domingo, 27 de maio de 2012

FAUNA DO NORDESTE

4 CONHECIMENTO POPULAR (Da Fauna do Nordeste do Brasil) O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE 193 CAPÍTULO I OS ANIMAIS IMPERFEITOS: ESQUISITOS, PERTURBADORES E AMEDRONTANTES SE VERDADEIRA a preferência de o homem identificar-se com os animais, que elege em seus nem bem esclarecidos princípios de convivência com seres estranhos, dentre os quais sobrelevam muitas vezes exemplos de ferocíssimas espécies, não menos precedente a afirmativa de o constrangerem, atemorizando- o, algumas criaturinhas animais visivelmente vulner áveis ao seu trato. Mas todavia não fáceis de serem dominadas, vencidas. Dá-se de prova o caso de ser mais plausível alguém livrar-se da ameaça de onça canguçu, do que da arremetida implacável das chamadas “formigas soldado” que, em hordas incontíveis, caminham obstinadas, e por onde passam na mata, vão mordendo, triturando, pulverizando o que lhes deparar de obstáculo. Tais monstrinhos, também chamados “carregadeiras”, não se dobram ao menos às suas “competidoras habituais: as formigas de fogo e os marimbondos” (Roosevelt, 1943, p. 330). Curiosas as apreciações, a respeito, de observadores mais antigos, a se tirar pelas do senhor mestre Frei João César, ilustre membro da Academia Brasílica dos Esquecidos (1724). EDUARDO CAMPOS 194 Em linguagem preciosa, denunciou a existência do que, a certo momento de sua dissertação, dá por indivíduos “aéreos” e “insetos voláteis”: “Quase molestos perturbadores dos viventes, pungentes e ruidosos despertadores do sono, vociferantes, e roucos clarins do meio-dia, reluzentos Piraustas da noite, volantes Clícies das Luzes, estragos sussurrantes das flores, e vorazes destruidores das plantas” (Castello, 1971, p. 216). No rol desses aéreos indesejáveis os que contrapõem, no dizer do douto acadêmico brasílico, a “melifluidade e do- çura” com “aspereza, insulto, e crueldade”: as “vespas maiores, e menores, Capueruçus, Uruperanas, Aiçavas, e Tupeiçavas, mais conhecidas por Marimbondos-de-tatu, Marimbondos de Caboclo, e Petiocabos, que não só com seus pungentes aguilh ões infestam aos homens, mas também penetram a grossa, a áspera pele dos brutos, comovendo-os até a última desesperação; porque próprios, e naturalmente no Brasil; mediis, feruoribus acrior instant” (idem, p. 216). Antológica a “Dissertação Oitava” do dito senhor mestre Frei João César, “na qual se descrevem os Insetos Voláteis do Brasil”: nenhum dos chamados “imperfeitos” escapa às curiosas definições do erudito religioso: “são mais grosseiros e obscuros no nome” – afiança o acadêmico a seus pares – os esplêndidos Voláteis Insetos, cintilantes Piraustas da noite, ígneospíropes dos campos, luminosos pequenos Astros, ou exalações viventes, relâmpagos volantes, alígeros luzentos bichinhos, aos quais Plínio com os Gregos chama Lampírides, os Latinos Cincidela, os cultos Pirilampos...” (o.c., p. 220). Indivíduos desse porte formam mundo à parte. Vão desde os ortópteros, de mandíbulas vigorosas adestradas para cortar paus, até os isópteros, terríveis na proliferação e fome, comendo madeira, papelão, couro, enquanto percorrem o chão ou furam parede, deixando para trás um rastro excrementício de O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE 195 destruição. E nessa projeção de seres indesejáveis, não raro senhores de apetite voraz, os anopluros, família que abrange os nauseantes piolhos que sugam o homem. Crê o povo inexistir sangue nesses pequenos seres. Neles a Ciência explica, mas sem convencer os menos aprendidos, que, circula sangue incolor ou “levemente colorido de verde ”, “frio”, pois não portam coração nem vasos de circulação, entendíveis como veias (Moreira, 1921, p. 184). Miran de Barros Latif testemunha: