quarta-feira, 4 de abril de 2012

CORAÇÃO DAS TREVAS ESPAÇOACADÊMICO.COM.BR

Por SILVIA BEATRIZ ADOUE

Nasceu em Buenos Aires, Argentina. É Mestre em Integração na América Latina, pelo PROLAM-USP, doutoranda em Literatura Hispano-americana, pela FFLCSH - USP, e professora do curso de Letras do CEUCLAR


Duas Casas, uma mesma solidão: Casa tomada, de Julio Cortázar e A casa de Asterión, de Jorge Luis Borges


“Algum dia (penso em momentos de ira) irei procurá-la. [...] Se a encontrar, refrescantes altas ondas de cólera, medo e frustrado amor se levantarão, poderosas vingativas ondas, e por um momento já não me sentirei sozinho, já não me sentirei como uma arrastada, amarga, esquecida sombra.”[1] (WALSH in WALSH, 1986: p.10.)



No contexto do ambiente literário argentino dos anos 40, Borges, escritor já consagrado, e Cortázar, então jovem professor de Literatura e tradutor, partilhavam da mesma atitude em relação à plebe. A produção de ambos escritores registra na época o pânico da classe média frente à irrupção massiva dos pobres no espaço público urbano, resultante de um processo de migração interna que vem dos anos 30 e que se afirma, legitimada pela ascensão do peronismo ao governo, em 1946.

“[...] todos [os escritores] confiam na oposição sémica civilização-barbárie para entender a realidade Argentina; e todos se referenciam num mesmo sistema hegemônico de prestígio [...]. A oposição entre peronismo e antiperonismo percebe-se como continuação ou clausura de uma etapa que tinha começado no fundo do século dezenove, motivo pelo qual muitos desses escritores chegam à conclusão –para Borges melancólica, para Julio Cortázar misteriosa, para Ezequiel Martinez Estrada apocalíptica-, de que o peronismo constituía um fechamento e balanço, depois do qual nada ia ser o mesmo.”[2] (AVELLANEDA in NAVARRO, 2002: p.105.)

Em 1946, Borges publica na revista “Los Anales de Buenos Aires”, que dirige, o conto “Casa tomada”, de Julio Cortázar. Um ano depois, faria a mesma coisa com “Bestiario”, do mesmo autor. Em 1949, os dois contos seriam publicados numa coletânea com o nome de “Bestiario” (1977) . No mesmo ano, Cortázar também colaboraria na revista “Sur”, junto com Borges. E é nesse mesmo ano de 1949 que Borges publica o conto “La casa de Asterión” na coletânea “El Aleph” (1957).

Podemos pensar, talvez, em “Casa tomada” e em “La casa de Asterión” como duas versões invertidas de “O coração das trevas”, de Joseph Conrad (in: BORGES, 1999), autor admirado por Cortázar e Borges. No relato de Conrad, é o rio que conduz o narrador para o coração mesmo da barbárie.

“Casa tomada” é narrado em primeira pessoa por um dos habitantes da residência: um casal de irmãos de meia idade que sobrevive da renda “dos campos”, propriedade familiar. Moram na casa seguindo uma rotina morna e estéril: ele, o narrador, lê e ela tece. Papéis invertidos: o homem é um receptor, a mulher produz. Ambos, porém, lidam com a linha, da escrita e do fio de lã. A casa é descrita com minúcia e apresentada como justificação para a vida, a rotina e a solidão dos irmãos. Mas invasores quebram a tranqüilidade familiar ocupando a parte dos fundos. Os irmãos conseguem trancar uma porta e resguardar a parte da frente para si. Uma noite, ouvem ruídos, percebem que os invasores franquearam a fronteira. Fogem pela porta afora, deixando dentro o novelo de lã do tecido da irmã que o abandona uma vez na rua. Trancam a porta, não seja que o coitado de um ladrão entre para roubar “nessa hora e com a casa tomada”.

“La casa de Asterión” é um jogo de esconde-esconde com o leitor avisado. Uma paródia do mito do Minotauro, narrada em primeira pessoa pelo monstro singular que, porém, nos mostra a face monstruosa do “rebanho”, o povo aterrorizado que por sua vez lhe provoca repugnância. O conto breve apresenta, aqui e ali, dicas que permitem identificar o relato original, que só é revelado completamente nas últimas quatro linhas, onde aparece a voz de um narrador em terceira pessoa e a fala de Teseo para Ariadna, que relata em poucas palavras os últimos momentos do monstro.

