segunda-feira, 7 de maio de 2012

Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 317 Em busca de um roteiro esquecido: o caminho entre as vilas de Parati e Taubaté Lia Carolina Prado Alves Mariotto* RESUMO: Apresentam-se os resultados de pesquisa documental e de campo, que tem como objetivo identificar em pormenor os pontos de caminho muito freqüentado até o século XVIII, entre as antigas vilas de Parati e Taubaté. PALAVRAS-CHAVE: História; filologia; edição. 1. Introdução m 1596, o governador geral do Brasil, D. Francisco de Sousa, incumbiu Martim Correia de Sá da chefia de uma bandeira, que, saindo do Rio de Janeiro, aportou em Parati, subiu a serra do Mar e, por uma trilha indígena, alcançou a região valeparaibana. Desse ponto, atravessando a garganta do Piracuama, prosseguiu em direção à lendária Sabaraboçu. Posteriormente, esse caminho, muito percorrido, transformou- se em uma antiga estrada que serviu ao tráfego e comércio interno entre a cidade do Rio de Janeiro e as vilas de Parati e Taubaté; quando se achou ouro nas Gerais, a estrada foi usada como escoadouro do metal precioso. Após o período aurífero, esse caminho foi cada vez menos freqüentado, supondo-se até que não mais existisse atualmente. Com o propósito de comprovar a existência desse caminho e de reconstituir os pontos geográficos que o compõem, apresentamos os resultados de um levantamento documental de manuscritos inéditos da época, complementado por uma visita ao local que terá restado desse antigo itinerário, tão importante em outros tempos. Na pesquisa documental, utilizamos documentos pertencentes ao acervo do Arquivo Histórico “Dr. Félix Guisard Filho”: coleção das atas da câmara * Arquivo Histórico Municipal de Taubaté – lica2001@uol.com.br. E 318 ALVES MARIOTTO, Lia Carolina P. Em busca de um roteiro esquecido... de 1780 a 1926, inventários, testamentos e livros de registros dos séculos XVII e XVIII. Consultamos ainda o repertório das sesmarias de 1721 e 1821. Recorremos também a fontes bibliográficas, com a leitura de cronistas quinhentistas e de autores contemporâneos que se preocupam com o tema, além da cartografia regional, tendo como base os mapas do IBGE, atualizados, abrangendo os municípios de Taubaté, Lagoinha, Cunha, assim como as Leituras cartográficas históricas e contemporâneas, que disponibilizam documentos do Arquivo Histórico do Exército. No trabalho de campo, que apenas referimos brevemente neste trabalho, foi explorado o roteiro pré-estabelecido. Uma vez constatada a direção, percorremos a sua total extensão, comprovando ser ainda hoje um trecho viável de um trajeto maior que, passando por Taubaté, ligava as regiões auríferas das Minas Gerais ao porto de Parati. Para a ilustração do trabalho, incluímos segmentos de mapas do IBGE referentes aos municípios de Taubaté, Lagoinha, Cunha e fotografias tiradas ao longo do trajeto percorrido, com marcações do Sistema de Posicionamento Global [GPS]. Durante os trabalhos, contamos com o apoio da prefeitura municipal de Taubaté e da polícia militar ambiental do Estado de São Paulo, comando da 4ª companhia do 3.º batalhão, responsável pelo vale do Paraíba e serra da Mantiqueira. Tratamos inicialmente de informações prévias sobre o caminho de Parati a Taubaté, apresentando o traçado tal como é hoje descrito, enriquecidas essas informações pelo que dizem cronistas e historiadores. Passamos então a dar conta do levantamento feito em documentos manuscritos da época, para chegar ao traçado mais minucioso do caminho, cuja existência ainda hoje é comprovada pela pesquisa de campo. 2. Informações prévias sobre o caminho de Parati a Taubaté Ao longo dos nossos estudos sobre Taubaté sempre chamou a atenção a contínua preocupação da câmara1 taubateana com a execução e conservação das estradas que davam acesso à vila, aos bairros rurais, até mesmo as particulares ou aquelas que da vila partiam em direção às regiões vizinhas ou às mais longínquas. A feitura de caminhos, pontes, aterrados e todo o necessário, por 1 Coleção de Atas da Câmara de Taubaté, 1780-1798, v. I. Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 319 meio de mãos comuns, era motivo de mandados para caminhos, resolvidos sempre que preciso. O caminho do Yuna, o da Estrada Real de Pindamonhangaba, o que vai para o Mato Dentro, o do ribeirão das Almas, o do Tremembé, também chamado de caminho do Senhor Bom Jesus, o caminho e a estrada geral dessa vila para a de São José, ou ainda os caminhos particulares, eram vistoriados e conservados, principalmente antes ou após as estações chuvosas. Havia ainda dias em que vereadores saíam em correição para as estradas reais e, aos que faltassem ao trabalho de mão comum na conservação das estradas, era passado mandado de prisão para ser cumprida a pena cominada. Dentre essas várias informações, reunidas nas atas da câmara, algumas são de grande importância para a pesquisa. O caminho do Yuna, ou caminho do rio Una,2 era o caminho que, a montante desse rio, dirigia-se para a região dos sertões coloniais, donde originaram os antigos bairros rurais de Taubaté. A jusante ele é um afluente do rio Paraíba do Sul. Já o caminho da Estrada Real atravessava o ribeirão Ipiranga, um dos afluentes da margem direita do rio Una. Dentre os demais problemas com que lidavam os oficiais da câmara, estava o da delimitação da vila. Nesse sentido, preocupavam-se e buscavam entrar em acordo sobre o aforamento de uma gleba de terras pertencente a Taubaté, chamada Itacuruçá, localizada na região denominada Facão. Segundo Félix Guisard Filho, em 1667 os vereadores da vila pediam providências para que se tornassem conhecidos os termos confrontantes das terras da Vila de São Francisco. Através de uma Certidão solicitaram ao Ouvidor e Corregedor da Comarca, o Dr. Tomé de Almeida e Oliveira, que além de demarcar os limites territoriais da Vila, também lhes concedessem mais uma légua de terras em quadra da parte do Itacurussá. (Guisard Filho, 1939, p. 83-87). Confirmamos então que o território da vila de Taubaté se estendia por toda a região do atual município de Lagoinha, chegando ao bairro de Itacuruçá, hoje pertencente ao município de Cunha. Essas terras fizeram parte do município de Taubaté até 1873, quando foram vendidas pela quantia de seis contos de réis. Havia então um roteiro que, iniciando na vila de Taubaté, passava pelo rio Una, pelo ribeirão Ipiranga e seguia em direção à região de Itacuruçá. 2 “O Rio Una, em seus cursos Superior e Médio, é um rio eminentemente taubateano, pois nessas etapas de seu percurso, todas as nascentes e arroios que lhe são tributários, estão no município de Taubaté”. (Prado e Abreu, 1955, p. 85). 320 ALVES MARIOTTO, Lia Carolina P. Em busca de um roteiro esquecido... Traçamos no mapa uma linha unindo esses pontos, possibilitando a visualização do esboço da direção geográfica do tronco viário. Encontramos em Barreiros (1984, p. 91) um mapa que é de grande valia para esta pesquisa. Nele, o autor ilustra as viagens que fez o governador Artur de Sá e Meneses a São Paulo e Minas Gerais. Esclarecedoras são as informações contidas nas legendas. O percurso da viagem para São Paulo, em outubro de 1697, é indicado pela linha verde, o caminho mais longo, orientando o trajeto percorrido pelo governador. Sai do Rio de Janeiro e, por mar, atinge o porto de Santos; sobe a serra do Mar chegando a São Paulo. Continua até Mogi das Cruzes, penetrando no vale do Paraíba, e segue até o ponto em que a linha verde une-se à linha vermelha, em Taubaté, indicando a volta por terra até o porto de Parati. Desse porto atinge por mar a cidade do Rio de Janeiro. Em 1697 percorria-se o roteiro na seguinte direção: Rio de Janeiro, Santos, São Paulo, Taubaté, Parati e Rio de Janeiro. Três anos mais tarde, em 1700, Artur de Sá e Meneses segue viagem para as Minas Gerais. A legenda em vermelho indica o novo trajeto. Saindo do Rio de Janeiro por mar, navega diretamente para o porto de Parati. Sobe a serra do Mar, atinge a região do Facão e toma a direção da vila de Taubaté. O mapa confirma o caminho: Rio de Janeiro, Parati e Taubaté. Fica demonstrada, com esse exemplo, a importância do caminho em estudo, pelo menos desde fins do século XVII. Essa relevância é também atestada por cronistas e historiadores, como vemos a seguir. Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 321 Figura 1 – Viagens que fez o governador Arthur de Sá Meneses a São Paulo e Minas Gerais (Barreiros, 1984, p. 91) 322 ALVES MARIOTTO, Lia Carolina P. Em busca de um roteiro esquecido... 3. Referências ao caminho por cronistas e historiadores Para complementar a pesquisa a partir da bibliografia disponível, consultamos, diretamente ou por referências, as informações dadas por cronistas quinhentistas3 e colhemos informações sobre as inúmeras narrativas que nos sinalizam a existência de uma antiga estrada. Dos cronistas consultados, consideramos que bastaria apresentar uma referência a Antony Knivet (2007). Em sua narrativa, a figura de Martim Correia de Sá constitui um ponto-chave. Conforme indica sua biografia, [...] Distinguiu-se Martim Correia de Sá principalmente como sertanista, comerciante de pau Brasil e caçador de índios, sendo emérito conhecedor das regiões do médio e alto Paraíba e dos Patos, em Santa Catarina. Da narrativa de Antony Knivet poder-se-ia colher minudências de várias entradas [...] Devemos fazer ainda a observação de que o vale do Paraíba era percorrido de preferência pelos moradores do Rio de Janeiro e de Santos, principalmente na sua face média e superior. [...] Entrava-se no vale médio do rio Paraíba pela via de Parati. [...] (Franco, 1954, p. 345) Por sua vez, Capistrano de Abreu afirma o seguinte: [...] Artur de Sá, governador do Rio de Janeiro, o primeiro que visitou as minas gerais, teve de ir por terra desta cidade a Parati, e de Parati a Taubaté, para transpor a Mantiqueira. Seguiu assim uma trilha antiqüíssima dos guaianases, porque do mesmo modo que a gente de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo, os fluminenses não se animaram a varar a mata de um a outro lado. (Abreu, 1985, p. 46) Complementa essas informações o que diz Ellis Jr., retomando as informações de Knivet sobre Martim Correia de Sá: [...] Por esse itinerário de Knivet, a arrancada de Martim de Sá deveria ter arribado em Parati, subido a serra do Mar, atravessado os campos de Cunha, e em seguida transposto os rios Paraitinga e Paraíba, justamente na ocasião em que julgo estar trilhando essas regiões a bandeira de Botafogo, que por São Miguel deveria ter chegado ao vale do Paraíba. É possível terem sido Botafogo e seus companheiros incorporados à gente de armas de Martim, indo com eles perlustrar os sertões dos rios Verde e Sapucaí, na faina de destruição dos restos da tribo tamoia. (1934, p. 55-56) 3 Além de Knivet, outros autores pesquisados foram: Ulrich Schmidel (1553); Hans Staden (1554); Jean de Lery (1557); Gabriel Soares de Sousa (1567); Antony Knivet (1596); e Wilhelm Jost tem Glimmer (1601). Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 323 Buarque de Holanda também examina a existência do antigo caminho entre Parati e Taubaté: A existência da via antiga, que através de Parati facilitava, mais rapidamente do que a de Ubatuba, as comunicações com o Rio de Janeiro, e que, no começo da idade do ouro, alcançará notável importância econômica. [...] sabe-se mesmo que a estrada geral do Parati, quando se fizer pública, infletirá de início, e ainda durante algum tempo, para a Vila de Taubaté, antes de ir ganhar as minas. (1990, p. 201-206) Para concluir este conjunto de referências, apresentamos, numa citação mais longa, a descrição que traz Zemella: O primeiro caminho que ligou o Rio de Janeiro às Gerais foi uma via semimarítma, semiterrestre que se chamou “caminho velho do Rio de Janeiro”, em oposição ao “caminho novo” que se abriu mais tarde. O roteiro do “caminho velho do Rio de Janeiro” era o seguinte: da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro ia-se por mar até o porto de Parati; desembarcava- se nesse ancoradouro e, por terra, transpunha-se a serra do Mar, atingindo- se a cidade de Taubaté. Nesta cidade o “caminho velho do Rio de Janeiro” entroncava-se com o caminho velho paulista, continuando por Pindamonhangaba, Guaratinguetá, passagem de Hepacaré, garganta do Embaú, etc. Esse caminho do Rio de Janeiro, além de ser áspero e longo, tinha outro grave inconveniente: parte do trajeto era feito por mar. Assim, o ouro vindo das Gerais e chegado ao porto de Parati tinha de percorrer um bom trecho do oceano, antes de chegar aos cofres da Capital da Repartição Sul, correndo risco de ser pilhado pelos piratas que, nessa época, constituíam verdadeiro flagelo á navegação portuguesa. (1990, p. 117-118) 4. Informações contidas em documentos da época Uma vez identificada a estrada, buscamos saber de que maneira a antiga trilha indígena se transformou na Estrada Real, com base em informações geográficas mais pormenorizadas sobre o trajeto, extraídas de fontes documentais manuscritas da época. Sabemos que, por vezes, as antigas trilhas indígenas serviam de balizas para delimitações de datas de terras distribuídas aos primeiros povoadores da região. Quando Taubaté torna-se vila, em 1645, com o levantamento do pelourinho e a instalação da câmara e do tabelionato, tem início a geração dos processos judiciais. Hoje, esses documentos fazem parte do acervo do Arquivo Histórico “Dr. Félix Guisard Filho”, na cidade de Taubaté. 324 ALVES MARIOTTO, Lia Carolina P. Em busca de um roteiro esquecido... A consulta a documentos desse acervo baseia-se na hipótese de haver proprietários ao longo do caminho cujos documentos dêem pistas para reconstituir-se em maior detalhe os pontos geográficos da estrada. Por meio dos inventários, é possível identificar bens de raiz que facilitam a delimitação geográfica do roteiro. E, de fato, identificamos, pela leitura de inventários e testamentos seiscentistas e setecentistas, paragens, datas e sesmarias ocupadas pelos primeiros povoadores e proprietários taubateanos ao longo do antigo caminho. A referência aos demais bens do falecido e as notas biográficas permitem traçar mais claramente o perfil socioeconômico desses pioneiros.4 Seguindo a ordem cronológica, o primeiro documento com informações relevantes para o nosso propósito é o inventário de João do Prado Martins,5 falecido em 1653, neto de João do Prado.6 Em 1644 sai da vila de São Paulo com a família e, querendo estabelecer-se na vila de Taubaté, peticiona a Jaques Félix, solicitando uma sesmaria, que lhe é concedida. Casa-se com Maria Leme (ou Maria Leme de Chaves, ou Maria de Chaves). Ainda solteiro tem uma filha natural chamada Vicência Martins. Do casamento nascem sete filhos: João do Prado Martins (filho), Domingos do Prado Martins, Antonio do Prado Lourenço, Maria, Domingos Ribeira, Joana do Prado e Marina de Chaves. Era comerciante abastado e proprietário de muitas terras. 4 Para as notas biográficas, seguimos de perto o texto de Franco (1954). 5 Inventario de João do Prado Martins, 1653. Cartório do 2º Ofício, caixa 1649-1677. Arquivo Histórico Dr. Félix Guisard Filho, Taubaté. 