quarta-feira, 4 de abril de 2012

CONGO BELGA: O CORAÇÃO DAS TREVAS

Contos e Novelas de Dieter Dellinger
Textos já publicados em dois livros e na Revista Sol XX acrescido de novos inéditos em português e alemão.
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Quarta-feira, 1 de Agosto de 2007
Conrado: O Escritor do Mar


Li o livro de um trago e dei comigo a dizer para os meus botões: é mais um "Conrad".
Não se tratava contudo de uma novela ou romance do grande escritor Joseph Conrad, mas antes de "A Neve do Almirante" de Álvaro Mutis, uma novela inspirada no notável livro de Conrad "O Coração das Trevas". O mesmo estilo e espírito, a mesma tropicalidade quente e doentia e o enorme rio, o Congo (ou Zaire) em Conrad e o Amazonas em Mutis. Também ao ler "A Curva do Rio" de V. S. Naipaul fiquei com a impressão de estar a ler o espírito de Conrad, o rio, aquele sentimento de ausência de vitória na vida, o calor e um mundo incompreendido.

De entre os grandes escritores colocados hoje na galeria dos clássicos, o polaco Joseph Conrad não foi de início o mais lido, mas foi, sem dúvida, uma inspiração para muitos obreiros da difícil arte literária. E não é de plágio que se trata, mas antes da paixão que a obra de Conrad suscitou e que levou intuitivamente muitos escritores a querem ser como ele com todo o poder da sua criatividade, tanto no livro como no cinema. Efectivamente, quase toda a obra de Conrad passou no cinema e inspirou outras histórias como a do "Apocalipse Now" de Coppola baseada espiritualmente também em "O Coração das Trevas".

Claro que também em alguns textos de Conrad há algo que recorda outros escritores, nomeadamente Ivan Sergeyevich Turgenev, o "mestre" russo da ficção inglesa, no dizer de Gilbert Phelps.

Conrad influenciou a literatura sul-americana, e não só, mais recentemente por ter sido talvez lido muito tarde. Um pouco como sucedeu com Alfred Döblin, cuja imensa trilogia amazónica "Das Land ohne Tod" (O País sem Morte), escrita em 1935-37, influenciou de sobremaneira toda a literatura sul-americana das últimas décadas, nomeadamente "Cem Anos de Solidão" de Gabriel Garcia Marquez, e "Hombres de Maiz" de Miguel Angel Astúrias para não falar em "O Filho do Homem" de Augusto Roa Bastos. A magia realista inspirada nas lendas índias nasceu com Döblin que ficou conhecido por ter escrito "Berlin, Alexanderplatz" e esquecida a sua obra "sul-americana" escrita no exílio parisiense.

Conrad foi o maior narrador do mar que conheço sem deixar de ser uma personalidade da literatura mundial em termos de análise do fenómeno humano também. Eu próprio tinha disso a consciência, mas nem sempre me atrevia a colocá-lo no topo da literatura mundial, ao nível de um Dostoieveski, Henry James ou de um André Gide para só citar três nomes quase ao acaso, salientando que Gide traduziu uma das novelas de Conrad para francês e confessou-se mesmo um grande admirador do escritor que inicialmente era mais tido como novelista de aventuras. Recordo mesmo que numa aula de canto coral da Escola Alemã, enquanto o professor trauteava ao piano uma qualquer pieguice alemã eu entretinham-me a ler o "Lorde Jim" de Conrad. Quando fui apanhado, o professor tirou-me o livro e disse depreciativamente, então a ler livros de aventuras na minha aula. Já nessa altura tinha ficado com a impressão que Conrad era muito mais que um Salgari e melhor que um Jules Verne ou Robert Louis Stevenson, mas só o teórico da literatura Tzvetan Teodorov em "Os Géneros do Discurso" é que me veio dizer que Joseph Conrad foi um dos grandes mestres da literatura mundial do fim do século dezanove e primeiro quartel do século vinte, um clássico hoje largamente publicado na "Penguin Popular Classics". E com a espantosa característica de ser um reconhecido estilista do inglês literariamente perfeito apesar de só ter aprendido a língua da velha Albion aos vinte e um anos de idade e nunca ter chegado a adquirir uma pronúncia perfeita. Não é nada fácil ser um grande escritor e, menos ainda, sê-lo numa língua aprendida em idade adulta, mas como Nabokov e outros, Conrad imigrou para a sua pátria literária sem nunca ter escrito na língua materna, o polaco. A língua é uma pátria, como disse Pessoa e Conrad demonstrou-o perfeitamente numa espécie de transmutação neuronal que o levou naturalmente a adquirir também a cidadania britânica. Provavelmente, só no inglês é que aprecem escritores notáveis estrangeiros que aprenderam a língua já em idade adulta. A língua alemã parece que não permite tal veleidade, é demasiado complexa e irregular, apesar de também haver escritores em alemão que não são alemães, mas geralmente imigraram para a Alemanha em idade muito jovem pelo que são como se fossem nacionais.

