domingo, 1 de abril de 2012

LÍNGUAS DA AMAZÔNIA

deviam persuadir a descer para as aldeias de
repartição (Barros, 1994 a; 1994 b; 1986).
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Os intérpretes tiveram papel decisivo, sobretudo nos primeiros momentos da
conquista, no século XVI e início do século XVII, mas continuaram tendo atribuições
destacadas durante um longo período, contribuindo decisivamente para o recrutamento da
força de trabalho indígena, através dos descimentos e dos resgates. Sem a ajuda deles, o padre
Antônio Vieira dificilmente teria ‘pacificado’, no natal de 1658, os índios de diferentes línguas
que habitavam a ilha do Marajó: Mamainá, Aruan, Anajá, Mapuá, Sacaca, Guajará, Pixipixi e
outros, “que por serem de línguas diferentes e dificultosas são chamados geralmente
Nheengaíbas”, ou seja, de ‘língua má’ ou ‘fala incompreensível’. Na ocasião, o chefe indígena
Piié fêz um discurso duro, denunciando as arbitrariedades dos portugueses, que só foi
registrado e chegou até nós, graças à sua tradução de uma língua nheengaíba. (Leite 1943
t.III:237).
As audiências da Junta das Missões, realizadas periodicamente em Belém do Pará ou
São Luis do Maranhão, também contavam sempre com intérprete ou tradutor oficial, que
participava do interrogatório aos índios cativos, para decidir se haviam sido aprisionados justa
ou injustamente, o que determinava o seu destino e a sua condição de ‘livre’ ou de escravo.
Também quando o missionário ignorava a língua indígena, o que era comum em se tratando
de índios de filiação não-tupi, o intérprete tinha uma atuação permanente, nas cerimônias e na
administração dos sacramentos da igreja, seja traduzindo o sermão dominical e as diretrizes
que o missionário desejava transmitir à comunidade, no trabalho de catequese, seja até mesmo
intermediando o sacramento da confissão, transpondo de uma língua para outra tanto os
pecados do penitente, como as recomendações e a penitência por parte do confessor. Disso nos
dá notícias o padre jesuíta, João Daniel, em meados do século XVIII, relatando a confissão de
índias nheengaíba, da ilha do Marajó, cujos maridos proibiam o uso de outra língua que não a
materna:
“Como porém as confissões das tapuias por intérprete trazem consigo muitos
inconvenientes, tem-se empenhado muitos missionários a desterrar este abuso, já
com práticas, e já com castigos: e posto que já vai em muita diminuição, contudo
ainda há algumas, que nem a pau querem largar este abuso, tanto que já houve
algumas às quaes o seu missionário mandou dar palmatoadas até elas dizerem
basta ao menos pela lingoa geral” (Daniel 1757, I, 272).
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Foi justamente a Língua Geral, com base no tupinambá, que acabou merecendo as
atenções da política de línguas da Coroa Portuguesa, por razões fundamentalmente de ordem
histórica. A permanência do intérprete na vida cotidiana da Amazônia, dependendo da área
geográfica, da distribuição lingüística dos diferentes povos e da intensidade do processo de
mestiçagem, só tinha sentido, enquanto os dois mundos que ele unificava - o indígena e o
português - se mantinham distantes e isolados. No entanto, passa a ser dispensável, com a
construção da sociedade tapuia, a extinção de muitas línguas indígenas e a expansão da Língua
Geral, ainda que sob o estímulo das ‘palmatoadas’.
3.3.2 – Tupinambá: o ‘latim da terra’
“Depuis deux siècles, les Toupinambás ont disparus du Brésil, mais
leur idiome est resté la langue courante de deux ou trois provinces de
cet empire, et notammente de celle du Pará” (Paul Marcoy 1869:103).
Os primeiros colonos e missionários que se estabeleceram no Grão-Pará, vindos de
Pernambuco e Maranhão, trouxeram com eles muitos índios aliados, com quem falavam a
denominada Língua Brasílica, que desta forma já começou desempenhando a função de língua
franca na Amazônia desde os primeiros momentos, independente de qualquer decisão política.
Encontraram na costa do Salgado o povo Tupinambá, com quem se comunicaram com relativa
facilidade, por serem estas duas línguas geneticamente aparentadas e muito próximas. Em
conseqüência, a política de línguas desenvolvida pelos missionários referendou o tupinambá,
transformando-o em língua de contato. Nos primeiros setenta anos da conquista (1616-1686),
essa língua – sob os auspícios dos missionários e da Coroa Portuguesa - expandiu-se pelos
núcleos populacionais da Amazônia e pelas aldeias de repartição, para onde começaram a
descer índios de filiação tupi e não-tupi, tornando-se uma língua de comunicação interétnica.
Essas aldeias de repartição, criadas pelo sistema colonial para concentrar e disciplinar
a força de trabalho indígena, eram governadas, nesse período, por um colono português -
morador - responsável pelo ‘governo temporal’ delas, enquanto os missionários se limitavam
ao ‘governo espiritual’. Tal divisão de poderes restringiu a ação missionária, na medida em
que os índios repartidos ficavam a maior parte do tempo fora das aldeias, ocupados no
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trabalho em lavouras de tabaco, engenhos de açúcar, construções de embarcações e fortalezas,
nas coletas das chamadas drogas do sertão, como remeiros e em outras atividades exigidas
pelos moradores portugueses e pela administração colonial, e lhes sobrava pouco tempo para a
catequese, realizada em língua tupinambá. Dessa forma, o aprendizado desse tupinambá
destribalizado e supraétnico, essencialmente oral, já denominado de ‘Língua Geral’, ia
ocorrendo na convivência com os seus falantes e usuários, tanto nas aldeias de repartição
como fora delas.