6 João do Prado, patriarca da grei dos Prado, que chegou ao Brasil com Martim Afonso de Sousa, em 1531. Natural de Olivença, província do Alentejo, era de nobreza muito conhecida em sua terra. No Brasil casou-se com Filipa Vicente, tornaram-se lavradores de grandes canaviais e tinham parte no engenho de açúcar de S. José dos Erasmos. Fez várias entradas no sertão, conquistando grande quantidade de escravos indígenas. Com eles se estabeleceu na vila de São Paulo onde exerceu cargos na Câmara, sendo Juiz Ordinário de 1588 a 1592. Chefiado por Jerônimo Leitão, combateu os Tamoios em Cabo Frio. Participou também da bandeira de João Pereira de Sousa Botafogo, que saiu de São Paulo em 1596, na mesma ocasião em que Martim Correia de Sá partia do Rio de Janeiro e Diogo Cão do Espírito Santo, todas objetivando alcançar Sabaraboçu. João do Prado faleceu em 1597, no arraial do Capitão-mor João Pereira de Sousa Botafogo. De seu casamento teve 11 filhos; o quarto foi batizado com seu nome: João do Prado, que foi casado com Maria da Silva, filha de Domingos Martins. Moravam na região de Urubuapira, São Paulo. Participou de várias bandeiras escravagistas, sendo a última chefiada por Lázaro da Costa, em 1615, que percorreu terras de Santa Catarina. Logo nos primeiros meses João do Prado faleceu, deixando seu primogênito com cinco anos. O casal teve 5 filhos, sendo o mais velho batizado como João do Prado Martins. (Leme, 1905, v. 3º, tít. Prados, p. 90-196. Ver também: Inventários e testamentos. Tipografia Piratininga, v. V, 1920, p.77-106). Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 325 Dentre os bens pessoais estão arroladas muitas peças de roupa confeccionadas com panos nobres: damasco, chamalote, damasquilho de lã e pinhoela. Além disso, cinco pares de sapatos; três navalhas, uma tesoura e uma pedra de afiar navalhas; luvas brancas bordadas de seda; uma guarina; um gibão de armas; meias de seda e objetos de prata, como tamboladeiras e talheres. Suas armas são uma espingarda de sete palmos e meio, espada e adaga. Bens móveis: cobres em forma de tachos; frasqueiras de vidros; tear com sua urdideira e aviamentos; inúmeras caixas com ou sem fechaduras; três cadeiras e uma mesa com dobradiça. Em sua propriedade havia tenda de carpintaria; criação de animais: vacas, novilhas, porcos capados, porcas, um cachaço, cabras, éguas e um potro. Inúmeras ferramentas: vinte e cinco enxadas, oito foices, quatro cunhas novas e três usadas, seis machados e uma balança com meia arroba de pesos, duas serras de mão, uma serra braçal, dois almocafres e duas alavancas. Encontramos ainda entre seus bens o registro de dois livros: Flos sanctorum, de Vilhegas, e livro de autoria de Frei Luiz de Granada. Quando aparecem no arrolamento duas correntes, medindo uma três braças e a outra duas braças e meia com dezoito colares, suspeitamos da origem de sua riqueza. A suspeita confirma-se quando lemos que era senhor de setenta e um escravos, entre famílias e peças solteiras. Pelo seu inventário, por meio das dívidas ativas e passivas, sabemos que negociava com vários outros sertanistas: João Leme,7 João Luís,8 Antonio Fernandes de Abreu,9 Domingos Luís Leme,10 Pedro Correia Soares,11 Brás 7 João Leme era paulista, filho natural de Aleixo Leme de Alvarenga; foi sertanista que tomou parte em várias bandeiras, inclusive numa saída de São Paulo em 1675 e que podia ter sido nas expedições de Francisco Pedroso Xavier ou Manuel de Campos Bicudo, ambas na diretriz do baixo Mato Grosso. (Franco, op. cit., p. 211). 8 João Luís, sertanista de São Paulo, esteve na bandeira de João Pereira de Sousa Botafogo, em 1596, ao Sapucaí. (Franco, op. cit., p. 223). 9 Antonio Fernandes de Abreu, sargento-mor paulista, cuja ascendência é ignorada e que tomou parte nas campanhas de Estevão Baião Parente, no norte brasileiro, contra o gentio bravo e nas do mestre de campo Domingos Jorge Velho, contra os negros dos Palmares, em fins do século XVII. (Franco, op. cit., p. 5). 10 Domingos Luís Leme, paulista, filho de Antonio Lourenço e de sua mulher, Marina de Chaves, foi sertanista que andou em companhia de Jaques Félix, o moço, na devassa do Vale do Paraíba, nas regiões limítrofes com as Minas Gerais e que em 1643 obteve uma sesmaria na paragem onde estabeleceu uma povoação que a 12 de fevereiro de 1651, foi criada vila, pelo capitão-mor de Itanhaém, Dionísio da Costa, com o nome de Guaratinguetá. Foi casado primeiro com Ana Cabral, em 1638 e, enviuvando, casou pela segunda vez com Leocádia de Vasconcelos. (Franco, op. cit., p. 208). 11 Pedro Correa Soares, paulista, filho de Geraldo Correia Sardinha e de sua mulher, Maria Soares, foi sertanista que esteve no Guairá em 1628 e faleceu depois de 1675. (Franco, op. cit., p. 390). 326 ALVES MARIOTTO, Lia Carolina P. Em busca de um roteiro esquecido... Esteves Leme,12 que ficou como curador da filha natural Vicência Martins, Antonio Faria Albernás13 e Sebastião Fernandes Camacho.14 Como homem rico, poderoso e comerciante bem relacionado, João do Prado Martins possuía muitas propriedades. Era dono de sítio e terras em Pindamonhangaba, data de terras em Guaratinguetá e inúmeras braças de chãos na vila de Taubaté. Dentre esses bens de raiz, era proprietário [...] mais em Capivari até o Salto Grande o que se achar e para a banda do mar [grifo nosso] quatro léguas, conforme o que a carta que apresentaram. Reza a qual carta foi passada e concedida a tal data pelo Capitão-Mor e Ouvidor e Sesmeiro Dionísio da Costa,15 com os adjuntos, de que foi Escrivão Antonio da Mota. (Inventário de João do Prado Martins – 1653. Cartório do 2º Ofício, caixa 1649-1668, fólio 2, verso.) Dois topônimos nesse trecho chamam a atenção: Capivari e Salto Grande. Segundo Müller (1969, p. 39). Capivari, em 1871, era patrimônio religioso. Tornou-se freguesia em 1872, foi elevada à condição de vila em 1876 com o nome de Capivari Jambeiro e hoje é o município de Jambeiro, por onde passa o rio Capivari. Salto Grande, ou Cachoeira Grande, como hoje é conhecido, situa-se no bairro do Faxinal, município de Lagoinha. É cachoeira formada pelo ribeirão da Serra, que nasce na serra do Quebra Cangalha e deságua no rio Paraitinga. O ribeirão, com pouco mais de 1,5 metro de largura, cai 18 metros, formando 12 Brás Esteves Leme, paulista, filho de Brás Esteves Leme e de sua mulher Margarida Bicudo de Brito, andou sertanejando na região limítrofe com Minas Gerais e estabeleceu-se em Pindamonhangaba, onde teve o posto de alcaide-mor. Casou-se primeiro com Maria Raposo do Rego Barbosa e enviuvando, casou-se em 1683 com sua parenta Maria da Luz Correia. Faleceu, segundo Silva Leme, em 1700, deixando geração. (Franco, op. cit., p. 206-207). 13 Antonio Faria Albernás, capitão paulista que tomou parte na bandeira de 1636, chefiada por Antonio Raposo Tavares, na região do Tape, Rio Grande do Sul. Foi casado e faleceu em Taubaté, em 1663. (Franco, op. cit., p. 16). 14 Sebastião Fernandes Camacho, paulista, filho homônimo, penetrou o sertão em 1637, em 1645 e em 1648, atrás de certas minas de prata de que tinha notícia e acredita-se ter sido na direção do território mineiro. Foi casado com Isabel Bicudo de Brito e faleceu em 1662. (Franco, op. cit., p. 91). 15 Dionísio da Costa, capitão-mor e ouvidor da capitania de Itanhaém duas vezes: primeiramente em 1648 e posteriormente em 1650. In: Relação dos capitães-mores governadores da capitania de Itanhaém, desde 1622 até 1721. (Calixto,1915, n.º XX. p. 435-439). Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 327 um poço com diâmetro de 30 metros e profundidade máxima de 1,5 metro.16 Sendo um acidente geográfico, é possível localizá-la no mapa. Marcamos também o bairro Faxinal e o rio Capivari. Percebemos que esses pontos podem perfeitamente direcionar-se para a “banda do mar”. Assim demarcamos uma hipotética sesmaria de João do Prado Martins e de seu filho, como aparece indicado no mapa abaixo. Figura 2 –Localização das terras de João do Prado Martins: de Cachoeira Grande ao Capivari O documento consultado em seguida é o inventário de Catarina Dias,17 datado de 1661. [...] Catarina Dias, que também se chamava Catarina Dias Félix, última filha de Jaques Félix e de sua esposa, faleceu em 1661, em Taubaté, tendo sido casada com Domingos do Prado Martins, filho de João do Prado Martins e de Maria Leme de Chaves, um dos casais pioneiros na povoação da Vila de Taubaté. (Ortiz, 1996, v. III, p. 201) Catarina deixou um filho de dois anos chamado João do Prado. Seu inventário é mais modesto, com os seguintes bens pessoais: uma saia, um gibão de camelão já usado, um manto de seda, uma capilha de chamalote de lã, uma toalha de mesa, uma toalha de aguar as mãos, um cavalo, uma égua e uma espingarda de seis palmos. O casal possuía seis escravos. Como nora de João do Prado Martins, seria co-herdeira dos bens de raiz. Seu marido, o inventariante, declarou como bens de raiz do casal uma data de terras em Capivari que vai até o Salto Grande, onde tem sua parte, 16 Cachoeira Grande. In: Jornal Vale Paraibano, cad. Folha Vale, seç. Passeio, 13/12/1991. 17 Inventário de Catarina Dias, 1661. Cartório do 2º Ofício, caixa 1649-1677. Arquivo Histórico Dr. Félix Guisard Filho, Taubaté. 328 ALVES MARIOTTO, Lia Carolina P. Em busca de um roteiro esquecido... confirmando com essa declaração a herança do casal: partes na sesmaria de Salto Grande-Capivari. A seguir, examinamos o inventário de Antonio Vieira da Maia,18 falecido em 1674. Antonio Vieira da Maia, português, natural de Guimarães, vindo para o Brasil por volta de 1630, filho do Capitão Pedro Vieira da Maia e de Beatriz Lopes, contraiu núpcias em São Paulo, em 1632, com Isabel da Cunha (da família vicentina dos Cunha Gago) falecida em 1641. Em 1642 casou-se novamente, ainda em São Paulo, com Maria Cardoso Cabral. Veio residir antes de 1650 em Taubaté, onde foi Juiz Ordinário e de Órfãos em 1658 e 1671 e Capitão- Mor, aí falecendo em 1674. (Ortiz, 1988, p. 138-139) Sua fazenda ficava na paragem chamada Tremembé, onde tinha uma tenda de ferreiro com seus aviamentos: um torno grande; outros, antigos com uns foles velhos; um malho, um martelo; três tenazes; três craveiras; um tufo grande; um tufo pequeno; um ferro de culatra; uma tarraxa, tudo avaliado por dez mil réis. Suas ferramentas eram: dois machados velhos, uma foice velha, uma serra de dois palmos, outra serra braçal, oito enxadas usadas, um machado velho, uns pesos de ferro de meia arroba e sua balança. Tinha também um bofete velho, um escritório velho, uma moenda velha e três tachos de cobre já usados e remendados. Os bens móveis: uma caixa de sete palmos e meio, uma frasqueira de três palmos com seis frascos, outra frasqueira mais velha e dois teares com os seguintes aviamentos: uma urdideira com sua caixa, um caneleiro velho, um pente de quatro varas com seus liços usados, um pente de três varas com seus liços e um pente de duas varas e dois de velame com seus liços – tudo avaliado em dois mil novecentos e sessenta réis. Como homem abastado, tinha três tamboladeiras: uma grande e duas pequenas, e mais três colheres, tudo de prata. Além de dois tapanhunos, era dono de vinte e oito peças forras (peças do gentio). Todos esses bens estavam no sítio de Tremembé, que media 450 braças de terras, com duas casas de taipa de mão cobertas de telha. Possuía também quatrocentas braças de terras de testada e de sertão conforme a carta, situadas na outra banda do Paraíba; uma carta de datas de terras no Rio Paraíba, começando de uma lagoa a que chamam Boyratihiuba, cortando rio abaixo pela barra do Jaguari até a lagoa de Pyracoyuna; umas casas de taipa de pilão de dois lanços com seu corredor, cobertas de telha, na vila de Taubaté. Mais três cartas de datas de chãos, somando ao todo cento e vinte braças de terras, distribuídas em vários locais da vila; mais uma carta de datas de terras 18 Inventário de Antonio Vieira da Maia, 1674. Cartório do 2º Ofício, caixa 1649-1677. Arquivo Histórico Dr. Félix Guisard Filho, Taubaté. Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 329 na vila de Mogi, nas cabeceiras da data da freira Domingas do Rosário, com meia légua. Além de todas essas propriedades, era senhor de uma sesmaria no termo da vila, na paragem chamada Barreiros, das datas de Antônio Afonso, uma légua de terras em quadra. Com essa informação, damos mais um passo na delimitação do caminho. A paragem chamada Barreiro naqueles idos situase hoje no município de Lagoinha. Ainda é um bairro rural cujo nome não mudou. Encontramos no mapa o mesmo nome: bairro do Barreiro. Confirmando ainda mais a direção – o litoral – entre os vários legados testamentários, Antonio Vieira da Maia deixou para seu genro Miguel de Almeida e Cunha19 quatrocentas braças de terra no caminho do mar, onde tem suas roças. Importou a fazenda inventariada a quantia de cento e sessenta e seis mil e seiscentos e vinte réis, de onde foram abatidos oito mil réis, que o inventariado em sua vida prometeu para ajuda do convento dos Religiosos de São Francisco, que fundaram na vila. Ficaram líquidos cento e cinquenta e oito mil seiscentos e vinte réis para serem feitas as partilhas. Na partilha das terras, a viúva ficou com duzentas braças, localizadas na outra banda do rio Paraíba, e mais mil e duzentas braças no caminho do Mar. Aos filhos foram feitas as seguintes doações: a João Vieira da Maia, cento e quarenta e três braças de terras, no caminho do Mar; a Mateus Vieira da Cunha, cento e quarenta e três braças de terras, no caminho do Mar; a Domingos Vieira da Cunha, Paulo Vieira, Jerônimo Vieira e a Antonio, a cada um, cento e quarenta e três braças, no caminho do Mar. Como veremos adiante, o inventário de um dos filhos, Domingos Vieira da Cunha, ou Domingos Vieira Cardoso, traz informações que enriquecem a pesquisa. Paulatinamente, a região do sertão em direção ao caminho do mar é povoada. Em 1683 faleceu outro importante povoador taubateano, Sebastião Gil, o moço.20 Morava na paragem chamada Yuna (Una), em umas casas feitas 19 Miguel de Almeida e Cunha, casado com Maria Vieira da Maia, foi pai de Miguel Garcia de Almeida e Cunha. Este foi casado com Clara Bueno de Camargo, filha de Manuel Ortiz Camargo. Foi sertanista que, partindo de Taubaté em 1695, se uniu à bandeira de Bartolomeu Bueno de Siqueira, o qual demandava a Casa da Casca, sertão das Minas Gerais, local em que era fama existir ouro. Separando-se, porém, de Bartolomeu, foi ter à serra da Itatiaia, onde fora constatada a existência de ouro e depois, fraldeando-a, conseguiu em 1699 fazer o importante descobrimento do Gualacho do Sul, que a princípio tomou o seu próprio nome. Pedro Taques conta que Miguel Garcia foi morto nessas paragens pelo gentio bravo que atacou a caravana. (Franco, op. cit., p. 133). 20 Inventário de Sebastião Gil, 1683. Cartório do 2º Cartório do 2º Ofício, caixa 1678-1689. Arquivo Histórico Dr. Félix Guisard Filho, Taubaté. 