O biógrafo de Conrad, J. J. Mayoux, escreve que Joseph Conrad ao embarcar pela primeira vez num navio britânico, aos vinte e um anos de idade, não saberia mais do que uma seis palavras inglesas, enquanto dominava bastante bem o francês e sonhara mesmo tornar-se num escritor da língua de Moliére, além de um marinheiro gaulês, pois o primeiro contacto com o mar foi a bordo de navios franceses.

Mas, quis o destino que Conrad acabasse por embarcar em navios britânicos. Assim, vendo-se na necessidade de passar os exames náuticos ingleses acabou por tributar à nova língua o mesmo afinco que consagrou ao estudo do "Curriculum" naval. Em seis anos apenas de embarque, adquiriu a patente de capitão da marinha mercante e um profundo conhecimento da língua inglesa, aprendida quase sempre a navegar pelo mundo fora em contacto com tripulantes que não seriam as pessoas mais cultas e, muitas vezes, nem sequer eram ingleses.

Joseph Conrad nasceu polaco mas súbdito do Império Russo na cidade ucraniana de Berditchev, em 1857, quando a sua pátria não passava de uma província agrilhoada daquele império que Lenine tão bem soube designar de "prisão de povos" sem nada fazer para retirar-lhe as grilhetas. Aos 17 anos de idade abandona a pátria oprimida e vai para Marselha de onde faz uma viagem às Antilhas para depois voltar a embarcar como tripulante e iniciar uma carreira de curta duração em navios gauleses e bem mais duradoura ao serviço da marinha mercante britânica. Carreira que o levou ao posto de imediato e depois capitão de vários navios. Entre 1876 e 1880 navegou como marinheiro até ser aprovado no exame de segundo oficial. Nessa qualidade embarca ainda nesse ano no "Jedah" e depois no "Cutty Sark", celebrizado por uma marca de Whiskey, e depois ainda no "Loch Etive", igualmente um esguio e rápido veleiro clipper. No ano seguinte é imediato no navio carvoeiro "Palestine" que se incendeia em 1883, o que levou Conrad a tripular o "Riversdale" e depois o "Narcissus" de onde extraiu a notável novela "O Negro do Narciso". Em 1986 faz o exame de capitão, embarcando logo a seguir como imediato no "Highland Forrest" e depois no "Vidar". A sua vida de marinheiro levou-o a percorrer todos os mares e porto do planeta até terminar em 1894, data em que dá início a uma nova carreira, a de escritor estabelecido em Londres. Conheceu a fundo o mundo marítimo, mas não foi muito bem sucedido no comando de navios. Chegou mesmo a escrever que preferia embarcar como imediato, daí talvez a escolha de personagens não muito bem sucedidos na vida, mas pintados com uma genialidade literária que os projectaram para o futuro, dando-lhes uma modernidade romântica um século depois.

