quarta-feira, 4 de abril de 2012

SILVINO SANTOS: O CINEASTA DA FLORESTA

Sorriso Mármore
por Cida Sepúlveda










A estante deslocada
por Rafael F. Carvalho






Em movimento
por Ignacio Mendes






Pequeno fotograma em três atos
por José Sérgio Custódio






O mal de Machado
por Hudson R. Santos






Meu pai e as borboletas
por Pedro Costa Reis






Essas e outras mulheres
por Luiz Vitor Martinello






O senhor Irineu, Anita Sabóia e eu
por Nilto Maciel






Na estrada
por Rinaldo de Fernandes






O ceifeiro
por Arthur Dantas Silva






Relato de um salto sobre a Avenida Nove de Julho, em São Paulo
por Luanda Achôa






Um corredor na metrópole
por Fátima Brito






História de ferreiro
por Chambel Santos











29/05/2007 21:15:00
Um pioneiro do cinema brasileiro na Amazônia.




Por Márcio Souza



Nas primeiras décadas do século XX viveu na Amazônia um cineasta de grande vigor e linguagem moderna. Era o cineasta Silvino Santos, nascido em Portugal, considerado hoje como a mais alta expressão artística do "ciclo da borracha". Tal qual o seu conterrâneo Ferreira de Castro, expressivo romancista de “A Selva”, este aventureiro chegou à Amazônia nos fins do século XIX, disposto a ficar rico. Mas era um apaixonado pela região e não incluía o retorno em seus sonhos. Quando chegou na baía de Guajará, em Belém, e viu pela primeira vez o rio Amazonas, foi tocado para sempre por uma paixão que já cultivava desde criança em Portugal. Em Manaus, trabalha como auxiliar de fotógrafo, aprendendo o ofício. A fotografia artesanal e complicada da época e, mais tarde, o cinema, seriam as suas formas de expressão. Numa terra em que a elegância literária consistia em usar uma linguagem mais morta que o sânscrito, que era a linguagem de Olavo Bilac, Silvino Santos não se preocupou com metáforas e contorções; na verdade, não estava preocupado em "expressar" nada. Como fotógrafo e cinegrafista de seu tempo, estava muito mais maravilhado com a mecânica da fotografia e da nascente cinematografia que com qualquer outra "inquietude" artística. Nem imitar a pintura ele pretendeu. Como documentarista, seus trabalhos não possuem nem o grafismo de determinados fotógrafos europeus, nem o ar de dissecação dos trabalhos fotográficos de Emile Zola. Sua história profissional foi profundamente marcada pelo poder econômico dos coronéis da borracha, de quem foi sempre um zeloso e fiel servidor. E neste trabalho puramente de empreitada, ele foi um artista destemido e uma figura que nos desafia.

O cinema surgiu em sua vida como uma encomenda qualquer. O seringalista Júlio César Araña, poderoso proprietário de terras do rio Putumayo, temendo que as denúncias de Hardenburgo, um estudante norte-americano, de que mantinha trabalhadores escravizados em seus seringais atrapalhassem seus negócios em Londres, procura Silvino Santos para realizar um documentário em suas terras.

O jovem fotógrafo nada conhecia de técnica cinematográfica, tendo Araña financiado um estágio em Paris, nas Usinas da Pathé, por volta de 1915. Assim, diretamente em contato com os últimos aperfeiçoamentos do novo prodígio artístico, Silvino retorna para realizar o documentário encomendado. É impressionante a sagacidade do poderoso Araña de encomendar um filme para usar como testemunho da verdade. O cinema fazia delirar as platéias como uma vitória da técnica. Era a própria vida que surgia naquelas imagens bruxuleantes. Reconhecendo no cinema o seu valor de veracidade, Júlio César Araña inaugurou na região o interesse pela arte que engatinhava. Mesmo sem ter surtido o efeito desejado, já que o filme nunca chegou a ser exibido, a maravilha da imagem em movimento estava definitivamente instalada em Manaus.