Os principais agentes dessa política oficial, que durante todo o período estimulou a
difusão do tupinambá, foram os missionários, mas também os próprios moradores
portugueses, como pode ser observado na documentação que registrou, anos depois, a troca
mútua de acusações entre eles, que disputavam o controle da força de trabalho indígena. Os
moradores acusaram os jesuítas de serem os únicos responsáveis pela difusão do tupinambá e
pela sua transformação em Língua Geral. Numa carta ao rei de Portugal, em 1729, o
procurador dos colonos, Paulo da Silva Nunes, sintetizou essa apreciação, quando
responsabilizou os missionários, que “devendo ensinar-lhes a língua portuguesa (...) os
conservam só com a língua, a que chamão Geral naquelle Estado, que differe muito pouco da
bruta linguagem com que sahem dos sertões”. O visitador-geral das missões, padre Jacinto de
Carvalho, contra-argumentou, devolvendo a acusação:
“(...) Os Índios das aldêas, mais tratão com os Portuguezes, do que com os
missionários; porque com os missionários, quando muito, só chegão estar dous
mezes no anno, que é os mezes de Agosto e Setembro; donde ainda que os
missionários lhe ensinem algumas palavras da língoa portugueza, nestes dous
mezes, como os Portuguezes nos dez mezes seguintes, não fallem com elles, senão
pela sua propria lingoa dos Indios, quando voltão para as aldêas, já não se
lembram, nem das palavras que os Padres lhes tinhão ensinado” (Reis
1961:494).
Sequer os filhos dos moradores lusitanos falavam o português, porque entregues aos
cuidados das amas-de-leite indígenas, com elas adquiriam a Língua Geral, cuja expansão
parece indicar que as informações enviadas ao rei, tanto pelos moradores quanto pelos
missionários, eram procedentes. “Uma das regras da Companhia de Jesus é que todos
aprendam a língua da terra, onde residem, se não virem que é mais útil a sua própria’. Os
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padres aprendiam o tupinambá, considerado como o ‘latim da terra’, e organizavam o seu
ensino, através da catequese, aos índios de ‘línguas travadas’. A urgência da aprendizagem
exigiu, com caráter de obrigatoriedade, que “o estudo do tupi substituísse o do grego’, na
formação dos religiosos, cujo destino era o Brasil ou o Grão-Pará. A norma se apoiava no
papa Pio V, que concedeu indulgências plenárias aos sacerdotes, “todas las veces que
enseñasen o predicasen en lenguas índias” (Leite 1938 t.II: 545). Enquanto não havia
gramáticas, nem vocabulários, a aprendizagem da língua tupinambá era ‘puramente
pragmática’, feita por imersão. Mas logo surgiu a Arte da Língua Brasílica, do padre Luiz
Figueira, impressa em Lisboa, em 1621. Os jesuítas passaram, então, a ensinar as orações – o
pai-nosso, a ave-maria, o credo – em tupinambá, que se tornou assim a língua da
evangelização.
Desta forma, o tupinambá, transformado em Língua Geral, se expandiu por todo o
vale amazônico, se diferenciando do tupinambá original, enquanto este último minguava,
confinado nas vilas do Conde, Caeté e Azevedo, onde seus falantes foram encontrados em
1775, “quase sem nome e fama”, pelo ouvidor Sampaio (1985:24).
3.3.3 - A Língua Geral: língua da catequese
“Até o começo do século XVIII, a proporção entre as duas línguas faladas na
colônia era, mais ou menos, de três para um, do tupi para o português”.
Teodoro Sampaio (1901:3)
O Regimento das Missões (1686) – instrumento jurídico pelo qual a Coroa Portuguesa
entregou às ordens religiosas o “governo temporal e espiritual” dos índios – permitiu que os
missionários intensificassem os descimentos, recrutando ‘índios bravios’ de suas aldeias de
origem e concentrando-os nas aldeias de repartição, que ficaram superlotadas. Segundo
Baena, entre 1687 e 1690, os missionários “só de alguns sertões dos rios Tocantins, Amazonas
e Negro, no breve espaço de quatro anos, desceram 184.040 selvagens reduzidos ao grêmio
da Igreja Católica e obediência de El Rei” (Baena 1831:247). Estavam criadas as condições
históricas para que a Língua Geral – a língua da catequese - fosse difundida entre um número
maior de índios e agora de forma mais sistemática, uma vez que a nova legislação garantia aos
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menores de 13 anos a permanência nas aldeias, durante todo o ano, enquanto os adultos
ficavam por um período de seis meses. No entanto, do ponto de vista lingüístico, era preciso
sistematizar a língua para tornar possível o seu ensino, o que requeria a elaboração de
instrumentos normativos.
A preocupação dominante da política de línguas, nesse período, foi justamente com a
normativização da Língua Geral e com sua reprodução de forma institucionalizada. A
gramática, elaborada pelo padre Luiz Figueira (1621), foi reeditada em 1685, considerada que
foi como importante instrumento de ensino/aprendizagem e de apoio à evangelização. Vários
dicionários “foram elaborados por missionários franciscanos durante a sua convivência com
ajuntamentos de índios de tribos diversas, por efeitos dos descimentos”. Outros, elaborados
pelos jesuítas, tiveram o seu uso restrito à Companhia de Jesus (Edelweiss 1969: 110). É deste
período, também, a edição de catecismos na Língua Geral, como o de autoria do padre
Antônio de Araújo, cuja primeira edição é de 1618, mas que foi reatualizado em 1686, da
mesma forma que a “Doutrina Christaã em Língoa Geral dos Índios do Estado do Brasil e do
Maranhão”, composta pelo padre João Felipe Bettendorf.12
Esses instrumentos permitiram padronizar a reprodução da Língua Geral entre os
missionários, independentemente dos próprios índios, estabelecendo ainda as normas para o
registro escrito de uma língua até então ágrafa, com resultados práticos na produção de
material escrito de apoio à catequese. Houve assim uma espécie de expropriação da língua,
subtraída de seus falantes originais, num processo de padronização sobre o qual o missionário
tinha o controle exclusivo: “un caso de dominación lingüística de la propia lengua del
colonizado, en la que el colonizador impuso una norma lingüística en la cual él era su
poseedor exclusivo” (Barros 1980:22). Desta forma, foram produzidos orações, catecismos,
canções, peças de teatro e outros textos religiosos usados nos aldeamentos, cujo controle
político também passou a ser exercido pelos missionários, que estavam amparados pela nova
legislação.
A política de Portugal, até a década de 1720, foi de opção inequívoca pela Língua
Geral, institucionalizada como norma de uso colonial. Carmelitas, Mercedários e
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Sobre a edição e circulação de dicionários, gramáticas e catecismos no Grão-Pará, bem como informações
sobre seus originais manuscritos em arquivos europeus e brasileiros, ver Edelweiss (1969), Rosa (1992 e
1997) e Barros (1990 e 1994).