330 ALVES MARIOTTO, Lia Carolina P. Em busca de um roteiro esquecido... de taipa de pilão, com seus corredores e cobertas de telha, onde criava porcos para subsistência da família. Constava do arrolamento de suas roupas: uma capa e calção de baeta preta já usados, dois lençóis de pano de algodão já usados e uma toalha de aguar as mãos. Tinha um prato de estanho pesando três libras e uma caixa, com sua fechadura, medindo seis palmos. Quanto às ferramentas e afins foram arroladas diversas peças: alguns pesos de ferro, enxó, cepilho, verruma, acha, foices, escopro grande, outro escopro, goiva, folha de serra pequena, enxadas, serra de cinco palmos, prensa, tear, tachos e bacia de cobre, duas escopetas e também uma braça e meia de corrente e uma pega21 de ferro. Estes dois últimos objetos nos remetem ao seu plantel de escravos: possuía quatro peças tapanhunas e vinte e sete gentios da terra. Na vila era proprietário de uma casa de dois lanços, de taipa de pilão, coberta de telhas, com seu corredor e quintal. Era dono de outras tantas propriedades; duas cartas de datas de chãos, medindo cada uma trinta braças; mais treze braças de chãos no Formigueiro, que foi troca de Domingos Dias Félix;22 mais uma carta em que pede sobejos de chãos, ou o que se achar na verdade, partindo com Maria Luis, na Quarta Rua, da banda do mato; mais dez braças de chãos e quinze de quintal, na vila, defronte de Santo Antonio; mais uma escritura de compra de sobejos de chãos na vila, o que se achar. Além de todas essas propriedades, possuía mais quatro sesmarias: 1ª- por cartas de sesmarias, meia légua de terras nas cabeceiras de uma data de Manoel de Oliveira Falcão, partindo com os herdeiros de Antonio Vieira da Maia, da banda do Nascente e em Paraitinga, meia légua de testada e para o sueste o que se achar; mais uma légua de terras em quadra, nas cabeceiras de Manoel de Oliveira Falcão, com arrumação a sueste; mais, por data de sesmaria, em Paraibuna, meia légua de testada com o sertão para o mar, até as águas vertentes. Os últimos contrafortes internos da serra do Mar são um dos limites do vale do Paraíba. Ao ir-se em direção ao vale do Paraíba, ela se estende por Sebastião Gil, o moço, filho de Sebastião Gil, o velho e de Feliciana Dias. Casou-se em 1640, em São Paulo, com Helena Rodrigues. Vieram residir na Vila de São Francisco das Chagas nos primeiros anos da mesma, onde faleceu em 1683. (Ortiz, op. cit., p. 122). Salvador de Faria Albernás, filho de Antonio Faria de Albernás – este falecido em Taubaté em 1663 –, teve posto de sargento-mor e andou em 1699 na região mineira do Carmo, com o Coronel Salvador Fernandes Furtado de Mendonça. Fez o descobrimento do ouro do Inficionado e acompanhou os Camargos no descobrimento desse metal no ribeiro do mesmo nome. Segundo Diogo de Vasconcelos, foi perseguido pelo Santo Ofício e morreu pobre nas Minas Gerais. (Franco, op. cit., p.16). O casal teve um segundo genro, também bandeirante: Manoel Garcia Velho, sertanista de São Paulo, que foi dos primeiros a devassar a região do Tripuí, descobrindo ouro, entre 1695 a 1696. (Franco, op. cit., p. 425-426). 21 Pega: braga de ferro com a qual se prendiam os pés dos escravos fugitivos. Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 331 um altiplano comumente chamado planalto do Paraitinga, por onde correm os rios formadores do Paraíba: o Paraibuna e o Paraitinga (Ortiz, op. cit., p. 80). Ao localizarmos essas terras, identificamos mais um ponto no traçado da antiga trilha. Acidentes geográficos, desde que não tenham a mão do homem, não saem do lugar e não fenecem. Portanto, pelas informações desse documento, temos duas preciosas e precisas indicações: o planalto do Paraitinga, os rios Paraibuna e Paraitinga, e mais o indicativo: rumo sueste. Essas informações foram marcadas no mapa. Em 1700, morreu Domingos Vieira Cardoso,23 filho de Antonio Vieira da Maia, acima estudado. Domingos Vieira Cardoso era casado com Marta de Miranda, filha de Garcia Rodrigues Moniz24 e Catarina de Unhate. O casal teve dezesseis filhos: Paulo, Miguel, Domingos, Gracia, Carlos, Pedro, João, Maria, Francisca Romeira Cardoso, Ana Isabel Cardoso, Maria, Maria Vaz Cardosa ou Maria Vaz da Cunha, casada com Domingos do Prado Martins, filho de João do Prado Martins, Margarida, Antonio Vieira Cardoso, Catarina de Unhate, casada com Pedro de Oliveira e Marta de Miranda, casada com Manoel Gil de Siqueira, irmão de Sebastião Gil, o moço. Encontramos aqui mais um homem de bem; assim são denominados na época os abastados e bem relacionados povoadores. Seus bens móveis, iniciando pelas roupas pessoais, eram: um vestido de serafina preta, calção, casaca e capa; outro vestido de baeta preta, calção, casaca e capa, com sua véstia de sarjeta de senhor; um calção de sarjeta de senhor; uma bombacha de tafetá verde e um par de meias de seda verde; um capote de barregana parda, forrado de baeta azul e um par de meias azuis, de seda; uma casaca de estamenha, forrada de baeta cor de rato. Pratas: uma tamboladeira grande; uma tamboladeira meã; uma tamboladeira pequena; uma dúzia de colheres de prata. Ferramentas: uma tenda de ferreiro com trena, safras, malhos, tenazes e mais aviamentos; uma serra braçal, oito enxadas, quatro fachas de roçar, uns pesos de ferro de meia arroba, com seu braço, uma acha de carpinteiro, dez macha- 22 Domingos Dias Félix, paulista, filho de Jaques Félix e de sua mulher, Francisca Morzilho, penetrou o sertão dos índios puris e guarumimís, auxiliando a fundação de Taubaté, em 1636. Foi Juiz Ordinário na vila desse nome em 1650, tendo sido casado com Susana de Góis e deixando geração. (Franco, op. cit., p. 149). 23 Inventário de Domingos Vieira Cardoso, 1700. Cartório do 2º Ofício, caixa 1700-1708. Arquivo Histórico Dr. Félix Guisard Filho, Taubaté. 24 Garcia Rodrigues Moniz, irmão de Manoel Garcia Velho, descendentes de Garcia Rodrigues, povoador vicentino do século XVI. (Ortiz, op. cit., p. 111). Manoel Garcia Velho, sertanista de São Paulo que foi dos primeiros a devassar a região do Tripuí, descobrindo ouro, entre 1695 e 1696. (Franco, op. cit., p. 425-426.) 332 ALVES MARIOTTO, Lia Carolina P. Em busca de um roteiro esquecido... dos, um enxó de mão; armas: uma escopeta de cinco palmos com fechos portugueses, com três anéis de ferro; outra escopeta de cinco palmos e meio, com fechos portugueses; e mais uma escopeta velha. Estanho: dois pratos pequenos, pesando cada um uma libra; mais dois pratos meãos, pesando cada, duas libras; algodão: catorze arrobas de algodão; animais: três capados grandes, um cachaço, oito cachacetes, quatro porcas; madeiras: um tear com seus aviamentos, duas caixas de seis palmos com suas fechaduras; uma prensa de espremer farinha; cobres: um tacho de cobre pesando meia arroba; outro tacho de oito libras e mais um tacho de cinco libras. Títulos das peças do gentio da terra: trinta e quatro peças; peças do gentio da Guiné: duas tapanhunas. Seus bens de raiz constavam de: [...] umas casas na Vila, de taipa de pilão, de dois lanços, com seu corredor e chãos, cobertas de telha; sete braças de chãos, na Vila onde tem umas casas velhas, de palha. Um sítio na paragem chamada Bairro de São Roque [grifo nosso], casas de taipa de mão, cobertas de palha, com 440 braças de terras de testada e de sertão o que achar, que comprei de Maria de Brito Leme, dona viúva. Com o propósito de cruzar informações, consultamos livros de registros, onde estão arroladas as compras e vendas de propriedades feitas nos períodos seiscentista e setecentista taubateanos. Encontramos de início o registro de compra e venda de uma propriedade, efetuada entre Domingos Vieira Cardoso e o Capitão Manoel Borba Gato.25 Apresentamos a seguir a transcri- 25 Fragmento do Livro de Registros de Escrituras, 1693-1696, caixa 157. Arquivo Histórico Dr. Félix Guisard Filho, Taubaté. Manoel de Borba Gato, paulista de alto mérito, que foi um extraordinário desbravador de sertões, descobridor de minas e hábil administrador nos primeiros anos das Minas Gerais, que o