eram somados, obtendo-se assim o total da população do distrito.
Finalmente, através das adições parciais de cada distrito, chegava-se ao total dos habitantes
da Província. Numa época em que não se sabia com segurança qual era a população do
Brasil ou da capital do Império, estimada sobre cálculos de probabilidade, essa singela
operação aritmética foi considerada como de “mais alta fidelidade” pelo deputado
alagoano A. C. Tavares Bastos (1839-1875), estudioso dos problemas amazônicos, para
quem a Província do Amazonas, a menos povoada do Império, era, no entanto, “talvez a
única de cuja população haja registros dignos de fé”. Depois de viajar pela calha central
do rio Amazonas, em 1865, ele admitiu que as listas podiam ser incompletas, mas
apresentavam uma vantagem: “fica-se conhecendo, graças a essas listas nominais, o
minimum dos habitantes de uma província inteira. Já isto é alguma coisa” (Bastos
1975:128-129). Outra era a opinião do presidente da província, Francisco José Furtado, que
chamou a atenção para a “inexatidão de tais somas (...) muitas vezes aumentadas por
ambições e interesses individuais” (RP - Furtado 1858: 15).
Por último, restam as últimas três décadas do século, que testemunharam a drástica e
acelerada redução de falantes da Língua Geral. Esse período será abordado, a partir dos
resultados dos dois censos nacionais (1872 e 1890), organizados pela Diretoria Geral de
Estatística, que recenseou os habitantes do país, segundo o sexo, cor, estado civil, religião,
156
nacionalidade, instrução, idade e profissão, bem como o número de casas habitadas e fogos
de cada paróquia. Organizados com critérios mais rigorosos do que os levantamentos locais
e regionais, esses censos nacionais, no entanto, foram efetuados, na Amazônia, em plena
“época das vazantes dos rios, quando se tornam difíceis as comunicações para o interior”,
e grande parte da população, localizada em lagos e em seringais, fica privada do único meio
de transporte – o fluvial – “impossibilitando, dessa forma, que os recenseadores fizessem
um serviço completo. Houve, necessariamente, vultosas omissões” (Bittencourt 1925: 154).
O próprio poder político ressentia-se de dados mais precisos, capazes de informar
suas decisões, conforme as queixas dos sucessivos presidentes provinciais, tanto do Pará
quanto do Amazonas, nos relatórios anuais enviados à Assembléia Legislativa Provincial.
Um deles, o presidente da Província do Amazonas, José Paranaguá, em março de 1883,
demonstrou seu descontentamento, da mesma forma que seus antecessores, em relação a
todos esses censos, incluindo o nacional, de 1872, fazendo, contudo, uma generalização
improcedente:
“As informações que possuímos são muito imperfeitas, a tal ponto que se pode
afirmar que todos os cálculos sobre a população total do Amazonas se apoiam
em vagas induções e não passam de pura fantasia” (RP - Paranaguá 1883: 14).
Na realidade, a ´imperfeição´ foi, como vimos, uma marca de todas as operações
censitárias e sua explicitação aqui tem a finalidade de indicar até onde seus resultados
podem ser usados. No entanto, classificá-las de ´pura fantasia´, é renunciar a qualquer
possibilidade de abordagem da questão demográfica. Portanto, a partir dessas “vagas
induções” é que se tentará desenhar aqui o mapa da Língua Geral na Amazônia, no século
XIX, com a consciência dos riscos de representar a dinâmica da população
através da comparação de resultados obtidos por procedimentos tão heterogêneos e
precários.
157
4.3 - O mapa da Língua Geral
“A Língua Geral [...] é a universal intérprete em toda a Província do Pará. Fala-a toda
a nação indígena, que se relaciona nas Povoações. Nas Cidades, fala-se da porta da
sala para dentro; e nas Vilas e demais Povoações, excetuada Pauxis no Baixo-
Amazonas, é a única, não por se ignorar a portuguesa, mas porque, constrangidos os
indígenas e os Mamelucos em falá-la, pela dificuldade de formarem os tempos dos
verbos, do que os dispensa a Geral, respondem por esta se lhes pergunta por aquela”.
Lourenço Amazonas (1852:104).
As cidades, vilas e povoações da Amazônia nasceram, em geral, de antigas aldeias
das missões e de fortalezas do período colonial, mas também de ´currais de índios´ - uma
espécie de arraial para abrigo temporário das tropas de descimento e de resgate. Na segunda
metade do século XVIII, seus habitantes, basicamente índios, tiveram de ajustar-se às novas
diretrizes pombalinas para que, nas aldeias transformadas em vilas, as casas fossem
construídas com “uniformidade e retilineidade” (Delson 1997: 53). Quando Lourenço
Amazonas esboçou o quadro lingüístico da região, em 1852, a uniformidade desses
aglomerados urbanos era conferida, de fato, não pelo arruamento, mas pela Língua Geral,
que ainda predominava em muitos lugares, convivendo em situação de crescente
bilingüismo com a língua portuguesa, que avançava nas cidades, e penetrava em algumas
vilas e até mesmo nas povoações.
Se interrogarmos os documentos históricos do século XIX, é possível desenhar um
mapa, mesmo precário, com a distribuição geográfica dos falantes de Língua Geral por toda
a Amazônia, mostrando como o processo de expansão que vinha ocorrendo desde o período
colonial foi desacelerando, e como suas fronteiras, extremamente móveis, foram se
retraindo progressivamente, década após década, até o início do século XX, quando ficaram
confinadas à região do rio Negro, aonde originalmente nem sequer havia sido falada
qualquer língua da família tupi. Esta transformação, razoavelmente documentada, não se
deu, portanto, abruptamente, mas prolongou-se por muitas gerações de moradores, que
foram abandonando gradualmente o uso de suas línguas indígenas, incluindo a LGA, em
favor do português e, com essa troca, foram mudando também as próprias referências
identitárias. Com apoio de evidências históricas, podemos imaginar vários cenários desse
desse deslocamento lingüístico, cuja evolução pode ter ocorrido, grosso modo, da seguinte
forma:
158
DESLOCAMENTO LINGÜÍSTICO NA AMAZÔNIA
ALDEIAS DE ORIGEM
Monolingüismo (LV)
Índio "selvagem"
VILAS E POVOADOS
Monolingüismo (LGA)
Índio "tapuio"
CIDADES
Monolingüsimo (LP)
Caboclo (amazonense/paraense)
CIDADES
Monolingüismo (LP)
Caboclo (amazonense/paraense)
CIDADES
Monolingüismo (LP)
Caboclo (amazonense/paraense)
CIDADES
Bilingüismo(LGA-LP)
Índio "civilizado"
VILAS E POVOADOS
Monolingüismo (LGA)
Índio "tapuio"
VILAS E POVOADOS
Monolingüismo (LGA)
Índio "tapuio"
VILAS E POVOADOS
Bilingüismo (LVS-LGA)
Índio "manso"
ALDEIAS DE ORIGEM
Monolingüismo (LV)
Índio "selvagem"
ALDEIAS DE ORIGEM
Monolingüismo (LV)
Índio "selvagem"
Legenda:
LV: Língua Vernácula;
LVS: Línguas Vernáculas;
LGA: Língua Geral Amazônica;
LP: Língua Portuguesa
159
1) Os índios tribais, em suas aldeias de origem, eram monolingües e usavam a
língua vernácula (LV) em todas as práticas sociais da comunidade, sendo
identificados pela população local, da qual se encontravam completamente
isolados, como ‘selvagens’ ou ‘brabos’;
2) Muitos desses monolíngües - em geral adultos, do sexo masculino - saíam
compulsoriamente de suas aldeias, requisitados como força de trabalho pela
sociedade regional, e aí encontravam indivíduos de diversas procedências
lingüísticas, todos eles interagindo em outra língua – a Geral – o que implicava
práticas bilíngües (LV x LGA), com níveis diferentes de competência.