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Franciscanos, por exemplo, foram repreendidos duramente pelo rei de Portugal, em 1722,
porque seus missionários não a dominavam, com a mesma fluência dos jesuítas, o que
diminuía sua eficácia no processo de descimento de índios. Quanto à língua portuguesa, seu
ensino era recomendado apenas aos que já tivessem um pleno domínio da Língua Geral,
(Sweet 1974:106), o que parecia um estímulo ao bilingüismo, na medida em que a proposta de
adoção da segunda língua não excluía o uso da primeira. No entanto, cinco anos depois, junto
com as divergências entre os jesuítas e a administração colonial sobre os critérios para
repartição de índios, começam a surgir as primeiras medidas de restrição do uso da Língua
Geral. Uma Carta Régia de 12 de setembro de 1727 proibia o seu uso nas povoações e nas
aldeias de repartição, determinando que tantos os moradores como os missionários deviam
organizar o ensino do português aos índios:
“[Que] Os índios que são da administração de suas Religiões sejam bem
instruídos na língua portuguesa, pelo grande benefício que disso pode resultar ao
serviço de Deos e meu, e da mesma maneira os inclinem e reduzam a trabalhar
nos ofícios mecânicos” (ABAPP 1727).
No ano seguinte, o governador Alexandre Freire ordenou, em bando, que as ordens de
Sua Majestade fossem cumpridas. Vários outros documentos oficiais, que concebiam a Língua
Geral como um obstáculo para o desenvolvimento do português, insistiram na mesma questão
(Reis 1961:496). No entanto, durante trinta anos, essas recomendações ficaram apenas no
papel. A língua tupinambá destribalizada, diferenciada do tupinambá tribal, já havia adquirido
o estatuto de Língua Geral e, mesmo proibida, continuou em pleno processo de expansão por
toda a colônia, porque o sistema, os agentes e as práticas sociais que sustentavam essa
expansão – o Regimento das Missões, os jesuítas e organização do trabalho indígena -
permaneciam vigentes e atuantes. Em 1750, “a língua portuguesa estava realmente quase
banida da capitania. Em Belém e São Luiz todos falavam a tal Língua Geral, sem excetuar as
famílias dos colonos e as pessoas gradas. Os jesuítas a usavam até nos sermões e prédicas”
(Raiol 1900:148).
Somente os governadores e altos funcionários, periodicamente enviados de Lisboa,
desconheciam a Língua Geral, o que levou a administração colonial a uma situação de
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isolamento, como resultado dessa política de línguas, que os havia distanciado do conjunto da
população. Bastava, portanto, o governador sair do seu palácio, em Belém, para ficar
incomunicável. Um deles não precisou sequer sair. Logo que assumiu o cargo, Xavier de
Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal, primeiro ministro do rei de Portugal, deu
uma ordem a um funcionário, que nada entendeu, porque sua competência em português era
precária. Logo depois, ocorreram dois episódios, já anteriormente mencionados, quando o
governador descobriu, estarrecido, que os filhos dos próprios portugueses falavam
fluentemente a Língua Geral e apenas entendiam, muito pouco, o português, da mesma forma
que escravos negros provenientes da África (ABAPP: 1759).
Na medida em que a língua de comunicação interna da Amazônia colonial não era o
português, a Coroa Portuguesa, para comunicar-se com seus “súditos”, era obrigada a passar
por intermediários, no caso, os missionários e, mais particularmente, os jesuítas. “Os
missionários eram senhores da escola, do púlpito e do confessionário; dominavam a razão e a
consciência dos índios pelo ensino e pelas prédicas” (Raiol: 1900, 144).
Com a língua, os missionários controlavam toda a enorme força de trabalho
concentrada nas aldeias de repartição e passaram a usá-la plenamente em suas múltiplas
empresas, monopolizando a produção, o comércio e a prestação de serviços da colônia.
Gozando de isenções de impostos, estas empresas prosperaram. Fortalecidos econômica e
politicamente, os jesuítas retinham os índios nas aldeias de repartição - onde estranhos não
eram admitidos - recusando os insistentes pedidos, feitos inclusive pelo governador, que
requeria trabalhadores indígenas para o serviço real. Multiplicaram-se os conflitos entre
jesuítas, moradores e administração colonial, em torno desses dois fatores intimamente
relacionados: o controle da mão de obra e o uso da língua. A forma como o poder político
passou a encarar a Língua Geral e suas funções, pode ser avaliada na carta que o governador
Xavier de Mendonça Furtado enviou à Metrópole em 1759:
“ A V.Exc. hebem constante as repetidas Ordens que os Nossos Augustos
Monarchas expedirão para que em benefício comum deste Estado se extinguissem
a perniciosa e abominável língoa que aqui improprissimamente deram o nome de
geral, cuja Diabólica invenção produzio nestas partes a real separação das
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gentes em consequencia da qual se poz o mesmo Estado na confusão e desordem
que a V. Exc. tem sido bem evidente”. (ABAPP: 1759).
Depois de um século e meio, a língua que havia servido como língua franca e de
unidade regional para maior rentabilidade da conquista da Amazônia, passou a ser vista como
“diabólica” , responsável pela falta de coesão interna e incapaz de traduzir os interesses
coloniais. É que os tempos eram, agora, outros. Portugal tinha um novo projeto para a região.
As disputas da Coroa Portuguesa com outros países europeus pelas fronteiras móveis da
Amazônia entravam numa nova fase, diferente do período anterior. Os tratados de Utrecht
(1715), Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777) reconheciam que cada país tinha direito sobre
o território que tivesse efetivamente ocupado (Serrão 1976). A questão residia em como
provar essa ocupação em áreas litigiosas como o Rio Branco e o Alto Solimões, ambas
habitadas quase exclusivamente por índios, mas reivindicadas por diferentes países.
A Espanha publicara, em 1749, um ´Mapa de los confines del Brasil con las tierras de
la Corona de España en la América Meridional´, com uma legenda explicando: ‘lo que está
de color blanco es lo que se halla ocupado por los portugueses; lo que está color de rosa es lo
que tienen ocupado los españoles’. Posteriormente, durante as viagens de demarcação, o
governador espanhol, tentando colorir de rosa o rio Branco, declarou que, naquela área, por
exemplo, não fora encontrado “portugués alguno, ni vestígios del menor establecimiento de
esa nación”, o que era verdade. Portugal reconheceu o fato, mas alegou que “embora os
portugueses não tivessem até agora formado povoações no rio Branco, nem por isso deixam
de o ter ocupado, possuído e dominado”. Um dos critérios básicos para afirmar tal ocupação
não materializada era o argumento lingüístico (Sampaio 1825: 212-213). A toponímia, em
Língua Geral, chegou a ser invocada em infindáveis discussões etimológicas, tanto por
portugueses como por espanhóis, para reivindicarem o direito que cada país acreditava ter
sobre o território do Alto Solimões. (Noronha 1997:45-46). No entanto, não houve qualquer
contestação sobre aquelas áreas cujos habitantes, índios e/ou mestiços, falavam uma língua
européia. “Quando no Tratado de Madri se procura delimitar as fronteiras da América
Portuguesa, o critério decisivo vai ser este: a América Portuguesa vai até onde se falar o
português” (Hoornaert 1992: 170).