nas regiões tropicais, “em pleno verão, até os animais se aproximam das fogueiras para se livrarem da perseguição dos insetos”, e dá exemplo de fracasso do homem no trópico” “ante a coexistência de minúsculos animais de sangue frio”, como foi ver, a mostrar ao leitor, em documento do século XVIII. Nesse dito expediente, de natureza oficial, desesperado soldado escreve aos seus superiores a avisar que “o posto avançado dos paulistas à margem do Paraná será abandonado não devido às onças ou pressão dos paraguaios, mas da bicharia’ que atacando os cavalos, os fazia correr a buscar abrigo junto ao fogo, no interior dos ranchos” (Latif, 1959, pp 66, 67). Na “Relação do Maranhão”, informação valiosa escrita pelo inaciano Luiz Figueira em 1608, está contado o que foi a grande incursão que empreenderam ao Ceará o dito mission ário e seu companheiro de ordens religiosas, Pe. Francisco Pinto, trucidado pelos índios da região. Enfatizada na obra, em algumas passagens, a presença de animais atormentadores do homem, quer por sua ação venenosa, quer pelas importunações à feição de vexame. Desse estado, mencionado: “Nesta triste serra dos corvos parece q’ se ajuntarão todas as pragas do Brasil, inumeráveis cobras e aranhas a q’ chamão caranguejeiras, peçonhentíssimas de cuja mordedura se diz q’ morrem os homens, carrapatos sem conta, mosquitos e moscas q’ magoão estranham-te, e ferem EDUARDO CAMPOS 196 como lancetas fazendo logo saltar o sangue fora...” (Três Documentos do Ceará Colonial, 1967, p. 81). Em nota de esclarecimento ao assunto, na mesma publica ção, Th. Pompeu Sobrinho vê o enxame das “meruanhas” (Itamaxia caleitrans, Geof.), díptero hematófago da família dos Eumüdeos), como “extremamente incômodo” (o.c., p. 126). Os que perlustraram por esses dias os sertões, os longes, a interioridade mais funda do país, não aceitam sem visível azedume a agressão insólita de indesejáveis insetos, sobre os quais Claude d’Abbevile, a propósito, ajustaria esta definidora apreciação da condição atenazante daqueles: “Muitas pessoas ouviram falar na existência, no Maranhão, de animais que, embora pequenos, incomodam o homem. E muito se admiram do fato. Mas é pura verdade. Devem eles saber que em qualquer país onde existam animais perfeitos tamb ém os há imperfeitos, a que alguns denominam insecta e outros anulosa ou annulata e outros ainda, com Aristóteles e Plínio, Eyvooyu. São pequenos animais sem sangue ou sem membros distintos, apenas alguns têm cabeça e ventre ou simplesmente um centro que serve de peito e dorso; têm uns a pele golpeada; outros a têm enrugada ou ainda anelada ou feita de rodelas” (Abbeville, 1975, p. 204). Vivem em todas as partes. Na França, acrescenta Claude d’Abbeville, alguns são dotados de asas e voam, como borboletas. São moscas, abelhas, vespas, mosquitos, besouros e carac óis. “Outros, possuidores de pés, correm ou rastejam, como o gafanhoto ou saltarelo, a pulga, o escorpião e a víbora. Outros ainda participam dos dois tipos, como as formigas; outros ainda não têm asas, nem pés como os vermes, as lêndeas em crescimento. Vivem uns nas matas e outros no corpo do homem como o oução e outros vermes” (idem, ibidem). O Maranhão, prossegue o capuchinho francês, não se isenta desses seres imperfeitos. Ali abundam as abelhas, a O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE 197 motuca, o maruim, o içá, o cupim, e dentre muitos mais, como esclarece Mário Guimarães Ferri em nota de pé de pá- gina à obra já mencionada, qual a espécie de “díptico hematófago”, um tipo de “moucheron” – assim grafado por Claude d’Abbeville – pequenas moscas, inominadas ou grandes, possivelmente as varejeiras (o.c., p. 205). Mas quem descreve a presença insuportável de tais seres imperfeitos, por