domingo, 27 de maio de 2012

GEOGRAFIA DA FOME (JOSUÉ DE CASTRO)

zonas, principalmente pelos sertanejos de sangue, mais rico, com melhores cores na cara; e que constitui um verdadeiro característico antropológico dessa gente, com sua pobreza de hemoglobina por falta de ferro e com seu sangue já ralo, espoliado pela verminose e pelo paludismo, que são endêmicos nessa região. Para se dar uma idéia da freqüência desse tipo de anemia basta referir os resultados da interessante pesquisa levada a efeito na Bahia por Tales de Azevedo e A. Galvão58 entre os escolares daquela cidade, e na qual foi encontrada uma percentagem de 40% das crianças com anemia declarada. Confirmando a sua origem alimentar estão os resultados dos exames hematológicos realizados após o uso, durante quatro meses, de um complemento alimentar, sob a forma de comprimidos, contendo ferro, cálcio e vitaminas59. A proporção de anêmicos havia baixado de 40 para 3,5%, apresentando-se a taxa de hemoglobina em 90% dos casos com um teor de 90 a 100%. Esta situação hematológica observada na capital baiana se apresenta ainda mais acentuada em outras zonas da área açucareira e contribui enormemente para o estado de apatia e depressão física em que vegeta o Jeca-Tatu nordestino. 13. Como conseqüência inevitável dessa fome crônica de ferro e, certamente, de alguns outros elementos minerais, decorre a grande incidência, nessa zona, do fenômeno da geofagia, [pg. 157] ao qual já nos referimos no estudo da área amazônica. Nos tempos coloniais, os viajantes estrangeiros que passavam pela zona do açúcar se impressionavam muito com aquele mau hábito dos meninos de engenho — de comerem terra — e atribuíam o fato ao contato maléfico dos meninos brancos com os moleques das senzalas que lhes transmitiam o feio vício africano60. É verdade que os negros africanos da Costa do Marfim, da Guiné e do Congo sempre foram bons comedores de terra. Mas também é verdade que, antes da chegada dos Paris. 58 Azevedo. Thales de e Galvão. Alfredo. Uma Pesquisa sobre a Su-plementação Nutritiva em Escolares. trabalho apresentado ao Primeiro Congresso Médieo-Social Brasileiro. Bahia. 1945. 59 Quando estivemos â frente do Serviço Técnico da Alimentação Nacional, preconizamos, como medida de emergência contra as carências minerais e vitamínicas, acentuadas de maneira alarmante no país pelas dificuldades de abastecimento que a guerra acarretou, o uso de complementos alimentares na nutrição de coletividades escolares, militares, hospitalares, etc. Desses complementos alimentares foram fabricados. segundo fórmula daquele Serviço Técnico, comprimidos contendo ferro, cálcio e vitaminas, tanto sintéticas como obtidas da farinha de alfafa, da casca do arroz e do óleo do cação. Com esse tipo de complemento fornecido ao governo do Estado da Bahia e aí usado por nossa sugestão, é que foram realizadas as pesquisas a que fizemos alusão. negros no Nordeste, já o índio tinha o vício da geofagia, atribuído com razão à verminose, por Schiafino. Tanto lá na África como aqui no Brasil, negros e índios se atiravam à terra com apetite, sob a pressão da fome específica, da necessidade imperiosa de ingerirem os sais minerais, negados ao seu organismo por dietas incompletas. Quando os molequinhos do Nordeste e os anêmicos senhorzinhos brancos comiam às escondidas seus bolõezinhos de barro estavam corrigindo instintivamente as deficiências minerais de uma alimentação incompleta, imposta pela monocultura da cana. Estavam eles a merecer, em lugar de reprimendas e castigos, elogios pela presteza com que se medicavam, ou melhor ainda, um bom regime alimentar que os livraria depressa desse “vício” com mais eficiência do que as horríveis máscaras de Flandres que eram afiveladas a suas carinhas magras, como mordaça em boca de cachorro mordedor ou os intermináveis castigos de dias e dias a fio, pendurados dentro de um balaio até que largassem o hábito abominável de comer terra. Ainda há pouco em certas zonas, como a do Pontal da Barra, em Alagoas,61 vendiam-se nas bodegas, ao lado do bacalhau e do sabão, tijolinhos de barro de massapé bem cozidos, para regalo dos viciados. São em geral terras ricas em ferro, [pg. 158] em cálcio ou em fósforo62. Se uns comem o barro assim elaborado, como um verdadeiro produto alimentar, a maioria se contenta em ingeri-lo incorporado naturalmente a certos alimentos da região. Assim, os moradores das lagoas em torno de Maceió, quando comem o seu sururu mal lavado, estão a ingerir grandes quantidades da lama que esta espécie de marisco guarda em seu organismo. A taxa bem baixa de cálcio que o regime encerra faz prever graves perturbações no metabolismo desse mineral. Mas a verdade é que suas exteriorizações manifestas constituem uma raridade. Não há praticamente o raquitismo na região pelas razões já anteriormente apresentadas. É esta uma das regiões de piores dentes do país e certamente o déficit em cálcio trabalha para esta decadência. 60 Koster. Henry. Travels in Brazil. Londres. 1816. 61 Lima. Jorge de. Calunga. 62 Veja-se sobre o assunto o trabalho de Maurice Uzin, “Geophagie” in La Medicine Chez Lui, fevereiro, 1938, onde se lêem referências aos exames feitos em terras comestíveis por Cobert na Tunísia, por Remlin-ger em Marrocos, por Batz no Congo e por outros pesquisadores no território de Quénia e de Tanganika. Não nos consta que até hoje se tenha realizado algum trabalho acerca da composição de terras comestíveis no Brasil. 14. No que diz respeito às manifestações de avitaminoses, não são elas tão abundantes como seria de esperar tomando-se em conta apenas a análise dos elementos que entram na composição da dieta básica. As avitaminoses A, em suas formas extremas de xeroftalmia e de queratomalácia, cegando grande número de indivíduos como ocorre na Índia,63 são relativamente raras na zona da mata. Mais raras do que era de supor, pela análise do regime pobre em gorduras, fontes desses princípios essenciais e mais raras do que antigamente, no tempo da escravidão, quando a queratomalácia assolava entre os pobres negros escravos em proporções muito mais altas. O notável médico patrício, Dr. Manoel da Cama Lobo,64 fazia, em 1865, uma comunicação à Academia de Medicina sobre uma doença dos olhos que chamava “oftalmia brasileira”, comum entre os negros escravos e que não é outra coisa que [pg. 159] a xeroftalmia carencial. Já naquele tempo compreendera o ilustre clínico a origem dessa doença, quando afirmou: “a causa desta oftalmia é a falta de nutrição conveniente e suficiente a que estão submetidos os escravos dos fazendeiros... o organismo pobre de princípios vitais não pode fornecer os princípios necessários para nutrição da córnea.” É extraordinária a intuição científica de Gama Lobo, nestes recuados tempos em que não se falava, nem mesmo se suspeitava, da existência das vitaminas. Devemos anotar, também, a notável intuição científica daquele que primeiro registrou tais tipos de oftalmias em terras americanas — Wilhelm Pies. O célebre médico de Maurício de Nassau, mais conhecido pelo nome latinizado de Piso, em sua notável obra De Medicina Brasilensi, publicada na Holanda em 1648, faz referência à existência, entre os soldados e a plebe, da hemeralopia e atribui o mal à má alimentação: “os pobres e os soldados comem alimentos corrompidos”, afirma o notável médico holandês.65 Os negros escravos, com sua alimentação fornecida pelo senhor, alimentação quase que exclusiva de feijão com farinha e angu de milho com toucinho, ficavam 63 Aykroyd, W. R., op. cit. 64 Lobo, M. da Gama, “Da Oftalmia Brasiliana”, in Ann. Bras. Me-dic., n.° 1, junho de 1865. 65 Para conhecimento mais detalhado do assunto, consulte-se o trabalho de Hermínio de Brito Conde — “Evolução da Oculistica no Brasil”. Hora Médica, julho de 1939, no qual este oftalmologista estuda as várias etapas, inclusive o ciclo nassoviano, das descobertas muito expostos às avitaminoses A. Libertados, os negros orientaram sua dieta, se não para uma maior abundância, pelo menos mais para as suas predileções, para seu gosto acentuado pelos azeites vegetais, principalmente de dendê, e assim foram escapando da hemeralopia, da xeroftalmia e da queratomalácia, muito mais raras hoje em dia nos engenhos da mata do Nordeste. Já as formas frustas desta avitaminose, reveladoras de carências parciais, são ainda freqüentes, destacando-se as manifestações cutâneas, do tipo hiperceratósico, idêntico aos observados por Frazier e Wu na China. Manifestações que tornam a pele áspera, seca e farinhenta, com escamas em certas zonas, em torno dos bulbos pilosos. As placas hiperceratósicas dos cotovelos das moças das cidades do Nordeste — os calos dos cotovelos — atribuídos pelo vulgo ao mau hábito de ficarem elas debruçadas [pg. 160] o dia todo nos parapeitos das janelas namorando é, sem dúvida, uma das manifestações habituais de hipo-avitaminose A. A alta incidência das doenças do aparelho respiratório nesta zona deve ser também interpretada como uma diminuição da resistência do epitélio defensivo das vias respiratórias por falta desta vitamina. Também no que diz respeito à avitaminose B1, não se trata de uma zona de beribéri endêmico. As polinevrites são raras. As deficiências desta vitamina se manifestam em suas formas frustas por perturbações para o lado dos aparelhos di-gestivo e circulatório e do sistema nervoso, traduzindo-se pela irritabilidade, a insônia, a anorexia, a constipação crônica e outros sintomas difíceis de serem interpretados e ligados à causa produtora. A falta de vitamina B2 é bem mais sensível. Os casos de arriboflavinose são abundantes, generalizados entre as crianças pobres, tanto rurais, como urbanas. As rachaduras dos cantos da boca, as queiloses chamadas vulgarmente de boqueiras, constituem quase que uma marca de classe, um característico do menino pobre. Pensava-se antigamente que a boqueira era uma doença transmissível, generalizada entre os pobres por falta de cuidados higiênicos e pela promiscuidade em que vivem as crianças dos cortiços, das vilas operárias, das zonas dos mocambos. Hoje se sabe que seu fator fundamental é de natureza vitamínica, é a avitaminose B2, sendo sua generalização produto exclusivo da deficiência também generalizada deste componente do complexo B. As congestões da córnea, os olhos injetados e vermelhos, dando um ar de maldade à expressão oftalmológicas brasileiras. fisionômica, traço tão comum entre os cabras das bagaceiras dos engenhos e das usinas, é outro sintoma da falta de vitamina B2, identificado através dos estudos de Sebrell e Butler. A lenda do mau gênio destes camaradas de olhos injetados talvez tenha sua razão de ser, pelo menos, em parte, neste fenômeno de natureza nutritiva. As avitaminoses, as deficiências dos componentes do complexo B que sempre se apresentam associadas, quando de um lado chegam a provocar estes fenômenos oculares, acarretam por outro lado uma grande irritabilidade nervosa, tornando seus portadores mais irascíveis e descontrolados, portanto meio irresponsáveis. A sua valentia traduz muitas vezes paradoxalmente a sua fraqueza nervosa e o estado de miséria de seus nervos desvitaminados e superexcitados. [pg. 161] A deficiência relativa em ácido nicotínico, ou seja, no “fator preventivo da pelagra”, de Goldberger,66 faz com que surjam nesta área certas formas frustas e às vezes mesmo típicas da doença. Não é uma área endêmica do mal. Não está, contudo, isenta do seu aparecimento em quadros esporádicos67. Vários tipos de dermatites, glossites, estomatites e síndromes diarréicas que ocorrem nesta zona têm em seu complexo etiológico a deficiência em ácido nicotínico. Não são muito freqüentes as avitaminoses C, constituindo o escorbuto uma raridade clínica nos hospitais do Nordeste. Este mal matou muito no primeiro século da colonização e matou quase que exclusivamente negros escravos, trazidos da África nos navios negreiros, que, ou morriam nas longas travessias de dois e três meses de mar, ou já chegavam moribundos, com a carne das gengivas podre e infeta. É que o regime alimentar dos navios era de uma espantosa miséria. Num tempo em que até os viajantes ilustres eram atacados de escorbuto, não admira que esses pobres párias, trazidos aos montões como porcos no bojo imundo dos cargueiros, 66 Os estudos de A. Elvehjem e Goldberger, demonstrando a correlação entre a deficiência nicotínica e a síndrome pelagrosa, pareciam ter esclarecido definitivamente o problema etiológico do mal, considerado desta forma uma monocarência vitamínica. A observação do fato de que nas áreas de alimentação à base de milho se desenvolve, contudo, a pelagra, com uma dieta contendo ácido nicolínico em doses que seriam preventivas das doenças noutras áreas alimentares, veio complicar o problema, dando a idéia de tratar-se de uma policarência e. principalmente, de ácido nicotínico e de triptofano, que é um ácido aminado. do qual o milho é carente. Ver “Conocimientos Actuales sobre el Complexo B en la Nutrición Humana”, Nutrición, vol. IV, n.° 5, México, maio de 1946. 67 Sobre a existência e distribuição da pelagra no Nordeste, consultem-se os seguintes trabalhos: Jorge Lobo, “Da Pelagra” (nota prévia), in Correio Médico, Recife, junho. 1935: e Rinaldo Azevedo. “Pelagra, Contribuição ao Seu Estudo”, setembro de 1935. Consulte-se, também, o trabalho publicado em São Paulo, da autoria de Mendes de Castro, Dante Giorgi e Julio Kieffer, sob o título — Contribuição do Estudo da Pelagra, 1941. morressem do terrível mal. Segundo cálculos da época, durante as viagens perdia-se em média um terço dos escravos embarcados.68 Desse terço, grande parte era dizimada pelo escorbuto. A maior parte talvez. Dos que aqui aportavam, num tal estado que ninguém podia [pg. 162] suportar o seu fedor,69 muitos se refaziam, porque a alimentação dos mercados de negros, embora “ainda deficiente, era muito superior à dos navios”.70 15. O quadro das avitaminoses mais comuns do Nordeste está longe de ser um quadro de impressionante riqueza nosológica e desaponta mesmo os teorizantes do assunto, informados, um tanto por alto, dos hábitos alimentares da região. Diante da monotonia e da pobreza do regime alimentar, apuradas nos inquéritos, parece um verdadeiro milagre que se não manifestem, além das apontadas, muitas outras formas de carências declaradas, num tétrico cortejo, idêntico ao das regiões de fome do Extremo-Oriente. Uma das explicações que encontramos para o fato é a da influência preventiva desempenhada por alguns condimentos e ingredientes especiais que, entrando na cozinha do Nordeste em proporções algo exageradas, defendem os habitantes desta zona das avitaminoses endêmicas. Destes ingredientes destacamos principalmente o óleo de dendê e a pimenta, que são obrigatórios nos pratos típicos da chamada cozinha baiana, e que se consomem por toda a zona da mata, por toda esta larga área alimentar tão intensamente influenciada pelos costumes africanos. O azeite-de-dendê, retirado do fruto da palmeira Elaeis guine-ensis, trazida pelos negros da África e bem difundida na região, é uma fonte extremamente rica de provitamina A, contendo em cada centímetro cúbico de óleo entre 1.000 e 3.000 unidades de beta-caroteno. As pimentas das variadas espécies usadas, as nativas de que os índios se empanturravam e as trazidas pelos negros — a malagueta e a da costa ou Ataré, os pimentões — são todas muito ricas em ácido ascórbico, dos mais ricos vegetais do mundo. Essa cozinha baiana, tão impiedosamente condenada por médicos e cientistas até quase em nossos dias, exatamente por sou excesso de azeite e 68 Rugendas, M., Voyage Pitoresque dans le Brésil, 1838. 69 Koster. Henry. Travels in Brazil (2 vols.), Londes. 1816. 70 Coutinho. Ruy. “Alimentação e Estudo Nutricional do Escravo no Brasil”, in Estudos Afro- pimenta,71 mostra-se assim como uma tábua de salvação contra os perigos das avitaminoses [pg. 163] A e C. Com os conhecimentos que hoje possuímos da riqueza vitamínica destes temperos, conclui-se que os abarás, e os acarajés, que as cozinheiras negras preparam afogando bolos de farinha de fubá e de feijão num banho apimentado de óleo de dendê, representam verdadeiros concentrados de vitaminas A e C. O mesmo se pode dizer do vatapá e do caruru que, apesar do seu peculiar sabor, sem rival no mundo, nem por isso deixaram de sofrer agressões terríveis dos higienistas, defensores do estômago de nossos compatriotas baianos. Vejamos duas opiniões emitidas neste sentido no começo do nosso século: “É notório, pois, que a Bahia encerra a superioridade, a excelência, a primazia na arte culinária do país, pois que o elemento africano, com a sua condimentação requintada e exóticos adubos, alterou profundamente as iguarias portuguesas, resultando daí um produto todo nacional, saboroso, agradável ao paladar mais exigente, o que excede a justificada fama que precede a cozinha baiana”, afirmava Manoel Querino. “De um lado o famoso caruru, com o competente óleo de dendê e mais ingredientes, e do outro, o vatapá, de composição não menos complexa, além das moquecas de peixe, ardentes de pimenta-malagueta, levam a supor que os estômagos baianos são dos mais vigorosos e invulneráveis, se com efeito resistem a tantos assaltos atentatórios do seu bom funcionamento”, são palavras de Eduardo de Magalhães, Higiene Alimentar, de 1908. É bom que se ponha em destaque o fato de que os estudos recentes da nutrição, valorizando mais os aspectos vitamínicos e minerais dos regimes e deixando em segundo plano seu valor energético, vêm reabilitando por toda parte as dietas por grupos humanos mais primitivos, com seus menus instintivamente organizados, à base dos recursos naturais de cada quadro regional. O que se passa no momento entre nós, com a cozinha baiana tão impregnada de influência africana, passou-se, há pouco tempo, no México, com a sua cozinha Brasileiros, 1º vol., 1935. 71 Acerca desta cozinha e seus defeitos, escreveu Sampaio Viana, nos meados do século passado, citado por Gilberto Freyre: “... condimentadas com todas estas substâncias excessivamente excitantes e com este pernicioso azeite da costa d’África tão usado por nossa população pobre que de um lado acha uma alimentação insuficiente por sua quantidade e de outro lado por sua qualidade.” Viana. A. C. de Sampaio (Qual a Causa da Frequência das Ascites na Bahia. 1850). indígena. Dois [pg. 164] componentes da dieta do mexicano — o pulque e o chile — uma bebida fermentada e as pimentas que entram sempre na alimentação do índio, foram ale pouco tempo considerados por todos uma calamidade nacional.72 Pois bem. Através dos estudos recentes de uma série de notáveis pesquisadores mexicanos, como Juan Rocca,73 Roberto Llamas,74 José de Lille e Elyseu Ramirez,75 se chegou à conclusão de que o pulque é uma boa fonte de proteína e de elementos do complexo B e que o chile abastece o índio de vitamina C, livrando-o, desta forma, do escorbuto. O pulque e o chile mexicanos funcionam, no que diz respeito aos males que lhes eram atribuídos naquele país e ao desagravo recente que a ciência lhes fez, como o azeite-de-dendê e a pimenta-da-bahia no nosso país. Mais uma vez se afirma a sabedoria do instinto,76 como guia admirável da boa alimentação. E mais uma vez se verifica a intolerância da ciência. De certo tipo de ciência, pelo menos... A importância do instinto não deve ser esquecida na orientação científica a ser dada à alimentação de quaisquer grupos humanos: “afastar-se da natureza, isto é, dos hábitos criados pelo clima, o lugar e o gênero de vida dos indivíduos, para seguir conselhos de higiene alimentar, é sempre uma coisa arriscada. Os regimes reconhecidos como defeituosos por seus maus efeitos biológicos podem ser transformados, completados, mas não convém serem substituídos de maneira radical.” Assim se exprimem grandes conhecedores do problema, como são Lucie Randoin et Henri Simonet.77 [pg. 165] É esta nossa convicção do alto valor nutritivo de certos pratos da cozinha baiana que nos leva a desenvolver intensa atividade por sua industrialização. Pelo preparo em forma de conservas do vatapá, do caruru e de outras iguarias que consumidas em outras áreas do país iriam contribuir para elevar os padrões de 72 Assim escreve um especialista mexicano de renome: “Nosso povo queima a boca com pimenta — chile — e apaga o ardor com pulque. Aproveita a secreção abundante de saliva que o chile determina tanto para tomar todos os dias o mesmo regime monótono como para estimular o apetite que falta no dia seguinte de uma bebedeira.” Espinosa, Alfredo Ramos, La Alimentación en México. México, 1939. 73 Rocca, Juan, “Contribución al Estudio Chimico del Chile”, Ana-les del Instituto de Biologia, tomo I, México, 1935. 74 Rocca, Juan e Llamas, Roberto, “Consideraciones sobre el Valor Alimentício del Pulque”, in An. Inst. Biologia, tomo VI — 1935. 75 Lille, José de e Ramirez, Elyseu, “Contribución al Estudio de la Acción Farmaco-dinámica de los Princípios Activos del Chile”. An. Inst. Biol.. tomo VI, 1935. 76 Cannon, W. B., The Wisdom of the Body, Londres, 1932. 77 Radoin, Lucie e Simonet, Henri, Les Données et les Inconnues du Problème Alimentaire, Paris, 1924. nutrição regionais. Mas isso só pode ser feito com um mais vivo e ativo interesse por parte dos governos, infelizmente ocupados quase que exclusivamente com os seus problemas políticos... 16. Se as manifestações clínicas, específicas, da desnutrição do Nordeste não são aparentemente das mais alarmantes, o mesmo não se dá com as suas conseqüências indiretas, evidenciáveis através de certos índices bio-estatísticos da região. Índices que se apresentam realmente alarmantes. São de um estudioso de nossos problemas alimentares, C. de Seabra Veloso, estas observações: “Um povo como o nosso, que vive em déficit permanente de carne, peixes, leite, ovos, cereais, frutas e verduras, é um povo fraco, um povo doente, dando uma prole fraca, incapaz e fadada a desaparecer entre a primeira e a segunda infância. O rendimento do seu trabalho é mínimo; a sua média de saúde muito baixa, o que o torna pasto a terríveis moléstias, como a tuberculose, as verminoses, as infecções e por aí afora; a duração de sua vida sempre curta, extinguindo-se entre os 40 e 60 anos; e a sua utilidade para a Pátria quase nula, quando não negativa, uma vez que o cidadão, nas circunstâncias acima, torna-se um ônus, um peso morto, susceptível de obstruir e dificultar o curso normal do progresso.”78 A primeira indicação nítida desta verdadeira hecatombe demográfica nos é dada através do estudo dos índices de mortalidade infantil, índices que, como afirma Newsholme, “constituem o sinal mais sensível do nível de bem-estar social”.79 Esta mortalidade alcança cifras impressionantes no Nordeste açucareiro. Estudando as estatísticas relativas às diferentes capitais dos Estados da União, verifica-se que os três mais altos índices do país se encontram em três cidades do Nordeste: Aracaju — 457; Maceió — 443; e Natal — 352 mortes por 1.000 [pg. 166] nascimentos.80 Índices que só encontram paralelo em unias poucas regiões de extrema miséria de nosso continente, certas áreas da Bolívia e do México, e os territórios de Salta e Jujuy, na República Argentina. É bom que se aluda ao fato comprovado de que o grosso destas crianças morre de perturbações gastro-intestinais, em cuja etiologia participa as mais das vezes o fator dietético tanto através da alimentação imprópria 78 Veloso. Cleto Seabra, Alimentação, 1940. 79 Newholme, The Elemento of Vital Statistics, 1924. 80 Costa, Oswaldo Lopes da, Bioestatística nas Capitais Brasileiras. como contaminada. Outro índice vital de íntima ligação com o tipo de dieta da coletividade e que reflete em expressão numérica o estado de nutrição do grupo é o da mortalidade pela tuberculose. Já Escudero81 afirmava há anos que a tuberculose é uma doença da nutrição e os modernos estudos de tisiologia confirmam haver uma correlação bem significativa entre desnutrição e tuberculização.82 Analisando os índices de mortalidade pela tuberculose no Brasil, verifica-se que as capitais dos estados do Nordeste figuram três vezes entre os seis índices mais altos do país. São estas cidades, todas situadas na região da mata nordestina: Salvador, Fortaleza e Recife, com os índices respectivos de 345, 302 e 359 por 100.000 habitantes. Índices que estão acima da média brasileira de 250 por 100.000 habitantes e incrivelmente acima do índice de Nova Iorque, que é de 47 por 100.000. Nos mapas sobre a incidência da tuberculose no Brasil, verifica-se que a zona da mata nordestina apresenta-se na sua quase totalidade como uma área de incidência forte da peste branca. Incidência que alcança, nas áreas da mata da Paraíba e de Pernambuco, um grau extremo. Já na zona do sertão esta incidência se mostra fraca ou moderada. A alta mortalidade global e a verificação de que mais de 50% dos óbitos nesta área se verificam antes dos 30 anos de idade, vem completar o quadro sombrio da evolução demográfica do Nordeste. A análise direta da marcha destas populações nordestinas deixa entrever o tremendo estrago do seu material humano, inaproveitado pelas más condições de higiene locais, principalmente as más condições de nutrição. [pg. 167] Em magistrais estudos demográficos levados a efeito no Laboratório de Estatística sob a direção do Prof. Giorgio Mortara ficou demonstrado que, no período de 60 anos decorridos de 1890 a 1950, o crescimento demográfico do Nordeste foi inferior ao das regiões do Norte, do Centro e do Sul do país, apesar dos seus altos índices de natalidade.83 É que aí nasce muita gente, mas morre cedo quase tudo e quase sempre de fome. Desta fome discreta, dissimulada, que destrói surda e continuamente toda a energia vital do nordestino. 81 Escudero. Pedro, Alimentación, Buenos Aires, 1934. 82 Consultar sobre o assunto das correlações entre alimentação e tuberculose o trabalho de I. Leith, “Diet and Tuberculosis”, in Proceedings of the Nutrition Society, vol. III, 1945. 83 Enquanto as populações do Norte cresceram neste período 283%. as do Centro-Oeste 448’% e as do Sul 504 %, o aumento no Nordeste foi apenas de 231%. — Contribuições para o A verdade é que a maior parte das endemias reinantes no Nordeste que ceifam o grosso de vida de suas populações tem na fome um fator etiológico de alta significação. As chamadas doenças de massa se enxertam sobre os quadros de fome como uma decorrência natural. Não foram outras as conclusões a que chegaram os médicos e cientistas reunidos no I Seminário de Desnutrição e Endemias Rurais do Nordeste, reunido em junho de 1958, na cidade de Garanhuns, no Estado de Per-nambuco. Encarando o problema das correlações entre fome e endemias, com toda a objetividade e dentro do quadro da realidade econômico-social do Nordeste, este Seminário apresentou conclusões que merecem um destaque especial, daí a decisão que tomamos de incluí-las neste nosso ensaio. São as seguintes as conclusões deste conclave no que diz respeito à estrutura econômico-social do Nordeste e o problema das endemias reinantes: “1 — A atual situação econômico-social do Nordeste, decorrente de graves erros acumulados durante anos, é a grande responsável pela alimentação deficiente das suas populações, contribuindo para o agravamento das endemias reinantes. 2 — Não é possível a erradicação da grande maioria das endemias sem que a estrutura econômico-social e os hábitos alimentares sejam modificados. [pg. 168] 3 — Os programas assistenciais e de saúde pública, de um modo geral, embora absolutamente imprescindíveis, não têm resultados duradouros nem objetivos sociais a longo prazo se não forem tomadas medidas paralelas que modifiquem a infra-estrutura econômico-social e as condições alimentares das populações. Estudo da Demografia do Nordeste — I.B.G.E. — Conselho Nacional de Estatística — 1955. 4 — O Nordeste necessita integrar-se na economia nacional e carece de medidas de iniciativa, pública e privada, capazes de promover a elevação dos seus níveis econômicos e a melhoria da distribuição da riqueza. 5 — O fenômeno regional das secas, embora grave, não poderá ser invocado, no estado técnico-científico atual, como principal fator do marasmo econômico do Nordeste. 