Adquiriam nova referência identitária, sendo conhecidos como ‘índios mansos’.
3) Os índios ‘mansos’, bilingües, quando fixavam residência fora da aldeia de
origem, em vilarejos e povoados, abandonavam - por falta de interlocução - as
suas práticas sociais em LV, e deixavam de legar aos seus descendentes essa
língua, criando as bases para o monolinguismo, desta vez em LGA, que passava
a ser, então, a língua materna de seus filhos, convertidos agora em ‘índios
tapuios’.
4) Mantidas essas condições, a nova geração de falantes consolidava a sociedade
tapuia, reproduzindo a LGA e o monolingüismo. No entanto, no caso de migrar
para as cidades, sobretudo após a Independência, os tapuios interagiam
necessariamente em português para certas práticas sociais, e em LGA para
outras, integrando-se, assim, a uma comunidade bilíngüe (LGA-LP). Por usarem
o português, considerado ´língua de civilização´, tornavam-se ‘índios
civilizados’.
5) Essa comunidade bilíngüe, formada por falantes LGA-LP, abrigava também um
número crescente de imigrantes, monolíngües em português, identificados com a
língua nacional, considerada como língua de prestígio. Nesse confronto, a LGA
ia deixando de funcionar nos espaços onde atuava, sendo substituída, então, pelo
português, criando as condições para o monolingüismo (LP). Esse falante do
português regional, monolingüe, é o amazonense ou paraense: o ‘caboclo’.
160
A nomenclatura aqui usada corresponde a uma tipologia proveniente de categorias
nativas, usadas pelas próprias populações locais, e incorporadas na documentação e nos
relatos sobre a região, que ainda circulam nos discursos regionais, ainda que com seus
significados atualizados. É importante assinalar que, embora essa classificação acione
elementos com forte conotação étnica, o principal critério distintivo está relacionado aos
usos das línguas em situação de contato.
O ritmo e a natureza de cada fase desse processo, que transforma o índio ‘selvagem’
em ‘paraense’ ou ‘amazonense’ depende do tipo de contato, do lugar em que ele ocorre e
das práticas sociais, incluindo aí casamentos mistos, mestiçagem, escolaridade, atividades
religiosas, fluxo de imigrantes europeus e nordestinos, sistema de comércio e de transporte,
enfim o próprio processo de urbanização. Essas mudanças, que envolveram várias gerações,
alternando monolingüismo e bilingüismo, apresentam um fluxo que pode ser
esquematizado da seguinte forma:
SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA REFERÊNCIA IDENTITÁRIA
1. Monolinguismo (LV) Índio tribal, ‘selvagem´, ´brabo’
2. Bilingüismo (LV-LGA) Índio ‘manso’
3. Monolingüismo (LGA) Índio ‘tapuio’
4. Bilinguismo (LGA-LP) Índio ‘civilizado’
5. Monolinguismo (LP). ‘Caboclo’: paraense, amazonense
Numa ponta, as línguas indígenas minoritárias; na outra, o português; no meio do
processo, a Língua Geral. O quadro acima confere visibilidade ao papel desempenhado pela
LGA, evidenciando que ela, a médio e longo prazo, depois de ocupar vários espaços,
tornou-se uma ponte para a portugalização da Amazônia, modificando as referências
identitárias de sua população. A Língua Geral ‘amansava’ o índio ‘selvagem’ e ‘brabo’; a
Língua Portuguesa ‘civilizava’ o índio ‘manso’, o que ocorreu com tal intensidade, que foi
mudando a proporção de cada segmento no conjunto da população. Esse fato determinou
também mudanças, ao longo do tempo, nos significados dos termos que designavam cada
categoria. No final do século XIX, quando este processo se achava consolidado, todas essas
referências identitárias ficaram condensadas, de acordo com o Glossário Paraense, nos
161
termos ‘tapuio’ ou ‘caboclo’. O primeiro é definido como “índio manso, já meio civilizado,
que vive entre a população sertaneja. § Caboclo ignorante e rude. Etim. Tapyia, bárbaro,
selvagem”. A definição do segundo evidencia como a questão da língua é central para
marcar a identidade: “Caboclo, s.m. – tapuio ou seu mestiço que já não se exprime no,
completamente esquecido, nheengatu materno” (Miranda 1968:12, 86).
Esse modelo vale para explicar a evolução do quadro sociolingüístico referente aos
naturais da Amazônia, índios e mestiços. Outra era a situação dos imigrantes, provenientes
de Portugal ou de várias regiões do Brasil, que faziam um caminho inverso, iniciando pela
outra ponta. Quando chegavam na Amazônia, eram monolingües (LP) e, através do
casamento ou de atividades econômicas e comerciais, muitas vezes fora da cidade,
adquiriam, por imersão, uma segunda língua – a Geral – tornando-se bilingües (LP x LGA).
Em geral, paravam aí, mas às vezes alguns deles, que ficavam residindo no interior,
logravam avançar até a terceira etapa. Não era comum no século XIX, mas foram
registrados alguns casos em que filhos de portugueses com índias, vivendo em pequenos
vilarejos, acabaram monolingües em LGA, conforme testemunho de um naturalista inglês
em 1850: “Encontrei também diversos colonos portugueses, cujos filhos não sabiam
expressar-se senão em língua geral” (Wallace 1979: 293).
Temos notícias da atitude dos falantes dessas línguas, porque viajantes e naturalistas
que percorreram a região, pararam e permaneceram por algum tempo em alguns desses
núcleos populacionais, anotaram o que viram e ouviram e, quase sempre, proporcionaram
informações sobre o quadro lingüístico local. A qualidade de tais informações depende do
interesse de cada viajante pelo tema, do acesso que tiveram aos dados e da própria
concepção que compartilhavam sobre a importância social da língua.
Todas as línguas faladas na Amazônia, é verdade, atravessaram diversos espaços,
mas cada uma delas tinha um lugar preferencial, aonde predominavam, revigoradas e
fortalecidas, enquanto em outros, feneciam e se desintegravam. As línguas vernáculas se
conservavam hegemônicas ao interior das aldeias indígenas; o português crescia nas
cidades e no contato com o resto do país; a LGA articulava esses dois universos nas vilas e
povoados.
Uma vez que a demarcação do espaço habitado é essencial para definir, em seu
interior, os usos e os destinos das línguas, pode ser útil aos objetivos deste capítulo agrupar
162
os núcleos populacionais, com critérios demográficos e políticos, em três conjuntos,
destacando as particularidades lingüísticas de cada um deles: no primeiro, estão as cidades;
no segundo, as vilas e povoações e, finalmente, no terceiro, as aldeias indígenas. O nosso
ponto de partida será o momento da adesão à Independência do Brasil, quando o Grão Pará
possuía duas cidades de relativa importância.
4.4 – No meio urbano, o bilingüismo
“A língua [Geral] viva atual é falada hoje em alguns lugares da Província do Pará,
entre eles Santarém e Portel, no Rio Capim, entre os descendentes de índios ou entre
as populações mestiças ou pretas que pertenceram aos grandes estabelecimentos
das ordens religiosas. De Manaus para cima ela é a língua preponderante no Rio
Negro, e muito mais vulgar do que o português” (Couto de Magalhães, 1876:30).
Um novo campo de estudo, relacionado à história do urbanismo e do planejamento
espacial, vem discutindo como os portugueses construíram vilas e aldeias no Brasil-colônia
e a importância que tiveram esses “núcleos civilizatórios” na história do país (Delson
1997). A reflexão nesse campo pode contribuir, seguramente, para elucidar a relação entre
o crescimento das cidades e a expansão da língua portuguesa, cujo destino comum, na
Amazônia, parece ter sido inquestionável.