experiência própria, é Theotônio José Juzarte, através das páginas do “Diário da Navegação do Rio Tietê, Rio Grande Paraná e Rio Gustemi”, relato escrito a partir de 10 de março de 1769 (Taunay, 1981, p. 236). Lembrados com ênfase os insetos importunadores dos monçoeiros: “mosquitos chamados pólvora, borrachudo; pernilongos, e em tal quantidade, que se formam nuvens; além destes há os vermes que, picando na cútis, introduzem dentro um bicho negro gadelhudo à semelhança de uma lagarta de couve.” E mais carrapatos, moscas de ferrão etc. No dia 4 de maio de 1769, quando a expedição do sargento-mor passava sua gente por terra, abandonadas momentaneamente as embarcações nas quais subiam o rio, veiolhes do mato uma “nuvem de marimbondos”, mordendo a todos, de lastimar; os homens fugiam, gritavam as mulheres e as crianças choravam (o.c., p. 256). A expedição de Theotônio José Juzarte teve de enfrentar depois as pragas de imundícies que por lá, à época, engendravam “muitas doenças e amiudavam as mortes.” Assim, surgiram os ratos; não faltaram as pulgas seguidas de “uns bichos grandes felpudos, nojentos, e muito moles, que por toda a parte se trepavam e perseguiam a gente”; por diante, baratas que, voando, “davam na cara” das pessoas, e grilos, tão a fim de perturbarem, que ninguém podia dormir; e, finalmente os gafanhotos “grandes, que se levantavam em nuvens que escureciam o sol”, tudo a modo de “coisas sobrenaturais” (o.c., p. 280). EDUARDO CAMPOS 198 Oscar Canstatt mais próximo de nós, em 1871, anotou serem os mosquitos “uma praga no país.” Deles, escreveu, “três espécies se distinguem como tormento dos homens e igualmente do gado: o maruim, o pium e a carapanã.” Ajuntou: “O ataque desses pequenos demônios pode também levar o mais calmo dos homens à impaciência e ao desespero” (Canstatt, 1975, p. 67). Spix e Martius em sua peregrinação pelo Brasil, no primeiro quartel do século passado, demoraram observação sobre o mucuim: “inseto microscópico, sem asas, do gênero Trombidum; vive nos capins verdes e agarra-se com avidez à pele, onde aparece como quase invisível pontozinho escarlate. Aí, ele penetra logo, por meio de sua tromba: morto, permanece com peçonhenta irritação e provoca desagradabilíssima coceira que dura dois e três dias” (Spix-Martius, 1981, v. 3, p. 55). Às vezes dão-se migrações desses chamados animais imperfeitos. Francisco de Barros Júnior, conhecido caçador e pescador, autor de vários livros sobre os “prazeres cinegéticos”, conta as “migrações de insetos alados” que assistiu nas jornadas esportivas pelo interior do país. Deixou-nos um quadro rememorativo de ocorrência testemunhada: “Em determinado dia, e quase à mesma hora, como obedecendo a um secreto comando, saem dos cupins legiões de mimosos ternicídeos alados, para gáudio de pássaros e peixes. Dos formigueiros enxameiam os içás, suculenta alimentação do mundo alado, fácil alimento dos desdentados tamanduás e tatus...” (Barros Júnior, 1981, p. 164). Outra descrição surpreendente: “Subindo o rio Madeira em 1937, encontramos descendo pela margem direita, voando em coluna cilíndrica, uma nuvem de mariposas brancas, pequenas de um centímetro. Para fazer-se idéia de seu número, basta dizer que viajando em sentido contrário, levamos mais de uma hora para passar pela gigantesca coluna, com O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE 199 um diâmetro de pelo menos cinqüenta metros e longa de uma legua e meia” (idem, p. 165). Caçando pelo Tocantins, esse conhecido cinegista fez um desabafo “contra os incômodos provocados pelos ‘piuns”’. O chamado mosquito pólvora atravessava-lhe o mosquiteiro vexando-o e o atacando de modo persistente. “Quase todas as feridas notadas nas pernas de homens, e mulheres e animais” – esclareceu