A filmografia de Silvino Santos não é grande: sete documentários, sendo que dois são de longa‑metragem. Estes últimos representam o que há de melhor em sua filmografia, e foram realizados entre 1921 e 1924, quando o "ciclo da borracha" já estava nos seus anos de depressão. O cinema perdia seu caráter de divertimento de feira e as cadelas de exibição começavam a se organizar em todo o território brasileiro. Manaus, onde as primeiras apresentações do cinematógrafo datam da última década do século XIX, já tinha o seu cinema e o público podia seguir as aventuras do Keystone Cops ou as ousadias de Theda Bara. Mesmo assim, a atividade de Silvino Santos não deixava de ter um caráter extravagante, numa sociedade por si só extravagante. Em 1921, ele dá início à produção de seu primeiro longa‑metragem, "No País das Amazonas", ainda hoje uma obra‑prima de síntese em surpreendente linguagem moderna.

"No País das Amazonas" foi produzido pelo comendador J. G. Araújo, um dos mais poderosos comerciantes de Manaus, como propaganda, de sua firma a ser apresentada na Exposição do Centenário da Independência, na capital federal, em 1922. Foi uma produção muito dispendiosa, abrangendo em seu orçamento não apenas o trabalho de filmagem e acabamento, como também a aquisição de equipamentos modernos, muita película e a instalação de um laboratório completo, apto a realizar viragens e reduções. "No País das Amazonas" foi um grande sucesso no Rio de Janeiro. Silvino Santos, com elegante roupa de explorador, chapéu com apliques de couro de onça, fiscalizava pessoalmente a exibição do filme. Na porta do cinema, alguns amigos boêmios, fantasiados de índios, distribuíam folhetos ilustrados e os espectadores encantavam‑se com a decoração exótica que procurava lembrar o Amazonas por seus produtos naturais. Projetado em São Paulo, foi recebido pela crítica como um exemplo de qualidade do cinema brasileiro. Mais tarde, versões em inglês, francês e alemão percorreriam a Europa, repetindo e despertando a mesma curiosidade.

No Rio de Janeiro, Silvino Santos realiza o documentário "Terra Encantada", mostrando a festiva capital federal no ano do centenário da Independência. Voltando para Manaus, documentou o golpe tenentista de Ribeiro Júnior, reunindo o material em 10 minutos de reveladoras imagens que iriam se perder nos arquivos do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, entidade que quase se dissolveu pelo abandono nos anos de decadência. Em 1932, viaja com a família Araújo para Portugal e lá realiza o documentário "Terra Portuguesa", posteriormente sincronizado.

Como funcionário da firma J. G. Araújo e amigo da família, ele foi filmando ao longo dos anos uma interessantíssima documentação sobre uma típica família abastada do "ciclo da borracha", registrando os mais diversos eventos, viagens e aniversários, crianças brincando no jardim, visitas, férias e passeios. É um material delicioso que Silvino, por respeito à família Araújo, deixou desarticulado e inédito.