O conceito de cidade, tal como vem sendo discutido pela geografia urbana, implica
determinadas formas de organizar e hierarquizar um espaço restrito, onde há grande
concentração demográfica, exercício de funções centralizadoras de suprimento de bens e
serviços e estilo de vida específico. O fato urbano, porém, traz sempre marcas temporais e
espaciais, cabendo perguntar: o que era, na Amazônia do século XIX, uma cidade? Como
se diferenciava de uma vila ou de um povoado? Deixando de lado preocupações de ordem
teórica, empregaremos aqui o termo cidade com um objetivo preciso e operacional, apenas
para designar os núcleos populacionais que funcionavam como sedes de governo e que, por
essa razão, centralizavam a vida administrativa e política da região. Os seus habitantes
residiam aí, aonde permaneciam a maior parte do ano, diferentemente do que ocorria nas
vilas e povoações. Enquadravam-se, nesse critério, Belém, capital da província do Pará, exsede
do Governo do Estado do Grão-Pará, no período colonial; e Manaus, sede da Capitania
163
do Rio Negro e da Comarca do Alto Amazonas, transformada depois em capital da
província do Amazonas. Ambas as cidades, nascidas de fortalezas construídas pelos
portugueses no período colonial, concentravam, no início do século XIX, um pouco menos
de um terço de toda a população recenseada.
Nessa época, era possível encontrar, residindo no espaço urbano da Amazônia, pelo
menos dois tipos de monolingües: os falantes de português – com incidência maior em
Belém, que era assim considerada uma cidade mais ´civilizada´, e os falantes de Língua
Geral – com incidência maior em Manaus, uma cidade mais ´tapuia´. No entanto, às
vésperas da Independência do Brasil, em ambas as cidades, os dados apontam para um
predomínio do bilingüismo: os moradores portugueses, mestiços e índios, em sua maioria,
eram competentes, em maior ou menor grau, nas duas línguas. É interessante verificar
como esse processo ocorreu em cada uma dessas cidades.
4.4.1 - Belém: uma cidade cabocla
“Os índios são mais numerosos na província do Pará do que em qualquer outra. Vêemse
muitos deles na cidade, coisa muito rara no sul. Substituem os negros escravos [...].
O Conde de Vilaflor chegou, mesmo, a organizar um batalhão de infantaria indígena
que manobrava com bastante precisão”. Alcide D´Orbigny, em 1832 (1976:78).
Num espaço de cinqüenta anos – de 1820 a 1870 – Belém, a capital da Amazônia e
seu principal porto de entrada, tornou-se o centro para onde convergiam imigrantes de
origem portuguesa ou de outras regiões brasileiras, da mesma forma que acolhia os tapuias
provenientes do interior, sobretudo do baixo Amazonas. Era lá, na cidade, que eles se
encontravam e interagiam. Lá, falantes de português se iniciavam na LGA, sem, no
entanto, substituir o uso de sua língua materna. Lá, falantes de LGA tornavam-se bilingües
ao adquirirem o português que, de uma geração a outra, passava a ser língua principal de
todos eles. Belém funcionava, então, como uma ‘fábrica’ que transformava índios ‘mansos’
e ‘tapuios’ em ‘civilizados’ e ‘caboclos’.
As características urbanas de Belém, na primeira metade do século XIX, foram
observadas por diversos viajantes estrangeiros, que haviam estado em outros centros
164
urbanos do país, com os quais puderam compará-la. A capital paraense tinha uma aparência
similar à de outras cidades brasileiras, com algumas peculiaridades. Contava, de acordo
com o censo eclesiástico de 1820, com 24.500 habitantes, que moravam, os mais ricos “em
casas de pedra, sólidas e elegantes, de paredes caiadas e tetos vermelhos”, enquanto os
pobres viviam nas ruas mais afastadas, que estavam “repletas de casinholas insignificantes
e feias”. A via principal – a rua dos Mercadores – era larga e concentrava “quase todas as
boas lojas da cidade”, mas as demais ruas eram estreitas. A cidade, dividida em duas
paróquias, abrigava, além do Palácio do Bispo, onze igrejas, duas capelas, cinco mosteiros
e uma catedral, cuja “aparência externa lembra a Candelária, do Rio de Janeiro”. O
Palácio do Governo, projetado no século XVIII pelo arquiteto italiano Antônio Landi,
impressionou o pastor metodista norte-americano Daniel Kidder, que o considerou “uma
das melhores construções do gênero em todo o Império”. Belém possuía ainda um tribunal
denominado Junta da Fazenda Real, casa de misericórdia, hospital, jardim botânico,
tipografia, seminário, escola com professores régios de Latim, Retórica e Filosofia, um
prédio da alfândega com um cais privativo, e diversos armazéns espalhados pela cidade;
arsenal e estaleiro, onde eram construídos navios, e um porto, de onde se exportava cacau,
café, arroz, algodão, salsaparrilha, cravo, couros crus, copaíba, urucu, castanha do pará,
madeira e, depois, de forma cada vez mais crescente, borracha.19
O censo eclesiástico de 1820 não indica para Belém aquilo que discrimina para
Manaus, isto é, dos 24.500 habitantes não é possível inferir exatamente quantos eram
brancos, índios, negros e mamelucos. O naturalista francês D´Orbigny, que visitou Belém
em 1832, ficou surprêso com os índios que viu circulando pela cidade, realizando tarefas
que em outras capitais eram tradicionamente exercidas pelos negros. “Os índios são livres,
e, como lá se diz, não são civilizados, mas apenas amansados: índios mansos”. (D´Orbigny
1976:78). Desta forma, ele deu indicações sobre a situação lingüística deles, indicando que
eram bilingües (LGA-LV). Poucos anos depois, o pastor Kidder, ao descrever uma espécie
19 A descrição de Belém foi feita a partir dos relatos de vários autores da época, entre os quais: o presbítero
secular Manuel Aires de Casal (1754?-1821?), que escreveu a sua Corografia Brasílica em 1817 (Casal, 1976:
317,318); o pastor metodista norte-americano Daniel P. Kidder (1815-1891), que esteve no Pará no final da
década de 1830, para onde foi, por encargo da Sociedade Bíblica Americana, com objetivo de difundir a
bíblia (Kidder 1980: 183-187); e o naturalista francês Alcides D´Orbigny (1802-1857) que, em missão
científica, percorreu vários países da América do Sul e todo o território brasileiro, passando por Belém em
1832 (D´Orbigny 1976: 67-78). Além dos naturalistas alemães Spix & Martius e dos ingleses Wallace e
Bates, já citados anteriormente.
165
de bairro indígena, denominado de Ponta das Pedras, observou que era lá, no
desembarcadouro principal da cidade, que trabalhava a “turba indígena”, no meio de
“grande número de canoas atracadas”. Nele se falava “os mais variados dialetos
amazônicos”. Como a LGA já é um dado consolidado, a referência à diversidade de línguas
indica que se tratava também de ´índios mansos´, isto é, bilingües em língua vernácula e
Língua Geral (Kidder 1980: 187). Esses índios faziam parte da população flutuante de
Belém, cuja situação lingüística já havia sido relacionada com a referência identitária.
Sobre eles, observaram Spix & Martius (1981: 26): “como discrimina a língua, não são
civilizados, porém apenas índios mansos”.