aí ; “nessa região equatorial, são causadas pela picada do terrível Simulium amazonicum” (idem, p. 57). Mas nem todos os representantes dessa fauna tão importunadora e até exasperante – como se verá por diante – é de tamanho insignificante. Há por exemplo a jaquiranabóia, também conhecida por “cobra-do-ar”, “cobra-de-asa”, “cigarracobra ”, “gafanhoto-cobra”, como registrou Karol Lenko. Inseto “da ordem Homóptera, família Fulgoridae, é o gigante entre eles, pois o comprimento de algumas espécies, com asas dobradas, chega a 10 cm, a envergadura chega a 16 cm. Além disto, as asas posteriores possuem grandes membranas ocelares, amarelas, circundadas de preto, do tipo ‘olho de coruja’.” (Almanaque Agrícola Chácaras e Quintais, julho 1963, p. 120). Tem-na o sertanejo como inseto-monstro, perigosíssimo, podendo cegar as pessoas nas quais se chocar. “Seu ferrão” registrou Osvaldo Orico – “infunde pavor e obriga a todos a se defenderem de suas picadas” (Orico, 1937, pp 129, 131). Trata-se de um hemíptero luminescente, conforme descobriu Marie Sibille Mérian, em 1819, propriedade confirmada pelo entomólogo de Paramaribo, H. Heyde, em 1952, em seu livro Bioluminescence. (Almanaque Agrícola Chácaras e Quintais, 1963, p. 122). Outros representantes dos animais imperfeitos sempre atenazaram o homem. Nesse caso, as pulgas, os percevejos, não incomuns e localizados no interior de abrigos de pouco uso, e no interior das próprias residências. EDUARDO CAMPOS 200 Mas o Tunga, o chamado bicho-de-pé, no dizer de Oscar Canstatt (Canstatt, 1975, p. 68) é “peculiaridade do país (Brasil) e altamente perigosa.” A fêmea do Pulex penetrans se enterra nos dedos dos pés, particularmente debaixo da unha, e aí põe grande número de ovos que podem produzir postemas perigosas, a gangrena e muitas vezes a morte de homem e de animais.” É inseto sobremodo incômodo, que a linguagem popular consagrou como bicho-de-pé, criaturinha animal de hábitos nocivos ao homem, diligente aproveitador da exposi- ção de pés e mãos no chão, e muito sensível ao estímulo de certas circunstâncias falta de aeração, luz solar, desasseio. Antigamente surgia com bastante freqüência em casebres abandonados, ou em lugares de pernoite ocasionais. Mas não importunava a quem se resguardasse usando, por exemplo, como repelente, as ramas de Melão São Caetano (Mmordia Charantia, Linn) espalhadas pelo chão. Quero crer que o hábito generalizado no país, pelo século passado, de as pessoas lavarem os próprios pés antes de dormir (ou da refeição da noite), estava vinculada tamb ém à precaução contra o assédio das impulsivas pulgas do bicho-de-pé. “Todo mundo, antes de se deitar, lava os pés em água quente”, conta Auguste de Saint-Hilaire (Saint-Hilaire, 1938, p. 189) acrescentando no mesmo lugar: “Nas casas ricas um negro, com sua toalha ao ombro, leva a água ao estrangeiro em uma grande bacia de cobre; os pobres, porém, se contentam com uma gamela de madeira.” Há inesperado episódio narrado pelo Barão João Tiago Von Tschudi, suíço, em sua estada no interior de São Paulo, em 1860, a respeito: “Durante o jantar, senti, de repente, que alguém me tirava os sapatos com grande agilidade. Surpreendido, debrucei-me para olhar para baixo da mesa e vi que um negro, munido de grande bacia, prontificava-se a lavarO PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE 201 me os pés, o que o fez e tornou a calçar-me, procedendo assim com as demais pessoas” (Tschudi, 1980, p. 180). A prática de lavar os pés, com ou sem cerimonial, perde- se no tempo, elucido. Penélope nem percebeu que se dirigia a Odisseu, seu amado esposo, nestes termos: “Sim, tenho em casa uma velha dotada de esp írito justo, que serviu de ama a Odisseu, o infeliz, e o criou delicada, desde o momento do parto, a lhe pôr a mãe dele nos braços. Ela, conquanto mais fraca, há de os pés, cuidadosa, lavar-te.”