quarta-feira, 2 de maio de 2012
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Índice
Economia e NegóciosVEJA, 20 de novembro de 1889
A morte de Mauá põe um ponto final na trajetória do homem que plantou no Brasil a semente da indústria
Mauá: vitórias e derrotas, aplausos e insultos
O derradeiro capítulo, um mês antes da Proclamação da República, foi singelo. O corretor de café, encanecido e alquebrado por uma conjugação de reumatismo e diabete, brincou com os netos, na casa alugada em Petrópolis, retirou-se para a cama e morreu durante o sono. O enterro não teve pompa nem multidão desconsolada: uns poucos amigos, a viúva e apenas um dos dezoito filhos acumulados pelo casal em mais de quarenta anos de vida conjugal. "Do meu canto, seja qual for o local onde tenha de ser depositado em nove palmos de terra, levarei comigo a consolação de ter procurado toda a minha vida fazer algum bem e trabalhar por meu país", dissera, anos antes, o morto. Tinha 76 anos e chamava-se Irineu Evangelista de Sousa, primeiro barão e depois Visconde de Mauá. Irineu de quê? - perguntarão talvez alguns jovens que ora vibram com o advento da República. Faz pelo menos dez anos, afinal, que seu nome caiu no esquecimento. Saiba-se, então, que chegam ao fim naquela madrugada abafada de Petrópolis uma das mais espetaculares biografias do Segundo Reinado.
Grandes vitórias e grandes derrotas, aplausos e impropérios misturaram-se como jamais se vira antes no Brasil. Esqueça-se por um momento a polêmica e contemple-se o Brasil deste final de século. Trens encurtam distâncias, levam e trazem mercadorias, integram uma nação de dimensões continentais. Navios a vapor feitos no próprio país singram rios e mares para cumprir o mesmo papel. Uma sólida indústria de ferro "mãe de todas as outras", como dizia Mauá - dá o suporte indispensável ao incipiente processo de industrialização. Casas bancárias financiam os empreendimentos nascentes. As ruas das capitais são iluminadas por modernos lampiões de gás, que, enfim, aposentaram os precários lampiões de azeite de peixe utilizados desde os tempos de Colônia. Bondes cruzam bairros e dão um novo sopro à vida urbana. Rios são canalizados, o sistema de água e esgoto se espalha e, com isso, menos vidas são ceifadas por condições de higiene sempre tão ameaçadoras. Telégrafo submarino põe o país em contato direto com o mundo inteiro.
O catálogo de melhoramentos ocorridos nesses últimos quarenta anos é imenso. E em todas as suas passagens mais importantes vê-se a assinatura de Irineu Evangelista de Sousa. Se o Segundo Reinado tem um rosto, ele é uma combinação dos traços de D. Pedro II, de Duque de Caxias e de Mauá. É possível até que prevaleçam os de Mauá, um cidadão do mundo que conservou até o fim o hábito de praguejar em inglês e salpicar palavras castelhanas nas frases que pronunciava. Sua vida e sua época confundem-se. O apogeu do Segundo Reinado, na década de 60, foi o apogeu de Mauá. A agonia da monarquia, a partir da segunda metade dos anos 70, foi sua agonia. A morte de Mauá, um mês antes que se proclamasse a República não poderia ser mais simbólica como o fim de uma era.
O homem mais rico do Império saiu do zero. Nascido em 1813 numa cidadezinha da Província do Rio Grande do Sul, Irineu foi levado à corte aos 9 anos, por um tio que era capitão de longo curso. Seu pai, dono de terras, fora assassinado quando ele tinha 5 anos. A mãe decidira casar-se de novo, mas o noivo exigira-lhe que se livrasse dos dois filhos - além de Irineu, uma garota pouco mais velha. A saída, para Irineu, foi o Rio de Janeiro. Para a imã, o casamento aos 10 anos. Sozinho, pois o tio o deixara na corte e depois partira para a Índia. Irineu empregou-se como caixeiro numa pequena loja. Atrás dos balcões rústicos estavam portugueses pobres e brasileiros analfabetos. Um estrangeiro que conheceu a corte naquele começo de século horrorizou-se com o comércio. "Os homens faziam da mercadoria e da porcaria companheiras inseparáveis", afirmou o viajante.