Apesar dos seus temas e personagens serem maioritariamente oriundos do mar, Conrad não gostava de ser apelidado de escritor do mar. Mais um novelista que um romancista, Joseph Conrad inspirou-se na sua vida de marinheira para dar à estampa novelas tão notáveis como "O Tufão", "A Linha da Sombra", "Lorde Jim", "A Laguna", "Keraim", "O Coração das Trevas" e a já citada "O Negro do Narciso", "Ami Foster", além do romance da beira-mar "Nostromo". Em toda a sua obra, a aventura só excepcionalmente tinha um sentido favorável, quase sempre não passava de uma sucessão de desastres. Conrad tinha visto demasiado o mundo para sonhar como um D. Quixote dos mares. Um pouco como o deserdado da sorte Herman Melville, Conrad foi um eterno fugitivo e pior que isso um estrangeiro permanente. Pintou literáriamente a alma humana e os mares com mão de mestre, mas não foi um escritor de aventuras nem se deixou levar pelo elogio gratuito dos heróis que, de resto, não abundam entre os seus personagens. A sua escrita é profundamente humana e realista com um toque impressionista. Há qualquer coisa de Paul Gauguin na sua escrita. A realidade surge também ao nível da impressão. Conrad, mais que ninguém, soube transmitir impressões da vida a bordo, tal como dos elementos da natureza e dos muitos caracteres humanos que se cruzam nos portos. Nos seus primeiros escritos, contudo, Conrad utilizou relativamente mal a técnica realista e, como aconteceu com muitos escritores, aprendeu mais tarde que a oferta demasiado nítida e premente do objecto a ver provoca uma resistência quase instintiva do leitor, principalmente quando o autor quase se perde em descrições minuciosas e intermináveis. Aconteceu isso no seu primeiro livro "Almayer's Folly" em que chega a descrever o pó do escritório do personagem, o senhor Almayer. Não seguiu a máxima de Montesquieu que dizia: "Nem sempre se deve esgotar de tal modo um assunto que nada fique para o leitor. Não se trata de fazer ler, mas de fazer pensar".

Nas suas obras posteriores, Conrad foi assaz suficientemente longe na redução dos personagens e ambientes ao essencial para as histórias que pretendia contar e que contava com uma genialidade resultante de um poder ficcionista inigualável entre muitos dos seus contemporâneos. Escreveu muitas novelas, no sentido português do termo, isto é, pequenos romances ou grandes contos, mas a pequenez não as fez perder nada já que possuem quase todas uma excelente dinâmica, não sendo maçadoras, mesmo para os parâmetros actuais.

A actualidade de Conrad não resulta só da sua técnica narrativa, também tem a ver com o espírito anti-colonialista e anti-racista da sua escrita, não entendido na sua época, mas perfeitamente claro hoje e, sem que haja aí algo de político ou moralista. A sua escrita revela de uma forma tão natural que todos os homens são iguais qualquer que seja a cor da pele que parece incrível ter sido produzida no início do Século XX. Provavelmente tinha a ver com o facto de também ele ser um cidadão tornado estrangeiro na sua terra natal por via de um imperialismo estranho e, como tal, ter tido a capacidade de entender o mesmo sentimento na multidão de povos que então estavam subordinados a poderes alienígenas. Também ele, Joseph Conrad, foi uma espécie de africano na Europa dominada pelos diversos impérios.

Desenraizado de alma e coração, Conrad na Inglaterra tornou-se num aburguesado conservador, mas com muitos amigos entre os intelectuais de esquerda. Talvez porque não os houvesse de direita. Conrad sentiu um certo fascínio pelos anarquistas e revolucionários, mas no romance "Nostromo" descreveu mais uma dialéctica da alternativa inútil, tão bem sentida nos dias de hoje, o que faz de Conrad um visionário também na política. Ele criticava o capitalismo como factor egoísta conducente a fenómenos revolucionários de radicalismo intolerante.