. Quem andava descalço pelos sertões, passeando por armazéns e choças, parando às vezes debaixo de árvores ensombradas, corria o risco de contrair com indesejável freq üência os importunantes bichos-de-pé. Por essa razão -e pela que se explicará logo – os escravos viviam muito vulner áveis ao desadorado inseto. Pelo menos se depreende, pois em meados do século passado as posturas da Câmara Municipal do Icó, em seu artigo 72, explicitava que “escravos, à exceção dos pajens e criados, não poderão andar calçados de sapatos, botinas, Sc., Sc. Os senhores que o consentirem ficam sujeitos a multa.” Daí a facilidade de os cativos, àquele tempo, adquirirem o bicho-de-pé, ocorrência que, como tudo parece indicar, além de incomodar, os defeituava. Nesse caso está, a exemplo, de escravinho Marcelino, mulato cozinheiro de 16 anos, que fugiu ao seu senhor em junho de 1870, “os pés indicando ter muito bicho... ” (Jornal da Fortaleza, 9.06.1870). Caminhar sem sapatos foi sempre de muito risco para os que viveram entre nós nos séculos passados. Ao tempo dos holandeses, em Recife, “muitos soldados” que “andavam descalços” (às vezes por não haver sapatos nos armazéns da EDUARDO CAMPOS 202 Companhia), pelos idos de 1683, ficavam inválidos e incapazes de marchar por terem os pés cheios de bichos; – relata José Antônio Gonçalves de Mello. (Mello, 1979, 2a., p. 127). Os que adentravam o interior, no século XIX, principalmente estrangeiros, ao escreverem a memória de suas experi- ências em nossa terra, via de regra registravam a presença do bicho-de-pé sob acentuado azedume, tais e quais padecimentos advindos de seu contacto. Eram em tamanha quantidade esses insetos encontrados no interior das casas, de permeio com as pulgas, que revoltaram a José Mariano, companheiro de Auguste de Saint- Hilaire na viagem empreendida às nascentes do São Francisco, começada em Minas Gerais. No rancho dos Viajantes, em Registro, na mencionada jornada, o cientista sem se conter acabou por escrever: “fui quase devorado pelos bichos-de-pé.” Para cúmulo do azar, não escaparia também das conseqüências. Assim, sofreu a ação de um deles no “index direito” da mão, circunstância que quase o deixou sem escrever naquela ocasião as impress ões de viagem (o.c., p. 296). Mas quem melhor observou e escreveu a respeito foi sem dúvida Auguste de Saint-Hilaire, que demora a atenção numa descrição dos incômodos e da forma como a tunga penetrans torna-se hospedeira do homem: “A pulga (bichode- pé) penetrante perfura a pele e esconde-se completamente sem deixar perceber, além do orifício que abriu, senão os dois ou três últimos anéis do abdome; a nutrição que absorve a vontade dilata-lhe o tubo intestinal de modo extraordinário; mal penetrou na carne e já não pode sair pela abertura por ela própria feita, adquirindo rapidamente o tamanho de um grão de cânhamo, ou mesmo de ervilha. Nesse estado, o inseto apresenta um aspecto completamente diferente, e seria incapaz de mudar de lugar; mostra-se então um globo O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE 203 embranquecido, achatado, apresentando em cada uma das faces uma proeminência pardacenta pequena; a face superior é formada pelos últimos anéis do abdome, e a proeminência da face inferior pela da cabeça e tórax, que não sofreram distorção. Uma ligeira comichão...”, e se instala insuportável vexame, dizemos nós, em quem o hospeda (Saint-Hilaire, 1938, Tomo l, pp. 46-47). Carls Seidler, alemão “agenciador de colonos e soldados ” como o identifica o cel. F. de Paula Cidade, a nos visitar em 1835, deplorou: “A natureza, cuja história secreta nos continua vedada, também aqui apresenta