6 — É urgente a elevação dos índices de produtividade no Nordeste para que se possa melhorar os níveis de saúde e dominar a incidência das endemias regionais. 7 — A subcapitalização e o subemprego são obstáculos à exploração racional das riquezas e potencialidades do Nordeste, representando, com a má distribuição da propriedade agrícola, fatores importantes da produção e desestímulo à economia agrária regional. 8 — A monocultura de cana-de-açúcar, na forma em que está estruturada, malgrado as riquezas que gera, contribui intensa e negativamente para o desequilíbrio social e alimentar das populações do Nordeste. 9 — Os projetos e obras de emergência só atendem a situações especiais transitórias e de calamidade, sem se traduzirem em resultados permanentes. [pg. 169] 10 — A indústria e a agricultura no Nordeste não devem ser consideradas atividades antagônicas e necessitam, ambas, de organização técnica e ajuda financeira, para diminuir o custo da produção, criar e desenvolver mercados e permitir o largo emprego dos indivíduos úteis, promovendo assim a fixação do homem nordestino.” Aí está um balanço objetivo do tremendo desgaste que a fome produz no capital humano do Nordeste e algumas sugestões válidas de como seria possível entravar esta ação tão negativa para a expansão econômico-social da região. Todo o capital humano da região que se povoou de início tão depressa, alcançando uma concentração social bem favorável ao desenvolvimento de um bom horizonte de trabalho, estagnou logo a seguir quando a monocultura da cana-de-açúcar iniciou o seu crescimento canceroso, envenenando toda a riqueza da terra, gangrenando toda a sua economia com as toxinas do seu exagerado mercantilismo. 17. Condições de vida mais ou menos idênticas, com um mesmo tipo de regime alimentar defeituoso e as mesmas calamitosas conseqüências apresentadas na área do açúcar, vamos encontrar na área do cacau. Na zona da monocultura do cacau, que se estende do Recôncavo para o sul da Bahia até o Espírito Santo. Esta área é representada por uma estreita faixa de terras de solo autóctone, recoberta de floresta tropical, compreendida entre os terrenos baixos de sedimentação do litoral e a montanha, que nesta região se aproxima muito da costa.84 Esta lingüeta de terra de largura idêntica à da faixa açucareira do Nordeste, se bem que um tanto mais afastada da costa, prolonga pura o sul do país a área alimentar da mandioca. [pg. 170] Embora em suas linhas gerais as condições alimentares sejam as mesmas nas duas áreas, o mecanismo que deu origem à sua estruturação apresenta algumas diferenças e merece referência especial. Infelizmente não dispomos de bastante material informativo acerca das condições de vida na região. Inquéritos alimentares, não nos consta tenha sido realizado algum, nesta zona. O estudo mais completo de que dispomos, sobre o assunto, é sem dúvida o do Prof. Pierre Monbeig,85 realizado em visita local levada a efeito em 1935. Através deste notável estudo de geografia regional verifica-se a preferência da cultura do cacau pelos solos de decomposição local, ricos em potássio, produtos em geral de rochas feldspáticas. As manchas dos cacauais se orientam mais pelos tipos de solo do que pelas cotas de chuvas. Embora se trate de uma área só recentemente cultivada, os processos de cultura aí utilizados são dos mais rudimentares. Os mesmos métodos de queimada — do roçar, derrubar e queimar o mato —, a quase 84 Pierre Dénis. em sua Geographie Universelle. Paris. 1927. traçou o mapa da monocultura do cacau, organizado por Wanderley de Araújo Pinho, com limites que até hoje não têm sofrido alterações sensíveis. Num ensaio de divisão econômica do Estudo da Bahia. Sílvio Fróis de Abreu limita a monocultura cacaueira à chamada zona de baixada da floresta do sul. sendo a floresta alta. montanhosa, utilizada para outros fins. (Sílvio Fróis de Abreu) in Rev. Bras. de Geografia, ano 1, n.° 1, jan. de 1939. 85 Monbeig, Pierre, “Colonisation, Peuplement et Plantation de Cacaos dans le Sud de 1’Etal de Bahia”, Annales de Géographie, jan., 1936. inteira indiferença pela seleção de sementes e por outros detalhes de intensificação do rendimento da planta. Com estes métodos vamos deparar-nos com a mesma devastação da floresta, embora em escala menos intensiva do que na zona açucareira, primeiro porque o cacau é uma cultura recente e não teve tempo ainda de alargar seus tentáculos; segundo, que em certas fazendas se usa o processo do cabrocamento, no qual as árvores grandes são poupadas para ensombrar a cultura do cacau.86 No que diz respeito ao latifundiarismo, o cacau tem a mesma tendência avassalante da cana. Acentua Pierre Monbeig o fato de que tanto os “coronéis”, proprietários de cacauais, como as sociedades estrangeiras, suíças e inglesas, que exploram as indústrias do cacau, são todos açambarcadores de terras, possuidores quase sempre de várias plantações disseminadas na floresta. Trata-se de um tipo de agricultura mercantil, com os seus [pg. 171] donos preocupados exclusivamente com o máximo de lucro, sem e menor interesse em beneficiar a terra ou melhorar as condições de vida locais, e disso temos um documento insofismável no absenteísmo dos “donos do cacau”. A verdade é que são eles negociantes e não agricultores, vivendo sua vida de nababos nas cidades e mesmo na capital da República, à custa das sementes do cacau que continuam funcionando em seus esquemas econômicos como moeda corrente, como no império Asteca, dos tempos de Montezuma. Monbeig refere como exemplo típico deste absenteísmo o caso de um negociante de cacau de Ilhéus, que, possuindo uma fazenda a uma hora de viagem da cidade, passa cinco anos sem visitar as suas terras, de cujas rendas vive regaladamente. Sobre este aspecto de desamor à plantação, de absoluta indiferença pelo futuro da terra, a manocultura do cacau é ainda mais aviltante do que a do açúcar, em cuja área os senhores de engenho sempre se mostraram bem mais interessados pela vida de seus canaviais, pela marcha do trabalho dos seus engenhos. Este regime agrícola monocultor e latifundiário arrasta as populações locais a um nível de vida terrivelmente baixo. Os salários do cacau sempre foram miseráveis, e sempre foram pagos, na maior parte, sob a forma de gêneros alimentícios de segunda classe, os preços duas vezes mais altos do que nas cidades desta zona; o 86 Para conhecimento mais detalhado dos processos de cultura do cacau, consulte-se a obra rica de informes de Gregorio Bondar, A Cultura de Cacau na Bahia, publicação do Instituto do Cacau da Bahia, 1938, além das publicações técnicas do Instituto Agronómico do Leste. charque, a farinha e o feijão vendidos pelos empreiteiros com escandalosas margens de lucro. Tais salários, associados à quase ausência de recursos alimentares próprios da região, desde que o cacau absorve todo o trabalho agrícola,87 conduzem fatalmente as populações da zona a um regime deficitário. Regime de feijão, farinha, charque, café e açúcar. Sem leite, sem verdura, sem frutas, sem carne verde. Regime cujas qualidades e defeitos já conhecemos bem e do qual resulta um nível sanitário baixíssimo nesta área. A miséria física e a miséria moral, estudadas com grande rigor psicológico em três livros de alta significação na literatura [pg. 172] brasileira — Cacau, Terras do Sem Fim e Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado — constituem expressões da condição humana nesta zona, culturalmente das mais atrasadas do país, com complexos sociais mais bárbaros, mais primitivos do que os da área amazônica. Os fatores ligados ao enriquecimento súbito de um grupo de patrões, sem base cultural, simples aventureiros trazidos na onda aluvional das migrações, aproveitadores do boom do cacau, na Primeira Guerra Mundial, deram um colorido ainda mais dramático às conseqüências deste tipo de monocultura. A área do cacau é, sociologicamente, uma área do açúcar despida daqueles arranjos acomodativos que o patriarcalismo criou no Nordeste, daquele sossego aparente da doce vida dos engenhos, deixando-se arrastar, no ímpeto dos seus desenfreados interesses mercantilistas, aos graves extremos da miséria física e moral. É mais uma zona de fome, alimentada pela fictícia riqueza do cacau. [pg. 173] 87 “Com efeito, a monocultura atinge um grau infinitamente mais estrito do que nas regiões cafeeiras. O cacau é um tirano e recusa-se a perder uma polegada de terra arrancada à floresta, para consagrá-la a outras culturas; certos fazendeiros o interditam absolutamente. Não resta senão a mandioca e a produção local está longe de satisfazer ao consumo.” Monbeig, Pierre. op. cit. IV. ÁREA DO SERTÃO DO NORDESTE 1. Com o estudo da Amazônia e do Nordeste açucareiro foram apresentadas duas áreas de fome endêmica no Brasil. Áreas geográficas com populações locais submetidas permanentemente a um regime de subalimentação e de carência, exibindo em várias de suas características a marca desta dura contingência biológica. Já no estudo desta nova área — a do sertão nordestino — vamos encontrar um novo tipo de fome, inteiramente diferente. Não mais a fome atuando de maneira permanente, condicionada pelos hábitos de vida cotidiana, mas apresentando-se episodicamente em surtos epidêmicos. Surtos agudos de fome que surgem com as secas, intercaladas ciclicamente com os períodos de relativa abundância que caracterizam a vida do sertanejo nas épocas de normalidade. As epidemias de fome destas quadras calamitosas não se limitam, no entanto, aos aspectos discretos e toleráveis das fomes parciais, das carências específicas, encontradas nas outras áreas até agora estudadas. São epidemias de fome global quantitativa e qualitativa, alcançando com incrível violência os limites extremos da desnutrição e da inanição aguda e atingindo indistintamente a todos, ricos e pobres, fazendeiros abastados e trabalhadores do eito, homens, mulheres e crianças, todos açoitados de maneira impiedosa pelo terrível flagelo das secas. A chamada área do sertão do Nordeste se estende desde as proximidades da margem direita do Rio Parnaíba, no seu extremo norte, até o Rio Itapicuru, no seu extremo sul, abrangendo as terras centrais dos Estados do Piauí, Ceará, Rio [pg. 175] Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, numa extensão territorial de cerca de 670.000 quilômetros quadrados, segundo os cálculos dos técnicos da Inspetoria de Obras Contra as Secas.1 Nesta extensa zona semi-árida que constitui a hoje chamada área do polígono das secas, vivem cerca de sete milhões de habitantes, num regime que tem como alimento básico o milho. É esta zona das secas uma área alimentar do milho. Do milho associado a outros produtos regionais, em combinação as mais das vezes felizes, permitindo que, fora das quadras dolorosas das secas, viva esta gente em perfeito equilíbrio alimentar, num estado de nutrição bastante satisfatório, e que nas épocas de calamidade possua energia e vigor suficientes para sobreviver ao flagelo, evitando o despovoamento da região. Constitui a área do sertão do Nordeste um caso excepcional entre as diversas zonas de alimentação à base do milho, no mundo, todas elas áreas de fome, de graves deficiências alimentares, tais como a da América Central,2 com suas alar-mantes carências de toda categoria, a do Sul dos Estados Unidos da América, com suas populações negras assoladas pela pelagra, as da Itália e da Romênia, grandes focos pelagrosos condicionados pela alimentação maídica. Verifica-se, assim, que, no mundo inteiro, as áreas do milho são áreas de miséria alimentar, à exceção do sertão nordestino. E que, nesta área, a coexistência de certas condições naturais e, principalmente, o gênero de vida local, com seus hábitos tradicionais, criaram na zona um complexo alimentar em que as graves deficiências protéicas e vitamínicas do milho são compensadas por outros componentes habituais da dieta. Dieta que, como teremos ocasião de demonstrar mais adiante, é talvez a mais racional e equilibrada do país, incluindo as zonas isentas de fome. Se o sertão do Nordeste não estivesse exposto à fatalidade climática das secas, talvez não figurasse entre as áreas de fome [pg. 176] do continente americano. Infelizmente, as secas periódicas, desorganizando por completo a economia primária da região, extinguindo as fontes naturais de vida, crestando as pastagens, dizimando o gado e arrasando as lavouras, reduzem o sertão a uma paisagem desértica, com seus habitantes sempre desprovidos de reservas, morrendo à míngua de água e de alimentos. Morrendo de fome aguda ou escapando esfomeados, aos magotes, para 1 Serão feitas neste ensaio muitas referências à Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, caracterizada por suas iniciais I. F. O. C. S. Este serviço público hoje se chama Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, mas a bibliografia utilizada se refere em sua maioria ao período anterior a esta mudança de nome, e por isso manteremos a antiga designação. 2 Quintana, Epaminondas, “El Problema Dietético del Caribe”, in América Indígena, vol. II, n.° outras zonas, fugindo atemorizados à morte que os dizimaria de vez na terra devastada. 2. O característico fundamental desta extensa área geográfica é o seu clima semi-árido. Clima tropical, seco, com chuvas escassas e principalmente irregulares. Com uma temperatura média elevada o ano inteiro, associada a baixos graus de umidade relativa do ar, dos mais baixos do país, tornando o clima saudável, isento de inúmeras doenças tropicais, condicionadas pelo excesso de umidade do solo e do ar. Já Rippley3 tinha notado há muitos anos que nos trópicos, onde há água em abundância e a vegetação é frondosa, o clima se apresenta mortífero, e onde a água é escassa e a vegetação exígua, o clima é salubre. São as chuvas incertas, com um regime pluviométrico de uma irregularidade espetacular, que tornam o clima nordestino um fator de degradação da vida do homem nesta região.4 Desta irregularidade das chuvas resultam desde o empobrecimento progressivo do solo pela erosão até as crises calamitosas de fome na região. Toda a paisagem natural, desde a topografia, as características do solo, a fisionomia vegetal, a fauna, a economia e a vida social da região, tudo traz marcado, com uma nitidez inconfundível, a influência da falta dágua, da inconstância da água nesta região semidesértica. O solo arenoso, pouco espesso, quase sempre pobre em elementos nutritivos e rico em seixos [pg. 177] rolados, é um produto dos extremos climáticos, dos largos períodos de exagerada insolação e dos aguaceiros intempestivos, desagregando as rochas areníticas e acelerando todos os processos de demolição que nelas se realizam. Os terrenos desnudados em certos trechos, quase sem nenhuma carne de solo arável recobrindo o esqueleto das rochas vivas, que irrompem aqui e acolá em brancos serrotes escarpados, são exemplos desta terrível capacidade agrofágica do clima: capacidade de roer as terras do sertão nordestino deixando expostos os núcleos mais duros do seu esqueleto de granito e de calcário. Também os sulcos marcantes que imprimem à fisionomia geográfica do Nordeste 11, abril, 1942. 3 Rippley, Races of Europe. 4 A aridez vem atuando sobre o facies regional desde remotos períodos geológicos:. “Branner supõe que a causa da extinção dos grandes mamíferos pleistocênicos foi uma longa estiagem que fez secar todos os mananciais do Nordeste. A base de tal hipótese é o encontro das grandes ossadas sempre junto aos caldeirões que decerto foram os últimos depósitos de água de que dispuseram estes animais.” Abreu, Sílvio Fróis, Nordeste do Brasil, 1929. uma expressão de desolador sofrimento, sejam os superficiais como os córregos secos, sejam os profundos que descem pelas rampas das ravinas para a peneplanície, os enormes boqueirões, abrindo na terra “largas brechas escancaradas pelas torrentes erosivas”,5 são marcas indeléveis desta irregularidade climática da região. Mas não é só deste tipo de solo de decomposição do arenito, descrito por Gilberto Freyre como um solo de terra dura e de areia seca num rangir de raiva permanente, “que parece repelir a bota do europeu e o pé do africano, a pata do boi e o casco do cavalo, a mangueira da Índia e o broto de cana”,6 para mostrar bem o seu contraste com o massapê acomodatício, mole e pegajoso, do Nordeste do açúcar — não é só desse tipo, dizíamos, que é formada toda a capa agrológica da região. Em certos pontos, principalmente nas depressões e nos baixios, surgem manchas bem mais férteis de solos argilosos, mais ou menos vermelhos, ou mesmo de barro escuro, formando os tabuleiros aluvionais e as várzeas de tabuleiros.7 Nestes [pg. 178] pontos, não só a composição mas as qualidades físico-químicas do solo são bem diferentes, tornando-os umíferos e férteis. São, porém, pequenas manchas limitadas. 3. No solo do sertão, em geral pouco espesso, erodido periodicamente pelas torrentes esporádicas e condicionado por este clima com suas eventuais descontinuidade de chuvas, desenvolvem-se tipos de vegetação que permitem aos geógrafos a caracterização de três subáreas climato-botânicas: o agreste, a caatinga e o alto sertão. O agreste constitui uma faixa de transição entre o Nordeste semi-árido e espinhento e o outro Nordeste úmido e verdejante dos canaviais. Há sempre na paisagem desta subárea a presença da água. Rios que não chegam a secar 5 Almeida, José Américo de, A Paraíba e Seus Problemas, 2.a edição, 1937. Ver também sobre o assunto Euclides da Cunha. Contrastes e Confrontos. Sobre maiores detalhes, tanto acerca dos aspectos geológicos como topográficos da região, sobre os quais não nos podemos es-tender neste nosso ensaio especializado, consulte-se, além das obras clássicas de Agassiz e de Candrall, o livro de Luciano de Moraes, Serras e Montanhas do Nordeste. 2 volumes, Inspetoria de Obras Contra as Secas. 1924. 6 Freyre. Gilberto, Nordeste. 1937. 7 Sobre o solo do Nordeste consulte-se o trabalho de A. da Silva Teixeira, “Contribuição ao Estudo do Solo Pernambucano”, publicado nos Arquivos do Instituto de Pesquisas Agronômicas de Pernambuco, n.° 1, março, 1938. E também os trabalhos agrológicos empreendidos pela lnspetoria de Obras Contra as Secas e publicados em seu Boletim, principalmente os da autoria dos agrônomos José Ferreira de Castro e Walter Motta, e “Solos e inteiramente no verão, mantendo sempre um magro filete de água ou empoçados a distância. A vegetação se organiza sob a forma de florestas espinhentas — scrubforests —, prolongando no solo semi-árido do sertão a mata da região úmida. Já a caatinga e o reino das cactáceas. No solo ríspido e seco estouram as coroas-de-frade e os mandacarus eriçados de espinhos. As árvores acocoradas em arbustos e as formações herbáceas completam a paisagem adusta da caatinga. É a zona de maior aridez do Nordeste, com seus rios reduzidos nas épocas secas às faixas de areia, leitos ardentes inteiramente expostos ao sol. No alto sertão, o clima se ameniza levemente, a vegetação, do tipo de savana, se enfeita, em certas zonas, com as fitas verdes dos carnaubais, enlaçando os vales férteis da região. Rareiam um pouco as espécies espinhentas e as secas são menos impiedosas. Verifica-se, assim, que a caatinga e o verdadeiro coração do deserto. Aí se localizam os principais centros de aridez da região. Aí se apresenta a vegetação no máximo de sua agressividade e no máximo de sua convergente adaptação ao rigor climático, à extrema secura ambiente. O agreste e o alto sertão são formas atenuadas da caatinga.8 [pg. 179] Embora nas características de seu revestimento vivo, e mesmo em certos aspectos de sua geografia econômica, cada uma destas subáreas apresente traços que lhe dão individualidade e impõem, num estudo de geografia humana, uma análise particularizada, para o nosso objetivo, de um ensaio de geografia alimentar da região, é perfeitamente dispensável a caracterização detalhada de cada uma delas, desde que em todo o regime alimentar mantém a mesma unidade de hábitos e de composição, com pequenas nuances locais, variações de amplitudes semelhantes às de quaisquer outras áreas alimentares de certa extensão. Sob o ponto de vista alimentar, podemos englobar as três subáreas numa só: na área do milho do sertão nordestino. A flora de toda a região é do tipo xerófito, adaptada aos rigores da secura Água no Polígono das Secas”, de J. Guimarães Duque. 8 Veja-se sobre os centros de aridez e a distribuição geográfica da seca no Nordeste o interessante trabalho de Friedrich Freise — “The Drought Region of Northeastern Brazil”, publicado na Geog. Review, de julho de 1938. e contendo um instrutivo mapa das secas, chamado pelo autor de mapa da calamidade — calamity map. Sobre a caracterização bem detalhada das diferentes subáreas do Nordeste, encontra-se um material de primeira ordem na magistral obra de José Américo de Almeida — A Paraíba e Seus Problemas, publicada pela primeira vez em 1933 e reeditada em 1937 com um prefácio de nossa autoria, no qual ressaltamos a sua significação cultural: marcou uma época nos estudos da geografia regional do Brasil. ambiente: à falta dágua no solo e do vapor dágua na atmosfera. As espécies arbóreas reduzem seu porte, se arbustizam em posturas nanicas para sobreviver. O frondoso cajueiro da praia — Anacardium occidentale — na caatinga adusta se inferioriza em arbusto, o cajuí do sertão — Anacardium humilis —, em cajueiro anão das chapadas arenosas. As folhas se reduzem ao mínimo para evitar a evaporação, os caules se impermeabilizam, as raízes se espalham em todas as direções para sugar a umidade escassa. Todos os órgãos da planta se apresentam nesta luta incessante contra a falta dágua. As espécies que sobrevivem o fazem, ou à custa de uma economia rigorosa em seus gastos, ou à custa da formação de reservas aquosas nos bulbos, raízes e caules. Entre as famílias que compõem a flora xerófita destacam-se as cactáceas, tais como as palmatórias, as mandacarus, os xique-xiques e os facheiros. Plantas dum valor inestimável na época das secas, ajudando a gente e o gado a escapar aos seus rigores mortíferos. Ao lado das ríspidas cactáceas, dando cor e característica [pg. 180] à flora do sertão, estão as resistentes bromeliáceas — as suas macambiras, cróias e croatais, exibindo as lâminas recurvas e afiadas de suas folhas em sabre. Pertencem as cactáceas e as bromeliáceas a uma categoria especial de plantas, chamadas por Saint-Hilaire de fontes vegetais e por Bernardin de Saint-Pierre de mananciais vegetais do deserto. Euclides da Cunha, em certos arroubos de imaginação poética, exagera a abundância e prestimosidade dessas plantas, para indignação de outros estudiosos mais comedidos, mais fiéis à realidade científica e menos amantes dos exageros poéticos em suas expressões geográficas. Assim, sobre certas bromeliáceas escreveu Euclides: “As águas que fogem no volver selvagem das torrentes, ou entre as camadas inclinadas dos xistos, ficam retidas, longo tempo, nas espatas das bromélias, aviventando-as. No pino dos verões, um pé de macambira é para o matuto sequioso um copo de água cristalina e pura.”9 Sobre o umbuzeiro, anacardiácea que é também uma fonte vegetal, escreve o estilista de Os Sertões: “... se não existisse o umbuzeiro, aquele trato do sertão tão estéril que até nele escasseiam os carnaubais, tão providencialmente dispersos nos que o convizinham até do Ceará, estaria despovoado. O umbu é para o infeliz matuto o mesmo que o 9 Cunha, Euclides da. Os Sertões. 1902. mauritia para os garaúnos dos lhanos. Alimenta-o e mitiga-lhe a sede.” São certamente um tanto excessivas tais palavras e só podem ser justificadas pelo mecanismo de inconsciente deformação que o espírito provoca diante do aparecimento inesperado de uma solução milagrosa para a angústia da sede. A mentalidade coletiva exagera o fato e ele ganha foros de verdade, transmitindo-se de uns a outros. É o mesmo mecanismo que explica que um geógrafo do valor e da honestidade científica de um E. F. Gauthier afirme ter sido inteiramente extinto o Antilope andax, do Saara argelino, pelo furor com que os nômades, chefes das caravanas, o caçavam, para buscar nas suas entranhas, no seu estômago multiseptado, as reservas abundantes de água com que aplacavam a sede nas largas travessias entre os distantes oásis saarianos. O Adax, fonte animal de água, seria assim no Saara uma salvação providencial semelhante às cactáceas, no Nordeste do Brasil. [pg. 181] José Luiz de Castro, autor de um bom trabalho de sistematização — “Contribuição para o dicionário da flora do Nordeste brasileiro”, publicação da I.F.O.C.S. —, comenta com indignação os exageros euclidianos, que comprometeram até certo ponto o valor científico de muitas das afirmações do grande sociólogo: “Tão verídicas quanto estas afirmações de Euclides da Cunha só esta outra do mesmo autor: “...nestas quadras cruéis em que as soalheiras se agravam às vezes com os incêndios espontaneamente acesos com as ventanias atritando rijamente os galhos secos destonados...” O único comentário que seria permitido a tais absurdos é ainda Euclides da Cunha que no-lo sugere naquela frase “... o poeta é soberano no pequeno reino em que o entroniza a sua fantasia”, frase em que o geólogo americano I. C. Branner sintetiza a crítica que, como conhecedor do Amazonas, pudera ter feito aos escritos de Euclides sobre o grande estado nacional.” A verdade é que Euclides foi antes de tudo um grande poeta. São de Afrânio Peixoto as seguintes palavras: “.... ainda um Euclides, o que está em todos os outros e não isoladamente em nenhum — o poeta —... esse Euclides que sugere a gênese é um poeta miguelangesco transpondo o juízo final em nascimento da terra...” Sobre o poeta da obra euclidiana, sobre o poeta que se oculta nas páginas de Os Sertões, escreveu outro poeta, Guilherme de Almeida: “O poeta de Os Sertões, o artista da poesia pura, não intencional, não resolvida, não premeditada, mas imposta ao homem por uma insuspeita consciência lírica do universo, por esta imprevista substância poética que há, nos seres e nas coisas e que, imperativa, reclama urgente expressão.” E não foi só Euclides — geógrafo e poeta — quem se deixou levar por este exagero de ver rios correndo e fontes brotando de plantas milagrosas que criam oásis vivos no deserto adusto. Um dos mais fiéis documentadores da natureza brasileira, o Padre Fernão Cardim, cujas sóbrias qualidades de escritor fizeram com que as suas descrições de plantas e animais da terra fossem na opinião abalizada de Rodolfo Garcia, “perfeitas e acabadas como diagnosis de naturalista”,10 também caiu no mesmo pecado. Descrevendo outra árvore que dá água nos sertões nordestinos, [pg. 182] assim escreveu Cardim, em Clima e Terra do Brasil: “...esta árvore se dá em campos e sertão da Bahia, em lugares onde não há água; he muito grande e larga nos ramos, tem huns buracos de comprimento de hum braço que estão cheios de água que não tresborda nem no inverno nem no verão, nem se sabe donde vem esta água, e quer dela bebam muitos quer poucos, sempre está em o mesmo ser, e assim serve não somente de fonte mas ainda de um grande rio caudal, e acontece chegarem 100 almas ao pé delia e todos ficam agasalhados, bebem e levam tudo o que querem e nunca falta agua; he muito gostosa e clara e grande remedia para os que vão ao sertão quando não acham outra.” Esta árvore a que se refere Cardim seria, segundo opina R. Garcia, em notas à obra do grande cronista, a Geoffroya spinosa, conhecida entre os nativos pelo nome de umari, que significa árvore que verte água, da qual transuda água em certos períodos do ano capaz de molhar o solo; “mas daí a árvore fonte ou árvore rio que se descreve, vai mais prodígio do que verdade”, conclui o anotador da obra de Cardim. Pela descrição feita, temos a impressão de que, descontado o exagero, a árvore a que se refere o padre é o umbuzeiro, do qual nos deixou Von Martius, com todo o seu comedimento de cientista germânico, a seguinte descrição: “o exemplo do que acabamos de dizer nota-se no umbuzeiro — Spondias tuberosa — cujas raízes horizontalmente distendidas, intumescidas perto da superfície da terra, formam tubérculos nodosos e cheios de água desde o tamanho de um punho até ao de uma cabeça de criança. Algumas vezes abrimos estes esquisi-tos reservatórios a fim de procurar água para os sedentos animais de carga e por 10 Rodolfo Garcia, na introdução à edição de 1939 dos Tratados de Terra e Gente do Brasil, de vezes encontramos mais de meio litro de líquido em uma só raiz. A água é às vezes clara, às vezes um pouco opalescente, se bem que morna e de gosto resinobalsâmico desagradável, algum tanto amarga, é, entretanto, potável.”11 Procurando avaliar com precisão a riqueza aquosa das raízes do umbuzeiros, fizemos vir do Nordeste, por gentileza do nosso colega e colaborador Orlando Parahim, algumas raízes da planta e as análises em nossos laboratórios revelaram um teor médio de água de 95%. Verifica-se assim que, se nos casos dos incêndios [pg. 183] espontâneos de galhos secos. Euclides é de um exagero comprometedor, no caso do umbuzeiro dando água a populações inteiras, o exagero é relativo; é apenas a verdade colorida pelo estilo um tanto empolado do autor. Nas zonas de solo mais espesso e menos árido surgem, ao lado das cactáceas, as leguminosas como as juremas e os angicos, as bignomináceas e as anacardiáceas. Não depressões úmidas, nas vargens viçosas crescem certas espécies de grande porte, como o juazeiro — Zizifus juazeiro — e o umbuzeiro — Spondias tuberosa —, que se levantam frondosos e altaneiros no meio da paisagem acachapada da savana adusta. São os correspondentes na caatinga brasileira dos baobabs e das acácias da savana africana.12 Recobre o solo, nas épocas que se seguem às chuvas, o manto, em certas zonas contínuo e espesso, noutras um tanto ralo e esfarrapado, dos pastos naturais. É a babugem, formada pela associação de várias plantas, principalmente gramíneas, de ciclo vegetativo extremamente rápido, nascendo, crescendo e dando flor e semente num abrir e fechar de olhos. É esta vegetação rasteira que dá ao fenômeno da ressurreição da natureza nordestina após as chuvas um signo de transformação sobrenatural, mudando a cor de toda a paisagem em alguns dias, assustando o viajante que um dia atravessou o deserto e poucos dias depois, voltando pelo mesmo caminho, se embevece em meio à verdura. A babugem é uma vegetação semelhante ao acheb saariano. Vegetação das regiões estepárias do Norte da África que Gauthier assim descreve: “o acheb não é uma planta determinada, é uma categoria de vegetais que possuem sua tática própria de luta contra a seca. Vegetais que sobrevivem por Fernão Cardim. 