O processo de criação e produção de "No País das Amazonas` foi típico do "ciclo da borracha". Era comum, naqueles anos de abundância, os coronéis de barranco fazerem‑se representar em feiras e exposições, tanto nacionais quanto internacionais. Preparavam suntuosos pavilhões e encomendavam aos seus intelectuais de gabinete publicações de reclame. Luxuosos álbuns ilustrados, impressos na França ou nos Estados Unidos, pretendiam marcar a presença dessa sociedade cercada pela floresta e tocada pelo exótico. "No País das Amazonas" foi realizado como uma dessas edições de capa dura e esmerada clicheria. Produzido pela firma J. G. Araújo, era uma exposição sistemática, minuciosa e precisa de todos os meios de produção do Estado. Cada seqüência estruturava um tipo de exploração da natureza e o filme era mais que um reclame dispendioso. Do interior da linguagem da ostentação, as imagens de Silvino Santos não traziam a opacidade da condenação em que estavam mergulhados os intelectuais e artistas da época. Vemos o seringueiro sem qualquer subterfúgio, a câmera em leves panorâmicas, planos médios, realizar o seu trabalho. E o interior do Amazonas, sempre tão guardado, resgatava‑se pelas imagens do filme. "No País das Amazonas", visto hoje por um público menos deslumbrado pela técnica cinematográfica, mostra-se um filme de ritmo moderno, muito próximo do sonoro em sua narrativa fluente e sem a ingenuidade dos filmes de vistas dos tempos primitivos da cinematografia. A câmera de Silvino Santos não era passiva. Na seqüência dos arpoadores de pirarucus, por exemplo, ela invade o ambiente. Enquanto o arpoador está imóvel, de pé na canoa, esperando que surja na água a cabeça da tartaruga, Silvino Santos imobiliza a câmera. Lançado o certeiro arpão, as imagens disparam em rápidos cortes. Panorâmicas e detalhes vão mostrando a mecânica da luta. Silvino ordenava sem interpor a consciência de espetáculo do teatro de Vaudeville, e fazia espetáculo com o próprio suceder do documental, sem artifícios ou truques. Por isso é um filme expositivo sem ser monótono. De seus planos gerais, abrangendo o cenário, ele vai mostrando o grandioso espetáculo dos homens esquecidos nas margens dos rios. Sumariando o visto, os acontecimentos, tomando em conta o sentido que isso tudo possuía em relação à sociedade da borracha. Não fantasiava, como os poetas amazonenses, e seu filme restituía à realidade uma das condições mais escondidas e falsificadas: a vida na selva. E isto sem escândalo, como um espetáculo qualquer, porque o espetáculo era a própria razão de ser da ostentação. No documentário moderno, impregnado de novas técnicas de informação, com o som registrado direto e pesquisas antecedendo as filmagens, o estabelecimento de significados também é quase imediato como no "reclame" de Silvino Santos. Escapando da atmosfera mórbida da literatura parnasiana, "No País das Amazonas" é um espetáculo antes de ser uma exposição. É um filme que somente vai ter semelhança em Flaherty e no cinema‑verdade canadense, todos preocupados com a constatação empírica do real. Mas não cabe aqui um estudo fílmico do cinema de Silvino Santos. Para o momento, interessa a sua importância como homem do "ciclo da borracha". Percebemos que é um parente próximo do romance de Ferreira de Castro, e tem muito a ver com a sintaxe direta do diário de Plácido de Castro. Ali onde os poetas não viam nada de maravilhoso, penando na incomunicabilidade dos artistas de reflexão, o cinema de Silvino Santos nos remete para além dessa dissipação. E tão profunda é esta marca que qualquer documentário não poderá, mesmo hoje, ser muito diferente de seu filme. Não há um detalhe inútil que possa ser transformado em ornamento. E quando o filme acaba, ficamos sabendo por que o delírio da borracha não poderia ser diferente. No "ciclo da borracha", cindido em dois, metrópole opulenta e seringais explorados, o absurdo que se experimentou e que a imagem de Silvino Santos soube muito bem mergulhar, o menor acontecimento, o gesto mais humilde do seringueiro defumando a pela, contribuía para perpetrar uma acusação à ostentação e ao esbanjamento. Foi esta totalidade que Silvino Santos, como Ferreira de Castro, soube recriar. Por isto, "No País das Amazonas" é a obra mais importante do "ciclo da borracha".

Os filmes e as fotografias de Silvino Santos não possuíam a afetação que as manifestações da "arte" assumiam no discurso solene e publicitário dos poetas de jornais. Como documentarista, suas fotos fingem o registro dos gestos como acontecimentos naturais. Os poetas, publicando diariamente seus poemas nas páginas do “Commércio do Amazonas”, convertiam seus poemas em palavras filtradas, revelando seus desencantos em máximas, ressonância das opiniões da alta sociedade. Em Silvino Santos, este poder de afirmação não era tão dogmático, posto que não era um "artista". Sua câmera acompanhava a família de J. G. Araújo a um piquenique, registrando o banho das senhoras e senhoritas, como registrara o banho das prostitutas em Chapéu Virado, banhistas de um Mack Sennet amazônico e debochado. Mas nunca sentiu a necessidade de construir uma personagem como Alberto, fusão exata de todos os aventureiros que atravessaram a região. O cinema de Silvino Santos dedicava‑se à totalidade de todas as singuIaridades. Um cinema que açambarcou todos os sonhos dos relatores portugueses e dos cientistas. E o que ele deixou foi um mundo em processo, desfilando no nitrato explosivo.