Belém, na visão da elite branca, era uma espécie de ‘oásis civilizatório’, um lugar
onde os índios ´mansos´ e ´tapuios´ aprendiam o português - sobretudo por imersão, mas
também através da escola - e desta forma adquiriam uma nova referência identitária: a de
´índios civilizados´. Todo o trabalho manual ou pesado, numa cidade onde rareavam os
escravos negros, era realizado por esses índios, que às vésperas da Independência, exerciam
atividades como empregados no serviço doméstico, pescadores, carregadores, marinheiros
nas embarcações costeiras, remadores das canoas que faziam navegação regular, e ainda no
estaleiro, no arsenal, nas obras públicas e no batalhão de infantaria. Spix e Martius
informam como se dava o recrutamento: “Diversas vezes por ano, bandos inteiros de
índios jovens, eram tirados dos aldeamentos do interior e da Ilha do Marajó, e remetidos
para a cidade, onde recebem a diária de três vinténs, além de casa e comida” (Spix &
Martius 1981: 28,40,41). Na avaliação dos dois naturalistas, o tempo de contato era
determinante para definir a situação lingüística dos índios arrancados de suas aldeias para
os núcleos urbanos:
“Os índios aldeados, em proporção com o tempo em que moram na povoação,
abandonaram os seus hábitos e línguas, e falam o tupi, ou, se mais longa é a
sua convivência com os colonos, falam o português” (Spix & Martius: 1981:
97).
Alguns casos ilustrativos desse processo foram registrados por Spix e Martius, ainda
em Belém, onde, além do tempo de contato, os casamentos mistos tiveram um papel
166
importante na mudança de hábitos lingüísticos. Eles conheceram mamelucos, monolingües
em português, cujos pais ou avós eram bilingües (LGA-LP). No rio Moju, também, os dois
naturalistas identificaram remanescentes dos tupinambá, nheengaíba, mamaimases e
toquiguará, que “perderam seus traços distintivos, consistindo sobretudo nos seus diversos
dialetos”. Não proporcionaram, no entanto, informações sobre como se processou essa
perda, concluindo apenas que “eles falam todos o português”, sem dar indícios sobre se o
faziam na condição de bilingües ou de monolingües. De qualquer forma, destribalizados e
sem identidade étnica, passaram a ser, genericamente, índios. Por falarem português, eram
considerados civilizados, daí serem identificados pela categoria de ´índio civilizado´.
Provavelmente, o desembarcadouro da Ponta das Pedras, visitado pelo pastor Daniel
Kidder, no final da década de 1830, foi o cemitério de algumas línguas indígenas, isto
porque depois dessas observações, são raros os registros sobre o uso de línguas vernáculas
na cidade. Na sua estadia em Belém, em 1848, Wallace encontrou alguns aborígenes, nas
ruas, com grandes orifícios nas orelhas, portanto, com visíveis marcas étnicas, o que
constituía indícios de serem “índios recém-chegados do interior”. O fato de serem
“freqüentemente vistos pela cidade”, e, ao mesmo tempo, “parecerem muito mansos e
educados” sugere que não era um fato excepcional. Nessa época, ainda era corrente o uso
da Língua Geral, cuja gramática – em várias versões - podia ser encontrada facilmente nas
três ou quatro livrarias de Belém. De qualquer forma, prosseguia, de forma lenta, mas
persistente, o processo de deslocamento lingüístico, isto é, em algumas gerações,
moradores abandonavam a LGA, em favor do português, da mesma forma que nos jardins
de seus quintais “preferiam cultivar as folhagens e flores européias, ao invés das
esplêndidas e ornamentais plantas da região” (Wallace1979: 20). Segundo Bates, Belém,
na metade do século XIX, já era uma cidade cabocla, com uma população formada por
“gente cuja pele tinha todas as tonalidades, européia, negra e indígena, mas era
principalmente uma confusa mistura das três raças” (Bates 1979:12, 39).
A população da cidade continuou crescendo. No espaço de vinte anos, ela duplicou,
passando de 24.500 habitantes, em 1820, para 52.200 em 1840, segundo cálculos do
presidente da Província, Bernardo de Souza Franco, que considerava incompleto o
resultado de 38.247 do arrolamento oficial (RP - Franco 1841: 51). Embora não seja
possível quantificar, sabemos com segurança que, nesse período, aumentou
167
extraordinariamente o número de falantes de português e diminuiu os de LGA, num
processo em que o crescimento populacional não foi apenas vegetativo. De um lado, muitos
falantes de LGA foram exterminados durante a revolta popular da Cabanagem (1835-1840),
enquanto os sobreviventes se retiraram para vilas e povoados; de outro, o governo
provincial, através de uma caixa especial do Tesouro Público, passou a promover a
introdução de colonos, facilitando a imigração de estrangeiros - entre os quais portugueses -
e de nordestinos, o que foi facilitado nas décadas seguintes pela navegação a vapor e pela
crescente demanda internacional da borracha (Cruz 1958: 25). Em 1868, quase 12% da
população de Belém tinha a nacionalidade portuguesa (Souza: 1873: 70).
O naturalista inglês Henry Bates, que passou por Belém duas vezes, em 1851 e
1859, observou as diferenças sofridas pela cidade, num intervalo de sete anos e meio, entre
as quais o surgimento de várias livrarias e a existência de uma boa biblioteca, várias
impressoras, quatro jornais diários e um aumento sensível da escolaridade. Notou também o
êxodo dos “tapuios civilizados”, que não encontrando mais espaço na cidade, migraram
para o interior, deixando-a esvaziada de falantes de Língua Geral:
“Quando chegamos ao Pará, moravam ali muitas famílias indígenas, pois
nessa época o modo de vida do lugar se assemelhava muito mais ao de uma
grande aldeia do que ao de uma cidade. Mas logo que surgiu o tráfego de
vapores no rio e as atividades comerciais foram incrementadas, eles
começaram a abandonar aos poucos o lugar” (Bates 1979: 39).
Da mesma forma, depois de demorada estadia em Belém, seu colega Wallace
concluiu que os índios tapuios transfiguravam-se em índios ‘civilizados’ e ‘caboclos’, a tal
ponto que as três denominações começaram a ser usadas como sinônimos, para dar conta
dos índios citadinos, que “já há muito civilizados, tendo esquecida a língua de seus
antepassados, hoje falam português” (Wallace 1979: 291).
Um indicador dessa mudança foi a extinção, por Decreto Imperial de 22 de abril de
1863, da cadeira “Língua Indígena Geral”, que durante doze anos vinha sendo ensinada no
seminário de Belém, e que havia sido criada num contexto de relativa extensão do
bilingüismo social. A solicitação para extingui-la foi do próprio bispo, Dom Macedo Costa,
168
que propôs sua substituição pelas “matemáticas elementares”, consideradas como “de
maior interesse e utilidade”. (Lustosa 1939:105). Por outro lado, a disciplina Gramática
Nacional, com exercícios ortográficos, leitura, recitação, composição de discursos e
narrativas em português, tornara-se obrigatória nas escolas, que se expandiam: no Pará, em
1872, já havia 160 escolas, com 6.607 alunos (RP - Cunha Jr 1873: 21). Na cidade que
começa a se inserir na divisão internacional do trabalho como centro exportador de
borracha e importador de bens industrializados, não havia mais lugar para a Língua Geral,
que perdera não apenas falantes, mas também funções.