11 Von Spix e Von Martius. Através da Bahia, tradução e notas de Pirajá da Silva e Paulo Wolf. 1938. 12 Mota, Mauro, Paisagem das Secas, 1958. 184 suas sementes cuja resistência à seca é de duração quase infinita. Quando cai a chuva o grão de acheb a utiliza com energia admirável. Em poucos dias ele germina, lança sua haste, cobre-se de flores e lança suas sementes. Ele sabe que não tem tempo a perder, está organizado para tirar todo partido da dádiva excepcional. Mas sua semente carregada pelo vento e recoberta pela areia, guardada nas anfractuosidades da rocha esperará, se for preciso, dez anos por novas chuvas. São vegetais que sacrificam tudo pela reprodução, são verdadeiros buquês de flores. Este é o [pg. 184] pasto que dá pena ver-se deglutido pela garganta imunda dos camelos.”13 A babugem do Nordeste é uma espécie de acheb, por conta do qual correm “as mutações de apoteose da paisagem”, na linguagem sempre intensamente colorida de Euclides da Cunha. Tais são, em síntese rápida, as características da flora sertaneja na peneplanície cristalina e nos chapadões de pouca altitude. Nas montanhas mais altas, a maior pluviosidade e principalmente a estrutura diferente do solo dão origem a uma vegetação de aspecto mais doce, com tons do verde mais úmido e carregado. Vegetação higrófila, semelhante à das zonas do brejo.14 Nestas áreas, onde a altitude subverte o quadro climato-botânico da região, alteiam-se em capões outras espécies arbóreas, algumas delas frutíferas, como a mangaba (Ancornia speciosa), o araçá (Psidium araçá), o cambuí (Myrcia sphacrocarpa), espécie de uva silvestre, constituindo verdadeiros oásis de alta significação na vida econômico-social do sertão semideserto. São os oásis de verdura dos flancos das serras do Araripe, de Baturité, da Borborema, algumas delas com plantas européias bem aclimatadas na zona: uvas. pêssegos e melões produzindo frutas de clima temperado em plena área tropical. Não exagerando a importância destes pequenos oásis, devemos concluir que a flora do sertão é bastante pobre em espécies que forneçam bons alimentos. Está longe de possuir uma riqueza tão espetacular em frutas como a do outro Nordeste, o Nordeste da mata tropical. Afora o umbuzeiro e o piquizeiro — sobre os quais 13 Gaulhier. F. F. Le Sahara. Paris. 1928. 14 A flora nordestina tem sido estudada minuciosamente por espe-cialistas probos e consumados. Para seu conhecimento mais aprofundado consultem-se, entre outras, a obra de Philipp von Luetzelburg — Estudo botânico do Nordeste, publicação n.º 57 da I.F.O.C.S.. e a de Alberto Loetgren. Notas Botânica, publicação n.º 2 da mesma Inspetoria. voltaremos a falar com mais vagar — as plantas nativas do sertão produzem frutos de segunda classe, nos tempos normais quase não despertam interesse ao apetite do sertanejo. As quixabas, os juás, os frutos dos cactos, dos xiquexiques, dos cordeiros, quase só são aproveitados nas terríveis épocas de seca, quando se come de tudo, tudo quanto é alimento brabo, sementes venenosas, cascas de árvores e até solado de alpercatas. As próprias palmeiras estão longe de apresentar uma riqueza nutritiva [pg. 185] semelhante às da bacia amazônica. A carnaubeira — Copernicia cerífera —, que constitui a espécie de palmácea mais abundante no alto sertão, fornece tudo em abundância, menos alimento ao homem. Só nos maus tempos a medula da planta nova, o palmito, é usado como recurso alimentar. É verdade que, conforme refere Euclides da Cunha, “com estrépitos da palmeira oricuri (Cocus mucronata), ralados e cozinhados prepara-se nas épocas secas uma espécie de pão, infelizmente de má qualidade, “pão sinistro”, “o bró”, que incha o ventre num enfarte ilusório, empazinando o faminto”.15 4. Também a fauna do sertão fornece poucos recursos alimentares. Os rios e os próprios açudes, hoje bastante disseminados na região, têm as suas águas bem mais pobres em peixes do que as da zona da mata.16 É que a evaporação violenta neste clima abrasador e a irregularidade das chuvas, fazendo variar com certa rapidez e em graus extremos a salinidade das águas, torna-as pouco propícias à vida das espécies aquáticas.17 Só os rios perenes como o S. Francisco mantêm apreciável riqueza piscícola em suas águas. A fauna terrestre está também longe de fornecer grande auxílio alimentar. Se não possui carnívoros de grande porte, que ponham em perigo 15 Cunha, Euclides da, op. cit. 16 No serviço de catalogação das espécies de peixes existentes no Nordeste verificou a Comissão Técnica de Piscicultura a sua acentuada pobreza, florescendo “apenas os espécimes que podem sobrepor à austeridade do ambiente os seus recursos naturais de defesa. Nem por isso o aspecto zoogeográfico dessa extensa zona adquire peculiaridades próprias com o aparecimento de espécies tipicamente regionais” — Realizações da Comissão Técnica de Piscicultura, separata da I.F.O.C.S.. 2.° semestre, 1940. Têm tentado esta Comissão, com algum resultado, desenvolver a criação de peixes nos açudes públicos do Nordeste, os quais representam, em conjunto, uma capacidade de cerca de dois bilhões de melros cúbicos, principalmente com a aclimatação de espécies estranhas ã região e indicadas para a cultura intensiva. 17 Sobre as variações estacionais das condições físico-químicas das águas desta região consulte-se o trabalho do Dr. Stillman Wright. “Da Física e da Química das Águas do Nordeste do Brasil”, separata do Boletim da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, 1938. e “In-trodução ao Estudo da Limnologia”, de Herman Kleerekoper (pp. 218-229), Serviço de Informação Agrícola, 1944. a vida humana na região, possui, no entanto, alguns animais de rapina, como as raposas, gaviões e caracarás, que disputam ao homem alguns dos [pg. 186] recursos mais importantes da fauna comestível desta zona. Não só da selvagem, mas também da doméstica, das suas criações de galinhas, cabras e ovelhas. As aves são relativamente numerosas, principalmente os psitacídeos — periquitos, jandaias e papagaios — e certos tipos de pombas, das quais devemos destacar, por seu valor econômico, as aves de arribação, que viajam em enormes bandos em migrações periódicas, fornecendo ao sertanejo, em certas quadras, valioso subsídio alimentar. A riqueza em aves desta região de poucos recursos alimentares se explica por esta capacidade migratória de todas elas, capacidade que se desenvolveu como um fenômeno de convergência permitindo a sua adaptação num meio de exigüidade alimentar através da intensiva mobilidade do animal. Este fenômeno de convergência se manifesta em outras espécies da fauna sertaneja, todas dispondo de uma grande acuidade dos sentidos que lhes permite sobreviverem neste meio em que a luta animal pelo alimento é tão intensa. O biologista italiano Edoardo Zavattari,18 estudando os mamíferos das zonas áridas e semi-áridas do Saara, verificou que das 48 espécies aí existentes 41 delas apresentavam uma singular hipertrofia da sua caixa timpânica, a qual servia para reforçar a sua audição, para lhes permitir ouvir a grandes distâncias os ruídos dos inimigos ou das presas que lhes podem servir de alimento. Este singular fenômeno de convergência que se apresenta extremado no deserto do Saara exprime bem esta força condicionadora do meio ambiente à fisiologia dos seres vivos que o habitam. Importante elemento da fauna para a alimentação do sertanejo e que merece um destaque especial e a abelha, cujo mel substitui muitas vezes o açúcar e a rapadura no tempero dos alimentos. Café com mel de abelha é uma combinação de largo uso nos períodos de seca do Nordeste. Esta abundância do abelhas numa terra de vegetação tão escassa parece também um tanto absurda e merece a sua explicação. Explicação que se encontra facilmente quando se estuda um aspecto particular da flora xerófila do Nordeste: as 18 Zavattari, Edoardo — “Un Problema di Biologia Saariana: l’Iper-trofia delle Bulle Timpaniche del Mammiferi”. extraído das Arti della Accademia Gioenia di Scienze Nuturali in Catania, série 6, Vol. III. 1938. suas [pg. 187] flores. Esta flora, como a de qualquer outro tipo desértico, tem uma extraordinária riqueza de flores, quase todas brilhantes e indiscretamente vistosas. Estas grandes flores atrativas e exuberantes representam também um processo de adaptação ao clima desértico numa área de vegetação esparsa, funcionando como um elemento de garantia dos processos de fecundação que são realizados pelos insetos. Só as plantas que possuem flores berrantes atraem com suficiente freqüência os insetos fecundadores e sobrevivem por esta razão nesta área de forte concorrência vital, daí a sobrevivência dos cactos que exibem, em certa época do ano, nas extremidades dos seus galhos retorcidos, enormes flores intensamente coloridas, lembrando enormes candelabros acesos em torno dos quais zumbem as abelhas e outras espécies de insetos. Os gatos do mato, capivaras, tamanduás, tatus, coelhos do mato, preás e mocós completam, com os micos e as serpentes, a fauna desta região de fisionomia tão singular. 5. Diante destas parcas reservas e das condições pouco atrativas da paisagem, que possibilidades viram nesta região os seus primeiros desbravadores? Foi o espírito de aventura, o instinto de liberdade, de que nos fala Capistrano de Abreu, e a ambição do ouro e das pedras preciosas que levaram os primeiros aventureiros a terras tão distantes do litoral. Verificada, porém, a inexistência das minas no sertão nordestino e a pouca serventia das suas terras para uma agricultura de grande rendimento, como se praticava na zona da mata, cedo se desviou a atividade do colono sertanejo para a pecuária. Para a criação do gado vindo de Portugal ou do Arquipélago do Cabo Verde, o qual se aclimatava muito bem neste ar seco e saudável e se desenvolvia maravilhosamente nas suas pastagens naturais, formadas de variadas espécies de gramíneas. Loreto Couto, nos Desagravos do Brasil, assim nos informava: “Treze gêneros se contam de erva que servem de pasto aos animais, por cuja bondade é em Pernambuco tão grande a cota de gado vacum e cavalar, que destes consumindo-se infinitos nos serviços destas Capitanias, saem para fora todos os anos mais de 40.000, são ligeiros na carreira, dóceis ao ensino e tão fortes no trabalho que saindo de Pernambuco para as Minas Gerais com a carga de 6 arrobas andam 600 léguas desferrados [pg. 188] e chegam sem diminuição nos alentos.” Vê-se, assim, que as condições propícias à criação desenvolveram no Nordeste as fazendas, não só de gado vacum, mas de cavalos e mulas que constituíam o meio de transporte único através da selva inóspita. Entrando por Pernambuco, o gado se espalhou em currais pelo sertão do Nordeste, fazendo-se as entradas pelas estradas naturais dos rios, principalmente através do S. Francisco, a grande artéria viva do ciclo econômico do couro no Nordeste.19 O grande mercado de bois em que cedo se constituiu a zona da mata, tão necessitada de sua força de tração para os trabalhos dos engenhos e, bem assim, de sua carne apetitosa para alimentação de população cada vez mais densa e mais absorvida no exclusivo trabalho do açúcar, foi um dos motivos impulsionadores da pecuária no alto sertão. Outro impulso decisivo lhe foi dado a seguir pelo surto de mineração nos estados centrais. Vinham do Nordeste pelos caminhos dos currais os bois que deviam alimentar as populações repentinamente concentradas nos campos de mineração do Sul. Nestas zonas de mineração faltava tudo e importava-se de outras áreas os recursos alimentares de toda ordem. “A não ser o porco, que vive intimamente ligado à cozinha ou à couve que cresce abandonada no quintal atrás da casa, compra-se fora tudo o que é necessário à economia doméstica. A família mineira não vive na fartura. Os comerciantes a exploram vendendo gêneros n preços exorbitantes e o senhor da lavra, absorvido inteiramente pelas minerações, imaginando que o ouro dá de sobra para tudo, submete-se às exigências dos mascates” — assim nos informa Miran Latif, em As Minas Gerais. Completando este quadro da falta de recursos alimentares nas zonas mineradoras, escreve Paulo Prado: “Nos primeiros tempos das descobertas um boi chegou a valer 100 oitavas de ouro em pó, um alqueire de farinha, 40. A situação só melhorou quando chegaram as boiadas de Curitiba e ao Rio das Velhas o rebanho dos campos [pg. 189] baianos” (Retraio do Brasil, 1928). Tal miséria alimentar, com preços tão exorbitantes dos alimentos na zona de mineração documenta mais uma vez as graves conseqüências a que foram arrastadas as coletividades brasileiras pelas diferentes formas de 19 Sobre a pecuária nos sertões do Nordeste consultem-se, entre outras, as obras de Capistrano de Abreu — Capítulos de História Colonial — e os dois estudos de Nelson Werneck Sodré. Formação da Sociedade Brasileira e O Oeste. Consulte-se também o capítulo 7.° da exploração econômica que sucessivamente foram estabelecidas no país, todas elas indiferentes ao amparo e ao desenvolvimento sistemático dos cultivos de subsistência. Como no drama da Califórnia, o pioneiro Suter,20 possuidor de riquíssimas terras, cobertas de lavoura e de cabeças de gado, se arruinara por com-pleto ao encontrar nos seus domínios riquíssima mina de ouro, também no Brasil o ouro empobrecia o país e “morria-se de inanição ao lado de montes de ouro pelo abandono da cultura e da criação”. Com dois mercados — o Nordeste açucareiro e o Sul minerador — a disputarem com avidez o seu produto, o sertão nordestino prosperou à custa dos étimos preços encontrados para o gado. E não foi só para o gado vacum a que se mostrou tão propício o meio ambiente, mas também, e principalmente, para o gado caprino, mais resistente aos assaltos da seca e muito menos exigente de bons pastos, se acomodando a qualquer vegetação de serrotes e de lajedos, formada de duras gramíneas, ou mesmo à vegetação arbórea e arbustiva, da qual ele come as cascas e os caules ou as folhas. Esta a razão que fez do Nordeste o grande centro de criação de cabras, concentrando-se nos Estados de Pernambuco e da Bahia mais de 50% dos rebanhos caprinos de todo o país.21 De tal forma as cabras se desenvolveram e se integraram no quadro ecológico da região que vêm contribuindo como um verdadeiro fator geográfico para modificar a fisionomia botânica da mesma. O botânico Loefgren, estudando a devastação das árvores e das matas nas terras do Ceará, atribui papel importante nesta degradação vegetal às cabras soltas na região: “Um outro fator não desprezível na devastação das matas, ou pelo menos para conservar a vegetação em estado de capoeira, são as cabras. Sabe-se quanto este animal é daninho para a vegetação arborescente e arbustiva e como a criação de cabras soltas no Ceará é, talvez, maior que a do gado, sendo fácil imaginar-se [pg. 190] o dano que causa è vegetação alta.”22 Desfavorável à vegetação, foi a criação de cabras, no entanto, muito favorável à alimentação regional, pois tanto a sua carne como o seu leite são consumidos, na quase totalidade, nos mercados lo Na contínua expansão dos seus currais, da qual nos legaram preciosa História Econômica do Brasil, de Roberto Simonsen. 20 Zollinger, J. P., À la Conquête de la Californie, Paris, 1939. 21 Brasil, 1939-1940, publicação do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. 22 Loefgren, Alfredo, Notas Botânicas, publicação da I.F.O.C.S., 2.ª edição, 1923. documentação Fernão Cardim e Antonil, não se deixou o sertanejo absorver numa atividade exclusivista que seria extremamente nociva à sua vida econômica: na pura criação. Não encontrando na zona da mata, para onde enviara a maior parte dos seus bois, possibilidades de abastecimento adequado e seguro para suas necessidades alimentares, e sendo distantes e difíceis os caminhos noutra direção, ele teve que se dedicar um pouco ao plantio de certos gêneros de sustentação para o seu auto-abastecimento. Fez-se, assim, numa saudável atuação colonizadora, vaqueiro e agricultor ao mesmo tempo. Temos uma miniatura expressiva da economia de todo o sertão nordestino no quadro que o agrônomo Trajano Pires da Nóbrega nos pintou da organização econômica de uma área situada às margens do São Francisco, nos municípios de Itaparica e de Floresta, no Estado de Pernambuco: “A exploração da propriedade é feita em geral por meio da agricultura e da pecuária. Na serra de Tacaratu a agricultura é exclusivista; na margem do rio predomina o regime misto, enquanto no centro da caatinga faz-se principalmente a pecuária. Na serra de Tacaratu as chuvas mais bem distribuídas dão à lavoura melhores possibilidades; e a irregularidade destas, além de escassas, no resto da área em apreço, limita estas possibilidades aos raros anos mais chuvosos, salvo na margem do rio em que as culturas em vazante dão sempre alguma colheita.”23 Vemos assim associadas numa ingente adaptação às possibilidades do meio os dois gêneros de vida, o da agricultura e o da criação. Não se constituiu o sertanejo num agricultor de produtos de exportação, para fins comerciais, como se praticava nas terras do litoral, mas um plantador de produtos de sustentação para seu próprio consumo. Um semeador, em pequena escala, de [pg. 191] milho, feijão, fava, mandioca, batata-doce, abóbora e maxixe, plantados nos vales mais sumosos, nos baixios, nos terrenos de vazante, como culturas de hortas e jardins. Pequenas boladas de verdura que os senhores de engenho do brejo, plantadores de extensíssimos canaviais sempre olharam com desdém, chamando depreciativamente a este tipo de policultura do sertanejo, de “roça de matuto”. Roças de matuto diante das quais o homem do açúcar torcia o nariz de grande senhor agrário, e que, no entanto, vieram a constituir um magnífico elemento de valorização das condições de vida regional, de diversificação do regime 23 Nóbrega, Trajano Pires da, “Ensaio Social econômico de um Setor do Vale do Rio S. alimentar do sertanejo, bem superior em épocas normais ao da área da cana. O aproveitamento pelo sertanejo destas manchas de terra de melhores condições edáficas, com maiores reservas de umidade e melhor riqueza humosa, para o seu roçado de subsistência, fez-se de maneira muito semelhante ao aproveitamento do oásis e dos ueds secos, dos vales e das estepes do Atlas e das bordas do Saara, por parte das populações sarracenas que aí se estabeleceram quando da expansão do império árabe por todo o Norte da África. Tanto nos oásis africanos como nas vazantes nordestinas, vamos encontrar a mesma textura de culturas variadas num aproveitamento intensivo dessas limitadas zonas onde a água excepcionalmente se apresenta. A mesma técnica de horta e de pomar, a mesma finalidade de policultura de sustentação.24 Não é por simples curiosidade que chamamos a atenção para a semelhança. É que ela representa, a nosso ver, o resultado de uma influência remota da cultura árabe sobre os costumes desta região brasileira. Influência que podemos sentir em muitos outros aspectos da vida econômica e social do sertão e que se exerceu através dos peninsulares, dos portugueses formados em contato com a cultura maometana. [pg. 192] No estudo da cozinha do sertanejo nordestino,25 a mais isenta de influência tanto índia como negra, quase que se podendo chamá-la de colonial pura ou de reinol, vamos ver repontar outras muitas dessas influências árabes, sempre favoráveis, servindo como mecanismo de sábia acomodação do português às contingências biológicas deste quadro de vida caracteristicamente desértico, muito semelhante ao quadro geográfico natural dos árabes, aos seus desertos, às suas estepes, aos seus oásis floridos. Muitos dos aventureiros que se internaram pelo sertão adentro em sua penetração pastoril foram certamente cristãos novos — judeus e árabes — trazendo na massa do sangue ou na mentalidade de nômades inquietos muito da experiência viva dos beduínos, dos bérberes do deserto saariano, Francisco”, in Boletim da I.F.O.C.S., volume 16, n.° 1, 1941. 24 Sobre a organização completa da agricultura nestes oásis africanos, cujo conhecimento nos permitirá algumas deduções fecundas sobre o caso dos sertões nordestinos, consulte-se a obra de Jean Brunhes — La Géographie Humaine, no seu volume II, capitulo VI. tratando dos Oásis de Souf e de Mzab, bem assim o livro de Preston James — An Outline of Geography, no seu capítulo I, em que são estudadas as regiões desérticas. Veja-se também o magnífico estudo de K. S. Twilchell — “Water Resources of Saudi Arabia”, publicado no número de julho de 1944 da Geographical Review. 25 Câmara Cascudo, A Cozinha Sertaneja. adestrados, de há muito, na luta perene contra a escassez de água e contra a rispidez do meio natural.26 6. À base da criação de gado e da agricultura de sustentação e de certos recursos um tanto escassos do meio ambiente — da caça e da pesca —, o sertanejo, usando métodos de preparo e de cozinha apreendidos de outro continente, adaptando, até certo ponto, muitos deles aos novos ingredientes da terra, criou um tipo de alimentação característico. Alimentação sólida, porém bem equilibrada, a qual constitui um bom exemplo de como pode um grupo humano retirar de um meio pobre recursos adequados às necessidades básicas de sua vida. Vejamos quais as características desse regime de alimentação. Não dispomos de documentação abundante acerca dos hábitos alimentares do sertanejo, principalmente documentação com rigor científico, encarando o problema à luz dos atuais conhecimentos da nutrologia. Os inquéritos alimentares levados a efeito na região são pouco numerosos e quase que se limitam aos de Orlando Parahim,27 realizados em 1939 no município de Salgueiro, no alto sertão de Pernambuco, bem no centro geográfico [pg. 193] da grande área assolada pelas secas, ao de José Gui-marães Duque,28 realizado em 1936, entre famílias do posto agrícola de São Gonçalo, e ao de Trajano Pires da Nóbrega,29 que estudou em 1941 as condições econômico-sociais dos municípios de Itaparica e Floresta, às margens do S. Francisco. Afora esses inquéritos, tudo de que se dispõe são referências feitas incidentemente em trabalhos que visam à fixação de outros aspectos sertanejos. O estudo da cozinha, da elaboração culinária no sertão, também não tem atraído a atenção dos comentaristas desde que ela tem sido ofuscada em seus gostos moderados e em seu paladar comedido pelo esplendor tão comentado e tão exaltado 26 Descola, Jean, Les Conquistadors, 1954. 27 Orlando Parahim vem realizando em pleno sertão nordestino uma série de importantes pesquisas de campo e de laboratório acerca das condições de alimentação nesta área. Os resultados dessas pesquisas foram apresentados em trabalhos que constituem o que há de mais sério até hoje divulgado acerca da nutrição do sertanejo: O Problema Alimentar do Sertão, 1940; A Vitamina C na Alimentação Sertaneja, 1941; e “O Desenvolvimento Físico dos Escolares Salgueirenses em face da Alimentação do Operário Sertanejo durante a Seca”, in Revista Médica Pan-americana, vol. 1.° 4, Recife, 1945. 28 Duque, José Guimarães, “O Fomento da Produção Agrícola”, in Boletim da I.F.O.CS., volume XI, n.° 2, 1939. 29 Nóbrega, Trajano Pires da, “Ensaio Social econômico de um Se-tor do Vale do Rio S. Francisco”, in Boletim da I.F.O.CS., vol. XVI, n.°.l, 1941. da cozinha do litoral. Afora alguns comentários inteligentes deste incansável esquadrinhador do folclore nordestino, Luiz da Câmara Cascudo,30 existe muito pouca coisa de valor com referência às tradições culinárias e ao estilo de cozinha da região. De resto, a cozinha de todas as zonas do Brasil tem sido pouco estudada. Cleto Seabra Veloso, dos poucos a preocupar-se atualmente por estes problemas, alude, no seu ensaio sobre a “Gastro-técnica na alimentação brasileira”, à “atmosfera de desprestígio e de ridículo” criada em torno de problemas de tão profunda significação na vida de um povo. Atmosfera que, longe de estimular, só pode ter abafado o gosto por estes estudos, nos quais se embrenharam, por exceção, um Manoel Quirino, um Nina Rodrigues, um Nunes Pereira e mais uns poucos maníacos de nossos problemas etnográficos. Baseados nos resultados dos inquéritos mencionados, nas referências encontradas na bibliografia sobre os sertões nordestinos e em observações diretas que fizemos em viagens pelo interior de Pernambuco é da Paraíba, vamos tentar um levantamento [pg. 194] do mapa alimentar do sertão, dos hábitos tradicionais da alimentação da gente sertaneja. Já vimos que o componente fundamental de sua dieta é o milho, alimento muito incompleto, com falhas graves por seu baixo teor protéico, com deficiências desta sua proteína em ácidos aminados indispensáveis, com sua pobreza relativa de sais minerais e de certas vitaminas. Enfim, alimento tão pobre que nas zonas ricas, onde o homem dispõe de outros recursos nutritivos, é ele abandonado à alimentação do gado. É o caso do corn-belt norte-americano, onde a maior produção de milho do mundo é em 90% do seu consumo total utilizada na alimentação animal, reservando-se apenas 10% para a alimentação humana.31 Em áreas mais pobres, nas quais o milho é usado como fornecedor de proteínas e vitaminas, seja quase puro, com um exclusivismo de conseqüências funestas como no México,32 seja misturado com outros alimentos incompletos como em Cuba,33 associado ao feijão, surgem sempre manifestações carenciais entre as populações assim alimentadas, evidenciando sérias deficiências do seu equilíbrio nutritivo. 30 Cascudo, Luiz da Câmara, Viajando pelo Sertão. 31 McCarthy. Harold. The Geographic Basis of The American-Economic Life. 1940. 32 Espinosa. Alfredo Ramos. La Alimentación en México. 1939. 33 Minneman. P. G. “The Agriculture of Cuba”. For. Agric. Ball.. n.º 2. U. S. Depart. of Agriculture. 