Usando a fotografia e o cinema, meios que nos parecem extravagantes num tempo de poetas doentes, Silvino Santos mostrou a surpresa, o devir e a novidade de uma região: o cinema silencioso na intuição do silêncio regional. Mas se o descompasso servia para tornar os poetas em homens tristes, o documentarista, homem fascinado pela técnica cinematográfica, não sofreu desta magia branca que exorcizava no silêncio o sofrimento dos homens das barrancas. Ele não era um intelectual, passou por Paris sem conhecer nenhuma escola estética, queria apenas imprimir os fotogramas com as riquezas visíveis dos rios e florestas que tanto amava. Realizou o "reclame" da ostentação, mas não pretendeu subjetivar nada. Possuía uma aparente docilidade que somente a imagem filmada dissipava, introduziu‑se no interior amazônico e fez dele um espetacular conjunto. E se a descrição panteísta da floresta amazônica, realizada pelos escritores, era uma espécie de repulsa contida que afastava a selva imunda para os adjetivos impenetráveis, as imagens de Silvino Santos, de tão simples e puras, resgataram pela primeira vez este mundo vegetal.

Tomando por tudo o que valeu o "ciclo da borracha", veremos que também Silvino Santos, como os poetas seus contemporâneos, aparentemente não tinha nada para dizer. Mas para os poetas a natureza do homem era fixa, conforme lhes ensinava o pensamento burguês europeu. Silvino Santos, poeta da técnica, sem suspeitar dessas filigranas ideológicas, usava a sua câmera como um olho deslumbrado, enquanto os poetas da elite analfabeta observavam tudo com os olhos das possibilidades esgotadas. O documentarista e fotógrafo, sem desejar a originalidade, mostrou o mundo da ostentação como um espetáculo novo. Experimentador, boêmio, entusiasta e cheio de criatividade, Silvino Santos foi o único caso de criatividade numa época de mórbida imitação.

Reabilitado na década de sessenta, reconhecido no Brasil como um pioneiro de talento, sua filmografia encontra‑se desfalcada por inúmeros extravios. Era um solitário, as cópias de seus documentários deterioraram‑se no abandono, numa prova do pouco caso que sempre se deu à memória regional. Nunca foi aceito pelos intelectuais oficiais, mesmo tendo "No País das Amazonas" se tornado uma espécie de cartão de visita do Estado, projetado com orgulho aos visitantes ilustre, quando Manaus já não passava de uma cidade morta. Mas seu cinema está na origem de qualquer invenção amazônica.


















Márcio Souza nasceu em Manaus, Amazonas. Aos 14 anos começou escrevendo críticas de cinema para um jornal local e em 1965 deixou Manaus para estudar Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. Seu primeiro romance, “GALVEZ, IMPERADOR DO ACRE”, foi um enorme sucesso de crítica e de vendas, logo se tornando um fenômeno internacional. A seguir, outros romances, ensaios e textos teatrais foram lançados com o mesmo impacto. Romances como “MAD MARIA”, “A ORDEM DO DIA” e “O MUNDO PERDIDO”. Ensaios como “O EMPATE CONTRA CHICO MENDES”, “FASCÍNIO E REPULSA” e “BREVE HISTÓRIA DA AMAZÔNIA”. Peças de teatro como “DESSANA,DESSANA”, “A PAIXÃO DE AJURICABA” e “AS FOLIAS DO LÁTEX”. Márcio Souza também é roteirista de cinema, dramaturgo e diretor de teatro e ópera. Como homem de teatro ele atualmente dirige o TESC-Teatro Experimental do Sesc do Amazonas, grupo teatral que foi pioneiro na luta pela preservação da Amazônia. Márcio Souza participou de muitos encontros internacionais de literatura e foi professor convidado da Universidade da California, Berkeley, escritor residente nas Universidade de Stanford e Austin, Texas. No momento ele está escrevendo a tetralogia “Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro”, tendo já publicado dois volumes: “LEALDADE” e “DESORDEM”, editados no Brasil pela Editora Record. Site: www.marciosouza.com.br E-mail: marciosouza@argo.com.br




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