segunda-feira, 2 de abril de 2012

CAUCHEROS BOL

49
Territórios de Mando
I
O SERTÃO E A DOBRA
“Eu me chamo Zé Pelintra
Eu nasci lá no sertão
Já fui muito arruaceiro
Mas defendi meu irmão...”
Zaydan Alkmin. Zé Pelintra.
As zonas estranhas
Sertão profundo. Sertão violento. Sertão de bandidos. Sertão
dos insultos, da ferocidade, dos assaltos e das mortes cruéis.
Sertão dos “gentios silvestres”, dos “botocudos”, dos negros
fugidos, dos vadios, dos quilombolas e dos capitães do mato.
Sertão dos matadores de aluguel, “de perniciosas quadrilhas”,
de assassinos violentos. Sertão das façanhas valentes de heróis
destemidos. Chão de poderosos e terra do mando. Sertão do Campo
Grande, do Pium-i, do Bambuí, das picadas de Goiás. Sertão
das Gerais. Sertão de latifúndios...
A maioria dos bandidos e das quadrilhas de criminosos nas
Minas setecentistas surgiu no vasto sertão. Um espaço rústico,
de tradições culturais construídas por lutas dramáticas, guerras
épicas e encontros conflituosos de outras culturas. O sertão foi
antes o lugar do conflito. Do manejo das armas ao encontro de
outras formas de culturas que propiciou o surgimento de um
“homem novo”, o sertanejo. Como tal, o sertão forneceu ao banditismo
rural setecentista suas formas de representação, características
e dinâmicas, seguindo como tradição ainda hoje. Um
locus das formas de cultura propicia-dora do banditismo rural.
O homem sertanejo foi este que se moldou nas artes da guerra e
do conhecimento das matas aprendido com o índio, das formas
de proteção contra o mal, ritualizadas no corpo fechado dos negros
africanos e dos movimentos de valentia, ostentação de virilidade
e necessidade da terra como domínio por parte do barroco
português. O sertão é este, ainda, desconhecido e vasto universo
mestiço, como o homem sertanejo. Necessário ser descoberto.
E, também, para não dizer que um dos maiores crimes con50
Célia Nonata da Silva
tra a humanidade é o esquecimento1, fazer lembrar o sertão é
uma das necessidades da academia brasileira atual, principalmente
historiográfica.
Mas, analisar o sertão nunca foi uma obra fácil. De certa
forma, os sertões setecentistas têm chegado até nós como uma
construção menos historiográfica e mais literária, impregnada
de elementos ideológicos e constructos mentais de épocas remotas.
A imagem do sertão foi uma invenção criada a partir de uma
relação íntima das narrativas imaginárias literárias e históricas,
que se misturaram, em sua maioria a alguns adereços de programas
políticos – elementos importantes e contributos parciais desta
perspectiva. Assim, a imagem vagou entre o “descoberto” no
século XVI com Pero de Magalhães Gândavo e, também, em 1722
pelo padre João Daniel e o “desconhecido e incógnito” a ser conquistado,
passando pelo mito do El Dorado2 – um reino, uma
cidade, um lugar imaginário que existia na mentalidade medieval
européia e se transportava para a geografia das Américas em
algum lugar entre o Peru e o Amazonas coberto de riquezas e
felicidade. Mitos medievais como o país da Cocanha, ou o reino
de Preste João até as Grandes Navegações influenciaram os olhares
europeus nas terras recém descobertas. Um elemento de permanência
do imaginário medieval, assim como outros traços,
que se transportaram para as Américas. O mito da Cocanha,
mais popular no século XVI do que o mito do Graal, construiu
para o Novo Mundo alguns rabiscos ilustrativos que ficaram
celebres nas obras de Thevet e Lèry, compondo esta visão do
“Outro” de modo exótico e fantástico. Um olhar europeu da
época para o estranho mundo que se descobria3. Relata-nos, por
exemplo, o padre João Daniel que
espalhou-se em Quito a fama de que no Amazonas havia um grande
lago dourado, cujo ouro era mais que as areias das suas praias, ou
que as suas margens e fundo eram tudo ouro. Aumentou-se a fama, e
cresceu mais a cobiça, porque além do lago já afirmavam que nele
estava fundada uma cidade chamada Manoa toda fabricada de ouro,
porque de ouro eram as suas casas e tetos, e de ouro toda a serventia
dos seus moradores. Esta fama e a cobiça de tanto ouro incitou os
ânimos de muitos aventureiros espanhóis a descobrirem tão rica cidade
e o tesouro do lado Dourado4.