1942. No sertão nordestino escapam as populações a esta sorte porque o milho, embora seja o alimento básico, consumido quase que pela totalidade de seus habitantes e em quantidades relativamente altas (204g diárias per capita, na cidade de Salgueiro, segundo inquérito de O. Parahim), e mais ainda em plena zona rural, não constitui, no entanto, a fonte obrigatória nem de proteínas, nem de vitaminas, nem de sais minerais do sertanejo. Mas apenas a sua base calórica, o fornecedor do grosso do total energético de sua ração, ficando o fornecimento dos outros princípios alimentares a cargo de outras substâncias. Usado sob as mais variadas formas, como angu, canjica, cuscuz,34 o milho é quase sempre consumido juntamente com o leite, numa combinação muito feliz, completando a caseína do leite as deficiências em aminoácidos da zeína do milho. [pg. 195] O cuscuz é um prato típico da cozinha sertaneja, cuja técnica de preparo constitui uma simples variante dos processos árabes de fabricação de seu prato nacional — o kous-kous. Apenas, em lugar do grão de trigo, usa-se o de milho pilado, no Nordeste como na Arábia, num pilão especial. Para se ver até que ponto o milho pilado em casa representa um traço definitivamente integrado no complexo cultural da região, basta dizer que o sertanejo, mesmo dispondo das farinhas e xeréns de milho já preparados, não abre mão dos seus métodos tradicionais de preparo caseiro do grão. Conta Orlando Parahim que, tendo um industrial de Salgueiro aberto uma refinaria de milho para preparo de variados tipos de farinha, teve que fechar sua indústria “porque o caatingueiro preferiu sempre fazer o cuscuz com o milho batido no seu pilão em domicílio” (A Alimentação do Operário Sertanejo durante a Seca, 1945). Felizmente, na preparação do milho para pilá-lo não usa o nordestino o nocivo processo de acrescentar-lhe cal, como na área do México, destruindo esse meio alcalino a maior parte da riqueza vitamínica que o milho possa conter. Em experiências que levamos a efeito no Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, acerca do valor nutritivo da mistura de milho com leite, ficou demonstrado de maneira categórica o fato surpreendente de que os ratos alimentados com esta mistura apresentavam um desenvolvimento superior ao dos animais que 34 Para melhor documentação sobre cuscuz, consultem-se as receitas árabes de Jacolliot. dispunham de uma dieta cuja fonte de proteína era exclusivamente o leite. Demonstraram, assim, estas experiências, que as proteínas do milho e do leite em conjunto possuem um valor biológico superior ao do próprio leite.35 E não é só com milho que se consome leite em abundância no sertão do Nordeste, mas de muitas outras formas. Misturado com café de manhãzinha, ou como coalhada fresca ou escorrida, ou sob a forma de derivados, manteiga ou queijo. Principalmente manteiga fresca e requeijão, tipo de queijo gordo de que os sertanejos fazem largo uso, cru ou assado. Em nenhuma outra zona do país, mesmo no sul e no centro-oeste, onde os rebanhos de gado são bem mais abundantes, o leite constitui um alimento tão constante da dieta, entrando no preparo de tantas [pg. 196] combinações alimentares, como no Nordeste pastoril. É que nas zonas de criação do Sul o leite, produzido em muito maior escala, constitui um produto comercial para o abastecimento das cidades populosas, ligadas às áreas de criação por fáceis meios de transporte. São de Castro Barreto, nos seus Estudos Brasileiros de População, as seguintes palavras: “Fomos há algum tempo, numa das nossas excursões de estudo, a uma cidade do Estado de Minas, centro pecuário de grande produção de laticínios. Ali pudemos verificar um progresso animador na criação de gado leiteiro, de cavalos, de suínos magníficos. Em contraste com essa riqueza do rebanho e com as cifras de produção do leite, queijo e da banha, encontramos uma população lamentavelmente carenciada e anêmica, parasitada pelo ancilóstomo. Os próprios tratadores, nas estâncias da empresa, eram homens que, fornecendo aos animais rações tecnicamente certas e ricas, apresentavam um nível de nutrição miserável. Viemos a saber que a infância de toda essa região privilegiada não toma leite nem se beneficia de outros laticínios porque toda a produção vem para o Rio de Janeiro; o leite desnatado e o “soro”, considerados subprodutos das fábricas de manteiga e queijo, são fornecidos aos porcos, para a engorda.”36 Já no Nordeste, a quase inexistência de comunicações práticas com as grandes cidades do litoral afastou sempre o leite sertanejo dos mercados urbanos. O leite, a manteiga e o queijo do sertão ficaram sendo até hoje produtos de consumo local, elementos integrantes da transcritas no livro de A. Cougnet. Il V’entre del Popoli. 1905. 35 Josué de Castro e Emitia Pechnik, “Valor Nutritivo de la Mescla del Maiz con la Leche”, in Archivos Venezolanos de Nutrición, vol. II, n.° 2, 1951. dieta do sertanejo. Das suas refeições matinais, de angu e cuscuz com leite; dos seus pratos de fôlego — carne com abóbora e leite — e até de suas sobremesas, como a sua célebre umbuzada, preparada com leite e umbus bem maduros numa combinação de excepcional valor nutritivo, extraordinariamente rica em proteínas e vitaminas, lembrando a associação admirável de leite e tâmaras de que fazem uso os nômades do deserto saariano, os quais se apresentam, por conta de sua dieta, com uma compleição superior a de todos os povos da Europa.37 Realizando o seu primeiro inquérito alimentar em Salgueiro durante uma quadra de seca, Orlando Parahim encontrou assim [pg. 197] mesmo um consumo médio de leite, per capita, do 90g diárias, consumo que se lhe afigurou baixíssimo para o sertão. Apressou-se, então, o investigador em explicar: “Na quadra invernosa, devido à abundância de pasto para o gado, a produção leiteira aumenta consideravelmente e o preço é apenas de 300 réis por litro. Nas estiagens demoradas dá-se o caso inverso e o leite atinge o duplo do preço habitual. Escasseia e até desaparece, porque o gado é retirado para sítios mais favoráveis à criação. Atravessamos no momento um destes períodos de seca e o consumo do precioso alimento se nos afigurou baixíssimo.” Ademais, é bom acentuar, tratava-se de um inquérito de população urbana. Nas fazendas onde há o abastecimento próprio o consumo é sempre mais elevado. Além do leite, tem o sertanejo uma fonte liberal de proteínas na carne. Carne de boi, carne de carneiro e, principalmente, carne de cabrito, que constitui o grosso do consumo da região. Abatendo o seu gado para alimentar-se, o sertanejo come, no dia da matança, as vísceras e partes mais perecíveis em famosas buchadas38 e paneladas, reservando para outros dias a carne dos músculos, fresca ou seca como charque, ou secada ao sol e ao vento. Este último processo de preparação constitui o método mais usual no sertão para conservação da carne: o preparo da carne-de-sol ou de vento. Da carne secada ao sol no mais primitivo dos processos de desidratação, o qual só dá resultado satisfatório em climas de pouca umidade atmosférica. Processo importado do reino e também aprendido dos habitantes do 36 Castro Barreto, Estudos Brasileiros de População, 1944. 37 McCollum e Simmonds, The Newer Knowledge of Nutrition. 1929. 38 “É hábito comerem de vez em quando as buchadas e paneladas servidas no momento em que se reúnem as famílias para alguma comemoração festiva.” Costa Couto, “Panorama da Alimentação Brasileira”, Cultura Médica, n.° 5-6, 1943. deserto.39 Esta carne-de-sol e o charque são usados de várias maneiras, sendo a mais comum pelos vaqueiros nas suas lidas, sob a forma de paçoca, ou seja, de carne moída, pilada e misturada com a farinha de mandioca torrada e temperada. Constitui este prato um dos poucos traços da influência nitidamente indígena na cozinha do matuto. Se o índio contribuiu com uma boa [pg. 198] dose de sangue para a formação da raça sertaneja, pouco trouxe como contribuição aos hábitos alimentares desta zona. Embora a quantidade de carne consumida pelo vaqueiro do Nordeste não seja muito grande, estando longe de alcançar a liberdade e muitas vezes o exagero do uso dos vaqueiros dos pampas — do gaúcho — o seu consumo é, contudo, generalizado por todas as populações do sertão. No inquérito de Orlando Parahim ficou verificado que na zona de Salgueiro 90% das famílias acusavam um consumo de carne de 62g diárias per capita, cota que, na verdade, é baixa e que leva Parahim a julgar o consumo de carne no sertão insuficiente. Não concordamos, neste ponto, com o ilustre pesquisador, lembrando-lhe que os dados que ele apresenta, baseados no movimento do matadouro da cidade, para concluir que a carne também é parcamente consumida pelo sertanejo, são pouco significativos numa zona em que a maior parte da população, sendo mais rural do que urbana, cria e abate o seu próprio gado para abastecer-se de carne. Que o sertanejo foi sempre um comedor de carne, temos provas em inúmeros documentos regionais de diferentes épocas, servindo de bom exemplo a seguinte referência do autor do Desagravo do Brasil: “De gado vacum há tanta abundância em Pernambuco que pobres e ricos, brancos e pretos, se sustentam das suas carnes, que são as mais saborosas do país.” Este consumo de carne, numa área onde o milho constitui a alimentação básica, é verdadeiramente excepcional e faz do Nordeste uma zona comparativamente privilegiada. Já os ovos constituem um alimento raro, a criação de galinha sendo até hoje pouco desenvolvida na região. Além do milho, do leite e da carne, fazem habitualmente parte da alimentação do sertanejo o feijão, a farinha, a batata-doce, o inhame, a rapadura e o café. O feijão, embora em menor proporção do que o milho, é largamente usado em suas diversas variedades — de arrancar, de rama o de corda, principalmente do tipo 39 Robertoberto Llamas, do Instituto de Biologia do México, “Estudio del Frijol a carne de vaca macassar, reforçando o total protéico da ração, embora com proteína incompleta.40 A batata-doce colabora com o milho [pg. 199] no perfazer o total energético, substituindo o pão, de uso muito limitado na região sertaneja.41 Constituem falha visível da alimentação do sertanejo a pobreza e irregularidade em que as frutas participam do seu regime habitual. Já vimos como a flora nativa é exígua em frutas, e o sertanejo, sob a ameaça das secas periódicas, não se tem animado a desenvolver a pomicultura. Não que o solo e o clima sejam obstáculos realmente intransponíveis a esse gênero de agricultura. Mas porque o risco de perder o trabalho é maior neste tipo de plantação, que exige largos anos para a colheita, do que nos tipos de cultura de colheita rápida — do milho, da mandioca e do feijão. Provando que o meio ecológico permite a fruticultura com rendimentos compensadores, estão os resultados obtidos pelas estações agrícolas experimentais da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas. As tentativas de fruticultura realizadas nas terras irrigadas pelos grandes açudes têm surpreendido aos próprios técnicos encarregados deste serviço. O agrônomo José Augusto Trindade, que chefiou este serviço, escrevera em 1937 as seguintes palavras: “A fruticultura está fadada a constituir um dos recursos de exploração mais rendosos das bacias de irrigação dos açudes. Mas, além de riqueza, ela tem no sertão uma alta finalidade humana. As frutas e as hortaliças em toda parte constituem alimento indispensável à saúde e à eficiência do trabalho humano, mas no sertão tal exigência sobe de grau devido ao clima cálido e à alimentação concentrada, pobre em vitaminas e minerais. O sertanejo é grande apreciador de frutas. As serras encravadas nas caatingas áridas, dispondo de melhores condições de solo e de clima são, com a região dadivosa do litoral, os centros fornecedores de frutas no sertão. Mas em regra as laranjas, as mangas e as bananas que tais zonas mandam às feiras sertanejas são caras e de má qualidade. Do próprio sertão, das terras umedecidas pelos açudes particulares, só se secada ao sol, chamada de tasajo. La Alimentación Española, 1934. 40 Sobre o valor nutritivoda proteína do feijão — a fascolina — consulte-se o interessante trabalho experimental de Juan Rocca e Roberto Lamas, do Instituto de Biologia do México, “Estudio del Frijol como Alimento”, publicado nos Arquivos. 41 “Em todas as propriedades agrícolas, a batata substitui o pão em vista deste não ser fabricado nas mesmas dado o preço excessivo do trigo.” Neves, Carlos Alves das. “A Batateira Doce e Sua Cultura no Sertão e nas Bacias de Irrigação dos Açudes do Nordeste”, publicado no Boletim da I.F.O.C.S., vol. XVI, n.° 2, 1941. encontram bananas. Estas, sim, são de um delicioso sabor e [pg. 200] polpa finíssima. Sua produção, entretanto, é muito reduzida. De sorte que o estímulo da pomicultura nas áreas irrigáveis tem uma finalidade social de alta monta: tornar acessível às populações sertanejas um alimento saboroso e dotado de tantas propriedades higiênicas. Penso, entretanto, que a produção de frutas nas bacias de irrigação não deve apenas visar o abastecimento das feiras sertanejas. Não é desarrazoado prever que as laranjas do sertão, graças à qualidade finíssima que os nossos ensaios entremostram, conquistem os mercados das capitais e das cidades principais do Nordeste. Que dizer, então, do futuro que se esboça à produção de tâmaras nas terras irrigáveis? Capacitada das possibilidades econômicas que a pomicultura encontra nas bacias de irrigação, a Comissão dedicou-lhe muita atenção desde o início de sua atividade. Existem em estudo de adaptação, nos diversos postos agrícolas, 110 variedades frutícolas.”42 Das 110 variedades, acrescenta o técnico que muitas se têm evidenciado perfeitamente adaptáveis às condições locais, produzindo com proveitoso rendimento, destacando-se as frutas cítricas — a laranja e o grape-fruit — o mamão, o figo, a pinha, a goiaba e, principalmente, a tâmara,43 que reencontra no clima sertanejo como que seu próprio clima de origem. Esta planta dos oásis africanos que exige, para bem frutificar, viver com os pés dentro da água e a cabeça ao sol ardente, produz com alto rendimento quando plantada nos vales irrigados dos sertões nordestinos. E não só nos terrenos férteis do aluvião, mas também nas terras sáfaras, nos tabuleiros areníticos, desde que não lhe sejam negados água e outros cuidados secundários a seu cultivo. Infelizmente, estes ensaios de fruticultura estão ainda limitados à escala experimental e até hoje “no sertão do Nordeste somente existe produção permanente de cereais, verduras e frutas junto aos açudes e sendo esta produção ainda pequena, exclusivamente as populações destes núcleos são beneficiadas”, conforme afirma outro técnico da Inspetoria das Secas, José Guimarães Duque. [pg. 201] O sociólogo Antônio Carneiro Leão, viajando pelos sertões da Bahia e Pernambuco, impressionou-se com a pobreza da dieta em verduras e frutas, em 42 Trindade. José Augusto. “Os Serviços Agrícolas da Inspetoria de Secas. Boletim da I.F.O.C.S.. vol. XVII. n.° I. 1937. 43 Sobre os resultados do cultivo da tamareira (Phoenix dactylifera) no Nordeste, consulte-se contraste com a relativa riqueza de carnes — a que já nos referimos. “As refeições que nos ofereciam, ricas em carne — boi, porco, carneiro, cabrito —, não continham uma só verdura nem um só fruto nacional ou estrangeiro.” Não refere o ilustre sociólogo a época da sua viagem através das terras sertanejas, mas pelo quadro alimentar que apresenta devia ser época de seca.44 Sem cultivo de plantas frutíferas, resta ao sertanejo o recurso bem limitado das frutas silvestres — do umbu, do piqui, do quibá, da cajarana e da quixaba. A escassez de boas frutas criou, por mecanismo que já explicamos, tremendos tabus contra os mesmos, e assim se constituiu um novo obstáculo ao consumo liberal de frutas por parte do sertanejo. Frutas só de manhã, de tarde dá sezões e maleita. De noite chega a matar. O consumo de verduras é também limitado à abóbora (Cucurbita maxima) ao maxixe (Cucumis anguria) e às cebolinhas e coentros usados como tempero. 7. Caracterizada em seus principais componentes a alimentação do sertanejo e conhecida a sua relativa abundância em certos alimentos protetores, como o leite e a carne, bem assim a sua pobreza evidente em outros, como as frutas e as verduras, passaremos agora a analisar este regime como um todo unitário, que abastece o homem do sertão nos princípios nutritivos de que ele necessita para sobreviver “em sua luta incessante contra as hostilidades de uma natureza áspera sobrepondo-se, com a temeridade e heroísmo trazidos do berço, aos obstáculos que de contínuo tentam embargar-lhe as iniciativas audazes”. (O. Parahim.) A verdade fácil de se aprender é que esta alimentação tão sóbria e tão enxuta, de tão espartana sobriedade, contrastando violentamente, na simplicidade de seus processos culinários, com a rebuscada cozinha do Nordeste açucareiro, sempre tão adocicada ou lambuzada de azeite, representa um traço de alta compreensão do colono português e do mameluco seu descendente, em face das contingências especiais do meio geográfico. [pg. 202] Colono que, sempre que a cobiça exagerada não lhe vinha turvar os propósitos de vida, se apresentava com uma aguda capacidade de compreender e de contornar as exigências mais tenazes e as Paulo de Brito Guerra. “A Tamareira no Nordeste”, Boletim da I.F.O.C.S., vol. XI. n.° 2. 1939. 44 Leão, A. Carneiro, A Sociedade Rural: Seus Problemas e Sua Educação, Rio de Janeiro, 1939. necessidades mais prementes à sua boa adaptação ambiente. Sua sobriedade alimentar, no caso, longe de significar miséria e decadência, traduz uma sábia aplicação de economia biológica. As características da alimentação sertaneja, um tanto magra e despida de qualquer excesso de tempero, harmonizam-se admiravelmente com os traços naturais da terra também magra dos sertões nordestinos. “Sertão de areia seca rangendo debaixo dos pés. Sertão de paisagens duras doendo nos olhos. Os mandacarus. Os bois e os cavalos angulosos. As sombras como umas almas do outro mundo com medo de sol”, na imagem evocativa de Gilberto Freyre.45 Por outro lado, o seu preparo simples, desnaturalizando ao mínimo os alimentos, criando combinações de admirável primitivismo, como a da abóbora com leite, do queijo com rapadura, da batata-doce com café, representa um traço quase que obrigatório das cozinhas de todos os povos nômades ou seminômades,46 condenados a reduzir os seus utensílios de cozinha ao pouco que se possa enrolar dentro de uma tenda ou de uma rede ou da matulagem do retirante, do tangedor de gado, do bandoleiro ou do cangaceiro itinerante. Mas não será que essa alimentação, fazendo-se tão excessivamente sóbria a ponto de constar apenas de três refeições, das quais só uma pesada,47 não acaba por se tornar insuficiente? Incapaz de subscrever as necessidades energéticas do vaqueiro submetido climática e profissionalmente a certos rigores excessivos? Na verdade, o problema merece ser bem meditado, bem analisado para se chegar a uma conclusão rigorosamente científica. [pg. 203] Tanto pela influência do clima semi-árido, a que está submetido, como pelo laborioso gênero de vida que exerce, ne-cessita o sertanejo retirar de sua dieta um potencial energético mais alto do que o suficiente para o habitante de qualquer outra área equatório-tropical. A ação do clima neste particular se faz sentir pelas características estimulantes do ar seco, pela baixa taxa de umidade relativa que condiciona uma perda fácil de calor e, 45 Freyre, Gilberto, Nordeste, 1937. 46 Acerca dos hábitos alimentares dos povos que se mantêm neste gênero de vida — árabes, labateus, maronitas, etíopes e tuaregues — consulte-se a obra rica de preciosas informações de A. Cougnet, ll Ventre del Popoli, 1905. 47 No Nordeste pastoril o sertanejo costuma fazer uma primeira refeição matinal antes de ir para o trabalho, a segunda refeição constituindo a mais abundante, com suas carnes, feijão e amiláceos, sendo a terceira, à noitinha, uma simples ceia de café, leite e batata-doce ou aipim com manteiga. conseqüentemente, um estímulo às queimas orgânicas que regulam a intensidade do metabolismo. Os resultados dos trabalhos experimentais que vimos realizando há 25 anos nos permitiram chegar a conclusões, hoje universalmente confirmadas e aceitas, de que o metabolismo basal varia em função de certas características meteorológicas que compõem os fácies climáticos, principalmente em função da umidade relativa do ar e da temperatura. Assim se explica o fato, também por nós evidenciado, de que nos climas quentes e secos o metabolismo seja sempre mais alto do que nos climas quentes e úmidos. Neste metabolismo basal mais elevado, nesta maior atividade energética do sertanejo, reside em parte o mistério de sua inquieta atividade, tão diferente da madorra amazonense e do sedentarismo um tanto cansado da gente do açúcar. O cearense, exemplar típico de nômade brasileiro, sempre cheio de fé e de iniciativa, de energia e de inquietação criadora, é, como o árabe, o saariano, enfim, como todo habitante do deserto tropical, um hipermetabólico, gastador de muita energia. A esta parcela de energia de fundo correspondente às despesas de metabolismo basal48 faz-se necessário juntar o suficiente [pg. 204] às atividades em 48 Veja-se sobre o assunto o nosso trabalho, “Basal Metabolism in Tropical Climates”, in A. Med. Legal, n.° 16, 1938, e o nosso livro, Alimentación en los Trópicos, Fondo de Cultura econômica, México, 1946. Nestas publicações estudamos detalhadamente o mecanismo das variações metabólicas nos climas tropicais e os fatores que as condicionam. As experiências que realizamos na área dos sertões nordestinos e que ali vão referidas mostram o metabolismo basal do sertanejo, cerca de 11% mais alto que o do habitante da mata e do litoral. Para verificação da opinião, hoje universal, confirmando nossas teorias, consultem-se as seguintes obras de fisiólogos e nutricionistas estrangeiros: Professor Mário Camis, Metabolismo Basale e Alimentazione in Somalia, Roma, 1936, no qual este fisiólogo afirma ter encontrado entre os nativos desta região quente e seca da África Oriental um metabolismo basal que em 92% dos casos se mostrou mais alto do que o standard do metabolismo de base nos climas temperados, sendo o aumento médio de 27,80%; Prof. Sabato Visco, Alimentation Dans les Colonies Itallennes, no qual são relatados os resultados dos estudos do Prof. G. Gena sobre o metabolismo dos árabes que habitam o deserto da Líbia, de tipo extremamente quente e extremamente seco, apresentando-se este metabolismo superior em cerca de 10% ao Standard dos europeus e norte-americanos; Prof. A. Noyons, La Signification Géné-rale des Recherches Comparatives du Metabolisme de Base (Convênio Volta), Roma, 1937. Este saudoso fisiologista holandês relata neste trabalho as suas experiências comprovadoras da decisiva influência da umidade do ar sobre as variações do metabolismo de base. Das confirmações realizadas entre nós a este ponto de vista destacamos os trabalhos experimentais de F. Moura Campos, “Metabolismo Basal nos Climas Tropicais e Subtropicais”, in A Folha Médica, 1939 e “Influência de Temperatura, Grau de Umidade e Nutrição sobre o Metabolismo Basal de Ratos Brancos”, Arquivo da Faculdade de Medicina da Univer-sidade de S. Paulo, XVI, tomo I, 1941. Foi diante desta comprovação, vinda de várias partes do mundo, ao nosso ponto de vista, que o eminente fisiólogo italiano, Prof. Filippo Bottazzi, apresentando ao Convênio Volta de 1938, convocado pela Real Academia de Itália para tratar do tema “África”, um estudo de atualização do problema sob o titulo “II Metabolismo di Base nei Climi geral bem árduas do vaqueiro “levando-se em conta sua vida mais agitada fisicamente, obrigado a contínuos exercícios de equitação, pois o cavalo é seu companheiro inseparável, no dorso do qual percorre as dezenas de léguas que distanciam as cidades, vilas e fazendas do sertão”. Para tais despesas energéticas compreende-se logo que as 2.400 calorias que calculamos serem suficientes para o homem da Amazônia mostrar-se-ão deficitárias para o sertanejo nordestino. Com um metabolismo de base, conforme as determina-ções que efetuamos em 1935, cerca de 36,2 calorias, quase igual, portanto, ao dos habitantes dos climas frios e temperados, e com um gasto de trabalho do tipo intensivo, não será exagero calcular-se entre 2.600 e 2.880 calorias as despesas energéticas [pg. 205] diárias do vaqueiro do Nordeste. Cálculo que coincide com o teor médio que o seu regime alimentar encerra (2.865 calorias, segundo o inquérito levado a efeito por Orlando Parahim). Tropical Africani”, Roma, 1938 — trabalho traduzido e publicado no Brasil na Resenha Clinico-Científica, n.° 9, setembro, 1941 — escreveu as seguintes palavras: “Disse eu que os fatores capazes de produzir variações mais ou menos importantes no metabolismo basal são múltiplos: há fatores externos e internos. Dentre os primeiros, aquele a que se atribui mais importância é a temperatura, ou, mais geralmente, o clima. A alta temperatura dominante nos países tropicais baixa o metabolismo de base, atenuando os processos de oxidação dos tecidos e, portanto, diminuindo a produção de calor, porque o homem tem então menos necessidade de regulação química para manter constante a temperatura do próprio corpo. Mas a temperatura não é o único fator a ser tomado em consideração nos climas tropicais. Camis reconhece que o clima dos trópicos é algo muito complexo, que abrange fatores pouco conhecidos e não pode ser definido atendendo unicamente a dados geográficos e termométri-cos. Um desses fatores é a umidade relativa; só recentemente é que sua importância foi posta em relevo por Moura Campos, Noyons e Josué de Castro. Na discussão que no Convênio Volta se seguiu à leitura do Prof. G. Quagliarello sobre “O metabolismo de base dos italianos”, o Prof. Noyons recomendou que dorenavant l’on tienne aussi compte du degré d’humidité relative et de la température qui exercent une influence sur le metabolisme. J’ai été très frappé ces derniers temps par le fait que la respiration cutanée représente un facteur dont on doit aussi tenir compte, acrescentou o Prof. Noyons. A influência da umidade relativa foi, porém, estudada de modo especial por Josué de Castro. Em 15 habitantes do Nordeste do Brasil, achou, em primeiro lugar, o metabolismo basal mais baixo nos climas tropicais que nos climas frios e temperados; esse metabolismo basal seria em média 33,8 calorias por m2 e por hora, e, portanto, 15% inferior ao padrão norte-americano de 39,7 calorias. Além disso, pôde ele constatar uma notável diferença entre o metabolismo de base dos habitantes do Recife e o dos habitantes do Rio de Janeiro, o primeiro sendo de 34,6 e o segundo de 31,6 calorias. Ora, Josué de Castro julga que tal diferença possa ser explicada pela maior umidade relativa do Rio de Janeiro em relação ao Recife, não obstante ser a temperatura média do ar mais alta no Recife (25,5°C) do que no Rio (22,7°). Se a temperatura fosse o único fator a influir sobre o metabolismo este deveria ser mais baixo no Recife do que no Rio de Janeiro, entretanto é o contrário que se dá. Josué de Castro determinou também o metabolismo em duas cidades: Rio Branco e Nazaré, no Estado de Pernambuco, nas quais a temperatura média é a mesma (24,5°), ao passo que a umidade relativa média é menor na primeira cidade (68,3%) que na segunda (83,4%). Ora, o metabolismo basal encontrado foi de 36,2 calorias nos habitantes de Rio Branco e 32,7 calorias, isto é, nitidamente inferior nos de Nazaré. Foi assim posto decididamente em relevo um fator capaz de influir sobre o metabolismo de base do homem, o fator umidade relativa do ar, que parece ser até mais importante que a temperatura no O seu regime alimentar, embora na aparência pouco abundante, alcança alto potencial energético, graças às doses liberais em que entram o milho, a batata-doce e a manteiga. É bem verdade que nem sempre obtêm estes ascéticos vaqueiros um tal teor calórico em sua ração e mais raramente ainda dispõem de um excesso de energia alimentar que se possa [pg. 206] acumular sob a forma de reserva, de depósito de gordura e de glicogênio que seriam de inestimável valor na época difícil das “vacas magras”. É esta mesma parcimônia calórica, sem margens a luxo, que faz do sertanejo um tipo magro e anguloso, de carnes enxutas, sem arredondamentos de tecidos adiposos e sem nenhuma predisposição ao artritismo, à obesidade e ao diabete, doenças essas provocadas, muitas vezes, por excesso alimentar. Não o do atleta de capa de revista, nem de herói de fita de cinema, atraindo os olhares femininos com suas formas apolíneas, mas o do atleta fisiológico, com o seu sistema neuro-muscular equilibrado, com bastante força e agilidade e com excepcional resistência, nos momentos oportunos. Este tipo constitucional do sertanejo é característico da maioria dos povos pastores, todos de vida frugal e de grande atividade física. Veja-se a descrição que nos faz Bulnes49 do tipo do pastor árabe: “O árabe é rude como a areia, ensimes-mado como o deserto, seco e esbelto como a palmeira, amargo e nobre como seu café, e quase desprovido de gordura por viver submetido a dois fogos: o do sol e o do solo.” Chega-se, assim, à conclusão de que vive o sertanejo à base de um regime que se apresenta quantitativamente suficiente para suas necessidades básicas, sem sobras, sem margem para excessos. Se isto não é o ideal, constitui, contudo, nas contingências especiais do meio, uma circunstância mais favorável do que se fosse este um regime excessivo em teor energético à custa de hidrocarbonados que não se fizessem acompanhar das vitaminas necessárias à sua perfeita metabolização. A frugalidade se ajusta sabiamente dentro do equilíbrio alimentar, sendo que os excessos são muitas vezes mais prejudiciais do que as próprias deficiências. 