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Portanto, para consolidar as fronteiras, era necessário, no plano de línguas,
portugalizar a Amazônia, como já vinha ocorrendo em outras áreas do Brasil, porque era
através da língua portuguesa que a Coroa podia garantir o fundamento jurídico de sua
conquista de território, que pelo anterior Tratado de Tordesilhas deveria ser da Espanha.
Nunca o poema de Fernando Pessoa poderia ser interpretado tão literalmente como nesse caso:
minha pátria é minha língua.
A política de línguas sofreu, então, uma reviravolta, marcada por interesses
geopolíticos, com um discurso oficial de hegemonia que demonstrava a percepção das
relações entre língua, nação e estado, semelhante ao discurso formulado pelos modernos
estados nacionais ou pelas ‘dinastias que adquiriam um cunho nacional’ (Anderson 1983:51)
Na carta já citada, o governador Xavier de Mendonça dava conta das medidas que tomara,
providenciando “(...) em todas Povoações deste Estado a introdução da Língoa Portuguesa,
para que todos parecessem vassallos do mesmo Príncipe”. (ABAPP 1759). Esta decisão veio
acompanhada de três medidas drásticas, capazes de torná-la efetiva a médio prazo: a
revogação do Regimento das Missões, a expulsão dos jesuítas e a abolição legal da escravidão
indígena.
3.3.4 - As tentativas de portugalização
“(...) recommendando-se aos prelados, que aos pequenos e já aldeados, fação falar
português uns com os outros, e dar-lhe alguma palmatoada, quando os ouvir falar pela
língua [Geral]”. Governador João Maia da Gama, 1727 (Reis 1961: 495).
O Regimento das Missões, que organizava a população indígena em toda a Amazônia,
foi substituído pelo Diretório que se deve observar nas povoações dos Índios do Pará e
Maranhão, assinado em 3 de maio de 1757 pelo governador Francisco Xavier de Mendonça
Furtado. Este foi o instrumento legal, responsável, entre outras diretrizes, pela formulação da
política de línguas na região, cujo eixo principal era oficializar a língua portuguesa e
transformá-la na língua de comunicação interna de todos os moradores, tanto portugueses,
como mestiços e índios. A expulsão dos jesuítas emancipou os índios ditos ´livres´ da tutela
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missionária, e a abolição legal da escravatura libertou os índios escravos, passando todos eles
à condição – pelo menos formal - de súditos e vassalos do rei.
A maloca não era considerada lugar ideal para súdito e vassalo. Dessa forma, as
aldeias onde estavam agrupados os índios de repartição foram formalmente convertidas em
vilas, lugares e povoados que, em princípio, passariam a funcionar administrativamente
segundo o modelo das povoações lusas, devendo os juizes ordinários, vereadores e oficiais de
Justiça serem escolhidos, quando possível, entre os próprios índios (Almeida 1997). A forma
como se deu essa conversão não podia prescindir da língua geral, como pode ser observado
nas cerimônias de instalação do pelourinho, que foram presididas pelo próprio governador
Xavier de Mendonça: “Convocados os índios ao som das trombetas, fez-lhes um oficial da
escolta de Mendonça, perito na linguagem tupi, uma prática, insinuando-lhes que, para o
futuro, viveriam em outros costumes, outra disciplina e outra lei” (Azevedo 1930:319).
Estas aldeias, num gesto carregado de simbolismo intencional, foram rebatizadas e
tiveram sua toponímia modificada, perdendo seus nomes em Língua Geral, e adquirindo
nomes de vilas existentes na Metrópole, muitos dos quais se conservam até os dias de hoje:
Santarém (ex-Tapajós), Óbidos (ex-Pauxis), Borba (ex-Trocano), Barcelos (ex-Mariuá),
Moura (ex-Itarendaua), Serpa (Itacoatiara), Silves (ex-Saracá), Fonte Boa (ex-Procatuba), Vila
Nova da Rainha (Parintins) entre outros. É verdade que “o furor de lusitanizar o país parou
ao encontrar a primeira cachoeira do Rio Negro, acima das quais conservaram as Povoações
seus primitivos nomes” (Amazonas 1852:143). No entanto, outras medidas na mesma direção
foram tomadas. O Marquês de Pombal incentivou também a imigração de portugueses para,
desta forma, alterar o quadro demográfico da região, modificando em termos quantitativos a
correlação entre lusos e índios, desfavorável até então aos primeiros. O seu projeto de
colonização e povoamento estimulava a migração em massa de colonos portugueses para os
territórios de onde os índios haviam sido expulsos, com a concessão gratuita de terras
(sesmarias) e de instrumentos agrícolas aos novos colonos, bem como a isenção de impostos
régios. Os portugueses que se casassem com mulheres indígenas receberiam, além disso,
privilégios adicionais (Moreira Neto 1988: 29).
A Companhia Geral do Grão Pará, criada em 1755, devia coordenar este projeto, cujo
objetivo, no plano econômico, era a instalação de grandes empresas agrícolas que deveriam
substituir os produtos extrativos de exportação. A força de trabalho principal prevista já não
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era a indígena, mas os negros africanos, que deveriam ser importados em grandes quantidades,
à semelhança do que ocorrera na Bahia e no Rio de Janeiro.
A língua portuguesa devia fortalecer-se na região com a chegada dos novos colonos,
com os casamentos mistos e com a educação escolar. O governador Furtado trouxera
instruções precisas para o funcionamento desta escola, em língua portuguesa, em toda a
colônia, devendo para este fim obter a colaboração dos colonos, a quem o governador chegou
a ameaçar com tirar-lhes os índios se eles – colonos – não cumprissem esta determinação.