O pequeno Irineu trabalhava das 7 da manhã às 10 da noite, hora em que o sino da igreja soava para determinar o fechamento da loja. Dormia, às vezes, sobre o balcão. Estudava depois do expediente, às vezes sozinho, às vezes com a ajuda de algum freguês. Assim iniciou-se em francês inglês, contabilidade e outros assuntos. Estava preparado, ao empregar-se numa firma inglesa aos 16 anos, para dar o primeiro grande salto de sua vida. A empresa, chamada Casa Carruthers, trabalhava no ramo de importação e exportação de mercadoria - um ramo extraordinariamente próspero naqueles tempos em que as tarifas alfandegárias eram insignificantes.
O jovem caixeiro rapidamente conquistou a simpatia do dono da loja, o inglês Richard Carruthers. Sete anos depois, quando Carruthers decide voltar à Inglaterra, nomeou Irineu sócio-gerente da loja. Ao patrão inglês, depois seu compadre, Irineu deveu o pedaço mais vistoso de sua formação. Tornou-se fluente em inglês. Leu avidamente os clássicos do pensamento liberal, como Adam Smith, David Ricardo e John Stuart Mill. Aprendeu a enxergar na escravidão um obstáculo poderoso ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil - mais adiante, sempre que celebrava um contrato, obrigava a outra parte a comprometer-se a não empregar mão-de-obra escrava. Mais que tudo, viu na trilha seguida pela Inglaterra, onde vastas construções fabris povoadas de máquinas substituíam acanhadas oficinas, a chave para o progresso do Brasil. Quando, aos 27 anos, já dono de uma grande fortuna, cruzou o Atlântico para conhecer a Inglaterra, percebeu o quanto o Império brasileiro estava atrasado.
Ao retomar ao Brasil, era outro. No pIano pessoal, casou-se com a sobrinha, Maria Joaquina. No plano profissional, encerrou as atividades da Casa Carruthers e, com a riqueza que acumulara, lançou-se à segunda etapa de sua vida - a de industrial. Determinadas circunstâncias precipitaram a morte da Casa Carruthers. Em 1844, por exemplo, o ministro Alves Branco decidira elevar a taxação dos produtos importados, com dois objetivos. O primeiro era reduzir o eterno déficit do Estado e o segundo "proteger os capitais nacionais já empregados dentro do Brasil e animar outros a procurar tal destino". Medidas protecionistas espalhavam-se pelo mundo na época, expediente a que governos recorriam para dar oxigênio a indústrias recém-nascidas, incapazes de enfrentar a concorrência de mercadorias feitas na Inglaterra.
Apenas três anos antes das medidas de Alves Branco, um economista alemão chamado Friedrich List publicara um livro de grande repercussão em que defendia o protecionismo alfandegário. Antes tão próspera, a Casa Carruthers de Irineu Evangelista de Sousa foi castigada pelas mediadas. Outro fato viria acrescentar-se para estimular o jovem comerciante a trocar de camisa: o fim do tráfico negreiro, em 1850. O comércio de escravos movimentava grandes fortunas, então. Para onde iria agora o dinheiro do tráfico? Por que não para a formação de indústrias? Era a hora certa, julgou Irineu, para o comerciante transforma-se em industrial. Sem uma base sólida, e essa base era o ferro, nenhuma indústria poderia aspirar à prosperidade, sabia ele.