8. Qualitativamente, é este um regime sem falhas muito graves. Já vimos que o condicionar a diminuição”, termina o Prof. Bottazzi. 49 Bulnes, Francisco, El Porvenir de las Naciones Hispano-america-nas, México. teor de proteínas é relativamente alto e subscrito em boa parte por várias espécies de proteínas completas: da carne, do leite e do queijo. O teor protéico liberal associado a boas doses de vitaminas fornecidas ao sertanejo pelo leite e pela manteiga constitui um dos fatores do seu crescimento [pg. 207] proporcional, da boa estatura da população e da polarização do biótipo numa tendência acentuada à gongitipia, ao aparecimento dos tipos longilíneos, em contraste marcante com a tendência das populações do brejo para os tipos brevilíneos.50 Não queremos dizer com isto que seja a alimentação o fator único desta seletiva diferenciação dos longetipos no sertão nordestino. Outros fatores trabalham no mesmo sentido, sobressaindo entre eles os de base hereditária: a influência ancestral dos colonizadores da região, que, na qualidade de desbravadores e pioneiros, devem ter sido, em acentuada maioria, desse tipo constitucional a cujo painel morfológico se associa quase sempre a psicologia do aventureiro. “Foi o longilíneo astênico que colonizou o sertão, e a ele coube a tarefa ingente de dilatar e integrar o território nacional. O brevilíneo parou na zona agrária para trabalhar; o longilíneo aventureiro e idealista varou o sertão”, concluem Álvaro Ferraz e Andrade Lima Júnior, em seu bem planejado ensaio sobre a diferenciação do biótipo do Nordeste. É a alimentação bem servida de proteínas que dá ao sertanejo essa resistência um tanto impressionante para os habitantes de outras zonas do país.51 Na carne de bode, no leite e no queijo do sertão estão em boa parte as justificativas biológicas que respaldam a hoje famosa frase de Euclides da Cunha, que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Realmente, só um povo forte pode “exibir esta força, esta resistência surpreendente às fadigas e às vicissitudes mais exacerbadoras, esta disposição incansável ao trabalho, esta constituição férrea que o torna sobranceiro às intempéries, aos reveses, às endemias, e o leva com freqüência a cometimentos titânicos”.52 [pg. 208] 50 Vede sobre a distribuição dos biótipos do Nordeste o trabalho de Álvaro Ferraz e Andrade Lima Júnior — A Morfologia do Homem do Nordeste, 1939. Sobre a possível correlação entre o regime alimentar e o biótipo, consulte-se o trabalho de Pende — “Alimentation et Biotype Habituel”, e o de Silvio de Candia — “Les Aliments et le Système Regulateur Endocrino-Sympathique”, in Nutrition, Tomo V, n.° 3, Paris, 1935. Consulte-se também o interessante artigo de David Kaz, “La Faim et l’Appétit en Psychologie Générale et Biotypologie”, in Biotypologie, Paris, n.° 4, dezembro de 1938. 51 Sobre o teor de proteína e a resistência física dos grupos humanos consulte-se o livro de Ruy Coutinho, Valor Social da Alimentação. 52 Menezes, Djacir, O Outro Nordeste, 1937. O equilíbrio protéico alimentar deve entrar como importante fator na maior resistência que manifesta o sertanejo em face das doenças infectuosas, principalmente em face da tuberculose, que aí se apresenta muito menos destrutiva do que nas zonas da mata e do litoral. Analisando a proporção em que entram os outros alimentos simples na ração sertaneja, vê-se que não quebram o seu equilíbrio harmônico. Não há exagero de hidrocarbonados, como na zona da mata, com sua alimentação excessiva de feculentos e de açucarados. A dieta sertaneja é dieta de poucas, de raras sobremesas. Não é tão gorda de óleo como a da cozinha baiana, contendo, no entanto, o suficiente de gordura para fornecer as vitaminas lipossolúveis indispensáveis. É uma dieta de poupança, de verdadeira defesa contra as carências relativas em vitaminas B1, sempre latentes. A pouca abundância de frutas e a quase ausência de verduras na alimentação do sertanejo leva, de início, o estudioso de tais problemas a concluir que devemos estar diante de uma área de grandes carências minerais e vitamínicas. É que os livros afirmam serem esses dois grupos de alimentos protetores as fontes naturais mais abundantes daqueles princípios alimentares. A realidade sertaneja desconcerta, de certo modo, estes pontos de vista doutrinários. O sertanejo, quase sem comer frutas nem verduras, consegue escapar por outros meios aos malefícios das avitaminoses e das carências minerais patentes. Nos tempos normais dificilmente topará o médico, mesmo o especialista arguto, com estados de hemeralopia, de beribéri, de pelagra ou de escorbuto, cuja existência o seu raciocínio puramente teórico faria supor ser freqüente. Não. Estes casos só surgem, e então em trágica abundância, nos períodos calamitosos da seca. Nos bons tempos em que a água rega o solo sertanejo, não se apresentam estes quadros de miséria- orgânica ligados às carências específicas. Este estado de coisas não encerra nenhum mistério nem segredo que contrarie os conceitos hoje bem assentados da etiopatogenia das carências alimentares. Para explicar o fenômeno em suas expressões locais não vemos mesmo nenhuma necessidade de se apelar para hipóteses ousadas, como aquela de O. Parahim, de que seja a riqueza da luz solar do Nordeste capaz de provocar sínteses inéditas de vitaminas, como a da vitamina C, salvando o organismo de [pg. 209] sua fome específica. Não vemos necessidade de hipótese desta categoria, insistimos, porque há outras explicações mais naturais. O que ocorre é que muitos outros alimentos, além das verduras e das frutas conhecidas, são capazes de abastecer o organismo tanto de sais minerais como de vitaminas. E o sertanejo — seja por simples acaso, seja por sabedoria instintiva — consome estas espécies de alimentos em combinações apropriadas. O matuto não apresenta carência cálcica por consumir quantidades liberais de leite e de queijo que são as mais ricas fontes naturais desse princípio mineral. Também as águas sertanejas são, em geral, de alto grau de dureza, águas calcárias que ajudam no abastecimento em cálcio. Escapa às anemias ferroprivas, que assolam os brejeiros, comendo carne fresca e seca, feijão, favas, milho,53 e, principalmente, a rapadura, que é muito superior ao açúcar por seu conteúdo tanto em ferro como em outros princípios minerais. Apesar de sofrer grande espoliação em cloreto de sódio, pela sudação abundante que o clima condiciona, o sertanejo equilibra o seu metabolismo deste outro mineral com a sua alimentação rica de sal, o qual constitui o tempero por excelência do sertanejo. A descoberta de boas reservas de sal no Nordeste, constituindo importante fator de incremento da pecuária, permitiu também o desenvolvimento no sertanejo deste gosto acentuado pelos sabores salgados, que venceu e dominou inteiramente o outro gosto, o dos sabores doces. O sertanejo come a batata-doce assada com bastante sal, mas quase nunca a utiliza para fazer doce — o doce de batata de tanta fama e atração ao paladar do pessoal da bagaceira dos engenhos e dos moradores das cidades do litoral nordestino. Este sabor salgado da alimentação do sertanejo confirma a nossa indicação anterior, da quase nula influência indígena na cozinha regional, dada a pouca inclinação do nativo, ao consumo do sal, em contraste patente com a tendência do excesso de sal da cozinha sertaneja. Quanto ao teor de iodo da água e do solo nordestino que são as mais ricas fontes naturais desse principio mineral nada se conhece em base científica; apenas se sabe que, apesar de sua distância do litoral, o sertão do Nordeste não constitui [pg. 210] uma área de alta incidência do bócio endêmico, o que faz supor um abastecimento pelo menos suficiente deste metalóide. O mistério da origem das vitaminas também se dissipa quando se busca com 53 Sobre o conteúdo de ferro nos alimentos brasileiros consulte-se o trabalho de Paula Santos, Tito Cavalcanti e F. Moura Campos — “Ferro em Nossos Alimentos”. O Hospital, 1938, XIII, n.° 6. mais detalhe analisar o teor destes vários princípios em certos alimentos de uso habitual no sertão. Assim se vê que a vitamina A existe em relativa abundância em vários componentes da dieta normal do vaqueiro: o leite e a manteiga são suas fontes centrais; o milho amarelo e a batata-doce constituindo elementos subsidiários de abastecimento em betacaroteno. Sendo que o milho verde ainda dispõe de maiores cotas do que o seco, e é bom lembrar que o sertanejo o come desta forma nas épocas de colheita, seja assado ou cozido ou fazendo parte da matéria-prima de suas pamonhas e canjicas. Também algumas frutas silvestres, como o piqui, constituem fontes abundantes desta vitamina.54 De vitaminas do complexo B não há déficit patente no sertão nordestino. O beribéri, forma clínica da carência de vitamina B1, não se apresenta nesta área alimentar nem mesmo nas épocas das agruras da seca, quando as outras avitaminoses surgem em tétrico cortejo. É verdade que registram os cronistas o seu aparecimento excepcional na seca de setenta e sete (1877), nesse ano de negro destaque no calendário das calamidades do sertão. Mas a descrição dada aos casos clínicos é tão imprecisa que é mais provável que se trate de outras carências alimentares. Rodolfo Teófilo, referindo-se àquele surto de beribéri tão atípico, diz que “os sintomas patognomônicos falhavam completamente”.55 Noutros períodos de secas posteriores não se têm registrado surtos epidêmicos de beribéri. Nos registros minu-ciosos que fez Amadeu Fialho56 das carências alimentares agudas ocorridas entre os flagelados de 1933, não encontramos referência a casos de beribéri. A ausência do mal nesta área, mesmo nas épocas de mais dura crise alimentar, reforça nosso ponto de vista já anteriormente manifestado de que, mais do que [pg. 211] uma doença de carência propriamente dita, é o beribéri um desequilíbrio nutritivo provocado pela desproporção entre o teor de glicídios e de vitamina B, desequilíbrio que nunca ocorre na vida incerta do nordestino. Já as formas frustas de avitaminose B1 é possível que existam, como existem em quaisquer outras áreas alimentares, mesmo as mais favorecidas do mundo. Também a pelagra, praga tão ligada às áreas alimentares do milho, que, como 54 Campos, F. Moura, Guerra, M., e Junqueira, N., Vitaminas A e B em Óleo de Piqui, Livro Jubilar do Prof. Cantídio Moura Campos, 1942. 55 Teófilo, Rodolfo, História da Seca no Ceará (1877 a 1880), 1883. 56 Fialho, Amadeu, “Relatório sobre a Seca de 1932.” Em relatório da Comissão Médica de Assistência e Profilaxia aos Flagelados do Nordeste, Rio, 1936. já vimos, durante muito tempo se pensou tratar-se de uma intoxicação crônica produzida pelas toxinas deste cereal, constitui doença excepcional no sertão. Aparece quando muito em casos esporádicos e isto mesmo em proporção bem menos abundante do que na zona da mata, onde a busca bem orientada dos especialistas vem revelando ser bem alta a incidência do mal. É que na zona do brejo se associa à carência alimentar um fator complementar muito importante na etiopatogenia do mal, o alcoolismo crônico, que é de excepcional raridade no sertão, sendo o sertanejo o tipo de maior sobriedade de todo o Brasil. As arriboflavinoses, caracterizadas por feias boqueiras que assolam os meninos dos engenhos, só surgem no sertão na época das secas, entre os filhos dos retirantes. Tanto esta como as outras formas de carência em vitamina B2 são raridades clínicas entre os sertanejos com sua economia organizada, com seu gado no pasto, e com suas vazantes reverdecendo de plantações. Já na seca a história é outra, e lá chegaremos. O problema da vitamina C no sertão apresenta também aspecto de extrema curiosidade para o estudioso desta questão. A quase que ausência de frutas cítricas nesta zona faria logo pensar em ondas pestilentas de escorbuto grassando com furor nesta área geográfica e, no entanto, o mal só se manifesta em escala apreciável nas agruras da seca. Nos tempos normais é tão raro quanto nas zonas de bom consumo de laranja e de limão. É que existem no sertão, nesta estranha e desconhecida dieta do sertanejo, fontes ignoradas de apreciável riqueza em ácido ascórbico. Esta riqueza começa pelo leite que se revelou no sertão às análises de O. Parahim57 com apreciável teor de [pg. 212] vitamina C. Principalmente o leite de cabra que o sertanejo tanto consome e que se mostrou quase duas vezes mais rico nesta vitamina do que o leite de vaca. É claro que o teor em ácido ascórbico varia largamente sob a ação de múltiplos fatores, principalmente do tipo de pastagem de que o gado se alimenta. Nas épocas de chuvas, quando o pasto está verde e é representado pelas várias espécies de gramíneas, o teor vitamínico do leite alcança o seu máximo, porém nas épocas secas, em que o gado se sustenta com cactáceas e bromeliáceas, o teor baixa até quase reduzir-se a zero. É que, enquanto as gramíneas são quase todas 57 São os seguintes os teores médios de ácido ascórbico encontrados no sertão de Pernambuco: leite de vaca. 19,3 miligramas por litro; leite de cabra. 36.1 miligramas por litro (Orlando Parahim, A Vitamina C na Alimentação Sertaneja, 1941). forragens muito ricas em vitamina C, as cactáceas e as bromeliáceas apresentam um conteúdo insignificante deste princípio regulador. Enquanto o capim de planta, o capim jaraguá e o capim alpiste contêm, respectivamente, as doses de 116, 45 e 56 miligramas de ácido ascórbico por cem, o teor da palmatória, do mandacaru e da macambira não vai além de 3,9, 0,35 e 9,25, respectivamente. Com a chuva não falta, portanto, vitamina C nem para o gado nem para a gente do sertão. E não é só o leite que se mostra bem provido desta vitamina na área sertaneja. O milho verde, o feijão verde e o jerimum ou abóbora, que fazem parte habitualmente do menu do caatingueiro, contêm ácido ascórbico em doses que não estão longe das encontradas nas frutas cítricas. Mesmos alguns frutos silvestres, como o umbu, o cajuí e outros ainda mais desprezados, como o juá e o fruto do quibá,58 se têm mostrado extraordinariamente ricos nesta vitamina. Diante desta abundância de vitamina C no meio natural do sertão, muito maior do que se presumia até bem pouco, já não há razão para se admirar que o escorbuto não se manifeste nas épocas de vida normal nesta região. Orlando Parahim procurava explicar o fato aduzindo outras causas presumíveis de tal fenômeno [pg. 213] biológico. Julgamos interessante transcrever na íntegra as explicações que este autor procura dar ao fato, porque algumas delas, embora estejam longe de sua comprovação científica, abrem, no entanto, um mundo de fecundas sugestões aos estudiosos da matéria: “Aqueles que demoram no sertão e estudam atentamente os hábitos de vida, o regime de trabalho e o tipo do homem surpreendem-se em face da raridade do escorbuto, da extraordinária resistência física e pasmosa energia do sertanejo, submetido habitualmente a uma dieta alimentar precária e desequilibrada, vez por outra restringida por estes períodos de fome que são as secas. Para explicar fatos que parecem, pelo menos à primeira vista, paradoxais, ocorre-nos sugerir o seguinte: a) influência favorável da luz solar talvez ativando a síntese da vitamina C no organismo; b) maior conteúdo vitamínico nos alimentos naturais da luz solar intensa; c) presença de quantidades apreciáveis de vitaminas C em alguns alimentos até agora não devidamente estudados (macaxeira, abóbora ou jerimum, milho verde, 58 O quibá é o fruto de uma cactácea do gênero opuntia, palmatória comum tanto no sertão do Nordeste como em outras áreas do continente americano. Nos Estados Unidos, a fruta é conhecida pelo nome de pera espinhenta — prickly pear — e nos países hispano-americanos pelo nome de tunas. Segundo as determinações levadas a efeito por Orlando Parahim, esta fruta é uma das mais ricas fontes vegetais em vitamina C, contendo em média 40 miligramas feijão verde, goiabas e muitos frutos silvestres); d) possibilidades de aproveitamento máximo da vitamina desses e de outros alimentos pelo nosso organismo ; e) possível adaptação do organismo dos sertanejos a regimes pobres; f) quiçá sejam as necessidades cotidianas de vitamina C menores na realidade do que as apresentadas teoricamente nos livros, uma vez que não há ainda acordo definitivo sobre o assunto, divergindo notavelmente as cifras propostas pelos diferentes autores; g) talvez esteja em causa a influência sinérgica de outros fatores dietéticos ainda não conhecidos; h) possivelmente, o mecanismo metabólico, o aproveitamento e as relações da vitamina C com os demais componentes alimentares são fenômenos mais complexos do que geralmente se admite.” Não há problema de vitamina D para o sertanejo. O céu límpido, quase sempre despido de nuvens, e o ar seco, quase isento de umidade, permitem que o sol despeje como maná divino muita vitamina D no sertão. É que, com poucos obstáculos a vencer na atmosfera, os raios ultravioleta do espectro solar alcançam o solo sertanejo numa proporção tal que a luz do sol nesta zona é capaz de curar o raquitismo experimental com a mesma impressionante rapidez com que o fazem as lâmpadas de quartzo dos laboratórios. [pg. 214] A extraordinária riqueza em raios ultravioleta da luz solar nas regiões áridas e semi-áridas é um dos motivos condiciona-dores da grande salubridade dos seus climas. Tal riqueza é capaz de esterilizar o meio ambiente de inúmeros agentes patogênicos. No Saara, conforme refere E. F. Gauthier, os grandes traumatismos se curam sem antissépticos de nenhuma espécie, com uma facilidade surpreendente. Conta este autor que o explorador Rohlfs, “tendo sido deixado como morto na região de Sãoura, se restabeleceu de suas feridas sem nenhum cuidado médico, com a simples graças de Deus”.59 No Nordeste brasileiro o clima salubre do sertão “atalhou o próprio cólera-morbe em seu surto devastador”.60 A síntese da vitamina D ao nível da pele garante as necessidades do organismo neste princípio alimentar. Daí a inexistência do raquitismo típico nesta área. O que se chama erradamente de raquíticos, de meninos raquíticos no sertão, são tipos enfezados, subnutridos, carenciados de outros muitos elementos nutritivos, de ácido ascórbico por 100 em2. O juá contém 24 miligramas e o umbu cerca de 31 miligramas. 59 Gauthier, E. F., Le Sahara, 1928. 60 Almeida, José Américo de, A Paraíba e Seus Problemas, 1937. e que não se puderam desenvolver normalmente, acossados pelo bombardeio das fomes muito seguidas, naquelas fases em que as secas se amiudam além de certos limites. Não são, na verdade, raquíticos estes “filhos da seca” que aparecem como um signo de fatalidade em inúmeras famílias sertanejas. São esfomeados e carenciados de toda espécie, menos raquíticos, porque, quanto mais escasseiam as outras fontes de alimentos no Nordeste, mais se acende e se intensifica a grande fonte de vitamina D — a luz do sol. E assim se completa a análise da dieta do sertanejo em tempos normais. Dieta que, sem ser nenhuma maravilha de perfeição e abundância, está, no entanto, muito acima do que era de esperar de um meio aparentemente tão pobre e tão pouco dadivoso. Dieta que pelo menos se mostra eficiente para evitar o aparecimento das carências endêmicas de toda natureza e para dar ao sertanejo esta fibra desadorada de lutador, capaz de enfrentar impávido o tremendo fatalismo climático das secas. A verdade é que, com chuvas regulares, com as águas transbordando das margens dos seus rios e fecundando as suas terras trabalhadas, o sertanejo vive mesmo uma época de abundância [pg. 215] e fartura. Época em geral curta, a deste sertão florido e acolhedor, que a musa sertaneja canta num tom ingênuo: Quando o inverno é constante O sertão é terra santa; Quem vive da agricultura Tem muito tudo que planta. A fartura e boa safra, Todo pobre pinta manta. Dá milho, feijão, Tem fruta, tem cana, Melão e banana Arroz, algodão. As melancias dão Tantas como areia. Jerimum campeia Na roça faz todo Vive o povo todo De barriga cheia. Com vinte dias de chuva Logo após a vaquejada Chega a fartura do leite Manteiga, queijo e coalhada. No tempo da apartação, Isto é que é festa falada. Chega a abundância, Reina a alegria, Passa a carestia, Passa a circunstância. Com exuberância A lavoura duplica E uma vida rica Passa o sertanejo; Carne gorda e queijo, Pamonha e canjica...61 [pg. 216] 61 Versos do improvisador popular Antônio Batista Guedes e que fazem parte do seu poema “A Vida Sertaneja”, transcritos da obra Vaqueiros e Cantadores, de Luiz da Câmara Cascudo. O esforço que o sertanejo desenvolve para obter os frutos desta fartura transitória é titânico e como que o absorve inteiramente, não lhe deixando tempo nem energia para cuidar de outros aspectos fundamentais da vida.62 Esta é uma das 62 “O que choca o espírito menos apercebido dos fenômenos sociais que se relacionam, propriamente, com a existência do homem, é avistar em pleno deserto, à distância de léguas de um núcleo populoso qualquer, um casebre de taipa com a coberta de palha, onde algumas figuras humanas se movem, tirando de um meio falto de tudo os seus elementos de subsistência. A gente que vive assim nas caatingas sertanejas vive da vaqueirice de algumas cabeças bovinas e de um número um pouco maior de caprinos. No tratamento deste número reduzido de animais de que o vaqueiro percebe como remuneração apenas a quarta parte da produção, ele consome a maior parte de sua ativida-de; no cultivo de uma pequena área de milho e feijão gasta outra parte e na caça de animais silvestres, põe o restante que lhe sobra do tempo, a que não dá nenhum apreço.” Hildebrando Menezes. “Condições do Trabalhador razões da estagnação em que permanece o sertão, apesar do espírito empreendedor do sertanejo. Causa da falta do conforto de suas habitações, da rusticidade do vestuário, do atraso mental em que vivem atolados. É que constitui um trabalho de hércules, capaz de esgotar as reservas e energias de qualquer povo, este de retirar de um solo semi-árido recursos alimentares suficientes e variados para a vida do homem economicamente segregado em tais confins. Se à custa deste constante labor pode o sertanejo manter o equilíbrio da sua economia alimentar à base da produção, que as quadras chuvosas fornecem, toda e qualquer anomalia que surja no regime das precipitações — um simples retardamento no início das chuvas, sua interrupção antecipada ou sua inopinada ausência — vem a desencadear tremenda crise de alimentos na região. 9. Com as secas desorganiza-se completamente a economia regional e instala-se a fome no sertão. Os seus efeitos sempre desastrosos são de amplitude variada, conforme se trate de seca parcial, limitada a pequena área, ou uma grande seca, abrangendo considerável extensão, ou, finalmente, de uma seca excepcional, das que atingem de vez em quando todo o sertão em bloco. Sobre as diferentes categorias de secas a que está exposto o sertão, veja-se o que nos diz Luiz Augusto Vieira: “A crise de [pg. 217] produção se manifesta então nestas regiões que, se pequenas em áreas, poderão ser socorridas pelas regiões vizinhas, não atingidas pela anomalia. Estamos diante de uma seca parcial. Quando essa anomalia climática atinge extensões territoriais consideráveis, como aconteceu em 1915 com o Estado do Ceará, e em 1877 e 1932 com toda a região semi-árida, então se trata de uma seca propriamente dita, com todos os característicos de calamidade pública. Normalmente as crises climáticas, mesmo as mais extensas, ficam adstritas ao período de um ano, mas não é raro que esse desequilíbrio alcance um período maior, dois anos e até três, como aconteceu nas duas maiores crises até hoje registradas: a de 1877 e a de 1932. Nesse caso trata-se de uma seca excepcional, de intensidade extraordinária, de conseqüências indescritíveis, com o cortejo de misérias e humilhações, do conhecimento de todos os brasileiros. Pelo que acabamos de ver, as crises do Nordeste estão sujeitas a intervalos diferentes: a seca parcial que obedece a um Rural nas Zonas do Sertão Agreste”, 3.a Semana de Ação Social, Recife, 1939. período da ordem de 4 a 5 anos. A seca generalizada, cujo período parece ser de 10 ou 11 anos, e a seca excepcional, que parece obedecer ao ciclo de 50 anos. Esclareçamos, porém, que esses números nada têm de precisos, pois não foi ainda descoberta a lei que rege a freqüência das secas. Essas crises têm surgido sempre de forma imprevista, surpreendendo não só os pobres e heróicos habitantes do Nordeste, como também os próprios governantes que nunca souberam aproveitar as épocas de bonança para acumular reservas capazes de enfrentar a iminência de crises futuras.”63 A trágica história destes cataclismos periódicos, desse calendário de calamidades, tem sido registrada por grandes escritores brasileiros, desde um Euclides da Cunha, condensando em quadros de fulgurante beleza todos os horrores indescritíveis da seca, a um Felipe Guerra, com as tétricas descrições de detalhes macabros acerca dessa heróica epopéia dos nordestinos. Tomás Pompeu, Rodolfo Teófilo, Ildefonso Albano, José Américo de Almeida, Rachel de Queirós, Alceu de Lellis, Clodomiro Pereira e tantos outros nos apresentaram em páginas de intenso realismo o excruciante espetáculo de fome e de miséria. Não vamos repisar no presente ensaio estas cenas já bem conhecidas de todo o país, projetadas com tal intensidade [pg. 218] na consciência de todos que, como diz Gilberto Freyre, “a palavra Nordeste nos evoca sempre o espetáculo das secas. Quase não sugere senão as secas, os sertões de areias secas rangendo debaixo dos pés”.64 Utilizaremos destes estudos e relatos apenas o essencial para a compreensão de como se instala a fome no sertão, nestas épocas calamitosas. Para o estudo de suas principais manifestações e de suas conseqüências mais marcantes sobre o estado físico e mental dessa gente, sobre sua vida orgânica e sobre sua vida cultural. Nestes sinistros períodos em que o clima se nega a regar com chuvas benfazejas o solo adusto da caatinga, toda a vida regional se vai exaurindo da superfície da terra. O despovoamento da região resulta do fato de que não só os animais domésticos, como os que fazem parte da fauna nativa, emigram ou são em sua maior 63 Vieira, Luiz Augusto da Silva, “A Rodovia e o Combate à Seca no Nordeste”, Boletim da I.F.O.C.S., vol. X, n.° 12, 1938. 