deve considerar como um dos seus maiores vultos desse período. Também foi notável figura de equilíbrio na guerra dos emboabas e deixou sobre o seu interessante carta que Soares de Melo copiou dos arquivos portugueses e publicou na sua apreciada obra sobre os “Emboabas”. [...] Era Manuel de Borba Gato filho de João de Borba e de sua mulher Sebastiana Rodrigues e foi casado com Maria Leite, filha do governador das Esmeraldas, Fernão Dias Pais. Acompanhou seu sogro ao sertão da Sabaraboçu, de 1674 a 1681, quando ele faleceu e, por ocasião da ida do administrador geral das minas D. Rodrigo de Castelo Branco àquele sertão, teve desinteligências com esse delegado régio, resultando assassiná-lo de emboscada, numa estrada que ia ter à feitoria do Sumidouro, em 28 de agosto de 1682. Por esse crime foragiu-se para o sertão do rio Doce e somente em 1700 reapareceu em povoado, recomendando o governador do Rio de Janeiro eu se fizesse silêncio no seu processo, no interesse dos descobrimentos de ouro que desde 1678 vinha tentando no rio das Velhas e na chamada serra de Sabaraboçu. É certo que em 1693 andou com o padre João de Faria Fialho, Antonio Gonçalves Viana, Pedro Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 333 ção modernizada desse documento, que salienta a importância histórica do caminho, assim como registra documentalmente a presença de Borba Gato na região compreendida entre a vila de Taubaté e o planalto do Paraitinga. Escritura de venda de terras que faz Domingos Vieira Cardoso e bem assim sua mulher Marta de Miranda ao Capitão Manoel de Borba Gato, ambos moradores nesta Vila de Taubaté.26 Saibam quantos este público instrumento de escritura de venda de quatrocentas braças de terras de testada e de sertão uma légua, nas cabeceiras das terras que foram de Bernardo Sanches de la Pimenta virem que, no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil seiscentos e noventa e cinco anos, aos oito dias do mês de setembro do dito ano, nesta Vila de São Francisco das Chagas de Taubaté, no termo dela, freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso, onde eu público tabelião adiante nomeado fui chamado. E, sendo lá, apareceu presente Domingos Vieira Cardoso e bem assim sua mulher Marta de Miranda, a quem eu tabelião tomei outorga, pelos quais ambos juntos, marido e mulher, cada um de per si, me foi dito, em presença das testemunhas adiante nomeadas e assinadas, que têm e possuem quatrocentas braças de terras, que foram de Bernardo Sanches de la Pimenta, partindo de uma banda com terras do dito Domingos Vieira Cardoso e da outra com quem na verdade se achar, com as arrumações a sueste. As quais ditas terras, disseram eles ambos, marido e mulher, vendiam, como logo, com efeito, venderam, desde hoje e para sempre, ao Capitão Manoel de Borba Gato, por preço e quantia de dezesseis mil réis, que confessaram haver recebido em dinheiro de contado, moeda corrente neste Estado. E que, por este instrumento, lhe davam plenária quitação do dito preço e quantia. E, por esta maneira, disseram eles ditos vendedores que vendiam as ditas terras ao sobredito comprador, para que as logre, haja e possua como coisa sua, comprada por seu dinheiro; e de si afastavam toda a posse real e atual que nas ditas terras tinham. E tudo demitiam e trespassavam na pessoa do dito comprador e seus herdeiros, ascendentes e descendentes, e se obrigavam por seus pessoa e bens, móveis e de raiz, havidos e por haver, a fazer sempre esta escritura boa e de paz pacífica. E dar-se por opoente a toda dúvida que se pudesse oferecer adiante ao dito comprador, a tudo bem cumprir e guardar realmente, como também se obrigava a medir as ditas terras ao dito comprador. E de como assim o disseram, pediram a mim tabelião lhes fizesse este instrumento nesta de Avos e outros, explorando também os tabuleiros auríferos nas regiões dos rios Grande e Sapucaí. [...] Faleceu segundo Diogo de Vasconcelos, em 1718, quando exercia o cargo de Juiz Ordinário da Vila de Sabará, tendo cerca de noventa anos de idade, entendendo o mesmo ilustre historiador que ele foi enterrado na capela de Sant’Ana, pertencente ao chamado Arraial Velho do Rio das Velhas [...]. (Franco, op. cit., p. 176.) 26 Livro de Registros de Escrituras, 1693-1696, bloco 3, caixa 157. Arquivo Histórico Dr. Félix Guisard Filho, Taubaté. 334 ALVES MARIOTTO, Lia Carolina P. Em busca de um roteiro esquecido... nota, que assinaram e aceitaram. E, pela vendedora não saber assinar, assinou por ela seu filho Antonio Vieira Cardoso, sendo testemunhas presentes Domingos do Prado Martins e Bartolomeu Bueno de Mendonça, pessoas reconhecidas de mim tabelião, Miguel de Sousa Silva, que o escrevi. Domingos Vieira Cardoso, Domingos do Prado Martins, Bartolomeu Bueno de Mendonça. Assino a rogo de minha mãe, Marta de Miranda, Antonio Vieira Cardoso. Uma vez demarcadas as terras de Domingos Vieira Cardoso, no bairro de São Roque, e a região do Paraitinga, traçamos uma hipotética localização das terras compradas por Manoel de Borba Gato. Pela importância desse documento, apresentamos em anexo o seu fac-símile. Outras escrituras trazem importantes informações sobre o comércio interno, inclusive o de escravos, desenvolvido ao longo da estrada de Parati a Taubaté. Vejamos como exemplo uma escritura de dívida. Escritura de dívida que fazem o Sargento-mor Francisco Correia, João de Toledo e Piza, Domingos de Quevedo Cabral, Lourenço de Siqueira Machado, Manoel Ferreira de Castilho, todos moradores nesta vila, a João Dias, morador na cidade da Bahia e ora estante nesta Vila de Taubaté.27 Saibam quantos este público instrumento de escritura de dívida de ouro quintado virem que, no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e um anos, aos dez dias do mês de Janeiro do dito ano, nesta dita Vila de São Francisco das Chagas de Taubaté, da Capitania do conde da Ilha do Príncipe, governador e donatário dela perpétuo, por Sua Majestade, partes do Brasil, etc. Nesta dita vila, em pousada de mim tabelião adiante nomeado, apareceram presentes o Sargento-mor Francisco Félix Correia, João de Toledo e Piza, Domingos de Quevedo Cabral, Lourenço de Siqueira Machado e Manoel Ferreira de Castilho, pessoas todas conhecidas de mim tabelião, pelas mesmas moradoras nesta dita vila. E por eles, todos juntos e cada um de per si, me foi dito, em presença das testemunhas adiante nomeadas e assinadas, que eles eram a dever, e com efeito deviam, a João Dias,28 morador na cidade da Bahia e ora estante nesta vila, a quantia de mil quinhentos e noventa e nove oitavas de ouro quintadas, de catorze 27 Fragmento de Livro de Registros de Escrituras, 1700-1712, caixa 158. Arquivo Histórico Dr. Félix Guisard Filho. 28 João Dias, sertanista baiano, morador em Tatuapara, na Torre de Garcia de Ávila, foi companheiro de Cristóvão de Barros na conquista de Sergipe, em 1590. Era grande senhor, com criados brancos e grossa escravaria, tendo obtido como recompensa dos seus serviços, duas sesmarias em Sergipe, a última das quais em 1602. FRANCO, Francisco de Assis Carvalho, op. cit., p. 135. Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 335 escravos do gentio da Guiné, de vários senhores moradores na dita cidade da Bahia e [...] Recôncavo, que lhe haviam comprado todos juntos, a saber, digo, tanto em preço como bondade, a saber: o dito Sargento- mor Francisco Félix Correia [...] e sessenta e uma oitavas de ouro; João de Toledo e Piza, trezentas e sessenta [...], Domingos de Quevedo Cabral, noventa oitavas de ouro, Lourenço de Siqueira Machado, quatrocentas e vinte e oito oitavas de ouro, Manoel Ferreira de Castilho, duzentas e cinqüenta e seis oitavas, que todas estas quantias juntas fazem a quantia na soma de mil quinhentos e noventa e nove oitavas de ouro quintado, os quais todos e cada um de per si, disseram que se obrigavam, por suas pessoas e bens móveis e de raiz, havidos e por haver, futuros e contingentes, a pagar ao dito João Dias a sobredita quantia, por todo o mês de dezembro próximo desta dita era, posta na Vila de Parati, por suas contas e riscos deles ditos, até entregarem à ordem dele, dito João Dias, no dito porto. E outrossim disseram que cada um de per si faziam esta obrigação sobre o abono de suas pessoas e bens, fiando-se uns aos outros e um por todos e cada um per si. E, pelo dito vendedor das ditas peças, foi declarado que eram: um negro da Nação Arda, de Antonio Lopes Torrão, por preço de cento e vinte e oito oitavas; e assim mais um negro Antonio e outro Felipe, de João de Andrade Ozório, embarcados por Manoel Correa Lima, a cento e vinte e oito oitavas cada um; e assim mais um negro Gregório, do Sargentomor Cristóvão Coelho Vilas Boas, por cento e cinco oitavas; assim mais um negro Gaspar, de Antonio Maciel Teixeira, por noventa oitavas; e assim mais dois moleques, ambos por nome Manoel, de Antonio de Sousa, por oitenta e cinco oitavavas cada um; e assim mais um negro por nome Domingos e outro Manoel, do padre Manoel Ferreira, a cento e cinqüenta oitavas cada um; e mais os negros por nomes Francisco, Paulo, Vicente, Garcia, Antonio, que disse eram de sua conta e de seu irmão José Dias, a cento e vinte e oito cada um. E estes aqui nomeados disseram os escravos que havia vendido às sobreditas pessoas contidas [...] que ficam devendo com a obrigação do pagamento no dito tempo consignado, sem quebra nem diminuição alguma. E, de como assim o disseram, mandaram fazer esta escritura nesta nota minha [...] que aceitaram e assinaram. E eu tabelião aceitei em nome dos ausentes e dos mais a quem tocar possa como pessoa pública e estipulante e aceitante, sendo testemunhas presentes Manoel da Silva Salgado e José Maria da Cruz, pessoas reconhecidas de mim tabelião, Miguel de Sousa e Silva, que a escrevi. João de Toledo e Piza, Francisco Félix Correia, Domingos de Quevedo Cabral, Manoel da Silva Salgado, José Maria da Cruz, Lourenço de Siqueira Machado. Em presença de mim tabelião, fizeram pagamentos desta escritura o Sargento-mor Francisco Félix Correia, João de Toledo, Domingos de Quevedo e Manoel Ferreira, e só não está satisfeita a quantia de Lourenço de Siqueira Machado. Sebastião de Freitas Albernás o escrevi. 336 ALVES MARIOTTO, Lia Carolina P. Em busca de um roteiro esquecido... Esse carregamento de escravos negros, vindo da Bahia, aportou em Parati, onde foi comprado por moradores da vila de Taubaté e, provavelmente, chegaram ao destino viajando pela estrada em questão. Por pesquisas efetuadas em outros documentos, conseguimos delinear a natureza da estrada. Era um caminho perigoso, não só por seu trajeto repleto de pirambeiras, lodaçais, animais selvagens, como eivado de ataques de assaltantes e malfeitores. Quando a viagem continuava por mar, o perigo estava no naufrágio, como demonstram os dois documentos transcritos a seguir. Crédito de Francisco Rodrigues Silva, a quem é a dever Miguel de Sousa Silva, lançado nesta nota a requerimento de seu procurador, o Capitão João Vaz Cardoso, pelo qual me foi dito que o queria mandar para a cidade do Rio de Janeiro ao dito Francisco Rodrigues Silva, e, por respeito do perigoso caminho e naufrágio do mar, queria que lho lançasse nesta nota, o qual é do teor seguinte.29 Devo e pagarei ao Sr. Francisco Rodrigues Silva, digo, Rodrigues da Silva, quatrocentos e cinco mil e novecentos e dez réis em dinheiro de contado, procedidos de fazendas que lhe comprei a meu contento, em preço e bondade a ele dito ou a quem me este mostrar por todo o mês de Janeiro próximo que vem, sem dúvida alguma. E, por ser isto verdade, lhe passei esta clareza por mim feita e assinada no Rio de Janeiro, em dezoito de agosto de setecentos e um. Miguel de Sousa Silva // tem à margem a conta seguinte // São 405$910 rs. / / Declaro que devo mais doze mil réis, que pagarei na mesma forma, mais dois mil e quatrocentos, que faz tudo quatrocentos e vinte mil e dez réis // Miguel de Sousa Silva. E não se continha mais nos ditos créditos, que eu tabelião aqui trasladei bem e fielmente e o tornei à parte e o corri e consertei, escrevi e assinei aos trinta e um dias do mês de outubro de mil setecentos e seis anos. Eu, tabelião Felipe Moreira Queimado, o escrevi. Consertado com os próprios por mim sobredito tabelião. Felipe Moreira Queimado. Crédito do Capitão João Vaz Cardoso lançado nesta nota a seu requerimento, a quem é a dever João Gago de Oliveira, e pediu a mim tabelião que lhe lançasse, portanto, que o queria mandar para fora por caminhos e mar de que corria perigo30. 29 Livro de Registros de Escrituras, 1700-1712, bloco 2.º, 1706, caixa 158. Arquivo Histórico Dr. Félix Guisard Filho. 30 Livro de Registros de Escrituras 1700-1712, caixa 158, bloco 2º, 1706, caixa 158. Arquivo Histórico Dr. Félix Guisard Filho. Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 337 Devo ao Sr. Capitão João Vaz Cardoso seiscentas oitavas de ouro em pó, procedidas de quatrocentas mãos de milho que lhe comprei dos dízimos que lhe pagou o Tenente Manoel de Borba e Francisco de Arruda de Sá, as quais lhe pagarei para novembro próximo que vem, como também todo o feijão que os ditos deverem do dízimo, à razão de onze oitavas o alqueire, e algum milho que mais derem, porque não se fez inteira obrigação do quanto era em todo. E para clareza lhe passei este, por mim feito e assinado. Quinze de agosto de mil setecentos e um anos // João Gago de Oliveira // Tem mais à margem a conta seguinte: são 616/8½ // Não se continha mais no dito crédito, que eu tabelião aqui trasladei bem e fielmente, e o tomei à parte, e o corri, e consertei, e escrevi, e assinei aos trinta e um dias do mês de outubro de mil setecentos e seis anos. Eu, Felipe Moreira Queimado, tabelião, o escrevi. Consertado com o próprio por mim, sobredito tabelião. Felipe Moreira Queimado. Complementamos as informações das fontes manuscritas com uma consulta ao Repertório das sesmarias, de 1721 a 1821.31 Entre as concessões de sesmarias, separamos as seguintes, em que grifamos o topônimo relevante: Amaro de Toledo Cortez – morador na Villa de Taubaté. Uma légua de terra em quadra na paragem chamada Parahytinga da parte do caminho que vai para a Villa de Paraty, começando da barra do ribeirão chamado Hytauhy, pelo rio de Parahytinga abaixo uma légua, pelo dito ribeirão acima meia légua e pela outra parte do Parahytinga outra meia, as quaes fazem quadra. [...] [L.6, fls. 156v.]. (p. 20.) Amaro de Toledo Cortez – morador em Taubaté. Uma sorte de terras na paragem chamada Caatheoca partindo com a data de terras de João Vaz Cardoso no caminho que vinha daquella Villa para Paraty, fazendo testada de onde começa o dito João Vaz Cardoso para a parte do caminho de Ubatuba até entestar com o primeiro possuidor e não enchendo a légua de sertão se inteire sempre nas que houver devolutas e achando-se possuidor adiante no sertão se inteire rumando para traz [L.4,fls.174]. (p. 21.). Antonio da Costa Chaves – meia légua de terras em quadra na paragem chamada as Abobras correndo o sertão para uma serra que vai para o mar a rumo de sueste servindo ao supplicante de testada o mesmo seu sítio e seus cultivados com todos os rumos e confrontações declarados. [L. 13,fls. 58v.] (p. 41) Antonio da Costa Chaves – Taubaté. Uma légua de terras em quadra na paragem chamada Tacurussu, onde acabam as terras da Câmara da Villa de Taubaté, no caminho ou picada que vai sahir na Encruzilhada de Parati, correndo pela 31 As citações a seguir foram reproduzidas do Repertório das sesmarias concedidas pelos capitães generais da Capitania de São Paulo desde 1721 até 1821, organizado pela Secção Histórica do Departamento do Arquivo do Estado, v. VI. São Paulo, 1944. 