Assim, seu primeiro empreendimento foi uma fundição chamada Ponta da Areia, instalada em Niterói. Ali, 1 000 operários produziram os tubos de ferro que canalizaram o Rio Maracanã, os lampiões que iluminaram o Rio de Janeiro e pontes de aço. A lista de produtos incluiria, também, navios a vapor. Da Ponta da Areia saíram 72 navios, muitos dos quais mais tarde integrariam a frota com a qual o Brasil guerreou com o Paraguai de Solano López. " É sem, contestação, o mais importante estabelecimento fabril do Império, tem tido melhoramentos constantes e nos fornece produtos, meios e recursos que outrora mandávamos mendigar à Europa", disse, em 1850, um ministro de D. Pedro II. Como, porém, conviver com o vaivém das autoridades brasileiras. O mesmo D. Pedro II que anos antes determinara a elevação das tarifas alfandegárias mandaria, em 1860, baixá-Ias. Navios estrangeiros passaram a entrar no Brasil isentos de taxas. Era o fim da Ponta da Areia, fechada com prejuízo de 1 000 contos de réis para seu dono.
A essa altura, Irineu já estava metido em muitos outros negócios, quase todos com final infeliz. Na noite de 25 de março de 1854, por exemplo, ruas e praças da corte aparecem "feericamente iluminadas", segundo os jornais de então, com lampiões de gás instalados por uma companhia montada pelo empreendedor. Um mês depois, em 30 de abril, sob as vistas do imperador, uma locomotiva a vapor percorria os primeiros trilhos brasileiros, entre a Praia da Estrela, no Rio de Janeiro, e a raiz da Serra de Petrópolis. Obra também de Irineu Evangelista de Sousa, que neste dia ganhou o título de Barão de Mauá. O barão foi promovido a visconde em 1874, como recompensa por ter introduzido no Brasil o telégrafo submarino. Na ocasião, D. Pedro II despachou mensagens para personalidades como o papa Pio IX, a rainha Vitória e o imperador Guilherme I. Um dia depois, recebeu as respostas.
Foi o canto do cisne de Mauá. O banco que fundara em 1852 conduziu-o ao abismo. Nos tempos dourados, o Banco Mauá tivera filiais em cidades como Londres, Paris, Nova York, Montevidéu e Buenos Aires. Tinha mais dinheiro depositado que o banco oficial e salvara certa vez o Império de uma constrangedora cobrança de credores ingleses. Era tal seu prestígio que Mr. Foggs, o personagem do romance A Volta ao Mundo em 80 Dias, do escritor francês Jules Verne, tinha uma conta no Banco Mauá. Quais as causas do naufrágio? São muitas. Com a diminuição drástica das tarifas alfandegárias de 1860, o Brasil fizera sua opção pela agricultura, para infortúnio de quem, como Mauá, acreditara na industrialização. O fechamento de seu banco em Montevidéu por um governo que lhe era hostil contribuiu, também, para a derrocada.
Em 1875, sob o peso de débitos de 78 000 contos de réis, o visconde pediu moratória de três anos para seu banco. Os brasileiros assistiram perplexos à sua queda. Mauá desfez-se de tudo para pagar as dívidas. As ações que possuía de diversas companhias foram tragadas pela bancarrota. Cristais e louça com brasões, almofadas de seda, um tabuleiro de damas e outro de gamão, um mapa-múndi - nem as pequenas coisas escaparam. Ao fim de três anos, o grosso da dívida fora pago. Mauá escreveria, então, sua famosa Exposição aos Credores, uma espécie de autobiografia. Mudara-se com a mulher do palacete em que moravam, que pertencera à Marquesa de Santos, para uma casa alugada em Petrópolis. Com uma pequena soma de dinheiro que lhe fora emprestada, dedicou-se a corretagens de café, mergulhado no esquecimento. Assim passou os últimos anos. O homem que a morte acaba de colher em Petrópolis, no entanto, não foi vítima de uma derrota solitária. Sua derrota foi a derrota do sonho de um Brasil moderno.
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