64 Freyre, Gilberto, Nordeste, 1937. parte dizimados nas épocas de secas prolongadas. Von Spix e Von Martius,65 atravessando o sertão baiano numa destas quadras secas, admiraram-se da desolação da paisagem regional, quase isenta de vida: “a fauna parecia ter completamente abandonado este deserto adusto. Só observamos vida e movimentação nas casas de cupim, de forma cônica, tendo às vezes até cinco pés de altura. Aves e mamíferos pareciam ter emigrado para regiões mais ricas de água.” As culturas desaparecem dos roçados com as sementes enterradas na poeira esturricada ou com as plantas tenras dessecadas pela soalheira. O pasto seco se esfarinha e é arrastado pelos ventos de fogo, ficando o gado à míngua de água e de alimento. Recorre o vaqueiro ao recurso das ramas e dos cactos, queimando os espinhos dos mandacarus e dos facheiros e picando os seus gomos a facão para evitar a extinção imediata do rebanho. As próprias reses esfomeadas procuram arrancar com os cascos e com as bocas sangrando os espinhos dos cactos aquosos que lhes mitiguem por um momento a fome e a sede.66 [pg. 219] Não dura, porém, muito que o gado se deixe aniquilar pela morrinha, pela inanição e pelas pestes, e comece a entrevar, a cair e a morrer como moscas. Os pátios das fazendas vão ficando coalhados de cadáveres, transformando-se as campinas em pouco tempo em grandes ossários, com as carcaças alvejando na amplitude cinzenta dos chapadões descampados. Golpeado a fundo pelo cataclismo, com suas fontes de produção estagnadas, o sertanejo quase sempre desprovido de reservas cai imediatamente num regime de subalimentação. Começa por limitar a quantidade de sua ração e a variedade de seus componentes. A sua dieta nesta fase se reduz logo a um pouco de milho, de feijão, de farinha. Mas se a seca persiste, estes poucos gêneros desaparecem do mercado, ficando o sertanejo reduzido aos recursos das “iguarias bárbaras”, das “comidas brabas” — raízes, sementes e frutos silvestres de plantas incrivelmente resistentes à dessecação do meio ambiente. 10. Fazem parte desta dieta forçada dos flagelados pela seca inúmeras 65 Von Spix e Von Martius — Através da Bahia. Tradução e notas de Pirajá da Silva e Paulo Wolf, 1938. 66 Marion, Los Maravillas de la Vegetación, 1873. substâncias bem pouco propícias à alimentação, das quais os habitantes de outras zonas do país nunca ouviram falar que fossem alimentos. Substâncias de sabor estranho, algumas tóxicas, outras irritantes, poucas possuindo qualidades outras além da de enganar por mais algumas horas a fome devoradora, enchendo o saco do estômago com um pouco de celulose. “Esgotados os recursos naturais de alimentação, tangidos pela fome, estes infelizes se atiram aos últimos recursos vegetais, em geral impróprios à alimentação, ricos apenas de celulose, por vezes mesmo tóxicos, tais como a mucunã, e a macambira, que tantos casos fatais ocasionaram nas secas passadas e que agora mesmo alguns produzem”, escreveu Amadeu Fialho no seu “Relatório sobre a seca de 1932”. Do cardápio extravagante do sertão faminto fazem parte as seguintes iguarias bárbaras: farinha de macambira, de xique-xique, de parreira brava, de macaúba e de mucunã; palmito de carnaúba nova, chamada de guandu; raízes de umbuzeiro, de pau-pedra, de serrote ou de mocó, maniçoba e maniçozinha; sementes de fava-brava, de manjerioba, de mucunã; beijus de catolé, de gravatá e de macambira mansa. Quando o sertanejo lança mão destes alimentos exóticos é que o martírio da seca já vai longe e que sua miséria já atingiu [pg. 220] os limites de sua resistência orgânica. É a última etapa de sua permanência na terra desolada, antes de se fazer retirante e descer aos magotes, em busca de outras terras menos castigadas pela inclemência do clima. A musa sertaneja, em sua simplicidade comovedora, canta em versos melancólicos este cardápio das quadras calamitosas, tão diferente do das épocas de fartura: Xiquexique, mucunã Raiz de imbu e colé Feijão brabo, catolé Macambira, imbiratã Do pau-pedra e caimã A parreira e o murão Maniçoba e gordião Comendo isso todo o dia Incha e causa hidropisia Foge, povo do sertão!67 São ainda incompletos os conhecimentos que possuímos acerca desses alimentos selvagens. Alguns deles foram por nós estudados, com a colaboração dos nossos técnicos, no Instituto de Nutrição, mas estamos ainda longe de uma visão conjunta do valor nutritivo deste cardápio exótico. Contudo, baseados em tais estudos, nas afirmações populares, e nos poucos conhecimentos científicos recolhidos de outras fontes, vamos repassar cada um desses alimentos. Da macambira — (Encholirion spectabile) utilizam os flagelados o bulbo, o qual cozinhado durante algumas horas é depois exposto ao sol para secar. Seca a macambira cozida, é ela pilada, obtendo-se, desta forma, uma farinha grossa como pó de serra, a qual se revelou, nas análises, excepcionalmente rica em cálcio, mais rica do que o queijo. Com tal produto fabricam-se beijus e mingaus. Das diferentes espécies de gravatás ou croatás — retira-se produto idêntico aos das macambiras [pg. 221]. A parte alimentar do xiquexique — (Cereus setosus) — é a sua medula, a qual é consumida assada com aipim ou servindo para o fabrico de farinha obtida dos tipos mais enxutos.68 Todas estas farinhas são bastante pobres em amido, mas parecem inocentes, isentas de propriedades tóxicas. É verdade que, segundo referem as crônicas locais, sempre que se estabelece o seu uso na alimentação humana surgem diarréias incoercíveis que fazem pensar na toxidez destas plantas, mas o fenômeno se explica como uma simples manifestação de carência. Quando se chega ao uso das farinhas-de-pau, já a carência alimentar vai longe e os surtos de diarréia constituem apenas manifestações obrigatórias de uma determinada fase do processo de carência protéica e vitamínica. As farinhas brabas, quando muito, intensificam este mal pela irritação que produzem com seu excesso de celulose nas mucosas do aparelho digestivo, inflamadas pelas carências do complexo B, que se associam às carências em proteínas. Tanto não se trata de toxidez que se comem destas farinhas 67 Versos inéditos de um desafio entre Nicandro Nunes do Nascimento e Bernardino Nogueira, cantando as epopéias da fome de 1877; versos fornecidos pelo Sr. Pedro Batista a José Américo de Almeida, estampados por este autor em sua obra — A Paraíba e seus Problemas. 68 Sobre o preparo da farinha de xiquexique, assim como de outros produtos obtidos da flora desértica, consulte-se o capítulo “A Alimentação do Brasileiro”, no livro de Renato Souza Lopes nas quadras de abundância sem que se manifestem as tais enterites diarréicas. Já a mucunã — (Mucuna urhens) — constitui um recurso chamado de desespero, sendo acusada de tóxica. Essa planta, da família das leguminosas, é uma trepadeira que produz grandes vagens, encerrando de três a cinco sementes extremamente duras a achatadas de cor vermelha ou preta (donde as suas variedades — a mucunã vermelha e a mucunã preta). Nos períodos de fome intensa, o sertanejo faz uso, segundo Rodolfo Teófilo, dos dois tipos: “os retirantes, prevenidos sempre contra suas propriedades nocivas, se utilizam dela quando lhes têm faltado todos os meios de subsistência. Usam de ambas as espécies. Da mucunã vermelha alimentam-se não só da fécula contida na semente como ainda de uma matéria amilácea extraída da raiz. Da mucunã preta só se utilizam da raiz, desprezando as sementes que, dizem eles, são bravas.”69 Para preparo da farinha usam complicado processo, tendo como finalidade eliminar o suposto veneno que a planta encerra. Retiram o duro invólucro das sementes [pg. 222] e com as mesmas cozidas e reduzidas a massa procedem à sua lavagem em nove águas, sendo depois convenientemente esprimida antes de ser levada ao fogo para torrar. No preparo da farinha da raiz da mucunã vermelha, lava-se também o produto em muitas águas, que saem mais tóxicas que a manipuera da lavagem da mandioca. Com todos esses cuidados o produto é ainda considerado pelo povo mais nocivo do que útil, havendo um anexim popular no sertão que diz: “A mucunã suja mata e lavada aleija.” Dos seus efeitos nocivos destaca Rodolfo Teófilo o aparecimento da anasarca, e nas mulheres, a suspensão das regras por muito tempo.70 Dada a alta importância econômica da mucunã na vida do sertanejo — sendo suas raízes longas e grossas, uma alta fonte fornecedora de farinha, referindo Rodolfo Teófilo que só num pé, que pela haste ninguém avaliaria o número de raízes, viu retirar quinhentos quilos da mesma — resolvemos iniciar por esta planta os estudos de categoria experimental acerca dos alimentos “brabos” do N Analisamos o valor nutritivo da semente da mucunã, do tipo vermelho, que se — A Ciência de Comer e de Beber. 69 Teófilo, Rodolfo, Monografia sobre a Mucunã, 1888. 70 A suspensão das regras deve ser consequência exclusiva da inani-ção. Todos os experimentadores são unânimes em afirmar que a ina-nição prolongada paralisa as funções glandulares que dirigem o ciclo menstrual. Assim, durante os anos de fome da Rússia Soviética, de 1918 a 1921, os casos de amenorréia subiram da taxa de 0,4% em 1915 para 2,5% em 1918 e 6% em 1919 (P. Sorokim, Man and Society in Calamity, 1942). revelou altamente apreciável, com um teor protéico de 28,50%, de 54,57% de hidrocarbonados e de 2,25% de cinzas minerais. Trata-se, pois, de um alimento vegetal extremamente rico em proteínas, dos mais ricos do mundo, quase idêntico à soja (com 38%) e altamente energético por seu conteúdo de hidrocarbonados. De sua riqueza de sais, destacam-se os teores de cálcio de 104 miligramas por cento e de ferro de 5 miligramas por cento. Contém ainda a semente da mucunã 390 miligramas de vitamina B1 por cento. Cozida a semente, ela adquire uma consistência e sabor agradáveis, permitindo um consumo satisfatório, sendo que os estudos experimentais não revelaram nenhuma toxidez da mesma. Realizamos longos estudos experimentais sobre o valor nutritivo e a suposta toxidez da mucunã, chegando à conclusão de que a mesma é destituída de toda toxidez, correndo os fenômenos observados tanto ao homem como nos animais alimentados [pg. 223] com a mesma planta por conta de graves carências, principalmente de certos aminoácidos indispensáveis. Veja-se sobre o assunto os nossos trabalhos “Os Alimentos Bárbaros dos Sertões do Nordeste”, em colaboração com Emília Pechnik, Orlando Parahim, Ítalo Viviani Mattoso e J. M. Chaves — Trabalhos e Pesquisas do Instituto de Nutrição, vol. I — 1948 e “Novas Pesquisas Sobre a Mucunã”, em colaboração com Hélio Luz e Emília Pechnik — Trabalhos e Pesquisas, n.° 2 — 1949. As nossas observações provando a ausência de toxidez da mucunã foram confirmadas pelos estudos experimentais do Prof. Mário Taveira, Catedrático de Química Toxicológica da Faculdade Nacional de Farmácia, e do Prof. João Cristóvão Cardoso, catedrático de Físico-Química, da Faculdade Nacional de Filosofia. Trata-se, pois, de uma leguminosa de alto valor nutritivo e atóxica, que, considerando sua extraordinária resistência aos períodos de seca, deveria ser plantada no sertão como um valioso recurso para combate à fome nos períodos de calamidade. A goma da carnaubeira é extraída dos palmitos das plantas novas — os guandus — quando ainda não está formado o seu estirpe. Tratando-se a massa do palmito com água, é retirada sua fécula. Esta alimentação, segundo Rodolfo Teófilo, “além de inocente, é muito nutritiva. Não a encontravam, porem, em abundância: além de serem um pouco raros os guandus, era penosa a extração do palmito para braços enfraquecidos e cansados”. A raiz — cuca — do umbuzeiro é formada de um tecido esponjoso ricamente embebido de água. A riqueza dágua é tamanha que não se pode chamar o produto de comida, mas de verdadeira bebida. Numa amostra de raiz que fizemos vir ao sertão do Nordeste por via aérea, encontramos um teor dágua de 96%, o que faz supor que, colhido de fresco, o teor aquoso da raiz seja ainda mais elevado. A maniçoba e a maniçobinha são euforbiáceas com raízes bastante ricas em amido, assemelhando-se muito às raízes da mandioca. Por processo especial obtém o sertanejo uma boa produção de féculas destas raízes. Também das raízes do pau-de-mocó — (Tipoana especiosa) — chamado em certas zonas pau-de-serrote ou pedra, por sua tendência a proliferar nos solos pedregosos, fabricam uma farinha usada em mingaus. A sua fabricação se obtém pela lavagem da cortical da raiz, deixando-se [pg. 224] a seguir decantar a goma que se deposita no fundo. Embora a planta queimada produza uma fumaça venenosa, capaz de cegar, a farinha é inócua. Entretanto, a fumaça que resulta de sua combustão afirmam ser tão venenosa que, posta em contato com os olhos, produz cegueira, a qual é precedida de extrema inflamação das conjuntivas, resultando uma oftalmia purulenta. Nos sertões, para destruir as formigas, dizem, basta folear os formigueiros com pau-de-mocó. Ainda sobre a cegueira produzida pela fumaça desta planta diz o Dr. Mello Moraes: “a fumaça da madeira desta árvore cega.” Almeida Pinto, em seu Dicionário de Botânica, exprime-se assim: “Asseveram-nos pessoas fidedignas que a fumaça desta madeira cega em pouco tempo, do que já tem havido exemplo.” Acreditamos, no entanto, muito exageradas as propriedades nocivas da fumaça do pau-de-mocó. Ouvimos, a respeito, dezenas de emigrantes e acabamos por nos convencer de que é fato que a fumaça daquela madeira ataca seriamente o órgão da visão, mas não a ponto de inutilizá-lo ao contato de uma simples resfrega. (Rodolfo Teófilo, História da Seca no Ceará.) Herbert Smith, no livro Brazil, the Amazon and the Coast, fazendo certa confusão, afirmou que a farinha do pau-de-mocó, quando comida, cegava. E outro escritor americano, mais recente, Lynn Smith, caiu no mesmo engano quando escreveu, em Brazil: People and Institutions, as seguintes palavras: the roots of a shrub called pao-de-mocó whose poisons (...) for the destruction of ants. (...) But the refugees, desperate from hunger on the long trails of the unfortunate, and not knowing at the noxious properties of the tuber, cooked and ate it. A few hours after the ingestion of so toxic a root they were completely blind. Esta citação final atribui Lynn Smith a Rodolfo Teófilo. O engano, no entanto, está no fato de que na sua História da Seca no Ceará, Rodolfo Teófilo diz estas palavras não mais acerca do pau-de-mocó mas, conforme se pode verificar, sobre “uma outra planta de que se alimentavam os retirantes e que muitas vítimas fez... uma trepadeira que sentimos não nos ter chegado às mãos a fim de poder descrevê-la”. Certamente a leitura destes parágrafos em português por um estrangeiro, embora com relativo conhecimento da língua, o conduziu ao engano. Com as sementes torradas de manjerioba — (Cacia occidentalis) — fazem no sertão uma bebida que substitui o café. [pg. 225] É o café de manjerioba. Além destas plantas enumeradas, há outras de que o sertanejo acossado pela fome lança mão, sem atentar para o seu valor como alimento nem para a sua possível toxidez. Refere Rodolfo Teófilo a existência de uma trepadeira de haste delicada e flores azuis, que insere sua haste num tubérculo de cor vermelha. Este tubérculo quando comido pelos retirantes desavisados produz uma cegueira quase que instantânea. Não conseguiu este estudioso das secas do Nordeste identificar o nome daquela planta, mas conta dos seus terríveis efeitos os seguintes episódios: “Pelas informações que pudemos colher e todas fornecidas pelos desgraçados que dela usaram, a planta é trepadeira de haste muito delicada, flores azuis, inserindo-se a haste num tubérculo de cor vermelha. Os retirantes desesperados de fome nas longas estradas do infortúnio e desconhecendo as propriedades nocivas de tal batata cozinhavam-na e comiam-na. Algumas horas depois da ingestão de fécula tão tóxica, ficavam completamente cegos. Disse-nos um velho que cegara havia dois meses, que não sentiu incômodo algum, nem dor nos olhos nem perturbações no estômago, nada enfim que lhe alterasse a saúde; que, comendo a batata com dois filhos menores, as quatro horas da tarde, pela manhã a nenhum foi concedido ver a luz do dia. Tinham os olhos limpos e perfeitos.” Foi esta referência de Rodolfo Teófilo, em História da Seca no Ceará, que deu lugar à confusão a que aludimos antes entre esta planta, que quando comida cega, e o pau-de-mocó, confusão a que foi levado Lynn Smith. Com esta insistência sobre este assunto visamos esclarecer o mecanismo do mais que justificável engano do autor do Brazil: People and Institutions, obra das mais notáveis, mais bem informadas e de mais sadia metodologia das que se têm escrito sobre o Brasil. Embora com os conhecimentos incompletos que se têm dos alimentos brabos não seja possível determinar com rigor o valor nutritivo da dieta dos retirantes da seca, não resta nenhuma dúvida de que se trata de um regime extremamente carenciado, não sendo possível ao organismo manter-se por muito tempo com tal alimentação. Ademais, esses recursos silvestres são limitados e, em pouco tempo, com um exército de raizeiros à sua cata, rareiam e se esgotam por completo. Baseado em testemunhas locais, conta Ildefonso Albano como na famosa seca de [pg. 226] 1915 quase se acabou a macambira em certas regiões do sertão nordestino.71 11. Assim, esgotadas as suas esperanças e reservas alimentares de toda ordem, iniciam os sertanejos a retirada, despejados do sertão pelo flagelo implacável. Sem água e sem alimentos, começa o terrível êxodo. Pelas estradas poeirentas e pedregosas ondulam as intermináveis filas dos retirantes “como se fossem uma centopéia humana”.72 Homens, mulheres e crianças, todos esqueléticos, “deformados pelas perturbações tróficas, com a pele enegrecida colada às longas ossaturas, desfibrados e fétidos pelo efeito da auto Afrânio Peixoto dá-nos impressionante descrição sobre a arrancada dos retirantes, nestes trágicos momentos: “Queimam-se os espinhos e dá-se ao gado, cujos beiços se enrijecem com as cicatrizes que os acúleos lhes deixaram, sangrentos, doloridos, depois calejados... Vai-se buscar água aos poços ou cacimbas a quatro léguas de distância, em lombo de burro, nos jegues incansáveis. Mas o cacimbão vai mostrando o fundo. Se o gado morre à míngua, não há mais a esperar, a retirada... Uma trouxa do que se pode salvar e levar, e com os outros que passam na estrada, é a mesma amargura, o calvário de mais passos apenas... O homem esgota tudo em torno para nutrir-se: o cardo, o xique-xique, em beijus; a batata da 71 Em carta escrita em 1915 pelo vigário de Russas, no Ceará, relatando os horrores da seca, lê-se o seguinte: “As alimentações silvestres estão acabadas, não há mais palmitos nas várzeas e a pouca macambira que existe é arrancada na chapada do Apodi com quatro léguas ou mais de distância dessa cidade.” Ildefonso Albano, O Secular Problema do Nordeste, Rio, 1918. 72 Duarte Filho, João, O Sertão e o Centro, 2.ª edição, 1939. 73 Almeida, José Américo de, op. cit. macambira em farinha; a maniçoba como se fora mandioca; as sementes da mucunã torradas, pisadas, lavadas, relavadas em nove águas, em goma; carnaúba em sopa; o umbu é um agrado da providência... O palmito da carnaúba, a palmeira providencial, até ela, último recurso... Que extrair desta parca e até, às vezes, nociva alimentação? Nem alento, nem esperança... Fugir, se não se cai [pg. 227] vencido ante esta resolução que tanto custa... Deixar a terra onde se sofre tanto...”74 São as sombrias caravanas de espectros caminhando centenas de léguas em busca das serras e dos brejos, das terras da promissão. Com os seus alforjes quase vazios, contendo quando muito um punhado de farinha, um pedaço de rapadura; a rede e a filharada miúda grudada às costas, o sertanejo dispara através da vastidão dos. tabuleiros e chapadões descampados, disposto a todos os martírios. Sem recursos de nenhuma espécie, atravessando zonas de penúria absoluta, gastando na áspera caminhada p resto de suas energias comburidas, os retirantes acentuam no seu êxodo as conseqüências funestas desta fome. Vê-los é ver, em todas as suas pungentes manifestações, o drama fisiológico da inanição. Nas descrições que nos legaram os cronistas e os médicos, testemunhas oculares principalmente das secas de excepcionais proporções, como as de 1744, de 1790, de 1877, de 1846, de 1915 e de 1932, encontram-se instantâneos destes retirantes em todos os graus e formas da penúria orgânica, caindo de fome à beira das estradas. Da vasta literatura referente à seca de 1877 queremos chamar a atenção de duas obras significativas. Uma, o romance Fome, de Rodolfo Teófilo, no qual o ilustre farmacêutico e escritor cearense conta as peripécias da vida sertaneja nos anos de inexcedível sofrimento que decorreram de 1877 a 1879. Medeiros e Albuquerque, em crítica que fez a este trabalho de ficção, comparou-o ao célebre romance de Knut Hamsun, Fome acentuando mesmo tratar-se de uma obra de mais sinceridade que a do romancista norueguês: “Se, porém, é mais incorreto e por assim dizer tumultuoso, tem a superioridade de ser mais verdadeiro. Knut Hamsun talvez nunca tivesse de fato sentido — sentido ao menos de um modo intenso por dias, meses e anos — o que ele pretendia descrever. A Rodolfo Teófilo não faltaram infelizmente os modelos. Por isto o seu livro é vivido. Sente-se que é verdadeiro. É a fome de um povo inteiro, a fome coletiva entre os sertanejos.” A referência a esta 74 Peixoto, Afrânio, Clima e Saúde, 1938. 228 crítica de Medeiros e Albuquerque serve, no entanto, para mostrar o valor do trabalho nacional, se não como uma obra-prima de estilo ou de técnica ficcionista, pelo menos como um documentário honesto daquela época de calamidades. A segunda obra a destacar [pg. 228] é a de Herbert H. Smith, Brazil, the Amazon and the Coast, cuja significação se impõe por ter o autor estrangeiro assistido diretamente aos horrores da seca e às suas terríveis repercussões na capital do Ceará. Da seca de 1915 tem-se um documentário admirável na obra de Rachel de Queiroz, O Quinze. Romance em que, mais do que a miséria orgânica dos sertanejos esfomeados, é retratada em traços seguros a miséria moral a que ficam eles reduzidos durante esse período de privações extremas. Poucos livros se prestarão tão bem para uma interpretação científica das influências psicológicas do fenômeno coletivo, sobre a conduta moral de um povo, do que este romance de Rachel de Queiroz. Donde o largo uso que dele fizemos no capítulo em que analisamos a mentalidade anormalizada dos flagelados da seca. O Quinze mereceria mesmo um estudo da categoria do que Freud realizou sobre o romance Gradiva, de Jensen, para arrancar-se da sua textura os elementos interpretativos de uma psicanálise dos flagelados da seca. José Américo de Almeida, no romance A Bagaceira, dá-nos o mais fiel retrato desta retirada inglória, principalmente dos tristes contatos humanos entre sertanejos e brejeiros. O livro concentra quase que toda a sua força dramática em mostrar a miséria da humilhação sertaneja. “Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto, é não ter o que comer na terra de Canaã”, diz o grande romancista sertanejo antes de contar a história da bagaceira. A fome quantitativa se traduz de logo pela magreza aterradora, exibindo todos fácies chupados, secos, mirrados, com os olhos embutidos dentro de órbitas fundas, as bochechas sumidas e as ossaturas desenhadas em alto-relevo por baixo da pele adelgaçada e enegrecida. Indivíduos que mesmo no tempo de abundância — nas épocas do verde — nunca foram de muita gordura, apresentando-se sempre com sua carne um tanto enxuta, chegam a perder, nas épocas secas, até 50% de seu peso. Mas, não se vêem apenas estas esqueléticas figuras, magras e chupadas pela fome, vêem-se também as vítimas das terríveis carências específicas nas suas mais grotescas e trágicas variedades. As deficiências qualitativas de toda ordem se associando e modelando, numa macabra riqueza de detalhes, os mais variados quadros mórbidos. São as crianças as que exibem, com características mais vivas, as doenças de carência. Atingidas [pg. 229] pela fome negra em pleno crescimento, elas param por completo seu desenvolvimento e chegam, em certos casos, como que a involuir a um período anterior. Refere Felipe Guerra que, segundo a tradição, na seca de 1774, a fome foi tão tremenda “que os meninos que já andavam tornaram ao estado de engatinhar”.75 Muitas destas crianças ficam marcadas a vida toda com suas estaturas mirradas pelo nanismo alimentar, com suas deformações das osteopatias da fome e suas endocrinopatias carenciais, manchando e afeando o conjunto de homens fortes que constitui a raça sertaneja. Além da parada do crescimento nas crianças, as carências protéicas se manifestam em larga escala pelos edemas de fome e outros distúrbios tróficos. Os edemas, sejam discretos, sejam generalizados em disformes anasarcas, constituem um dos sinais mais constantes com maior freqüência referido em todos os relatos sobre as secas do Nordeste. Nas levas de retirantes encontram-se sempre as figuras grotescas de famintos, com as suas pernas de graveto carregando enormes ventres estufados pela hidropisia, dando ironicamente uma impressão de plenitude e de saciedade. Na seca de 1932, o Dr. Amadeu Fialho teve oportunidade de estudar a fundo este tipo de edema inconfundível. “Apareciam numerosas crianças com todas as gradações do edema, desde o fácies túmido empastado e pálido, até as grandes infiltrações com franco aspecto de anasarca, apresentando coleções líquidas nas cavidades serosas, alguns tinham as bolsas escrotais volumosas, tensas, cheias de líquido, translúcidas. Os derrames que se achavam nestas cavidades eram completamente límpidos, de baixa densidade e incolores. A marcha dos doentes era um pouco lenta pela dificuldade de movimentos com os membros distendidos pelo edema. Não havia perturbações de sensibilidade, porém, pelo que era impossível a sua confusão com o beribéri. Em alguns casos que tivemos oportunidade de autopsiar, casos não muito avançados mas que sucumbiram a intercorrências, vimos o tecido celular com aspecto francamente edemaciado, os músculos róseos, úmidos e derrames límpidos e incolores no peritônio e cavidade pleurais.” Chamamos a atenção para a afirmação que, em tom categórico, faz o 75 Guerra, Felipe, Secas contra a Seca. 230 autor, [pg. 230] de que não se pode confundir este tipo de edema com o do beribéri edemaciante, doença tara no sertão, mesmo durante o período de seca. As síndromes diarréicas que se associam ao edema como expressão de carência constituem fenômenos de graves conseqüências, aniquilando de vez com a resistência física e moral dos pobres flagelados e dificultando em extremo a higiene coletiva dos campos de concentração, onde são agrupadas pelos poderes públicos as grandes massas de retirantes. Facilitando o contágio e desenvolvendo por este meio as grandes epidemias de disenteria e de febre tifóide, que dizimam milhares de criaturas. Outra praga terrível é a das oftalmias, das afecções oculares de várias categorias, que se manifestam em altas proporções nos períodos calamitosos. Mesmo nos tempos normais o sertão, principalmente o do Ceará, constitui um terrível foco de doenças oculares, especialmente do tracoma. Temos a impressão de que são as secas e as fomes periódicas que deixam como monturo de suas misérias orgânicas estas manifestações oculares de tão trágico aspecto. Sobre o assunto escreve o higienista Gavião Gonzaga: “De todos os estados do Brasil, o do Ceará é o mais favorável ao desenvolvimento desta moléstia por seu baixo grau de umidade, seu excesso de luz, seu terreno arenoso e seu calor excessivo. A endemia está bastante disseminada no Cariri com focos esparsos nas regiões serranas e zona do litoral. Segundo dados históricos, a sua origem ali é anterior a seu aparecimento nos estados do Sul, provavelmente levada também por elementos estrangeiros. Nos focos de tracoma são também muito comuns as diversas conjuntivites e afecções oculares, de etiologia vária. Entre essas salientam-se a conjuntivite primaveril que recrudesce nas épocas chuvosas, a sapiranga ou gorgoni. O primeiro termo consagrado pelo modismo popular — olhos de sapiranga — tem sua origem