Quando a população de Belém atingiu um total de 84.867 habitantes, no início da
década de 1870, havia apenas pequenos bolsões de índios na periferia, usuários da Língua
Geral em bilingüismo com português, muitos dos quais trabalhavam nos serviços
domésticos (RP - Cunha Jr. 1873: 22). Mas esses índios desapareceram da documentação
oficial. Segundo o Censo de 1872, que eliminou a categoria de índios e a de mamelucos, a
população de Belém estava formada por caboclos (apenas 5.6%), brancos (35.2%), pardos
(40.3%) e pretos (18.9%) (Diretoria Geral de Estatística, 1872, vol.II: 65). A proporção de
brancos parece surpreendentemente alta, na avaliação de Paul Le Cointe, um francês
proprietário de fazendas de cacau no Pará, que acredita ai estarem incluídos muitos
mestiços. “Il est évident que dans cette statistique figurent comme blancs beaucoup de
sang-melés. (Le Cointe 1922:t.I. 221) Já os índios, diluídos talvez no grupo de caboclos,
não constam do censo, mas figuram em alguns relatórios médicos, um dos quais menciona
que eles haviam contraído uma doença da pele, denominada puru-puru, conforme atesta o
Barão de Marajó, ex-intendente municipal de Belém: “Tenho nesta capital (Belém)
observado muitos casos em casas de família, onde tem existido índias e índios
domesticados com essa doença” (Marajó 1895:36).
De qualquer forma, nessa época, Belém, com uma expressiva população de sangmelés,
já era uma cidade cabocla, em contato direto com as principais capitais brasileiras,
através do comércio de cabotagem, e com algumas cidades americanas e européias, entre as
quais Lisboa, Havre, New York e Liverpool. Era a Belém monolingüe, que agora só tendia
169
a falar português, e onde já se havia consolidado o processo observado em 1859 por Henry
Bates:
“Achei também os hábitos do povo consideravelmente modificados. Muitas das
antigas festas religiosas tinham perdido sua importância, sendo substituídas
por diversões mais mundanas (...) parecendo que os paraenses procuravam
agora imitar os costumes das nações do norte da Europa,ao invés dos da mãepátria”
(Bates 1979:296).
4.4.2 - Manaus, a cidade tapuia
“Havia ali muitos rapazinhos entre 10 e 15 anos de idade, os quais logo se tornaram
meus habituais companheiros de excursão. Nenhum sabia falar uma única palavra de
português, de modo que tive de fazer uso de meu limitado vocabulário de língua geral
para comunicar-me com eles” Wallace, outubro de 1850, no rio Içana (1979: 138).
Manaus, igual que Belém, era uma cidade bilingüe, que durante cinqüenta anos
(1820-1870) também funcionou como uma ‘usina’ de transformação de falantes de Língua
Geral em usuários do português. A diferença residia na ‘matéria prima’, pois Manaus
contava com uma maior diversidade de índios mansos e tapuios, o que acabou repercutindo
no ritmo de ‘produção’ de monolíngües em língua portuguesa, enquanto Belém parece ter
sido mais eficiente nesse processo, num período de tempo mais curto.
Diferentemente de Belém, a população de Manaus e de seus arredores pode ser
estudada, com dados quantitativos de outra natureza, que permitem estabelecer uma
correlação de seus habitantes com as línguas que falavam, pois os resultados de quatro
censos - 1820, 1840, 1865 e 1872 – discriminam a população em cinco segmentos, de
acordo com sua procedência étnica: branco, mameluco, índio, mestiço e negro. Essas
categorias foram definidas, para o censo de 1840, da seguinte forma: branco era o europeu,
nascido no estrangeiro, ou o natural do país, de origem européia. Mameluco era “o apuro
da raça indígena por sua união com os brancos”. Índios eram os “genuínos, nascidos no
170
grêmio da sociedade”, incluindo-se aqui apenas os destribalizados, “reduzidos à vida
civil”, e excluindo-se os índios tribais, tanto os aldeados, que figuram em mapas à parte,
como os “errantes, esquivos e hostis”, que não podiam ser recenseados. Na categoria
mestiço estavam enquadrados os pardos, os cafusos e os curibocas; e na de negro, os
escravos, de descendência africana. (Amazonas 1852:22).
Essas denominações eram “apenas para classificá-los de um modo geral”, porque
de acordo com Bates, esses tipos nunca são, entretanto, muito bem definidos, havendo
entre uns e outros todos os matizes de cor possíveis. (Bates 1979:22) Eis o quadro da
população de Manaus, de acordo com os percentuais por categorias étnicas:
POPULAÇÃO DE MANAUS
PERCENTUAIS POR CATEGORIAS ÉTNICAS
Categorias Étnicas 1814 1840 1865 1872
Branco 6.5% 10.6% 40.6%* 21.5%
Mameluco 20.5% 29.4% __ (*) __(**)
Índio 49.8% 48.0% 33.6% __(**)
Caboclos __ __ __ 63.1%**
Mestiço (pardo) 5.5% 7.5% 23.1%* 11.0%
Negro 17.7% 4.5% 2.7% 4.4%
Total 100.0% 100.0% 100.0% 100.0%
Fontes: Spix e Martius (1981: t. III,40-41) e Baena (1839) para o ano de
1814; Lourenço Amazonas (1852:22-27, Anexo) e Nery (1979:103-107)
para 1840; Bastos (1975: 131-132) e Mello (RP – 1866) para 1865;
Bittencourt (1925: 151-154), Le Cointe (1922: t.I, 221), e Diretoria Geral
de Estatística (1872, vol. 2: 64-65) para 1872. 20
(*) Em 1865, os mamelucos foram incluídos na categoria, sobretudo de
brancos, mas também na de mestiços.
(**) No censo nacional de 1872, mamelucos e índios foram diluídos na
categoria de caboclos.
20A opção de apresentar o quadro da população de Manaus, ressaltando os percentuais e não o número de
habitantes, se deve ao fato de que, em alguns casos, existem discrepâncias nas fontes quanto ao total da
população, mas não quanto à proporção entre as categorias étnicas. Além disso, para os objetivos deste
trabalho, os percentuais permitem acompanhar melhor a evolução demográfica da cidade.
171
Não será demasiado insistir que os critérios não foram os mesmos em cada um dos
quatro censos; o de 1865, por exemplo, não opera com a categoria mamelucos, que
acabaram diluídos nos totais de brancos e de mestiços; e o censo de 1872, de caráter
nacional, ignora mamelucos e índios, juntando-os na categoria de caboclos. Este dado –
aliado às outras precariedades já assinaladas - exige bastante cautela nas conclusões. De
qualquer forma, acreditamos que o quadro é útil para contrastar algumas tendências, já
identificadas por outras fontes não-estatísticas.
Parece conveniente recuperar algumas informações sobre a cidade, neste período,
para contextualizar os dados aqui apresentados sobre sua população. Manaus – conhecida
pelo nome de Lugar da Barra ou Fortaleza da Barra - não havia sido oficialmente elevada à
categoria de cidade, quando por lá passaram os naturalistas alemães Spix e Martius. Nessa
época, com aproximadamente 3.000 habitantes, o lugar era uma aldeia rural, cortada por
igarapés, com algumas trilhas que permitiam o acesso às roças e plantações existentes em
seus arredores. Possuía, então, uma praça e 16 ruas – por onde circulavam livremente bois,
vacas e outros animais domesticados - cerca de duzentas casas, a maioria coberta de palha,
uma cadeia, algumas lojas de secos e molhados, botequins com vinhos do Reino, casas de
fazendas, de vendas de pólvora, balas e armas, (Reis 1999: 55-56). Cerca de 6.5% da
população era considerada ´branca´, o que indica a porcentagem dos que seguramente
falavam o português como língua materna; já a LGA era usada, como língua principal, por
70% dos moradores: os índios (49.8%) e os mamelucos (20.5%). Os brancos,
numericamente minoritários, detinham o poder econômico e político, controlando os meios
de produção e a comunicação com o mundo externo, enquanto os demais setores forneciam
a força de trabalho.