bastante outros males. É singular que especialmente os insetos tenham sido inoculados do pendor e do poder para o despotismo, de maneira que o homem, com toda a sua glória de liberdade, é tiranizado pelos mais ínfimos bichos da terra, que ele encara com desdém. Uma dessas pragas da terra, em todo o Brasil, inclusive na ‘divina capital’, é a pulga da areia (pulex penetrans) que os naturais do país chamam de ‘bicho-de-pé” (Seidler, 1976, p. 69). O indesejado hóspede dos pés (não raro das mãos), é mais conhecido do que podemos imaginar. Richard Burton, ao mencionar o problema, registrou a presença do “bicho-dep é” (em inglês: Jigger) “imortalizado” numa canção negra: Rose, Rose, lubly Rose, I wisch may be figgerer if don’t lub Rose. Narra igualmente que viajantes mais precavidos não andavam descalços. E repete seu colega Southey, a informar: EDUARDO CAMPOS 204 as pessoas lavavam “cuidadosamente os pés todas as noites como o melhor preservativo contra as chiguas (bicho-de-pé).” Burton acrescenta mais: “Os tupis chamam-no tumyra. Os espanhóis preferem nigua e chigua, donde os franceses tiraram chique, e o termo chegou até nós (ingleses) sob várias formas: chigre, cheger, chegre, chegoe, chiga, chigos, chiger, e, finalmente, jigger.” Mas os imperfeitos dão, e como dão, sua contribuição ao homem do campo. O embuá é aproveitado como isca na pesca, quando falta minhoca; o grilo, outro incrível importunador à hora do sono, é meizinha muito recomendada para aliviar os incômodos de urina presa. Carrapato, esmigalhado em pano até tintar de sangue, aplicado na “direção de dente cariado”, faz desaparecer a nevralgia. A substância da casa do besouro, conhecido por “busca-vida”, diluída n’água e aplicada em área de pescoço comprometida pela parotidite – a cachumba sertaneja; alivia; chá de barata, torrada, é de pronto valimento no tratamento de cólica intestinal de crian- ças... (Campos, 1967). Outro exemplar dessa família de indivíduos pouco aceitos pelo povo, que, em certas circunstancias, os combate a pretextos múltiplos (repulsa, receios, abusões etc.) é o morcego, explicado na sabedoria popular como nascido de ratos malfazejos, pela semelhança que esse quiróptero guarda dos últimos. Seguem-se-lhe, na exclusão de sentimento de afeição, os gafanhotos. “Em Salgadinho (Pernambuco) apareceram alguns maiores do que morcegos. .. Vozes santas, entre as quais a do Pe. Cícero, disseram que os gafanhotos ‘são os membros do demônio’” (Bradesco-Goudemand, 1982, p. 14). No mesmo lugar a autora lembra folheto de José Soares e Francisco Sousa Campos, “Abelhas, Morcegos e Grilos Sugando a Humanidade”, livreto “baseado também em fatos reais: uma invasão de grilos de ‘dentes’ afiados, de morcegos O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE 205 e de abelhas africanas que não poupam nada, nem animais, nem gente” (idem, p. 142). A fome, em determinadas circunstâncias, parece funcionar como boa orientadora do homem. Desse modo, não difícil ver o ser humano aproveitando inusitada alimentação zoomorfa, que se imagina originar-se de situações de extrema falta de provisão. Assim, termina acostumado, por exemplo, ao repasto de escorpiões, de minhocas cruas, aranhas, e, dentre essas, a caranguejeira, artrópode dado por petisco saboroso, assado e polvilhado de sal (Mello Leitão, 1953, p. 169). Isso, objetará o leitor, será ocorrência de lugares distantes (ilhas remotas). Mas os “imperfeitos” também entre nós acabam sendo deglutidos vorazmente. “Dos insetos não há nenhum, por mais repelente, que o homem não coma. Nem o piolho, o nojento piolho escapa. Dos índios da Serra do Norte diz Roquette Pinto: ‘De um modo geral pode dizer se que os Nahambiquaras comem tudo; um mosquito que apanham sobre o corpo, um piolho (grifamos), um