Cada aldeia devia abrigar duas escolas, uma para o sexo masculino e outra para o feminino. As
meninas aprenderiam a fiar, costurar, fazer renda “e os demais misteres próprios da mulher.
Era proibido o uso da chamada língua geral... era obrigado a fazer vulgarizar a língua
portuguesa, não consentindo que se falasse outra nas escolas” (Accioly 1883: 78).
Na realidade, da mesma forma que chamar uma aldeia de vila e trocar seu nome
indígena por um topônimo português não fundava, por si só, cidades, também a criação formal
de escolas não garantia seu funcionamento, sobretudo porque em muitas delas não havia
professores. O ouvidor Sampaio, que em 1774-1775 percorreu toda a região em viagem de
correição, concluiu em carta ao governador João Pereira Caldas: “As escolas, não as há em
todas as povoações, por faltarem pessoas na maior parte dellas que possão servir de
mestres” (Sampaio 1985: 24). O cônego André Fernandes de Souza, vigário do Rio Negro,
onde viveu por mais de 37 anos, lamenta “que não tenha lá havido um só professor de
primeiras letras no espaço de quarenta anos” (Souza 1848:502). Contudo, até mesmo nos
lugares onde havia professores, nem sempre eles podiam atuar. E isso porque o projeto de
Pombal, apoiado em condições conjunturais do mercado mundial de algodão e açúcar,
acabou falindo, com a extinção da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão em 1778.
Os produtos agrícolas, neste período, não chegaram a adquirir maior importância que os
produtos extraídos da floresta, o que iria repercutir na organização das aldeias e no
programa escolar, uma vez que o trabalho de coleta absorvia os índios completamente fora
das aldeias. O Diretório de Índios, órgão encarregado de organizar o trabalho compulsório
indígena, canalizava todos os braços para a coleta das chamadas drogas do sertão, deixando
as aldeias e as escolas vazias. Nos raros casos onde continuava a existir um missionário –
os carmelitas permaneceram no Pará - o ensino do português não prosperava porque, como
observou um testemunho ocular da época para a região do rio Madeira, “os índios de
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nenhuma sorte consentem que os filhos seus menores se apartem do seu seio e não querem
se unir às vilas e lugares pela opinião que entre eles há, que os querem escravizar” (in
Moreira Neto 1971,13).
No que se refere ao aspecto demográfico, apenas no território do Maranhão e no baixo
Amazonas houve um incremento populacional não-indígena, devido sobretudo ao contigente
de escravos africanos e, em menor escala, de colonos portugueses; a Amazônia ocidental, por
seu lado, permaneceu intocada, neste aspecto. Quanto ao casamento de brancos com índias, ali
onde ocorreu, o seu resultado não foi aumentar o número de falantes do português como se
pretendia. O mesmo ouvidor Sampaio observou, em sua viagem pelas freguesias, que esses
casamentos “têm sido pela maior parte pouco afortunados; porque em lugar de as índias
tomarem os costumes dos brancos, estes têm adoptado os daquellas” (Sampaio 1985:127).
Acontece que os filhos desses casamentos, quase sempre, não tinham sequer um parente
português, conviviam somente com a família da mãe e, desta forma, se tornavam falantes da
língua materna, que era a Língua Geral ou outra língua de origem indígena.
Portanto, apesar da vontade manifesta da Coroa de portugalizar rapidamente a
região, nesse período, tal não ocorreu. O projeto fracassou, registrando-se apenas o início da
penetração lenta da língua portuguesa na parte oriental – atual Estado do Pará – enquanto na
Amazônia ocidental, antiga capitania do Rio Negro, hoje Estado do Amazonas, a Língua
Geral permaneceria por mais um século ainda como língua franca.
3.3.5 - A hegemonia do português e a escola
“Os índios foram abandonando o seu idioma materno para se render afinal, à
beleza sem par da língua portuguesa”. (Fernandes 1961, 52).
A adesão do Estado do Grão-Pará à Independência do Brasil ocorreu em agosto de
1823, trazendo implicações no plano das políticas de línguas, que deixaram de ser formuladas
apenas pelo governo central, passando também para a competência do poder local. A Lei das
Reformas Constitucionais de 14 de agosto de 1834 concedeu ampla autonomia às Assembléias
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Legislativas Provinciais, para legislarem e decidirem sobre os destinos dos índios, o que elas
passaram a fazer de imediato. Na província do Pará, os primeiros debates se dão em torno de
um projeto de novo Regulamento para a Civilização dos Índios, elaborado por Antônio
Ladislau Monteiro Baena, um oficial de artilharia nascido em Lisboa. O projeto continha “um
novo método de fomentar a população com índios”, uma vez que “a população branca não
tem força numérica”, envolvendo ainda o seqüestro de índios menores para obrigar os seus
pais a trabalharem. Definido pelo próprio autor como “um regime policial compulsório”,
previa a presença de “policiais em cada aldeia” para, em língua portuguesa, “promover a
instrução [dos índios] na religião e moral” :
“Os índios meninos serão doutrinados gratuitamente na escrita e na prática das
quatro operações fundamentais da Aritmética, nos princípios sentimentais da
moral e nas máximas relativas à obediência devida às Leis, e o respeito devido ao
Monarca e a todas as Autoridades Públicas” (Baena 1831:264)
A discussão sobre política de línguas inserida nas propostas sobre educação foi
interrompida, no entanto, pela Cabanagem, um movimento popular armado pouco estudado,
apesar de sua importância para a história regional e nacional (Pinheiro:2001). Os cabanos
foram dura e exemplarmente reprimidos, o que contribuiu para diminuir, de forma drástica, o
número de falantes da Língua Geral: os 40.000 mortos apresentados nas estatísticas oficiais,
vítimas de cinco anos de repressão (1835-1840) eram, quase todos, usuários dessa língua,
conforme veremos no próximo capítulo. O debate sobre a questão educacional, envolvendo a
variável língua, foi retomado depois da Cabanagem, no quadro da reestruturação políticoadministrativa,
ocorrida em 1850, quando a antiga Capitania do Rio Negro separou-se do Pará
e foi transformada na Província do Amazonas, conquistando assim autonomia para montar o
seu próprio aparelho de estado local. Coube a este aparelho e às Assembléias Legislativas
Provinciais do Pará e do Amazonas tomar medidas para conseguir aquilo que o colonizador
luso não havia logrado: portugalizar a região (Freire 1983:66).