Nesse contexto, a única possibilidade de comunicação interna, até mesmo para
organizar a produção, era o bilingüismo, pelo menos de um dos segmentos. Embora sem
dados quantitativos, podemos supor, através dos relatos dos viajantes, que os moradores
brancos de Manaus eram majoritariamente bilíngües (LP-LGA), havendo incorporado, com
a segunda língua, vários elementos das culturas indígenas locais. Na sua passagem pela
cidade, Wallace chamou a atenção para esse aspecto: “É bem provável que não exista aqui
uma única pessoa dentre as nascidas no local, de sangue inteiramente europeu, tão
considerável foi a miscigenação entre portugueses e índios” (Wallace 1979: 110). Esses
172
casamentos mistos garantiram, também, uma relativa extensão do bilingüismo (LP-LGA)
entre os mamelucos.
Negros e mestiços, que representavam 23% da população, se apropriaram
rapidamente da Língua Geral e dos conhecimentos nela arquivados, tanto em Manaus,
como em Belém. Quem guiou Bates em excursões nos arredores de Belém foi um jovem
escravo negro, chamado Hilário, cujo nome ele anglicizou para Larry: “Ensinou-me Larry
os nomes indígenas de um certo número de árvores das florestas e enumerou as suas
propriedades medicinais” (Bates 1944: 118-119) Da mesma forma foi um negro, Isidoro,
quem apresentou a taxonomia da floresta, em Língua Geral, para Wallace. Existem outras
referências que mostram como um conhecimento mínimo da Língua Geral se achava
relativamente disseminado entre negros e mestiços (Wallace 1979: 33).
Quanto aos índios, sabemos que havia entre eles um número maior de tapuios do
que de civilizados. Muitos eram remanescentes dos Tarumã, Baré, Baniwa e Passé, que
haviam sido aldeados ao redor da Fortaleza da Barra do Rio Negro. Outros eram Paiana,
Warekena e Manaú transferidos de Barcelos, a antiga capital. Não tinham mais
“nacionalidades e língua própria”, assumindo a condição de índio genérico ou ´tapuio’
(Spix & Martius 1981: 139-155). Todos eles falavam a Língua Geral, talvez com a maior
taxa de monolinguismo de todos os segmentos, o que obrigava os demais setores a também
fazerem uso desta língua. Ficou conhecido o episódio de 1808, em que centenas de índios
foram levados, ‘acorrentados, como se fossem condenados’, para o trabalho na fazenda do
Tarumã, propriedade do governador José Joaquim Vitório da Costa, que exercia um maior
controle sobre eles, porque “celebrizou-se em falar a língua geral, da qual se apossou com
tanta felicidade que corrigia os próprios indígenas” (Amazonas 1852:151).
A LGA não era usada, no entanto, apenas para disciplinar o trabalho dos índios. As
práticas religiosas, as narrativas, o lazer e o divertimento da cidade, bem como os saberes e
as diferentes manifestações de arte de seus moradores estavam codificados nessa língua,.
Foi em Manaus, onde Spix e Martius ouviram uma série de narrativas míticas em Língua
Geral, contadas por um índio proveniente do Rio Branco, que lhes serviu de guia em uma
excursão pelos arredores da cidade. Foi em Manaus, também, que os dois alemães
assistiram a manifestações de cultura regional, em que elementos indígenas se alternavam
com portugueses, conforme insinuam os autores na descrição de duas atividades: a dança
173
do peixe (pira poracéya) e o jogo dos paus (ymyra jemossaraitaba), este último proibido
pela igreja. Num passeio até o lago do Manaquiri, presenciaram ainda uma dança dos índios
Mura e, com ajuda de um tradutor, recolheram também a primeira cantiga em Língua
Geral: “Xe kyryetá porangaté oerá taguá maiabé (os meus irmãos são mais bonitos do que
um pássaro amarelo)” (Spix & Martius 1981: 139-150).
Por volta de 1840, apesar da catástrofe demográfica da Cabanagem, Manaus quase
triplicou sua população que, em vinte cinco anos, cresceu para cerca de 8.500 habitantes.
Tinha, agora, 900 fogos, duas igrejas, um hospital militar, um quartel-general do
destacamento militar com uns 150 homens, quase todos índios e mamelucos, encarregados
de arrancar outros índios de suas aldeias e trazê-los para os povoados, inclusive “para
empresas particulares” que os requisitavam e pagavam à parte. Havia também algumas
lojas – as mulheres consideradas brancas se vestiam “à moda, com gosto e luxo” - um
armazém da provedoria e outro de artigos bélicos, um pequeno estaleiro de construção de
canoas e batelões, uma cordoaria, uma serraria, três fábricas de tecidos e redes, uma de
fiação de algodão, outra de anil e outra ainda de pote de barro, onde mulheres indígenas
vendiam sua força de trabalho em Língua Geral, ganhando semanalmente 800 réis,
enquanto os homens recebiam 1$200 réis pelo mesmo trabalho (Amazonas 1852:110-112)
(Marajó 1895: 392-393).
Nos trinta anos subsequentes à estadia de Spix e Martius, dois fatos politicamente
importantes, além da Independência do Brasil, contribuíram para a evolução do quadro
sócio-lingüístico de Manaus. O primeiro é sua conversão em cabeça de comarca, em 1833,
quando lá ainda podiam ser encontrados muitos monolingües em Língua Geral, entre eles
soldados subordinados ao Comando Militar da Comarca do Alto Amazonas. Um de seus
comandantes, o capitão-tenente da Armada, Lourenço da Silva Amazonas (1803-1864),
nascido na Bahia, teve de aprender essa língua para, através dela, obter obediência de seus
comandados. O segundo momento é a sua transformação em capital da nova Província do
Amazonas, em 1850, quando o bilingüismo dominava a cidade, cujos moradores “fallão
mui bem o português, com quanto também usem muito da lingoa geral”, conforme registro
do próprio comandante baiano (Amazonas 1852:112).
Constitui um indício do predomínio do bilingüismo (LP-LGA) na cidade de Manaus,
o fato de que lá, na década de 1850, circularam - como era de se esperar num contexto
174
bilingüe – pelo menos cinco dicionários e dois esboços de gramática em Língua Geral,
destinados a facilitar a ação missionária, militar, administrativa e pedagógica. O primeiro
deles era o ´Dicionário Túpico-Português e Português-Túpico, organizado por volta de
1850 pelo comandante militar Lourenço Amazonas e já mencionado no capítulo anterior.O
segundo, o “Vocabulário da Língua Indígena Geral para o uso do Seminário Episcopal do
Pará, impresso em Belém, em 1853, vinha precedido de um esboço gramatical intitulado
“Breves Explicações”, de autoria do padre Manoel Justiano Seixas, primeiro regente da
cadeira no seminário (Seixas 1853: 1-66). O terceiro vocabulário é a obra anteriormente
citada, de autoria do bispo diocesano do Pará, Dom José Afonso Morais Torres:
Vocabulário da Língua Geral usada hoje em dia no Alto Amazonas (Torres 1854). No final
da década, foram publicados ainda, ambos em 1858, o Diccionario da Lingua Tupi
chamada língua geral dos indígenas do Brazil, de autoria do poeta Gonçalves Dias,
contratado pelo governo provincial para avaliar as escolas do Amazonas (Dias:1858), e o
Compêndio da Língua Indígena Brasílica (Faria: 1858), elaborado pelo coronel Corrêa de
Faria,21 autor também do inédito Diccionário completo da língua túpyca, cujos originais
hoje “podem estar irremediavelmente perdidos” (Cardoso 1961: 36).