gafanhoto, uma lagartixa...” (o.c., p.170). Nada escapa ao homem, quando a fome aperta”. Nem os cupins, apreciadíssimos pelos Araruaques.” (idem, p. 176). Entusiasmado pela disposição com que os mandacarus consumiam “lagartas, bichos-de-coco e algumas formigas e certos insetos como cupins” no século passado, o etnólogo F. S. Hart comeu cabeças de saúva, manifestando-se a respeito: “Quando o inseto ficou esmagado entre meus dentes, a minha boca ficou invadida por um sabor de especiaria, assemelhando- se um pouco ao cravo” (Santos, 1987, p. 87). Resta de tudo a impressão de que o homem dos sertões nem sempre sabe distinguir os animais de sangue frio dos que os têm quente. Luís da Câmara Cascudo anotou a respeito: “O sertanejo ensina que as cobras se dividem em duas seções: cobras de sangue frio, que são as EDUARDO CAMPOS 206 venenosas, e as cobras de sangue quente, que não o são” (Cascudo, 1956, p. 71). Mas os imperfeitos, malquistados, temidos, amedrontantes ou simplesmente deglutidos pelo homem, acabam aproveitados para substituir os ensalmos que adestram ou protegem o vaqueiro no trato de gado rebelde. Getúlio César ouviu de vaqueiro pernambucano Cícero Romão curiosas indicações de como adentrar-se na caatinga, ainda que de noite, e submeter o boi brabo: “Mata-se um urubu em uma sexta-feira e enterra- se numa encruzilhada do camim, adepois de sete dias se desenterra o urubu e se encontra na cabeça dele três tapurus, sendo um branco, outro escuro e um outro preto. Tira-se os tapuru, enrola-se bem enrolado, adispois, bota-se em saquim de couro e se guarda em um lugar que ninguém veja. E quando se vai campeá, leva-se o saquim no bolso do gibão. O tapuru preto é pra se campeá de noite, o escuro é pros cafús e o branco é pra se corrê de dia...” (César, 1941, p. 81). Ainda no capítulo de interesse aos seres de sangue frio, por oportuno lembrar em seus aspectos curiosos o que foi a questão levantada pelos “religiosos de Santo Antônio”, no Maranhão, intentando “ação de força às formigas ou às saúvas para as fazer despejar da sua cerca”, como conta, a repetir documentos dos dias de 1713, o erudito autor da “Crô- nica do Brasil Colonial”, aí narrado que o Procurador da dita ordem deu “libelo contra as formigas” indesejáveis, no que foi contrariado pelo “procurador daquele negro e miúdo povo”, a alegar que “elas, uma vez recebido o benefício da vida por seu Criador, tinham direito natural a conservá-lo por aqueles O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE 207 meios, que o mesmo Senhor lhes ensinara. Item, que na praxe e execução destes meios serviam ao Criador, dando aos homens os exemplos das virtudes que lhes mandara; a saber, de prudência acautelando os futuros, e guardando para o tempo da necessidade: Formica populus infirmus qui praeparat in messe cibum sibi (Prov. 30,26), de diligência ajuntando nesta vida merecimento para a eterna.” E empós outras tantas e pertinentes citações piedosas, em bom latim, acrescentado que “eles (os religiosos) eram irmãos mais nobres e dignos, todavia diante de Deus também eram umas formigas...” Ao arrastar do questionamento, com réplicas e contrar éplicas, restou finalmente a sentença para que “fossem obrigados ” os frades “a assinalar dentro de sua cerca sítio competente para vivenda das formigas, e que elas sob pena de excomunhão mudassem logo habitação, visto que ambas as partes podiam ficar acomodados sem muito prejuízo, maiormente, porque estes religiosos tinham vindo ali por obedi ência a semear o Grão Evangélico, e era digno o operário do seu sustento, e o das formigas podia consignar-se em outra parte, por meio de sua indústria, a menos custo” (Lisboa, 1976, pp. 426, 606 e 607). 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