A província do Amazonas, recém-criada, constituía a última unidade política do Brasil
com uma população majoritariamente indígena, que não falava o português como língua
112
materna. Os dados globais dos arrolamentos censitários serão apresentados no próximo
capítulo, onde se discutirá a proporção entre as diferentes matrizes étnicas que compunham a
população amazônica naquele momento, permitindo-nos algumas deduções no que diz
respeito ao uso das línguas. Por ora, é interessante destacar que, no censo de 1852, a proporção
de ‘brancos’ não ultrapassava os 6% em toda a província, incluindo Manaus - a capital - e os
principais núcleos urbanos. Essa população ‘branca’, falante do português, herdeira do espólio
político e ideológico do colonizador, ocupava todos os assentos do parlamento provincial,
responsável pela elaboração das políticas em relação aos índios, tanto os índios considerados
como ‘bravios’, de línguas diversificadas, quanto os destribalizados, falantes da Língua Geral,
como é possível verificar nos Anais da Assembléia Legislativa Provincial (APA 1852-1853).
A preocupação com os índios ‘bravios’ mereceu a atenção imediata dos parlamentares.
Na terceira sessão da primeira legislatura da história da Província do Amazonas, isto é, no
terceiro encontro que tiveram os primeiros deputados amazonenses, ocorrido no dia 9 de
setembro de 1852, foi apresentado o primeiro projeto de número 02 (o projeto 01 foi o que
aprovou o Regimento Interno). A celeridade da tramitação dá uma idéia da importância do
tema para os legisladores e seu conteúdo permite avaliar como o poder político local tratava a
questão indígena. Os três primeiros artigos do projeto estabelecem:
1. Fica livre a todo morador poder ir contratar a troca dos indígenas bravios com
os principais das nações selvagens;
2. Feita a troca, o indivíduo apresentar-se-á com os indígenas perante o juiz de
paz mais vizinho para assinar um termo de educação (sic) por espaço de dez
anos;
3. Concluídos os dez anos de que trata o artigo antecedente, poderá o índio ser
aldeado (APA 1852: 5)
A educação desses índios não passava mais pela Língua Geral, devendo ser feita,
evidentemente, em português. O seu preço – dez anos de trabalho forçado – poderia sugerir
que o ensino da língua portuguesa era um negócio altamente lucrativo. Na realidade, a menção
à educação era apenas uma justificativa, empregada desde os tempos coloniais, para enquadrar
os chamados ‘índios bravios’ num sistema de trabalho compulsório, uma prática que
113
continuou sendo corrente no Amazonas, sem necessidade até então de ser regulamentada por
lei (Freire: 1983 b).
Todo o peso na difusão da língua portuguesa recaiu, de fato, sobre a escola,
encarregada pelo governo da nova Província de incorporar à sociedade brasileira os
amazonenses falantes da Língua Geral - índios destribalizados, caboclos e mestiços. Por isso,
é oportuno avaliar o seu funcionamento, que pode ser estudado através dos relatórios anuais
da Diretoria de Instrução Pública, quase sempre anexados às falas e mensagens dos
presidentes da província (APA 1858-1880). Dois desses relatórios merecem uma atenção
especial, em primeiro lugar porque constituem a única avaliação sistemática que se tem do
funcionamento do sistema escolar, com menção às línguas; e depois, porque o seu autor foi o
poeta Antônio Gonçalves Dias, nomeado pelo presidente da Província do Amazonas, em
1861, para o cargo de visitador das escolas públicas de primeiras letras existentes em
diferentes freguesias.
No cumprimento de sua tarefa, Gonçalves Dias viajou pelo rio Solimões até os
limites com o Peru e Colômbia e pelo rio Negro até Cucuí, na fronteira com a Venezuela,
visitando escolas em cada localidade, onde encontrou uma população majoritariamente
indígena, que sequer falava o português. Em alguns lugares, assistiu a aulas; em outros,
entrevistou professores, folheou cadernos de alunos, confrontou o número de estudantes
formalmente matriculados com os que estavam presentes, re-elaborou dados estatísticos do
censo escolar, verificou horários de funcionamento, calendário escolar, currículo, livros
didáticos, observou os mobiliários e utensílios e registrou a situação dos professores. No
final, redigiu os dois relatórios, contendo suas apreciações. 13
Ele reclama do pouco tempo que teve para visitar as escolas, ficando totalmente na
dependência da demora do vapor em cada lugar. Nas freguesias onde a carga e descarga de
mercadorias eram feitas rapidamente, o contato com a escola tornava-se bastante
superficial. O autor questiona, então, a eficácia de uma tal avaliação, argumentando que as
visitas - ocasionais e transitórias - eram insuficientes e desta forma “o visitador não pode
13 O primeiro relatório, publicado em 1861, avalia as escolas das freguesias do rio Solimões, com menção
específica a Coari, Tefé, Alvarães, Nogueira, Fonte Boa, São Paulo de Olivença e Tabatinga. O segundo,
sobre o Rio Negro, só ficou conhecido em 1943, quando foi transcrito por Lúcia Miguel Pereira, que levou
três meses para decifrar a parte mais importante de seu conteúdo, escrito a lápis, de modo quase ilegível,
debaixo de chuva e sob o balanço da canoa. Ambos foram re-editados em 2002 pela Academia Brasileira de
Letras (Montello 2002).
114
por si mesmo tomar cabal conhecimento da escola; nem estudar os seus defeitos ou
apreciar os esforços do professor, e o progresso de seus discípulos (...), ficando “à mercê
115
de informações extra-oficiais que podem não ser isentas de favor ou de ódio” (Dias
1861:19). Em conseqüência, ele sugere um mecanismo de supervisão permanente, com a
contratação de inspetores locais, residentes nas próprias aldeias. Mesmo assim, em suas
visitas, ele teve tempo para verificar, em algumas localidades, o plano de ensino, a
administração e o regime das escolas, observando os compêndios e livros de leitura usados,
os métodos de aulas e as condições de exercício do magistério.
Gonçalves Dias considera como um dos mais graves problemas justamente a
formação de professores. “A primeira falta que se nota é a insuficiência dos mestres. Nada
se tem feito para criar um pessoal habilitado para o ensino público” (Dias 1861:5), ele
escreve, depois de mostrar as mais variadas situações: professores sem alunos no rio Negro;
alunos sem professor no Solimões; alunos e professores sem escolas em pelo menos uma
freguesia; exercício do magistério por pessoal não habilitado: diretor de índios, juiz,
subdelegado de polícia, inspetor de quarteirão, pároco e até sacristão.