Joseph Conrad era pessoalmente um homem de baixa estatura e magro que impressionava quem com ele contactou pelo seu permanente nervosismo ou agitação nada condizente com o perfil de um intelectual observador e pensador. Era um falador rápido e inveterado, criava as suas imagens falando, os seus risos eram sempre convulsivos e estava sempre em actividade. Arthur Seymons chegou a defini-lo como um "Toulouse Lautrec" da literatura. Mas, Conrad tinha uma imagem de si mesmo ou uma aspiração a ser como Marlow que aparece em "Jim" para reaparecer em "O Coração das Trevas", aqui não muito convincente, dado não se ver bem como o comandante de alto-mar passa a capitão de uma minúscula barcaça de rio. A realidade não se submete a análises claras, pois Conrad vai buscar muito do que "imaginou" a uma aventura congolesa que viveu e a um falhado negócio de uma mina de ouro em África. Nunca foi bem sucedido na vida real, a não ser na literatura, o que é bem mais do que qualquer ser humano pode esperar da vida.

Conrad faz parte daquilo a que despudoradamente poderia chamar-se de escritor masculino, apesar da presença de uma sensibilidade quase feminina. Como Hemingway, John dos Passos, Steinbeck e Ernst Jünger, além de outros, Conrad é um escritor interessado na mecânica de uma civilização que acabava de nascer e daquele mundo profundamente machista que é o das navegações e viagens perigosas em que o que conta é esse produto da universal e tradicional educação masculina, a auto-suficiência, a capacidade de resolver por si próprio os problemas que se colocam para atingir as metas desejadas. Os seus "heróis" são todos desse quilate, afastados dos medos diários, nem sempre bem sucedidos, entregues a si mesmo e estrangeiros na essência camusiana do termo porque nunca totalmente integrados na sociedade que os rodeia. Tripulam navios, mas não fazem parte da palamenta de bordo, não são objectos obedientes, peças da máquina, têm todos alma e coração, daí o seu insucesso relativo. Conrad foi bem um escritor da velha Europa, daquela parte menos bem sucedida porque oriundo de uma aristocracia falida e de uma nação que também falhara como tal.

Apesar de naturalizado britânico, Conrad morreu como sempre foi, em 1924, um estrangeiro em qualquer porção de terra ou convés flutuante que pisasse.













De "O Tufão":

"O vento lançara o seu peso sobre o navio, tentando cravá-lo no meio das vagas. Estas passavam-lhe por cima como sobre um tronco meio afundado; E o peso acumulado das ondas ameaçava monstruosamente de longe. As vagas precipitavam-se de noite com uma luz fantasmagórica nas cristas - a luz da espuma do mar que num relâmpago branco, feroz, efervescente, iluminava sobre o corpo esguio do navio a devastadora investida, a queda e a ebuliente correria louca da vaga. Nem por um momento, o "Nan Shan" conseguiu sacudir de si a água que o cobria; Jukes, rígido, via nos movimentos do navio o sinal ominosos do afundamento fortuito."

"A água no fundo dos porões trovejava a cada balanço, e bocados de carvão cabriolavam de um lado para o outro, chocalhando como uma avalancha de seixos num plano inclinado de ferro... Os ventiladores da fornalha zumbiam; diante das seis portas da fornalha dois vultos agitados, despidos até à cintura, cambaleavam e curvaram-se, trabalhando freneticamente com duas pás.

Olá! Agora temos tiragem de sobra - gritou o segundo-maquinista imediatamente como se estivesse estado a todo o momento á espera de Jukes. O fogueiro do motor auxiliar, um rapazola .. trabalhava numa espécie de arrebatamento mudo. Eles estavam a manter o vapor a toda a pressão...













Publicado por Dieter Dellinger na Revista de Marinha


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