Nos dois casos, podemos reconhecer a característica apontada por Andrés Avellaneda: “o topos de invasão, obsessivo na literatura desses anos, vincula-se fortemente com esse modo de perceber a realidade social e cultural da época”[3] (in NAVARRO, 2002: p.104). O tratamento do monstruoso é, porém, diferente no conto de Borges e no de Cortázar. Os invasores de “Casa tomada” não têm rosto e nem nome. O animalesco em “La casa de Asterión” está no povo, na perspectiva do monstro que nos relata a história. A adoção do ponto de vista, como nas narrações góticas, humaniza o Minotauro, provocando a nossa compaixão.

Asterión deseja alguém como ele, com quem poder brincar de esconde-esconde e a quem mostrar sua casa. Assim também, Borges deseja ardentemente encontrar um leitor que o compreenda, um igual que descubra atrás dos seus artifícios literários as suas misérias humanas, a solidão do labirinto das suas leituras. Lendo o conto, podemos imaginar Jorge Luis criança, sem amigos da sua idade para brincar na biblioteca familiar. Em “Casa tomada”, Irene, a irmã do narrador, é o seu duplo feminino. A sua presença é garantia e sublinhado da solidão do narrador. Um duplo que, assim como o duplo desejado de Asterión, não interpela, não desestabiliza, mantém o equilíbrio calmo de uma existência sem contradições: “Não encontrarão luxos femininos aqui e nem o bizarro aparato dos palácios, mas a quietude e a solidão”[4] (p.67). O afeto é, para ambos autores, um amor narcísico. O desejo do espelho. O Outro é sempre assustador. O “redentor” de Asterión, Teseo, consegue sair da casa graças ao fio de Ariadna, mas não há referências ao truque no relato de Borges. O fio, no mito grego, é metáfora do amor que salva do labirinto da solidão. No caso do conto de Cortázar, o fio de lã não une os amantes. E não é um recurso de salvação. Irene observa a sua inutilidade e abandona o tecido.

Se Cortázar parte para Paris, o exílio voluntário, fugindo da “vulgaridade” que toma conta da produção cultural durante o peronismo, Borges pratica a autoironia: é ele o monstruoso, o singular, o diferente, e está fadado à morte. Em momento algum esconde sua condição agressiva e vingativa: “[...] eu castigarei no seu tempo [...]”[5] (p.67)Em 1947 havia escrito “La fiesta del monstruo” (in OLGUÍN, 2000), junto com o seu amigo Bioy Casares. Nesse conto, a loucura, a brutalidade da plebe, tinha tomado conta da cidade. Em “La casa de Asterión”, o único impedimento para entrar no palácio do Minotauro é o terror que este inspira na grey: “[suas portas] estão abertas dia e noite para os homens e também para os animais. Quem quiser, que entre”[6] (p.67).

Em Paris, porém, Cortázar recolheu a linha que Irene tinha deixado cair. O fio da memória permitiu ao escritor re-tecer o país na sua escrita. Depois deu nome e rosto e voz e razões àqueles de quem tinha fugido. Já em “Las puertas del cielo”, outro dos relatos de “Bestiario” (1977), o medo dá lugar à fascinação pelo Outro, ainda que apresentado como animalesco, monstruoso, abjeto.

Esta chave de leitura do conto “Casa tomada” como “alegoria do sentimento de invasão” da plebe foi apontada por primeira vez por Juan José Sebreli em 1964 em “Buenos Aires, vida cotidiana e alienação” (in SEBRELI, 2003: p.102). Porém, já em 1962, Germán Rozenmacher publicava “Cabecita negra”[7] (1967), releitura do conto de Cortázar. No relato de Rozenmacher, um casal de irmãos, humilhados e ofendidos, invade a casa de um homem de classe média para cobrar o que julgam que lhes é devido. Os invasores têm nome e rosto e voz e razões. “A operação de inverter o topos implicava a substituição de um campo semântico por outro, mas isso impunha, por sua vez, a aceitação da existência dos dois níveis por separado. Por exemplo, a operação de inverter o sema ‘cabecita negra’ para incluí-lo no semema ‘civilização’ apenas foi possível porque civilização e barbárie eram pensados ainda como campos semânticos válidos.”[8] (AVELLANEDA in NAVARRO, 2003: p.111.) A inversão não resolve a tensão, apenas a explicita, dá nome aos bois.