338 ALVES MARIOTTO, Lia Carolina P. Em busca de um roteiro esquecido... mesma, ficando-lhe o caminho em meio com meia légua para cada lado correndo das ditas terras da Câmara para parte da mesma Villa. [L.3, fls.26] (p. 41.) Antonio Ferrão de Carvalho – (confirmação). Meia légua de terras de testada com légua e meia de sertão no termo da Villa de Taubaté, freguezia de Nossa Senhora da Conceição do Facão na sobredita das terras de Diogo Lucas da Cunha, partindo de uma parte com terras da Paratinga de baixo que hoje são de João Gomes de Siqueira e com terras de Manuel Antonio de Carvalho e da outra com terras dos herdeiros de João Monteiro Ferraz, que seria meia légua de testada ou o que na verdade se achar entre um e outro com légua e meia de sertão, correndo este para a banda da estrada que vay para Ubatuba pelo mesmo rumo das terras confrontadas. [L.16, fls. 48] (p. 47.) Francisco de Barros Abreu – uma e meia légua de terras em quadra no lugar chamada Aparição, na estrada que vai de Paraty para Taubaté, as quaes começavam do morro da Boa Vista do Campo, correndo para a Itaoca, ficando em meio da dita terra o ribeirão da Apparição. [L.2, fls. 40] (p. 147) Francisco Pereira de Sousa – morador no bairro das Abóboras, districto da Villa de Taubaté. Uma légua de terras em quadra, compradas a Antonio Ferrão de Carvalho, partindo pela parte da serra com terras do Conselho. [L.21, fls. 13] (p. 173.) João Vaz Cardoso – morador na encruzilhada do caminho da Villa de Paraty. Uma légua com rumo de noroeste a sueste e com uma légua para a quadra, meia para cada lado da estrada, com o travessão que o dito rumo der. Demarcando- se-lhe o pico do morro chamado Facão ao pico da Boa Vista. [L.3, fls. 84] (p. 257.) Felipe Soares Louzada – 600 braças em quadra que começam da banda do campo da Aparição, da banda do mar, correndo para a Vila de Taubaté. (Souza, 1565-1796, parte I, t. XLIII). 5. Chegando ao caminho traçado Do material pesquisado nos conjuntos documentais, cinco informações se entrecruzam: 1º- região do rio Una, 2º- região do Paraitinga, 3º- Caminho do Mar, 4º- banda do Nascente, 5º- “arrumação” a sudoeste. Confrontando esses pontos, cuidadosa e vagarosamente, delineamos o trajeto do antigo Caminho do Mar que, saindo do porto de Parati, seguia por terra, em direção à vila de Taubaté. Tendo o mapa do IBGE como base (fig. 3), traçamos uma linha que, saindo do campo da Aparição, passando pelas sesmarias, terminava em Taubaté, como demonstra a ilustração a seguir. Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 339 Figura 3 – bairros da Catioca, Abóboras, Encontro, Itacuruçá, Encruzilhada e Aparição. Então, partindo da sesmaria de Felipe Soares Louzada, que começava dos lados do campo da Aparição, da banda do mar, seguindo em direção à vila de Taubaté, unimos os pontos: • da região do campo da Aparição alcançamos o bairro da Encruzilhada; • da Encruzilhada passamos ao bairro de Itacuruçá; • de Itacuruçá chegamos ao bairro do Encontro; • do Encontro atingimos o bairro das Abóboras; • das Abóboras chegamos ao bairro da Catioca; • da Catioca atingimos a região do Paraitinga. Da região do Paraitinga, onde se localizavam as terras de Sebastião Gil, o moço, passamos às paragens de Antonio Vieira da Maia, no bairro do Barreiro e destas, às terras herdadas por Catarina Dias, por sua vez, parte da sesmaria de João do Prado Martins, que abrangia do Salto Grande, no bairro Faxinal, até o rio Capivari, hoje município de Jambeiro. A última etapa é o bairro da Pedra Grande, bairro rural de Taubaté que, hoje, faz limite com o Município de Lagoinha. Do bairro da Pedra Grande alcançamos o ribeirão das Sete Voltas e deste, o ribeirão do Ipiranga. Rapidamente atingimos o rio Una e, caminhando- se paralelamente a ele, chegamos ao rio Paraíba do Sul. Ultrapassando-o e transpondo a garganta do Piracuama, por onde se galgava a serra da Mantiqueira, alcançar-se-ia a lendária terra de Sabaraboçu. Com todas as informações recolhidas, podemos traçar um roteiro detalhado da Estrada Real, no trecho entre Parati a Taubaté. As informações obtidas de diversas fontes documentais complementamse com a nossa pontuação das paragens. Traçamos um hipotético trajeto do caminho seiscentista, conjugando as informações para demarcar as primevas paragens e propriedades, com os nomes de seus proprietários. 340 ALVES MARIOTTO, Lia Carolina P. Em busca de um roteiro esquecido... Para concluirmos a pesquisa, fomos a campo, a fim de saber se aquele traçado seria, ainda hoje, viável e transitável. Como não tínhamos a menor idéia do que iríamos encontrar, entramos antes em contato com o comandante da Polícia Militar Ambiental do Estado de São Paulo, comando da 4ª companhia do 3ª batalhão, responsável pelo vale do Paraíba e serra da Mantiqueira, e solicitamos uma viatura com acompanhamento de policiais. Achávamos que, muito provavelmente, seguindo aquele trajeto que hipoteticamente riscamos na sala do Arquivo Histórico, teríamos que atravessar propriedades e abrir porteiras particulares. E, para tanto, nada melhor do que a presença de policiais que não deixariam tomarmos, no mínimo, umas saraivadas de chumbinhos, sem falar nas prováveis cascavéis e afins que iríamos importunar. Mas qual não foi nossa surpresa ao perfazermos o trajeto! Existe ainda hoje, embora não pavimentada, uma pitoresca estrada entre Taubaté e Parati. Percorremos, a partir do bairro da Pedra Grande, último bairro rural de Taubaté, toda a extensão dela até chegarmos ao bairro da Encruzilhada, município de Cunha, local onde o caminho seiscentista bifurca para a estrada asfaltada que, da cidade de Cunha, desce para Parati. Portanto, além de fontes bibliográficas e de documentação notarial escrita na época, o percurso do trajeto ainda hoje existente comprova, in loco, a nossa hipótese sobre o traçado desse primitivo caminho que ligava o sertão ao litoral. Vejamos o resultado da pesquisa no mapa abaixo. Figura 4 – Itinerário da Rota entre Parati e Taubaté Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 341 Anexo Fac-símile dos fólios que contêm a escritura de venda de terras que fazem Domingos Vieira Cardoso e sua mulher, Marta de Miranda, ao Capitão Manoel de Borba Gato. Vila de São Francisco das Chagas de Taubaté, 8/9/1655. 342 ALVES MARIOTTO, Lia Carolina P. Em busca de um roteiro esquecido... Bibliografia ABREU, J. C. de (1985) Caminhos antigos e o povoamento do Brasil. São Paulo: Itatiaia; Edusp. AGUIRRA, J. B. de C. (Org.). (1929) Patentes, provisões e sesmarias. Concedidas nos anos de 1721 a 1742. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, v. XXVI. Filol. linguíst. port., n. 10-11, p. 317-344, 2008/2009. 343 ________. (1930/1929) Patentes, provisões e sesmarias. Concedidas nos anos de 1721 a 1830. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, v. XXVII, 1929; v. XXVIII, 1930. ARAUJO, Monsenhor J. P. de S. 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ABSTRACT: We present information about research whose purpose is to identify in detail a very important road until the 18th century, between the old towns of Parati and Taubaté. KEYWORDS: History; philology; edition. COPYRIGHT AUTOR DO TEXTO

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