Esses dicionários bilíngües e as gramáticas de Língua Geral continuaram a circular
em Manaus, na década de 1860, quando se observa, sensível crescimento de três segmentos
da população - os brancos, os mamelucos e os mestiços – cujo percentual se elevou de
47.5%, em 1840, para 63.7%, em 1865. Não é possível avaliar o crescimento de cada um
deles, em separado, porque o arrolamento censitário de 1865 diluiu parte dos mamelucos na
categoria de brancos, e parte na de mestiços. De qualquer forma, é válido correlacionar o
aumento desse percentual com uma maior propensão à aquisição do português. Por outro
lado, no mesmo período, houve progressiva diminuição dos índios que viviam na cidade,
cujo percentual caiu de 48.0%, em 1840, para 33.6%, em 1865, o que significa, nesse
contexto, uma redução de falantes potenciais da Língua Geral.
21 O coronel Francisco Raimundo Corrêa Faria foi comandante, em 1842, do Forte de Marabitanas, no Alto
Rio Negro, onde aprendeu a LGA, para comunicar-se com os índios que trabalhavam nas obras militares.
Assumiu, depois, a cadeira de Língua Geral no seminário de Belém, sendo o seu segundo e último regente.
175
A escola primária também se ‘universalizava’, atingindo não só a população
considerada ‘branca’, mas também os mamelucos e, até mesmo, os índios. No seminário,
fundado em 1848, se ensinava agora gramática latina, francês, música e canto. Os filhos de
algumas famílias mais abastadas, além do ensino regular, “aprendem música em casa, e
estudam o francês e o italiano”, conforme testemunhou Avé Lallemant, de passagem pela
cidade, em 1859. Ele visitou também o estabelecimento dos Educandos, um reformatório
para crianças indígenas, com um regulamento militarizado, mantido com a venda de mesas,
bancos, armários, barcos e remos, fabricados pelos próprios alunos, que aprendiam a ler e
escrever em português, além de receberem ensino de religião, trabalhos manuais e música.
Eles eram arrastados compulsoriamente para a escola:
“Meninos, quase todos índios, perambulando sem nenhuma vigilância, e
ameaçados de vagabundagem, são recolhidos a esse instituto e transformados
em homens traballhadores e úteis” (Avé-Lallemant 1980: 117-118).
Cada ano, aumentava o número de escolas primárias públicas na Província do
Amazonas: elas eram 36, em 1873; passaram a 49, em 1876, e atingiram 109, em 1886,
todas elas banindo do currículo qualquer referência à Língua Geral (Souza 1873: 277). O
censo de 1872 registrou o crescimento, de forma moderada, mas segura, dos potenciais
falantes de português como língua materna: os moradores considerados brancos (16.4%) e
mestiços (12.5%). Já o número dos potenciais falantes de Língua Geral, como língua
principal, diminuía: índios e mamelucos caíram de 77.4%, em 1840, para 69% em 1872.
Existem evidências de que, nesses dois segmentos, se reduzia também o número de
monolingues em Língua Geral, devido à ação portugalizadora da escola (Bittencourt 1925:
281-287).
Ao lado da escola, a navegação a vapor contribuiu decisivamente para a
portugalização da cidade, transformando-a na porta de entrada dos nordestinos, que fugiam
da seca e se dirigiam para os seringais, em função da demanda da borracha no mercado
internacional. Todos eles eram falantes de português, como o eram brasileiros de outras
regiões que afluíram para a Amazônia, em geral por razões comerciais. O número de
vapores de comércio no rio Amazonas, que em 1851 era de apenas três, subiu em 1860 para
176
doze, e em 1888 já era superior a cem, de todos os tamanhos. Havia ainda grandes vapores
da linha brasileira, que faziam quatro viagens mensais ao Rio de Janeiro, e duas linhas
inglesas que ligavam Manaus com a Europa e os Estados Unidos, três vezes por mês, cada
uma delas (Marajó 1895:159). O vapor, portador da língua portuguesa e de produtos
europeus, acabou mudando a composição majoritariamente indígena da cidade.
A inserção da Amazônia na nova divisão internacional do trabalho exigiu mudanças
significativas em Manaus. Na última década do século – com o concurso do capital, da
tecnologia e das empresas inglesas – são instalados os serviços públicos. A cidade é dotada
de um sistema portuário moderno, de serviços de água encanada, esgoto e luz elétrica, de
um sistema de coleta e disposição de lixo, de serviço telefônico e de uma linha telegráfica
sub-fluvial, num processo de modernização estudado, entre outros pesquisadores, por
Geraldo Sá Peixoto Pinheiro (1993/1994) e Maria Luiza Ugarte Pinheiro (1999). Prédios
públicos monumentais como o Teatro Amazonas e o Palácio da Justiça, novas avenidas e
boulevards, praças e jardins com coretos, estátuas, fontes e chafarizes importados da
Europa, enfim “uma febre de construção tomou conta da cidade, varrendo tudo aquilo que
podia evocar os povos indígenas’. Vários jornais diários circulavam na cidade,
incentivando hábitos de leitura antes inexistentes. O professor Bradford Burns, da
Universidade de Miami, que estudou esse período, considera que “Manaus alardeava com
orgulho todas as civilidades de qualquer cidade européia de seu tamanho ou mesmo
maior” (Freire 1993/1994: 173).
Nesse contexto, já não havia espaço para a Língua Geral. Há registros de moradores
que conheciam a LGA, sobretudo comerciantes, índios e tripulantes de barcos das casas
aviadoras, que a usavam quando em viagem ao alto e médio Rio Negro, mas que, uma vez
na cidade, dispensavam o seu uso. Duas ou três décadas depois de Belém, Manaus
transformara-se igualmente numa cidade monolingue, falante de português, onde a Língua
Geral não era mais usada, sequer “da porta da sala para dentro”, como nos últimos anos.
Perdera, também, falantes e funções, para permitir a articulação progressiva da região com
o mercado nacional e mundial.
177
4.4. 3 - Os usos e os espaços
“Todos os tapuias semi-civilizados das aldeias – na verdade, todos os habitantes dos
lugarejos mais isolados – falam a língua geral, que constitui uma adaptação feita pelos
missionários jesuítas do idioma original dos Tupinambás. Bates, em 1858 (1979: 39).
No processo de transição do bilingüismo (LGA-LP) para o monolinguismo (LP) nas
duas cidades amazônicas, em meados do século XIX, resta saber quais as funções exercidas
por cada uma das línguas, quem as falava, em que tipo de situação e em qual espaço, e as
razões pelas quais, uma delas predominou em detrimento da outra. Como já foi visto
anteriormente, alguns viajantes documentaram esse processo, dando conta da ocorrência de
um bilingüismo social, com a predominância do português, de forma muito mais marcante
em Belém do que em Manaus, e registrando as formas de contato entre essas línguas.
Um dado interessante sobre o quadro lingüístico nas duas cidades é acrescentado
por Bates, a partir de uma cena do cotidiano por ele presenciada, que nos permite pensar
sobre a função de cada uma das línguas, destacando a relevância do gênero - como variável
social - e a freqüência de alternância, no uso que delas se fazia. Ele estava hospedado em
Murucupi, a 30 quilômetros de Belém, e tinha por vizinho um “índio civilizado”,
carpinteiro, construtor de canoas, que vivia com sua mulher e trabalhava com dois
aprendizes, também índios, usuários de português, mas todos, sempre, taciturnos. Um dia,
receberam a visita de uma senhora idosa, que manteve uma conversa com a dona de casa,
mas para surpresa de Bates, “as duas papaguearam a tarde inteira, sem uma pausa,
falando apenas na língua tupi”. (Bates 1979:85). Desta forma, através de um fato trivial,
ele nos fornece algumas pistas sobre o possível uso de cada uma das duas línguas na cidade
de Belém e seus arredores. Lá, da porta para fora, dominava o português, mas “da porta da
sala para dentro”, falava-se a Língua Geral, conforme já havia alertado Lourenço
Amazonas (1852:104). O espaço externo, da rua, do público, era de domínio masculino,
mas o espaço interno, doméstico, da cozinha e do quintal, era controlado pela mulher, o que
autoriza a conjeturar que, nesta situação de bilingüismo social, o homem recorria mais
freqüentemente ao português, enquanto a mulher usava mais a Língua Geral.