Outro problema extremamente grave continuava sendo a evasão escolar. Pela
legislação então vigente, o ensino primário já era obrigatório, sendo passível de multa os
pais que não cumprissem a lei. No entanto, em todas as escolas visitadas, o número de
alunos presentes representava aproximadamente a metade dos alunos matriculados e isto
por dois motivos: de um lado, a migração, com constantes mudanças de residência: “a
gente menos remediada retirou-se com os filhos para outros lugares” e, de outro, as
exigências do trabalho, que impunham “uma espécie de férias de cinco meses: de agosto a
dezembro (...) toda a pobreza, e ainda os chamados ricos, correm à pescaria, levando toda
a família consigo e principalmente os filhos, que por mais verdes que sejam sempre podem
e sabem governar a canoa” (Dias 1861:12).
O visitador constata que os padrões de povoamento na Amazônia indígena não
favoreciam o funcionamento daquele modelo de escola, o que levou ao fracasso da
alfabetização, porque as crianças desaprendiam no longo período de recesso o que haviam
aprendido no curto período escolar. No entanto, ele admite que o Estado não pode obrigar
os pais a enviar seus filhos à escola, porque isso seria “ordenar-lhes que mudem
radicalmente a sua norma de vida”. Quanto à imposição de multa, ele esclarece: “Hoje
impô-la a um índio é tomar-lhe a palhoça e portanto obrigá-lo a procurar nova residência,
ao que eles já de si são tão propensos” (Dias 1861:22).
116
O relatório critica a ausência, em algumas escolas, de papel, caderno, livro,
carteiras, mesas e outros objetos indispensáveis, questionando também o currículo,
especialmente o de aritmética, bastante defasado, pois ensinava ainda as tabuadas
portuguesas com o seu antigo sistema de pesos e medidas, quando inclusive em Portugal já
se havia adotado o ensino do sistema decimal. No entanto, uma das conclusões mais
importantes de Gonçalves Dias está relacionada ao ensino da leitura e da escrita em língua
portuguesa. Precursor de uma etnografia da sala de aula, ele assistiu ao professor em plena
atividade, inspecionou os cadernos dos alunos e observou que estavam com “muitos erros
de ortografia e lastimável emprego de letras grandes”, verificando em seguida que os
erros não estavam apenas nos cadernos, mas nos próprios livros de onde as cópias eram
feitas. O problema consistia em que livros impressos eram “modelos de cacografia em vez
de translados” (Dias 1861: 23).
Gonçalves Dias concluiu que o sistema de ensino não funcionava, porque a língua
empregada na escola - o português - não era a língua falada pelas comunidades locais. O
uso do português, como língua oficial, era obrigatório na escola, mas a maioria da
população desconhecia esta língua e falava, além de um idioma materno, a Língua Geral.
Apesar dessa constatação, o poeta-visitador recomenda ao Presidente da Província para
que mantenha o português, pois “a vantagem da freqüência das escolas estaria
principalmente em se desabituarem da Língua Geral, que falam sempre em casa e nas
ruas, e em toda parte” (Dias, 1861:16).
Nestas aldeias, o meio acabou convertendo-se em mensagem. A função da escola
não era tanto transmitir conhecimentos e valores que não podiam ser veiculados num
idioma desconhecido pela população, mas impor a própria língua, como explicita o
visitador:
“No falar a língua portuguesa já vai uma grande vantagem, e tal que,
quando mesmo os meninos não fossem à escola para outra coisa, ainda assim
conviria na atualidade e ficaria ainda sendo conveniente por bastante tempo,
que o governo com esse fim criasse e sustentasse as escolas primárias do
Solimões” (Dias 1861:16).
117
Dez anos depois de Gonçalves Dias, Couto de Magalhães, com diferente
perspectiva, faz outro balanço, desta vez trágico, das escolas indígenas do Pará, Mato
Grosso e Goiás, províncias por ele governadas em diferentes períodos e conclui que a
metodologia por elas aplicadas, que efetivamente era etnocêntrica, representava “um
atentado contra o senso comum”. Em 1871, ele vai criar o Colégio Isabel, destinado a
alunos de diferentes etnias do Araguaia, buscando, em forma pioneira, “conservar-lhes o
conhecimento da língua materna (...), seus costumes, sua alimentação e seu modo de vida”.
Tratou-se de uma experiência isolada, sem maiores conseqüências para o sistema escolar da
época, que acabou, ao que parece, contrariando os objetivos do seu autor (Magalhães
1876:136).
Os relatórios de Gonçalves Dias acabam recuperando o discurso etnocêntrico do
período colonial, que representa as línguas indígenas como ‘desarticuladas’, ‘imperfeitas’,
‘deselegantes’. Este mesmo discurso se reproduz no século XX, quando pretende explicar a
extinção das línguas indígenas não pela violência de todos os níveis cometida contra os seus
falantes, mas pela rendição dos índios “à beleza sem par da língua portuguesa” (Fernandes
1961:52).
No entanto, essa escola referendada por Gonçalves Dias, ao desconhecer a procedência
lingüística heterogênea do alunado, não poderia cumprir os objetivos a ela atribuídos. Na
realidade, a língua portuguesa só universalizou-se, quando a inserção da Amazônia na divisão
internacional do trabalho como produtora de borracha atraiu para a região, no período de 1872
a 1910, cerca de 500.000 nordestinos, todos eles portadores da língua portuguesa (Furtado
1959:158). O afluxo desses trabalhadores provocou o desaparecimento da LGA. No entanto,
como essa discussão será retomada no próximo capítulo, interessa agora esboçar algumas
conclusões, de ordem teórica, sobre o papel do Estado nesse processo.
118
3.4 - As línguas e o Estado
“Ora, a essência de uma nação é que todos os indivíduos tenham muito em comum, e
também que todos tenham esquecido muitas coisas. Nenhum cidadão francês sabe se é
burgúndio, alano, taifale, visigodo; todo cidadão francês precisa ter esquecido São
Bartolomeu, os massacres do Sul no século XIII (Renan, 1882:20).
As decisões sobre as línguas tomadas pela Coroa Portuguesa, com interferência
decisiva dos jesuítas, mas também dos próprios colonos, contou em alguns casos com a
resistência ou com a colaboração dos índios, que desta forma – eles também - interferiram
no processo. A resistência indígena, para a qual temos algumas pistas aqui e ali, é pouco
conhecida, diferentemente do papel da administração colonial.