A partir dos anos 60, junto com Cortázar e Rozenmacher, outros autores, como Walsh, recolheram o fio de Ariadna numa proliferação de alegorias do amor ao povo que salva o intelectual do labirinto da solidão. De todas elas, a alegoria do amor carnal é a mais freqüente. Borges, em troca, fez dos seus últimos gestos, alegoria daquela procura pelo duplo igual, pelo espelho: o seu casamento quase póstumo com Maria Kodama assim o atesta.


--------------------------------------------------------------------------------

[1] Esta e todas as traduções são da autora do artigo. O original em Espanhol, aparecerá nas notas de rodapé: “Algún día (pienso en momentos de ira) iré a buscarla. [...] Si la encuentro, frescas altas olas de cólera, miedo y frustrado amor se alzarán, poderosas vengativas olas, y por un momento ya no me sentiré solo, ya no me sentiré como una arrastrada, amarga, olvidada sombra.”

[2] Original: “[...] todos [los escritores] confían en la oposición sémica civilización-barbarie para entender la realidad argentina; y todos están adscritos a un mismo sistema hegemónico de prestigio [...]. La oposición entre peronismo y antiperonismo se percibe como continuación o clausura de una etapa que había comenzado en los transfondos del siglo diecinueve , por lo que muchos de esos escritores llegan a la conclusión -para Borges melancólica, para Julio Cortázar misteriosa, para Ezequiel Martínez Estrada apocalíptica-, de que el peronismo constituía un cierre y un balance, después del cual nada iba a ser lo mismo.”

[3] Original: “el topos de invasión, obsesivo en la literatura de esos años, se vincula fuertemente con ese modo de percibir la realidad social y cultural de la época”

[4] Original: “No hallarán pompas mujeriles aquí ni el bizarro aparato de los palacios pero sí la quietud y la soledad”

[5] Original: “[...] yo castigaré a su debido tiempo [...]”

[6] Original: “[sus puertas] están abiertas día y noche a los hombres y también a los animales. Que entre el que quiera.”

[7] Cabecita negra: tratamento depreciativo da elite para com os pobres, equivalente a ‘seboso’ ou ‘cabeça chata’; por referência ao cabelo preto e liso próprio dos mestiços na Argentina, que parece com a penugem da cabeça de um pássaro chamado também ‘cabecita negra’.

[8] Original: “La operación de invertir el topos implicaba la sustitución de un campo semántico por otro, pero ello imponía, a su vez, aceptar la existencia de los dos niveles por separado. Por ejemplo, la operación de invertir el sema ‘cabecita negra’ para incluirlo en el semema ‘civilización’ sólo fue posible porque civilización y barbarie eran pensados todavía como campos semánticos válidos.”



Clique e cadastre-se para receber os informes mensais da Revista Espaço Acadêmico
Referências bibliográficas

AVELLANEDA, Andrés. “Evita: cuerpo y cadáver de la literatura” in: NAVARRO, Marysa (org.). Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2002.

BIOY CASARES, Adolfo e BORGES, Jorge Luis. “La fiesta del montruo” in: OLGUÍN, Sergio (org.). Perón Vuelve. Cuentos sobre peronismo. Buenos Aires: Norma, 2000.

BORGES, Jorge Luis. “La casa de Asterión” in:________. El Aleph. Buenos Aires: Emecé, 1957.

CONRAD, Joseph. “El corazón de las tinieblas” in: BORGES, Jorge Luis (org.). Cuentos Memorables según Jorge Luis Borges. Buenos Aires: Alfaguara, 1999.

CORTÁZAR, Julio. “Bestiario” in: Bestiario. 18ª. Edição. Buenos Aires: Sudamericana, 1977.

________. “Casa tomada” in: Bestiario. 18ª. Edição. Buenos Aires: Sudamericana, 1977.

________. “Las puertas del cielo” in: Bestiario. 18ª. Edição. Buenos Aires: Sudamericana, 1977.

ROZENMACHER, Germán. "Cabecita negra", in: Cabecita negra. Buenos Aires: CEAL, 1967.

SEBRELI, Juan José. “Buenos Aires, vida cotidiana y alineación” in: Buenos Aires, vida cotidiana y alineación, seguido de Buenos Aires, ciudad en crisis. Buenos Aires: Sudamericana, 2003.

WALSH, Rodolfo. “Esa mujer” in: Los oficios terrestres. 4ª. Edição. Buenos Aires: de la Flor, 2000.


clique e acesse todos os artigos publicados...


http://www.espacoacademico.com.br - Copyright © 2001-2005 - Todos os direitos reservados

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Contador de visitas