178
A situação de Manaus, nesse aspecto, não era diferente a de Belém, conforme o
testemunho do médico Avé-Lallemant. Durante a sua estadia na cidade, em 1859, ele notou
que “em Manaus, por certo, não há índio que, tendo-se demorado lá mesmo, só por poucas
semanas, não fale um pouco de português, e não tenha sido batizado”, isto quando se
tratava do sexo masculino, porque quando se tratava das mulheres, elas viviam repetindo
seus nomes de batismo, com prazer, “embora não entendam uma palavra de português”.
Hospedado na casa do major Tapajós, ele encontrou duas índias originárias do Rio Branco,
com as quais tentou comunicar-se: “Só uma dessas índias sabia algumas palavras em
português; a outra ficou inteiramente muda”. Depois de criticar o catolicismo superficial
dos moradores de descendência indígena, incapaz de superar “os velhos ecos da floresta”,
ele arremata: “Falam, perante o mundo, português; e, contudo, ouve-se por toda parte a
língua geral, (...) falada por eles, quando se encontram no seu ambiente”. (Avé-Lallemant
1980: 105-106,142-144). O ambiente a que se refere o autor estava relacionado muito mais ao
espaço cultural. Havia determinados temas que só se falavam numa língua e não na outra,
certos objetos que se designavam por vocábulos apenas de uma delas. Também havia
circunstâncias de maior ou menor formalidade, que implicavam o uso de uma ou outra língua.
Em situação deste tipo de bilingüismo social, algumas práticas estão reservadas para a língua
indígena, por exemplo, as mais informais e domésticas, e as mais formais, geralmente
relacionadas à escolaridade e administração para a língua oficial. A competência comunicativa
implicava, portanto, um conhecimento, por parte do falante, não só de um código
lingüístico, mas também do que dizer, a quem e como dizer, em uma situação determinada.
Cada vez que ´se encontravam no seu ambiente´, recorriam à Língua Geral. No
entanto, quando mudavam de ambiente, ou quando mudavam o ambiente, o português
tornava-se língua obrigatória. Com base, portanto, nesses e em outros testemunhos da
época, podemos pressupor que o bilingüismo existente nas duas cidades podia estar muito
mais generalizado do que aquele que foi notado pela maioria dos viajantes cujo foco de
observação incidia sobre o espaço externo, público, muito mais do que sobre o interno,
privado. No entanto, seja qual for sua extensão, parece oportuno indagar como se
processava a convivência das duas línguas, através dos seus falantes, e quais as atitudes por
eles mantidas em relação a cada uma delas.
179
O trato diário entre português e Língua Geral aparece nos relatos, com muita
freqüência, de forma idealizada, como algo simétrico e harmonioso, omitindo-se ou
minimizando-se o seu caráter conflitivo. Avé-Lallemant viu no português falado em
Manaus, “o europeismo que avança”, e na Língua Geral, “a floresta virgem que se afasta
cada vez mais”, porém avaliou que esse processo não era “um combate de vida e morte”,
mas uma “agradável reconciliação”. Fez analogia do uso de uma língua com o de uma
arma, para descrever a função insubstituível de cada uma delas, permitindo-nos estabelecer
um paralelo: de um lado a língua portuguesa (espingarda), e de outro, a Língua Geral (o
arco e a flecha). Assim, os moradores da Amazônia aprenderam a usar a espingarda e a
apreciar seu valor, mas serviam-se dela apenas “na luta com os animais maiores, quando
podem obter a pólvora e as balas; para a caça menor, porém, a espingarda ainda não
substitui o arco e a flecha e matam, com grande segurança, o pirarucu e a tartaruga”.
(Avé-Lallemant 1980:100,105,110)
Na época em que o médico alemão passou pelas duas cidades, a Língua Geral era,
ainda, insubstituível para algumas funções, como continuava sendo seis anos depois,
durante a estadia, em Manaus, do casal Luiz e Elizabeth Agassiz, cuja versão apresentada
sobre um piquenique organizado em sua homenagem é dotada de forte carga simbólica.
Eles descreveram o passeio de barco que fizeram, ao por do sol, a um lago próximo da
cidade, na companhia do próprio presidente da Província: “partimos sem os canoeiros,
preferindo os cavalheiros remarem, eles próprios”. Os canoeiros dispensados eram,
evidentemente, índios, profissionais que remavam por dever de ofício; os cavalheiros eram,
obviamente, falantes nativos de português, amadores, que o faziam como exercício
esportivo. No meio do lago, o barco de cavalheiros se defronta com outro barco de dois
mastros, enfeitado de bandeirolas, esse totalmente tripulado por umas quinze índias, que
remavam e manejavam o leme, tendo a bordo, as figuras bronzeadas de alguns músicos. A
metáfora não podia ser melhor: o encontro de dois barcos num lago amazônico. Em um
deles, a língua era o português, falada por cavalheiros que estavam no lugar dos índios; no
outro, carregado de mulheres indígenas, a língua era a Geral. Nasceu, desse contato, uma
cena descrita por Elizabeth Cary Agassiz:
180
“Então, as duas embarcações se puseram lado a lado e desceram juntas,
passando a guitarra de uma para outra e as canções brasileiras se alternaram
com os cantos indígenas. Não se pode efetivamente imaginar nada tão
fortemente marcado do cunho nacional, tão fortemente impregnado da cor dos
trópicos (...) que essa cena no lago” (Agassiz 1975:168).
O ´cunho nacional´, é verdade, se refere ao conjunto da cena, mas a autora reservou
o termo ´brasileiro´ para qualificar somente as canções em língua portuguesa, em oposição
ao ´indígena´, cujos cantos em Língua Geral acabam, assim, excluídos dessa comunhão
nacional. É até provável que – interpretações à parte - a descrição seja objetiva, mas
dificilmente o casal Agassiz encontraria outra cena similar. Nas cidades de Belém e
Manaus, as embarcações, portadoras do português e da LGA, quase nunca estiveram lado a
lado, nem tampouco passearam juntas, em igualdade de condições. O bilingüismo dos
moradores nas duas cidades se deu, sempre, sob fortes condições de dominação e de
opressão, num quadro no qual a língua materna da elite econômica e política era uma, e a
dos fornecedores da força de trabalho era outra. Uma tinha tradição escrita e, também por
isso, era considerada língua dominante. Embora nem todos os portugueses citadinos, por
serem analfabetos, tivessem condições de usar sua própria língua nas práticas de registro
escrito, o fato dela possuir uma tradição escrita e uma literatura erudita, lhe conferia o
status de prestígio. Era a língua da escola, dos livros, dos jornais, da administração, das
leis, da correspondência escrita, dos relatórios oficiais, enfim, das relações urbanas, e era,
sobretudo, a língua que permitia comunicar-se e integrar-se com o resto do país.
A outra, com forte tradição oral, era a língua da família, do trabalho, das conversações
coloquiais, das narrativas, das canções de ninar, da poesia e do lazer. Sua escassa produção
escrita consistia no registro, seja em gramáticas, em dicionários, em catecismos ou, ainda, na
coleta da literatura oral, feito por usuários de português, que dominavam a LGA. Entretanto,
na sociedade amazônica, era discriminada como língua dominada, em situação de
desvantagem, ficando limitada ao espaço da cozinha e do quintal, servindo de ponte entre a
cidade e a floresta, como um ‘elo para dentro’, enquanto o português funcionava como um
‘elo para fora’.
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COPYRIGHT JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE

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