A escolha do Tupinambá para desempenhar as funções de língua franca merece
destaque. Os estudos na área de sociolingüistica têm reforçado a proposição de que uma
língua se converte em língua nacional, quando a vitória da circulação mercantil unifica um
território. A unificação lingüística de uma região seria resultado, portanto, da expansão
comercial. O contrário - a fragmentação lingüística - teria uma explicação na ausência de
um sistema de intercâmbio econômico. O que sabemos hoje sobre a América pré-colonial
fortalece essa hipótese, pois as áreas com menor diversidade lingüística são justamente
aquelas onde ficou comprovada a existência de uma rede comercial de ampla difusão, como
é o caso, por exemplo, do quechua no mundo andino, estudado por Alfredo Torero (1974)
ou do Nahuatl no México, analisado por Heath (1977).
Na Amazônia, havia uma enorme diversidade lingüística, o que pressupõe a
inexistência de um comércio intertribal. No entanto, as informações dos primeiros cronistas
que navegaram pelo rio Amazonas dão conta de uma rede de trocas, embora frágil, ao
mesmo tempo em que proporcionam dados sobre a possibilidade de, com a ajuda de
intérpretes de língua tupi, fazer-se entender em grande parte da calha central do rio. É
possível, portanto, que existisse, mesmo em estado embrionário, um processo de formação
de língua franca antes da chegada do europeu. Neste caso, o sistema colonial, ao escolher o
tupinambá como língua geral, teria utilizado um padrão de interação já existente,
ampliando seu raio de ação e dando-lhe outro direcionamento.
119
Quanto às demais medidas políticas relacionadas às línguas na Amazônia, um bom
ponto de partida para discuti-las, numa perspectiva histórica, pode ser o modelo proposto
por Anderson (1983), construído a partir do processo ao qual estiveram submetidas as
línguas da Europa e do Sudeste asiático. Ele considera que a natureza do Estado é
determinante nesta questão e estabelece uma diferença básica entre, de um lado, as políticas
de línguas dos reinos dinásticos e, de outro, aquelas formuladas pelos Estados nacionais
modernos, incluindo aqui as dinastias que adquiriram “um cunho nacional”.
No primeiro caso, podemos situar as medidas da Coroa Portuguesa até meados do
século XVIII, escolhendo o português como língua administrativa e adotando a Língua
Geral como língua de catequese e de comunicação interétnica. Essas medidas seriam
produtos de um ‘desenvolvimento gradual, não deliberado, pragmático, para não dizer
casual’. Obedeceriam sobretudo a conveniências internas e não a interesses políticos de
‘impor sistematicamente a língua às diversas populações submetidas ao dinasta’. Tratavase,
portanto, de ‘um processo não intencional, em grande medida não planejado’, pelo
menos no início, e que não obedecia a nenhum ponto de vista nacionalista, já que a
legitimidade da dinastia nada tinha a ver com a condição nacional. Anderson observa com
muita propriedade que as dinastias de Portugal e Espanha formularam suas políticas, não
com o objetivo de “hispanizar” ou “portugalizar”, mas antes, simplesmente de converter
pagãos e selvagens. A motivação seria, portanto, mais religiosa do que geopolítica ou,
traduzido em outros termos, o político se manifestava através do religioso. Essa hipótese
parece válida para a Amazônia, pelo menos até antes do projeto pombalino, em meados do
século XVIII, na medida em que a formulação e a execução das políticas de línguas recaem
muito mais sobre os missionários do que sobre os funcionários da administração colonial,
como foi visto aqui. Neste caso, é necessário deslocar todo o peso da análise da Coroa
Portuguesa para a Igreja. A catequese pode, então, ser abordada como um importante
instrumento de reprodução das línguas, equivalente ao papel desempenhado pelas escolas
nas sociedades modernas. (Anderson 1983:51-55,88,97-98)
No segundo caso, estão as decisões tomadas pela Coroa Portuguesa, na segunda
metade do século XVIII, depois da ascensão de D. José I e de Pombal como seu primeiro
ministro, que proibiram a Língua Geral e oficializaram o português. Essas medidas foram
‘intencionais, planejadas, produtos de um maquiavelismo consciente’, como aquelas
120
decisões de modernos Estados nacionais, diante da ascensão de nacionalismos lingüísticos
hostis ou como as decisões do estado brasileiro nos séculos XIX e XX, em relação às
línguas indígenas.
O modelo de Anderson, no entanto, não considera, na formulação das políticas de
línguas, as motivações de ordem econômica, o que sem dúvida alguma deve ser feito para o
caso da Amazônia, onde a força de trabalho indígena era absolutamente indispensável para
a manutenção do sistema colonial. Nesse sentido, uma análise da política de mão-de-obra
pode trazer respostas muito mais relevantes sobre o destino das línguas que um estudo
limitado às particularidades da política de línguas. Essa parece ter sido também conclusão
do naturalista alemão Von Martius, que viajou pela Amazônia no século XIX, quando
mostrou, de forma clara e contundente, como a Língua Geral serviu de instrumento para
organizar a força de trabalho indígena na Amazônia. Ele generalizou a partir da própria
experiência pessoal no trato com índios tripulantes de suas embarcações: “quase todos os
remeiros eram de tribos diferentes, cada um ignorando a linguagem dos outros”, o que
estimulava a desordem, a desobediência e a preguiça. No entanto, “quando todos falavam
a língua geral”, isto facilitava “a organização de ofícios”, permitindo que “reinassem a
ordem, o sossego e até a alegria” (Martius 1863: ix e x).
Para que uma língua pudesse cumprir esse objetivo de organização, foi necessária a
intervenção do Estado, seja pragmática e casual, seja planejada e intencional, o que acabou
contribuindo para reordenarar o quadro geral de línguas na Amazônia. Nesse processo, essas
línguas – a portuguesa e as indígenas - desempenharam ao longo de todo o período colonial
diferentes funções, que merecem ser aqui destacadas.
3.5 - As línguas e suas funções
“Que seja necessário o uso da língua própria para se civilizarem os povos, é sem
controvérsia; porém se não pode absolutamente desterrar o uso da língua do
paiz, quando por meio della devem ser instruídos e catechizados os novamente
convertidos”. Ouvidor Pestana da Silva, 1775 (Reis 1961: 498)


COPYRIGHT JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE

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