etimológica na língua tupi com a locução sa piranga ou antes ça piranga, que significa literalmente olhos vermelhos ou sanguíneos, conforme ensina João Ribeiro.”76 As carências de diversas vitaminas associadas à irritação permanente que as poeiras das estradas provocam nos olhos dessa gente são causas efetivas de muitas dessas perturbações [pg. 231] oculares. A hemeralopia ou cegueira noturna 76 Gonzaga, A. Gavião, Climatologia e Nosologia do Ceará, 1925. provocada pela carência de vitamina A tem sido registrada em altas proporções durante as várias secas do sertão nordestino. Rodolfo Teófilo refere que na seca de 1877 “viam-se nos abarracamentos centenas de indigentes atacados desta enfermidade”.77 É curioso verificar-se hoje o que realizava naquele tempo a medicina. Vejamos o que sobre o assunto escreveu o Dr. Rodolfo Teófilo: “Pela manhã iam ganhar a ração nos serviços do governo, voltavam e passavam o dia em pleno gozo da vista. Entretanto, à proporção que o sol sumia-se no ocaso, eles se recolhiam a suas choupanas completamente cegos. A noite enchia-lhes as pálpebras e o desgosto enegrecia-lhes a alma. Aos primeiros raios de sol voltava-lhes a luz aos olhos, mas doze horas depois tornavam a ficar cegos. A medicina combatia este estado mórbido com tônicos e reconstituintes; o povo, entretanto, sempre infenso às drogas da farmácia, aplicava e com excelentes resultados um tópico em lugar de medicamentos internos, assava o fígado de boi, extraía-lhe a salmoura que instilava sobre o globo do olho, muitos ou quase todos assim se restabeleceram.” Esta medicação tem a sua base científica na riqueza em vitamina A existente na gordura do fígado. Euclides da Cunha, em Os Sertões, escreve o seguinte sobre o aparecimento da hemeralopia durante as secas: “Uma moléstia extravagante completa a sua desdita — a hemeralopia. Esta falsa cegueira é paradoxalmente feita pelas reações da luz; nasce dos dias claros e quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do olhar. Mal o sol se encobre no poente, a vítima nada mais vê. Está cega. A noite afoga-a de súbito, antes de envolver a terra.”78 Em graus mais acentuados de carência e principalmente nas crianças surgem, além das perturbações funcionais da visão, as lesões orgânicas do seu aparelho protetor, a queratomalácia com seu cortejo clínico habitual, a dissecação da córnea, a sua queratinização, ulceração e mesmo fusão completa do globo ocular. As simples congestões da córnea, com uma rede vascular bem desenhada caracterizando a deficiência em riboflavina — [pg. 232] vitamina B2 — também se notam em grandes proporções. Em síntese, as perturbações oculares de natureza puramente carencial ou nas quais o fator carencial participa eram tão abundantes que nestas 77 Teófilo, Rodolfo, História das Secas no Ceará, 1922. épocas impunham, como nos afirma Amadeu Fialho, a presença obrigatória de um especialista em olhos em todos os campos de concentração dos retirantes. Passada a quadra da seca, o número de cegos que imploram a caridade pública no Nordeste aumenta de maneira alarmante. A estreita correlação evidenciável no Nordeste, entre as pragas de cegueira e os cataclismos das secas, tem sido observada com rigor em outras áreas de fome do mundo. Sempre que um grupo humano fica exposto às conseqüências de uma alimentação carenciada, surgem inúmeros distúrbios oculares que traduzem a extrema sensibilidade do órgão da visão às deficiências nutritivas. A alta proporção de cegos que infestavam os burgos europeus durante a Idade Média tinha a sua causa fundamental nas miseráveis condições alimentares da Europa durante esse largo período histórico, tão sujeito às crises periódicas de fome.79 Conta-nos Sergius Morgulius que, depois da fome de 1898 nas províncias centrais da Rússia, “quase todas as crianças sofriam de erupções cutâneas de várias categorias, raquitismos, diarréias e infecção purulenta dos olhos. Os médicos que iam prestar socorros nesta zonas empestadas ficavam assombrados diante do espantoso número de indivíduos afetados de graves doenças oculares”.80 Fato idêntico foi observado pelo Dr. Emmet em seguida à crise de fome de 1848 na Irlanda: “O número de cegos aumentou de 13.812 em 1849 para 45.847 em 1851.”81 Todas estas referências demonstram a importância do fator nutrição na etiologia das doenças oculares e nos dão autoridade para afirmar que no Nordeste a existência de uma alta percentagem de doentes dos olhos tem na alimentação miserável a sua causa principal. O excesso de luz, a irritação pelas poeiras, a [pg. 233] falta de água para lavagem dos olhos, tudo isto é bem secundário, se não inteiramente inócuo. A fome é que é o elemento gerador destes terríveis males, seja nas afecções de carência, quando determina por si só lesões graves, seja predispondo o aparelho visual, pela diminuição de sua resistência, à invasão microbiana, que realizará, por sua vez, a faina destrutiva. Neste compêndio de patologia ambulante, ilustrado ao vivo pelos retirantes da seca, ocupam largo espaço as estomatites de várias naturezas, inflamações de 78 Cunha, Euclides da, Os Sertões, 1902. 79 Consulte-se sobre o assunto o livro de Walford Cornelius, The Famines of the World, 1878. 80 Morgulius, Sergius, Fasting and Under-Nutrition, Nova Iorque, 1923. 81 Citado por Parmalle Prentice, Hunger and History, Nova Iorque, 1939. mucosa bucal, da língua e dos lábios, que traduzem desde a carência em ferro até às deficiências mais acentuadas em ácido nicotínico e em riboflavina. William G. Darby82 demonstrou que a deficiência acentuada em ferro é capaz de produzir por si só estomatites e glossites inteiramente semelhantes às até então consideradas de carências exclusivamente vitamínicas. Conclui-se, pois, destes estudos mais recentes, que a anemia ferruginosa constitui uma causa comum destas lesões da boca, que se curam muitas vezes com a simples terapêutica com o ferro ou com uma alimentação rica neste princípio mineral. As boqueiras, ou sejam, fissuras e queiloses das comissuras labiais, estendendo-se muitas vezes como uma estomatite difusa pela mucosa da boca, são de freqüência alarmante durante estes períodos de fome. Só numa localidade da Paraíba, nas vizinhanças de Piancó, pôde um especialista observar em 1932 cerca de 300 casos (Amadeu Fialho). As manchas cutâneas pelagrosas, pétalas negras do terrível “mal da rosa”,83 também fazem nestes períodos seu macabro aparecimento, completando os quadros clínicos das formas nervosas e digestivas da pelagra. Entre as observações que fez Herbert Smith, durante a seca de 77 na cidade de Fortaleza, destaca-se a do aparecimento de uma epidemia que se seguiu à de varíola. “Para alguns tratava-se [pg. 234] de uma nova epidemia, havendo mesmo rumores de que se tratasse da praga negra. É provável, no entanto, que fosse uma forma grave da varíola; a doença caracterizava-se pelo aparecimento de manchas negras no corpo e eu creio que os casos eram invariavelmente fatais, mesmo antes que as pústulas aparecessem.” Temos a impressão de que, em muitos casos, essas placas negras revelam casos de pelagra. Do beribéri é bastante discutida a existência em forma epidêmica. A descrição que nos deixou Rodolfo Teófilo do mal beribérico, atacando em larga escala em 1877 e 1878, está longe de permitir a sua caracterização inconfundível: “A moléstia se manifestava por sintomas diversos, disfarçando-se às vezes a ponto de iludir a perspicácia da ciência. Em alguns aparecia de forma mista, em outros predominava a 82 Darby William — “The Oral Manifestations of Iron Deficiency”, in The Journal of the Am. Medic. Ass., vol. 130, n.° 13, março, 1946. 83 Gaspar de Casal descreveu, em 1725, uma moléstia existente nas Astúrias e conhecida pela denominação de “mal da rosa”. Pela descrição das observações completas que este autor apresentou, verificou-se tratar-se da doença hoje denominada “pelagra”, e produzida por um paralítica, ainda em outros os sintomas patognomônicos, se ela os tem, falhavam completamente. O doente queixava-se de uma inapetência terrível acompanhada de vômitos tão violentos que não permitiam a ingestão do alimento mais leve. Não acusava dor alguma, os membros inferiores estavam no gozo de saúde regular. Só o estômago sofria. O médico procurava a causa daquele estado mórbido, tentava combatê-lo com tônicos estomáquicos e antiespasmódicos, a moléstia progredia até que no fim de dez a vinte dias arrancava-se a máscara e conhecia-se que o doente estava acometido de beribéri. A paralisia se manifestava franca, as funções do cérebro pervertiam-se, vinha a cegueira, o delírio e o doente estava às portas da morte. Nestas condições só havia um recurso: a mudança para as serras. Em estado desesperador o doente era conduzido para Maranguape, Baturité. A alguns voltava a saúde após estada em amenos climas. Durante a estada nas montanhas passava como por encanto. Nos do interior, os que eram atacados de beribéri morriam como à míngua.” Ora, a descrição acima está longe de corresponder à da sintomatologia do beribéri, exprimindo muito mais quadros variados de policarências, nas quais se destacam, sem dúvida, as deficiências de todo o complexo B, inclusive de ácido nicotínico. Desde os sintomas gástrico-intestinais e, principalmente, os do período final, são típicos de uma síndrome de fundo pelagroso. A pelagra aguda típica se apresenta por uma associação sintomática de dermatite, flossite, estomatite, diarréia e [pg. 235] perturbações mentais, indo até ao delírio.84 A síndrome descrita por Rodolfo Teófilo lembra, pois, muito mais a pelagra do que o beribéri. Amadeu Fialho não registrou casos de beribéri na seca de 1932, e Orlando Parahim afirmou recentemente “que o beribéri, em sua manifestação sintomática típica, é desconhecido nesta zona sertaneja”.85 Os casos de escorbuto franco são raros, mas as gengivites fétidas e sangrentas surgem muitas vezes atestando a deficiência alimentar em vitamina C. Não se estado de carência vitamínica. 84 Youmans, J. B., Nutritional Deficiencies, 1941. Em muitos casos de pelagra faltam os fenômenos cutâneos, reduzindo-se a síndrome aos sintomas gástricos e nervosos, quadro que os autores italianos, grandes conhecedores do assunto, chamam expressivamente de pellagra sine pellagra. Vede, sobre o assunto, G. Frontali, “Studi Sperimentali sulla Pellagra Umana”, in Arch. Ita. di Med. Esp., vol. III, n.° 8, agosto, 1939. Veja-se também o trabalho de José Nivaldo — “Aspectos da Alimentação no Agreste de Pernambuco”. Rev. Bras. de Medicina — vol. VII, n.° 9, 1955. 85 Parahim, Orlando, A Alimentação do Operário Sertanejo durante a Seca, 1945. registram casos de raquitismo. Em exame de centenas de crianças nunca surgiu um caso do mal ante os olhos experimentados do Dr. Amadeu Fialho. Em combinações variadas se apresentam os casos de policarências, de desnutrição a mais acentuada, nos quais é bem difícil discernir por falta de que elementos nutritivos decorrem os sintomas variados. Tudo o que se pode concluir é que a miséria orgânica atingiu ao máximo. A fome desagregando todas as fibras do organismo numa devastação impressionante. 12. Neste estado de penúria orgânica, os retirantes perdem toda a sua resistência e capacidade de defesa contra os agentes mórbidos de toda categoria, principalmente os de natureza infectuosa, e tornam-se presas fáceis de inúmeras doenças. Em sua incerta peregrinação, sem os menores rudimentos de higiene, comendo alimentos poluídos e poluindo tudo em torno com os seus excretas,86 sem água para sua limpeza, sem cuidados [pg. 236] de espécie alguma contra o contágio que a promiscuidade intensifica, a retirada se constitui numa verdadeira marcha fúnebre em busca da morte. É por isto que o bardo popular canta esta marcha com dolorosa melancolia:. Marchemos a encarar Trinta mil epidemias Frialdade, hidropisia, Que ninguém pode escapar. Os que para o brejo vão Morrem de epidemia Sofrem fome todo dia Os que ficam no sertão.87 Os que resistem às extenuantes caminhadas e chegam às terras úmidas dos 86 Conta o Dr. Amadeu Fialho que nos campos de concentração dos flagelados da seca de 1932 os doentes de disenterias de toda ordem que pululavam aos milhares contaminavam a tudo e a todos: “As sín-dromes disentéricas eram abundantes, doentes havia que, privados de vasilhame próprio, enfraquecidos, nem fora de casa iam para suas necessidades naturais, e era no solo mesmo de sua palhoça onde esvoaçava uma nuvem de moscas que eles expeliam suas dejeções muco-sangüinolentas.” 87 Versos de Nicandro Nunes do Nascimento e Bernardo Vieira brejos são as mais das vezes atacados de graves doenças infectuosas, para as quais lhes falta a necessária imunidade, e morrem aos milhares. Em todas as grandes secas do Nordeste segue-se sempre, à fome; a calamidade das pestes para completar o quadro da tragédia nordestina. Na seca de 77 os retirantes que desciam dos sertões cearenses e se concentravam na capital da província88 eram exterminados em massa pelas epidemias de varíola, de febres biliosas, de disenterias. A epidemia de varíola tomou tão tremendo vulto que Fortaleza, com sua população de 124.000 indivíduos, assinalou a existência de 80.000 variolosos. Naquele terrível ano de 1878 “a febre biliosa, o beribéri, a anasarca, a disenteria, a varíola, [pg. 237] haviam povoado os cemitérios”, diz-nos Rodolfo Teófilo. “Na cidade de Fortaleza, em 12 meses sepultaram-se nos cemitérios de S. João Batista e Lagoa Funda 56.791 pessoas, mortandade espantosa para uma população de 124.000 almas.” As pestes despovoavam a cidade, o cataclismo da seca se estendia em suas funestas conseqüências até à costa. Num depoimento antigo, dando um balanço das perdas na terrível seca, depoimento transcrito por Edmar Morel no seu interessante livro-reportagem sobre o Pe. Cícero do Juazeiro, encontram-se estas cifras assustadoras: “o século dezenove vê dez grandes invernos e 7 grandes secas. Destas a de 1845 tem gravíssimas conseqüências para o gado e a de 1877-1879 torna-se célebre. Ela determina a mortandade de 500.000 habitantes do Ceará e vizinhanças, ou cerca de 50% da população. Nas grandes secas em geral, porém, a média da mortandade não costuma exceder 33%. Dos mortos de 1877 a 1879 calcula-se que 150.000 faleceram de inanição indubitável, 100.000 de febres e outras doenças, 80.000 de varíola e 180.000 da alimentação venenosa ou nociva, de inanição ou mesmo exclusivamente de sede.”89 Dos retirantes que, acossados pelo flagelo, em suas múltiplas investidas, se 88 “A ação dos fatores climáticos, principalmente das secas, vai além da formação do tipo étnico regional. Ela influi também sobre as condições nosológicas do estado. A história das secas demonstra que as epidemias estão sempre associadas à fome e à sede. As secas atuam, pois, de uma maneira direta e de uma maneira indireta sobre a noso-logia do estado. Atuam diretamente causando a decadência organo-fi-siológica das populações e indiretamente provocando o êxodo dos flagelados que, em sua peregrinação através do hinterland brasileiro, adquirem moléstias e trazem-nas de retorno aos primitivos lares. Num e noutro caso, os cataclismos climáticos contribuem poderosamente para a constituição de um quadro nasológico complexo, em que avultam a disseminação e a multiplicidade das endemias.” (Gonzaga, A. Gavião, op. cit.) 89 Morel. Edmar. Padre Cícero, Rio, 1946. dirigiram para a Amazônia atraídos pela miragem do ouro branco calcula-se que meio milhão90 foi dizimado pelas epidemias, pelo paludismo, pela verminose e pelo beribéri. O grosso dos casos de beribéri verificados na epidemia que assolou a Amazônia, durante o ciclo da borracha, era formado por nordestinos da área da seca. Sertanejos que chegavam ao inferno verde sem nenhuma reserva de vitaminas, e, que se não caíam de beribéri na sua própria terra é que lá pouco comiam, não sobrecarregando o organismo com material a metabolizar. Na Amazônia, com novo regime alimentar quantitativamente mais abundante à custa das conservas e da farinha de [pg. 238] mandioca, processava-se o desequilíbrio nutritivo e surgia a praga terrível das polinevrites beribéricas. A Amazônia, ou melhor o Acre, que era seu ponto de atração mais forte, foi o grande sorvedouro de vidas sertanejas: “O Acre é como outro mundo: pode ser muito bom mas quem vai lá, não volta mais”, diz em tom melancólico um personagem de A Bagaceira,91 que assim fala mas que também acaba partindo passivamente para o inferno verde. Uma das causas desta absurda mortandade dos sertanejos nordestinos no vale amazônico era a absoluta incúria com que se procedia à imigração do flagelado para a nova área. Afirmava Euclides da Cunha que não conhecia na história exemplo mais anárquico de emigração do que a realizada desde 1789 entre o Nordeste e a Amazônia. Escrevendo sobre Euclides da Cunha, o escritor Silvio Rabello92 retratou a improvisação da colonização amazônica com as seguintes palavras: “O sertanejo que se dispusera a penetrar na Amazônia dificilmente conseguia adaptar-se às condições nosológicas da região. Em regra, sucumbe às febres ou ao regime de carência. A terra recém-aberta ao povoamento estava longe de ser um leito macio para seus desbravadores. É ainda um pantanal que espera os mais elementares cuidados de engenharia sanitária. A umidade e o calor são ali meios de cultura ideal aos germes 90 “As selvas amazônicas devoraram mais de 500.000 criaturas emigradas do Nordeste brasileiro, meio milhão de vidas, mais do que a população normal do estado! É de uma eloquência cruel. Este tétrico ossário foi o alicerce da desgraçada indústria da borracha.” (Aurélio Pinheiro, A Margem do Amazonas, S. Paulo, 1937.) 91 Almeida. José Américo de. A Bagaceira. Rio. 6.ª edição, 1936. 92 Rabello. Sílvio — “Euclides da Cunha e o Mistério da Amazônia”, in número especial de D. Casmurro, maio de 1946. mortíferos. Por outro lado, nenhum esforço realiza o colono para adaptar-se à sua nova condição de vida. Continua com os seus antigos hábitos: a mesma alimentação, o mesmo vestuário, o mesmo tipo de habitação. A terra e o homem não se aproximam nem se entendem reciprocamente.” Ainda por ocasião da chamada batalha da borracha, que se desenvolveu durante a última guerra, dos 30.000 nordestinos que foram levados como soldados desta batalha, afirma-se que um número impressionante deles pereceu, abandonado nas zonas dos seringais. O fato alcançou tais proporções que levantou grande celeuma na Assembléia Nacional.93 [pg. 239] Depoimentos interessantes a respeito são também o discurso pronunciado pulo Deputado Paulo Sarasate e o informe prestado pelo Sr. Firmo Dutra, então presidente do Banco da Borracha, perante a Comissão de Investigação Parlamentar, e no qual opina ser o desastre desta mortandade oriundo da falta de adaptação racional desta gente jogada sem nenhuma preparação nos perigosos igarapés da Amazônia. Numa reportagem sobre o assunto, dos jornalistas David Nasser e Jean Manzon, lê-se o seguinte: “A guerra terminou. Os cearenses que tinham partido não voltaram. Uns voltarão, talvez, porque, dos 54.000 soldados da borracha — segundo os dados apresentados na Assembléia Nacional Constituinte pelo Deputado Paulo Sarasate — a maior parte dorme à sombra das florestas amazônicas. Morreram longe dos seus, por um sonho de riqueza, pela esperança de melhores dias. O Exército da Borracha ainda hoje moribundo, espalhado, derrotado, faminto e errante, como em terra inimiga, perdido entre as árvores enormes, afogado nos pântanos do deserto verde, definitiva e inapelavelmente vencido. O treme-treme, a terçã maligna, a disenteria amebiana, a fome, a absoluta falta de recursos eram mais fortes que a coragem, a dedicação, a bravura e a teimosia dos homens do Ceará, da Paraíba do Norte, da Bahia e do Rio Grande do Norte.” De tifo, de disenteria, de bouba, de tuberculose, de paludismo vão as populações de retirantes se rarefazendo num bárbaro processo de reequilíbrio da situação econômica das regiões superpovoadas com a sua abrupta invasão. Sobre o problema da tuberculose — “doença tão difundida, de aspecto tão versátil e de interligação com tantos e tão complexos fatores” — segundo César de Araújo, 93 Ver sobre o assunto o requerimento n.° 258 apresentado à Assembleia Constituinte e devemos nos deter um pouco mais. Não se sabe muita coisa sobre os coeficientes epidemiológicos do sertão desde que o problema da tuberculose rural tem sido pouco estudado, mas com os poucos elementos de que se dispõe pode-se, contudo, afirmar que no Nordeste a incidência do mal é bem alta na região da mata e no litoral mais do que na região do sertão. No mapa sobre a incidência de tuberculose no Brasil, destaca-se bem o fato de que na zona semi-árida do Nordeste os graus de incidência são fracos ou moderados, enquanto nas zonas da mata e do litoral se apresentam fortes ou muitos fortes... Num trabalho do Dr. César de Araújo. “A Tuberculose Rural e nos Pequenos Centros Urbanos”, apresentado ao 2.º Congresso Nacional de Tuberculoso em 1941, trabalho magistral [pg. 240] sobre o assunto, seu autor destaca a pobreza de dados informativos acerca da tuberculose rural em quase todos os estados do Nordeste. Apenas Pernambuco e Bahia permitem certa apreciação do problema através dos dados colhidos em algumas de suas áreas. Com os elementos estatísticos de 8 cidades de Pernambuco, 4 da zona da mata e 4 da zona do sertão, obtivemos os seguintes índices de mortalidade nas duas zonas: 212,7 por 100.000 na zona da mata e 161,2 por 100.000 na zona do sertão (o coeficiente na capital do estado é de 268 por 100.000). Nestes altos coeficientes do litoral e da mata estão incluídos os numerosos casos de retirantes que vieram do sertão de corpo aberto para se infestarem nestes grandes focos de infecção, e nos coeficientes do sertão estão outros tantos que, depois de se terem infectado na mata, voltaram com o término da seca para seus ambientes familiares, para aí disseminarem a terrível peste branca. Dos que sobrevivem a estes diferentes males e passam a constituir populações adventícias das cidades do litoral, grande parte fica sempre aguardando as notícias de cima, notícias de que o flagelo passou com a queda das primeiras chuvas, para voltar à sua gleba e recomeçar o seu destino de predestinados, a lutar sem esperanças de vitória contra o eterno ciclo de calamidades. Assim se constituíram grandes massas de populações marginais nas capitais do Nordeste. Muitas das cidades do litoral nordestino mantêm permanentemente populações deste tipo. No Recife, nos mangues do Capibaribe, desenvolveu-se uma verdadeira cidade de mocambos que cresce em seguida a cada seca com os novos casebres levantados no charco por levas de retirantes. A maior parte dos que descem debatido em sessão de 18 de julho de 1946. do sertão acossados pelo flagelo aí fica vivendo uma vida de inadaptados e vencidos, num regime de carência que é uma continuação do martírio, da fome no sertão. Numa série de contos que enfeixamos em volume, sob o título de Documentário do Nordeste, já fixamos quadros da vida dessa gente que vive atolada nos mangues se sustentando de caranguejo “da pesca de caranguejos e siris, chafurdando nesse charco onde tudo é, foi ou vai ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela e vive dela. E o homem que aí vive se alimenta desta lama sob a forma do caranguejo”. As populações mantidas através desse [pg. 241] trágico “ciclo do caranguejo” representam um resto do monturo humano que o vento quente das secas joga nas praias do Nordeste. Em torno de Fortaleza vivem populações ainda mais miseráveis, algumas se alimentando apenas de verduras silvestres — beldroegas e. manjangomes — cozinhadas com sal e comida com os aruás — espécie de molusco —, muito abundantes nas lagoas da região. A miséria dessa gente chega a tal ponto que para espanto de Rodolfo Teófilo eles chegam a comer os ovos dos aruás: “até os ovos de aruá comem. Tanto têm de belos os ovos deste animal como de repugnantes. Nos caules das plantas aquáticas, às margens das lagoas, fazem a postura em filas de pequenas esferas cor-de-rosa que se agrupam numa extensão de cerca de 5cm. Os ovos contêm um líquido gosmento, adocicado, parecendo uma mistura de sangue e pus de abscesso.” Não se admiraria o Dr. Rodolfo Teófilo de que esses famintos fizessem dos ovos do molusco o seu caviar — caviar de flagelado — se soubesse que em certas regiões do México os nativos consomem os ovos de uma mosca — axayaati —, cuja postura espalhada sobre as águas forma crostas gelatinosas em sua superfície: “A axayaati é uma mosca própria dos lagos mexicanos. Dos ovos inumeráveis que põe nos juncos, nas gladíolas e nos lírios do lago, formam-se grossas crostas que os pescadores vendem nos mercados. Esta espécie de caviar chamado de ahuauhtli se comia no tempo dos mexicanos e ainda hoje é manjar comum nas mesas dos espanhóis. Tem quase o mesmo sabor que o caviar dos peixes, porém os mexicanos antigos não só comiam os ovos como também as moscas reduzidas a massa e cozidas com sal.”94 94 Clavijero, Francisco, História Antigua de México, publicada pela primeira vez em 1870, Nenhum povo do mundo, à exceção talvez do chinês, se mostra tão enraizado a uma terra que periodicamente se mostra tão ingrata, como o sertanejo ao Nordeste. Perscrutando a alma singular do povo chinês, povo que sofre há milênios as agruras periódicas de todos os tipos de cataclismos naturais — secas, inundações, terremotos, tufões, epidemias de gafanhotos etc. — e se mantém sempre preso a esta terra tão martirizante, Keyserling escreveu as seguintes [pg. 242] palavras: “Não há outro camponês no mundo que dê tal impressão de identificação absoluta com a terra. De participar tanto da vida da terra. Tudo aí — toda a vida e toda a morte — se desenrola na terra herdada. É o homem que pertence ao solo, não o solo ao homem.”95 Também no sertão do Nordeste o homem, apesar do seu seminomadismo, está rigidamente apegado à terra. Ainda hoje os fazendeiros são conhecidos muitas vezes pelo seu nome próprio e do lugar: Antônio Pedro tio Salgadinho, seu Juca de Serra Branca, Manoel Basto do Arvoredo... “Nomes dos homens e das terras como na Idade Média”, afirma com certo orgulho, o sertanejo Luiz da Câmara Cascudo.96 13. Não é somente agindo sobre o corpo dos flagelados, roendo-lhes as vísceras e abrindo chagas e buracos na sua pele, que a fome aniquila a vida dos sertanejos, mas também atuando sobre o seu espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta social. Nenhuma calamidade é capaz de desagregar tão profundamente e num sentido tão nocivo a personalidade humana como a fome quando alcança os limites da verdadeira inanição.97 Fustigados pela imperiosa necessidade de alimentar-se, os instintos primários se exaltam e o homem, como qualquer animal esfomeado, apresenta uma conduta mental que pode parecer a mais desconcertante.98 Muda o seu comportamento como muda o de todos os seres vivos reeditada em 1944. 95 Keyserling, H. von, Le journal de Voyage d’un Philosophe — Paris, 1935. 96 Câmara Cascudo, Luiz da, Vaqueiros e Cantadores, 1939. 97 “A fome não é somente um fator de destruição da saúde e do vigor físico. Ela é ainda, em maior grau, um fator de desagregação moral. Na áspera luta para manter a vida, todos os escrúpulos ficam esquecidos. Vizinhos ficam contra vizinhos e os fortes sem nenhuma contemplação com os fracos.” (Sergius. Morgulius, op. cit.) 98 No sertanejo nordestino o imprevisto de sua conduta constitui um dos traços característicos de sua personalidade até certo ponto impene-trável: “O homem do sertão pratica atos inesperados por todo mundo e por ele próprio”, informa Gustavo Barroso. E acrescenta que quando se procura, indagar os móveis de seus atos delituosos responde num tom de abatimento: “sei lá, foi uma coisa que me deu...” (Heróis e Bandidos, 1931.) alcançados pelo flagelo nesta mesma área geográfica. [pg. 243] Lê-se numa memória do Pe. Joaquim José Pereira,99 vigário do Rio Grande do Norte, que na seca de 1792 apareceu na região “uma tal quantidade de morcegos que mesmo de dia atacavam as pessoas e os animais”. Confirma o fato Rodolfo Teófilo quando escreve que “a praga de morcegos conhecida em todas as secas, com especialidade na de 1792, começava a aparecer fazendo estragos em alguns pontos da província”. Verifica-se, assim, que estes animais comumente de vida noturna, excitados pela fome passavam a agitar-se durante o dia, atacando os próprios homens, os quais normalmente eles temem. As pragas de serpentes, pestes de cascavéis que surgem habitualmente após as grandes secas traduzem também a mudança de comportamento desses animais que, nas quadras de abundância, vivem quase sempre em suas tocas e que, em conseqüência da fome, nos períodos de seca passam a se agitar de maneira alarmante. “Depois da grande seca (1877) desenvolveu-se em toda a província um mal terrível. A cascavel — Crotalos horridos — devastou os sertões de um modo assombroso. Apareciam estes terríveis répteis com tal abundância que indivíduos havia que tinham morto para mais de 500 em pouco tempo. A vida do sertanejo e do gado que escapou da seca corria o risco de acabar ao dente do peçonhento animal.” Assim escreve Virgílio Brígido, no prefácio a A Fome, de Rodolfo Teófilo. É evidente que a idéia aí desenvolvida, da assombrosa abundância de répteis, exprime, na verdade, a maior freqüência com que eles aparecem e topam com o sertanejo. Embora Roquette Pinto atribua ao calor excessivo uma mais rápida evolução nos ovos da cascavel, temos a impressão de que a peste é mais produto da mudança de hábitos do animal do que de um aumento de proliferação da espécie, mesmo porque são animais ovíparos, e o calor só muito indiretamente poderia afetar o número de filhos de cada ninhada. É a fome que joga as cobras para fora de suas tocas, espalhando-as famintas e furiosas pelos caminhos, pelos currais, pelos pátios e até pelas casas dos fazendeiros. Noutras áreas de fome do mundo, observadores avisados têm verificado estranhas mudanças na conduta de animais tanto domésticos como selvagens, quando expostos aos rigores da fome. Conta Pedro-Pons que, durante a epidemia de 99 Citado por José Américo de Almeida em A Paraíba e Seus Problemas. fome que [pg. 244] grassou em Barcelona com a guerra civil espanhola de 1936 a 1939, os cães vagabundos aumentaram consideravelmente, enchendo as ruas com as suas tropelias. “As imagens de rua oferecidas pelos cães que buscavam com afã alimentar-se, uns secos, com as costelas salientes, outros fofos e inchados, com andar fatigado e pêlos caducos, frequentemente com paralisia de uma pata traseira, foram con-templados por qualquer indivíduo medianamente observador”, escreveu Pedro-Pons, em seu livro Enfermidades por Insuficiência Alimentícia, 1940. Na descrição rápida que o autor nos faz destes animais logo se identificam as várias espécies de fomes específicas de que padeciam: carências protéicas e avitaminoses. Como animais domésticos, integrados à vida dos grupos humanos, os cães se apresentam com aspectos muito semelhantes aos das populações humanas submetidas ao flagelo da fome. Contam cientistas da “Smithsonian Institution”, de Washington, que na região de Waterberg, no Transvaal africano, depois da terrível seca de 1913, mudaram-se os costumes dos animais da região: “muitos carnívoros noturnos caçam agora de dia e os leopardos, contrariamente aos seus hábitos, atacam de tarde os acampamentos. Os baboons, grandes monos que antigamente não se moviam no escuro, parecem não dormir mais em busca de alimentos noite e dia. Os cães selvagens passaram a ser extremamente agressivos e assim por diante.” Como estes animais, voltamos a insistir, também o homem é capaz de alterar a sua conduta, quando acossado pelos martírios e estragos da fome. Dissemos no prefácio à primeira edição deste livro que não nos interessava diretamente o estudo da fome individual, nem em seu aspecto estritamente fisiológico, nem em seu aspecto psicológico; no entanto, para que se possa entender a possível interferência deste fenômeno sobre o comportamento social da coletividade sertaneja, temos necessidade de fixar em rápidas linhas como atua biologicamente a falta prolongada de alimentos sobre a organização psíquica do indivíduo. “Quando uma calamidade desaba sobre nossa vida, nossas sensações e percepções, nossos órgãos e sentidos tendem a tornar-se extremamente sensíveis a todos os fenômenos dessa calamidade e a todos os objetos correlatos”, escreveu P. Sorokin, em sua obra clássica, Man and Society in Calamity, 1942. [pg. 24] Quanto à irritabilidade nervosa, chega-se mesmo a um estado de fúria ou raiva, chamada pelos navegadores dos séculos XVI e XVII, bons conhecedores das crises de alimento, de “hidrofobia da fome”. Encontramos um depoimento curioso desses estados nervosos na obra de Jean de Léry,quando conta seu regresso do Brasil à Europa em 1558, a bordo do navio “James”. Diz o cronista: “Vindo a faltar por completo os víveres, em princípios de maio, dois marinheiros morreram de hidrofobia da fome, sendo sepultados no mar, como de praxe.” E depois de narrar as peripécias da fome a bordo do navio desgarrado, conclui que “durante estas fomes rigorosas, os corpos se extenuam, a natureza desfalecemos sentidos se alienam, o ânimo se esvai, e isso não só torna as pessoas ferozes, mas ainda provoca uma espécie de raiva, donde o acerto do dito popular: fulano enraivece de fome, para dizer que alguém está sofrendo falta de alimento”. (Viagem à Terra do Brasil, escrito em 1577.) No mecanismo fisiológico desta exaltação de ira entram vários fatores, entre os quais se destaca a queda do teor de glicose no sangue e nos humores. Marañon100 atribui à hipoglicemia importante papel no mecanismo nervoso da fome, provocando uma hiperexcitabilidade dos centros ne A sensação de fome não é uma sensação contínua, mas um fenômeno intermitente com exacerbações e remitências periódicas: De início, a fome provoca uma excitação nervosa anormal, uma extrema irritabilidade e principalmente uma grande exaltação dos sentidos, que se acendem num ímpeto de sensibilidade, a serviço quase que exclusivo das atividades que conduzam à obtenção de alimentos e, portanto, à satisfação do instinto mortificador da fome. Destes sentidos há um que se exalta ao extremo, alcançando uma acuidade sensorial incrível: é o sentido da visão. No faminto, enquanto tudo parece ir perecendo aos poucos em seu organismo, a visão cada vez mais se vai acendendo, vivificando-se espasmodicamente. Veja-se a descrição que nos faz dos flagelados um escritor do Nordeste: “Mais mortos do que vivos. Vivos, visíssimos só no olhar. Pupilas do sol das secas. Uns olhos espasmódicos de pânico como se estivessem assombrados de si próprios. [pg. 246] Agônica concentração de vitalidade faiscante.”101 Sob a ação desta dolorosa 100 Marañon, Gregorio, “Régulación Hormonal del Hambre”, in Estudios de Endocrinologia, Buenos Aires, 1938. 101 Almeida, José Américo de, A Bagaceira. sensação, o homem mais do que nunca se manifesta como um animal de rapina,102 com o olhar certeiro varando os espaços em busca da presa que lhe aplaque a fome. É nestas horas que o sertanejo se torna um caçador insuperável, pressentindo no movimento leve de uma folha ou na queda imperceptível de um torrão de barro a vibração assustada do nambu, que se oculta numa touceira de macambira, ou do preá faminto acoitado nos serrotes. É também nesta hora que ele se faz muitas vezes cangaceiro. Em penetrante e sutil ensaio sobre a arte da caça, que serve de prefácio ao sugestivo livro de Conde de Yebes, Vinte Años de Caza Mayor, Orteza y Gasset, analisando os motivos geradores do caçar, aponta como dos fundamentais a escassez da própria caça. “O fato de que no universo se cace pressupõe que exista e tenha existido sempre pouca caça. Se superabundasse, não existiria este peculiar comportamento dos animais, entre eles o homem, que distinguimos com o preciso nome da arte de caçar. Como o ar existe de sobra não há uma técnica da respiração e respirar não é caçar ar.”103 Crê, pois, o filósofo espanhol que a conduta do animal caçador se moldou sob o influxo da relativa escassez do animal presa em seu mundo circundante. Mostra, a seguir, o pensador, como o sentido que mais agudamente trabalha no caçador é o da visão: “O caçador é o animal alerta. É a vida com o integral alerta, é a atitude que o animal mantém na selva. Aproxima-se assim o caçador do animal selvagem, vivendo com a vivacidade e a iminência da selvageria.” Nesta fase desaparecem todos os outros desejos e interesses vitais e o pensamento se concentra ativamente em descobrir o alimento por quaisquer meios e à custa de quaisquer riscos. Exploradores e pioneiros que, em suas aventuras, caíram nas garras da fome, nos deixaram uma documentação rica de detalhes [pg. 247] desta obsessão do espírito, polarizada num só desejo, concentrada numa só aspiração — comer.104 Em seguida a esta fase de exaltação, vem a fase de apatia, de tremenda 102 O animal de rapina, assevera Spengler, “é a forma suprema da vida movediça: significa o máximo de liberdade, com respeito aos outros e a si mesmo, o máximo de responsabilidade própria e de solidão, o extremo da necessidade de afirmar-se lutando, vencendo e aniquilando”. Spengler, Osvald, El Hombre y la Técnica, 1932. 103 Ortega y Gasset, Dos Prólogos — a un tratado de monteria, a una historia de la filosofia, Madrid, 1944. 104 Consultem-se sobre este aspecto as seguintes obras: F. Nansen, Farthest North, 1897; R. Peary. Northward Over the Great Ice. 1898; e E. Mikelsen, Lost in the Artic. 1913. depressão, de náusea e de dificuldade de concentrar-se. Knut Hamsun descreve muito bem estas crises cíclicas de emotividade no seu herói autobiográfico da Fome, passando da irritabilidade extrema ao quietismo mórbido, ora irritado, ora manso, ora perverso, ora magnânimo, sem aparente razão de ser. Este ritmo psíquico que se evidencia tão caracteristicamente nas épocas calamitosas do sertão deve ter pesado nos julgamentos de alguns autores quando, procurando caracterizar o temperamento do sertanejo, vêem nele um tipo ciclotímico,105 um sintonizado com as extremas solicitações ambientes. A verdade é que, se por algumas de suas qualidades mentais — seu realismo e seu sentido prático das coisas — o sertanejo insere sua personalidade individual na vida social, à maneira dos ciclotímicos de Kretschmer, por outras muitas de suas características psicossomáticas lembra mais um esquizotímico acentuado. Sua tendência ao isolamento, seu exaltado sentimento de liberdade, característica esta a que Martius e depois Capistrano de Abreu106 deram grande e justa importância, como fator de povoamento da região, e também sua constituição biotipológica de longilíneos atléticos ou diplásicos, todas estas qualidades dão ao sertanejo nordestino um painel com muitos traços de uma esquizotimia típica, atingindo, em certas eventualidades, [pg. 248] às raias da patologia individual e social, com seus esquizóides e esquizofrênicos francos. Seus cangaceiros sanguinários e seus beatos fanáticos. A nossa impressão é que este é o tipo predominante no sertão: o esquizotímico, com sua curva de temperamento instável. Estes estados de espírito extremos representam, em última análise, as exteriorizações do tremendo conflito interior que se trava entre os impulsos e instintos da fome e os que levam a satisfação de outros desejos e aspirações. Entre a alma do homem e a do animal de rapina, entre o anjo e o demônio que simbolizam a ambivalência mental da condição humana. 105 Pompeu Sobrinho, que assim opina, atribui em grande parte o suposto ciclotimismo do sertanejo à herança do indígena, que contribuiu com um grande contingente para sua etnogenia. Djacir Menezes faz também referência a esse ponto de vista, ligando a constituição ci-clotímica à grande plasticidade e capacidade de adaptação do homem do sertão a outros ambientes naturais e culturais (O Outro Nordeste. 1937). Ver também, sobre a teoria dos temperamentos. Kretschmer. Manuel Théorique et Pratique de Psychotogie Medicale. 1927. e Ramos, Arthur, Introdução à Psicologia Social, 1936. 106 “... os fazendeiros vão se estabelecendo em suas terras, ou por incitá-los o espírito de liberdade que, segundo o ilustre Martius, foi o precursor dos povoamentos dos sertões do Norte, ao contrário dos do Sul, de que a ambição do lucro foi a grande alavanca.” Abreu. Capistrano de, Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil, 1930. Nestes limites já bem perigosos para a segurança do espírito, a personalidade se vai desagregando, se esfumaçando e apagando as suas reações normais a inúmeras outras solicitações do meio exterior, sem correlação com a fome. Nesta desintegração do eu desaperecem as atividades de autoproteção, de controle mental e dá-se, finalmente, a perda dos escrúpulos e das inibições de ordem moral. Esta total transformação da personalidade se constata facilmente com os vaqueiros, protótipo da estrutura social da região. Nos sertões do Nordeste o vaqueiro é, em geral, sério, de uma hostilidade a toda prova. É gente capaz de tratar durante anos uma rês perdida, ficando sempre à espera do legítimo dono. É Euclides da Cunha que nos conta este velho hábito sertanejo: “Quando surge no seu logradouro um animal alheio, cuja marca conhece, o restitui de pronto. No caso contrário, conserva o intruso, tratando como aos demais. Mas não o leva à feira anual nem o aplica em trabalho algum, deixa-o morrer de velho. Não lhe pertence. Se é uma vaca e dá cria, ferra esta como o mesmo sinal desconhecido que reproduz com perfeição admirável e assim pratica com toda a descendência daquela. De 4 em 4 bezerros, porém, separa um para si, é a sua paga. Estabelece com o patrão desconhecido o mesmo convênio que tem com o outro. E cumpre estritamente sem juizes e sem testemunhas o estranho contrato que ninguém escreveu ou sugeriu.” Fruto exclusivo de sua férrea honestidade. Também quando uma rês qualquer de ferro desconhecido dá para ladrona, derrubando cercados e devastando lavouras, conta-nos Xavier de Oliveira que os fazendeiros da redondeza se reúnem, “avaliam-na, cotizam-se entre si, fazem uma matutagem da mesma e a dividem proporcionalmente [pg. 249] à cota de cada um, e quando o dono aparece recebe a quantia exata por que foi avaliada sua rês. É isto tão nobre e honroso como comum na velha virtude sertaneja” (Beatos e Cangaceiros, 1920). Pois esta gente de princípios morais tão elevados dá, na época da seca, para roubar o gado alheio, para roubar cabras, como aquele Chico Bento, personagem de O Quinze que, num destes delírios de fome, perdeu os escrúpulos morais e, “com as mãos trêmulas, a garganta áspera e os olhos afogueados”, derrubou a cacete o animal alheio que se atravessou em seu caminho de retirante. Estes desvios das convenções morais constituem muitas vezes o começo de uma vida de bandoleiro, numa terra de princípios morais tão rígidos. Depois da transgressão, já não é possível voltar aos caminhos honestos e esquecer o erro cometido. Apagada assim a consciência, prossegue o conflito inconsciente entre as forças de satisfação do instinto de, nutrição e as forças de outros interesses humanos, predominando um dos dois grupos, de acordo com o que Sorokin chama “a lei da diversificação e polarização dos efeitos” originando, em certos casos, as psicopatias graves, verdadeiras psicoses reacionais ou de situação. Assim se geram os bandidos e os santos — sinners and saints — das eras de calamidade. Contribuem, desta forma, as secas e as fomes periódicas que delas decorrem para a cristalização desses tipos característicos da vida social do sertão: o cangaceiro e o beato fanático. Tipos tão significativamente inseridos, por suas raízes culturais, na vida sertaneja, a tal ponto associados em sua atuação social que se constituem muitas vezes como uma só personalidade — o beato-cangaceiro, como o célebre Bento da Cruz, de Juazeiro, assassino de seu pai, que “com uma cruz numa mão e um punhal na outra”,107 distribuía justiça na povoação, ou como os truculentos Batistas que na campanha de Canudos serviram de ajudantes de ordens a Antônio Conselheiro e que eram “capazes de carregar os bacamartes homicidas com as contas dos rosários...” (Euclides da Cunha). [pg. 250] O cangaceiro que irrompe como uma cascavel doida deste monturo social significa, muitas vezes, a vitória do instinto da fome — fome de alimento e fome de liberdade — sobre as barreiras materiais e morais que o meio levanta. O beato fanático traduz a vitória da exaltação moral, apelando para as forças metafísicas a fim de conjurar o instinto solto e desadorado.108 Em ambos, o que se vê é o uso desproporcionado e inadequado da força — da força física ou da força mental — para lutar contra a calamidade e seus trágicos efeitos. Contra o cerco que a fome 107 Oliveira. Xavier de, Beatos e Cangaceiros, 1920. Neste livro o escritor nordestino nos apresenta 13 perfis, impressionantes por seu realismo, de malsinados heróis deste tipo. É um documento inestimável da história dos sertões pela fidelidade dos retratos e pelo vigor descritivo com que foram pintados. 108 Não é necessário que se seja ortodoxamente um materialista histórico para que se reconheça a influência dos fatores econômicos nas manifestações de formas religiosas: “O homem não é somente espírito, ele possui um corpo, ele sofre necessidades. Ele trabalha para satisfa-zê-las e a religião não é nele muitas vezes senão uma estratégia de seus instintos buscando sua satisfação” — assim nos fala um dos maiores estudiosos dos problemas sociológicos da religião, Roger Bastide, em Élements de Sociologie Religieuse (Paris, 1935). Também Frazer julga o totemismo, núcleo da religião de certos grupos primitivos, de origem puramente alimentar, tendo como finalidade evitar as fomes coletivas, e Max Weber vê na magia o esforço do selvagem para servir seus instintos materiais. estabelece em torno destas populações, levando-as a toda sorte de desesperos.109 Estudando a gênesis do jagunço, os fatores que condicionam a formação de um Antônio Conselheiro, fanático cangaceiro, síntese de toda a psicologia da sociedade que o formou, Euclides da Cunha dá grande relevo ao fator alimentar, ao ascetismo forçado ou voluntário do herói: “Vinha do tirocínio brutal da fome, da sede, das fadigas, das angústias recalcadas, e das misérias fundas... Abeirara muitas vezes a morte nos jejuns prolongados com requinte de ascetismo que surpreenderia Tertuliano, este sombrio propagandista da eliminação lenta da matéria.” Demonstrativos desta influência da fome periódica na génesis do cangaceiro são as seguintes palavras de Gustavo Barroso: “Ribeiras houve regadas longos anos seguidos por invernos fecundos e abastecidas por colheitas abundantes. Durante o período da fartura, não surgiu um bandido. [pg. 251] Os enxotados das vizinhanças não pousavam, porque lhes davam caça. Vieram secas. Os seareiros fugiram para os povoados, emigraram para a Amazônia, ou de agricultores se tornaram míseros cabreiros. As terras amaninharam-se abandonadas. O cangaceiro veio de fora e domiciliou-se ou irrompeu da própria gente arruinada” (Heróis e Bandidos, 1917.) O mesmo pensou Afonso Arinos quando escreveu: “Em períodos de instabilidade social, provocados por causas de natureza econômica (causas estas que evidentemente não são as mesmas, embora produzissem resultados análagos), o tipo humano a que se convencionou dar, no Nordeste, o nome de Cangaceiro, aparece, se instala e. domina a imaginação e até certo ponto a vida popular da região.” (Prefácio do livro Terra de Homens, de Ademar Vidal, 1944.) Não se pense que, num impulso de biologismo que seria um tanto ingênuo, vamos chegar ao extremo de atribuir às fomes periódicas uma ação determinante e exclusiva na formação destes tipos sociais. Claro que não. Inúmeros outros fatores hoje bem conhecidos e estudados interferem em sua elaboração, traçando mesmo as direções gerais do fenômeno, esboçando em linhas um tanto imprecisas as suas tendências básicas, mas não há dúvida que o cataclismo social precipita seu aparecimento, provocando a sua cristalização definitiva.110 109 “A população do Nordeste brasileiro constitui uma população em estado de cerco por causa da inclemência de seu clima. Esta espécie de estado de cerco dá uma fisionomia particular a essa gente e a sua psicologia.” Pierre Déffontaines no prefácio do livro de C. A. Barbosa de Oliveira, L’Homme et la Sécheresse. 1938. 110 Estudo psicológico de primeira ordem destas espécies de fuga contra o angustioso cerco Estribando-se nas nossas concepções, Roger Bastide procurou analisar este fenômeno sociológico com mais profundidade, analisando-o em dois estudos mais recentes e no qual se encontram preciosas observações.111 Nestes estudos este ilustre sociólogo francês que viveu durante muito tempo no Brasil afirma que é fora de dúvida a existência de um vínculo entre os fenômenos do banditismo e do fanatismo religioso e o cataclismo das secas periódicas. E afirma mais ainda que este vínculo é mais visível, mais fácil [pg. 252] de evidenciar-se no caso do fanatismo religioso. Há uma página sua a este respeito que por sua força evocativa e pela lucidez de sua lógica merece ser transcrita neste nosso ensaio: “A seca não é a única desgraça que se abate sobre o sertão. Juntam-se a ela o fanatismo religioso e o banditismo, três fenômenos estreitamente associados. Que existe um vínculo ligando banditismo e períodos de grande seca, é evidente. O número de cangaceiros aumenta em cada um desses períodos. Do mesmo modo que a mendicidade aumentava na Rússia ou na Índia a cada grande período de fome. Mas justamente porque o mesmo fenômeno — a fome — traduz-se ali pelo deslocamento de vagabundos, mais mendigos do que larápios, e aqui pela organização de pequenos bandos de cangaceiros, é que devemos procurar, além desta, outras causas que possam ter influência. A ligação entre fanatismo religioso e seca, no entanto, parece-me mais fácil de demonstrar. A história apresenta-nos numerosos casos dela, principalmente a Idade Média que, na Europa, foi ao mesmo tempo o período das grandes fomes e das grandes crises místicas. A Índia fornece-nos exemplo análogo com as fomes destruidoras, os iogues descarnados. O sertão do Nordeste faz-nos, assim, mergulhar em plena Idade Média, arrasta-nos para a Índia... O vaqueiro, acuado pela miséria, diante de uma terra ressequida pelo sol, de ossada de animais e de cadáveres que a morte semeou, de plantas que se transformaram em coroas de espinhos ou em cravos, lanhando-o nos pés e nas mãos, renovando-lhe na carne o suplício cristão da cruz, sonha com uma terra abundantemente cortada de regatos, adornada de eterna vegetação, ofertando doces frutos. Retoma por sua conta, e mistura-os, o mito da imposto à vida do sertanejo é o que encontramos no romance de José Lins do Rego, Pedra Bonita, no qual o autor apresenta uma família marcada, com vários irmãos. Um deles cai no cangaço, outro no delírio místico e o outro permanece até o final do livro num estado de desesperadora incerteza mental. 111 Roger Bastide, “O Messianismo e a Fome”, in O Drama Universal da Fome, Simpósio “Terra sem Males” do antepassado índio e a história do povo de Israel saindo do Egito em busca da “Terra da Promissão”, que é o mito do antepassado português. Daí toda uma série de movimentos místicos e fanáticos que apenas são o reflexo desta angústia diante da fome, movimentos que se encadeiam no decorrer dos séculos, desde a pajelança, na época das primeiras mestiçagens, até o Juazeiro do Padre Cícero, na República atual.” Graças aos estudos mais recentes acerai da fisiopalologia da nutrição conhecem-se mesmo quais os fatores nutritivos que mais influem no equilíbrio do tono emocional e por cuja falta ficam os indivíduos expostos a terríveis desequilíbrios. A interferência [pg. 253] dos vários elementos componentes do complexo B no bioquimismo cerebral e a evidência de graves perturbações nervosas e mentais nos casos de carências específicas de alguns deles, como sejam de tiamina e de ácido nicotínico, já não deixam mais dúvida de que o estado mental se pode perturbar até os limites da insanidade, por causas de natureza carencial. Em certas síndromes neurastênicas com crises de depressão nervosa acentuada e de extrema irritabilidade, o fator avitaminose constitui, às vezes, causa única e sua cura se faz com milagrosa rapidez com a ingestão de altas doses de vitamina B1.112 Quanto aos fenômenos nervosos que acompanham a deficiência em ácido nicotínico, são eles bem conhecidos e sistematizados, aparecendo com freqüência entre os pelagrosos, desde a simples desorientação até as formas mais complexas de psiconeurose, com confusão mental, manias, fabulações e delírios completos.113 Ora, as carências múltiplas que se associam nos casos de fome absoluta entre os sertanejos devem provocar distúrbios nervosos por conta destas várias deficiências. Já um tropicalista bem avisado tinha afirmado que “a chamada neurastenia tropical não é uma doença peculiar destas áreas nem é causada por nenhuma ação enervante do clima, mas produto de múltiplas causas, entre as quais a má alimentação”.114 publicado em 1958; e Brasil, Terra de Contrastes, no capítulo V, intitulado “O Outro Nordeste”. 112 Spies, Tom; Bradley, J.; Rosenbaum, M. e Knott, J. R., Emotional Disturbances in Persons with Pellagra, Beriberi and Associated Deficiency States, 1943. 113 Bowman, Karl, e Wortis, Herman, Psychiatric Syndromes Cau-sed by Nutrition Deficiency, 1943. 114 Culpin, Millais, “An Examination of Tropical Neurasthenia”. in Proc. Roy. Soc. of Med., vol. XXVI, 1933. Neste trabalho o autor apresenta dados estatísticos, pondo em evidência a alta incidência das perturbações mentais dos colonos ingleses nos trópicos. Dos casos de invalidez dos funcionários britânicos da África Oriental Britânica, 45% são consequentes a perturbações Mordem Carthew115 também incluiu a dieta inadequada como um dos fatores de deteriorização do estado mental dos colonos nas regiões tropicais. Na etiologia de uma das formas mais espetaculares de neurastenia aguda, comum nas terras tropicais do Oriente, principalmente na península de Málaca e nas Índias Orientais Holandesas, nesta loucura violenta acompanhada [pg. 254] de terrível instinto assassino — o amok — deve entrar certamente o fator carencial. Basta pensar que a doença é comum nas zonas de alimentação mais precária, zona da mono-extração da borracha ou da monocultura da cana-de-açúcar, e basta atentar na descrição do mal que arrasta indivíduos, dos estados de depressão melancólica em que estas populações subnutridas vegetam, para os estados de agitação extrema, estados de verdadeira “hidrofobia de fome”, num ímpeto de violência-incontida. Vejamos a descrição, embora um tanto literária, porém fiel; que Stefan Zweig nos dá do amok, e procure-se decompor neste quadro descritivo os vários elementos que exprimem os estados emocionais que apresentamos, como componentes do quadro psíquico da fome extrema: a desagregação mental, a perda dos escrúpulos morais, a monomania aguda, a excitação desmedida e a sinistra explosão de raiva. Assim escreve Zweig: “Sabeis o que é o amok?... É mais do que embriaguez, é loucura. É uma espécie de raiva humana, literalmente falando... Uma crise de monomania assassina e insensata, à qual nenhuma excitação alcoólica se pode comparar... Um nativo de tipo tranqüilo está tomando calmamente uma bebida com ar apático e indiferente, e bruscamente salta, agarra o punhal e precipita-se para a rua... Corre sempre em linha reta, sem saber para onde... Tudo o que encontra no caminho, homem ou animal, abate com a arma, e o cheiro do sangue o vai tornando cada vez mais violento... Enquanto ele corre, a baba lhe vem aos lábios, e. urra como um possesso, corre sempre, sem ver nada nem à direita nem à esquerda, sempre a urrar de maneira cruel e sempre com a arma ensangüentada na mão... As pessoas da aldeia sabem que nenhuma força humana pode conter aquele que está possuído desta crise de loucura sanguinária e quando o vêem gritam de longe o sinistro aviso: amok! amok! E todos fogem... Mas, ele. sem nada ouvir, prossegue na sua louca carreira; corre som nada ver e continua a matar tudo o que encontra, até que seja neuromentais COPYRIGHT JOSUÉ DE CASTRO

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