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Territórios de Mando
Partiram embarcações da América Espanhola (Quito) para
navegarem o Amazonas em busca da Lagoa Dourada. E muitas
eram as suposições da existência da Lagoa Dourada e da cidade
de Manoa nas terras da América Portuguesa, entre o Rio Negro
e o Rio Trombetas.
Essa crença durou toda época da investida dos países ibéricos
nas Américas. Pois, com o descoberto do São Francisco, imaginava-
se que sua nascente procedia de uma Lagoa Dourada,
onde encontrariam ouro e pedras preciosas. Um lugar imaginado
e acreditado pelos bandeirantes e pelos portugueses da época.
Lagoa Dourada, Alagoa Grande, Água Grande, Iguassú ou sumidouro,
que Gandavo pormenoriza: “Este rio (o São Francisco) procede de hú
lago muy grande que está no intimo da terra onde affirmam que há
muitas povoações, cujos moradores (segundo fama) possuem grandes
averes de ouro e pedraria”. Frei Vicente, referindo-se à exploração
de Gabriel Soares, diz que o “intento que levava nesta jornada era
chegar ao rio São Francisco e depois por elle até a Lagoa Dourada,
donde dizem que tem seu nascimento”; pelo que este ponto de
referencia sempre constante, era o fito de todos os cabos e chefes de
bandeira, entrando nas recomendações geraes o procurarem a attingir5.
A época seiscentista viu várias expedições neste intento. Pero
de Magalhães Gândavo já retratava este interesse pela busca das
riquezas naturais das terras conquistadas, acreditando na possibilidade
de encontrar tal lugar. Na descrição geográfica da Província
de Santa Cruz, Gândavo fez a referência ao rio São Francisco
como “esse rio (que) procede de um lago mui grande que
fica no interior da Província, onde afirmam que há muitas povoações,
cujos moradores (segundo a fama) possuem grandes
haveres de ouro e pedraria”6. Uma das grandes expedições foi a
de Bruza de Espinosa em 1553, sem resultado. E depois dela várias
outras7. Em 1587 Sebastião Alvares explora o São Francisco
sem encontrar a Lagoa Dourada. O imaginário cultural era amparado
na busca desesperada de se encontrar as “Minas Prometidas”.
Assim viveram os governadores que administravam as
empreitadas sertão adentro, desde o princípio de colonização deste
espaço: uma busca necessária das descobertas do ouro e da prata.
No Sertão do São Francisco, passou o Governador Geral com todas as
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Célia Nonata da Silva
prevenções e instrumentos precisos, Companhias de soldados, mineiros
de experiência e Engenheiros que trouxe para esta diligência; porém
(...) não foi possível ao Governador Geral, nem a toda àquela comitiva
achar rastos das Minas prometidas8.
Desta terra de riquezas e de desejadas minas ocultas, ao espaço
dos excluídos – contrabandistas, malfeitores e criminosos.
Houve uma demonização do Sertão. Das primeiras denominações
para o espaço conquistado, encontra-se a palavra Sartam.
Termo próximo a Satã, o tentador. Um dos rebeldes e tenente de
Lúcifer. Dessa separação imaginária e esperançosa houve uma
convivência com o mal “habitado entre nós”. O mal e o bem
convivendo numa mesma capitania. Aquele no sertão, este na
ordem dos centros urbanos, as vilas.
No contexto mineiro setecentista as autoridades locais, com
referidas queixas ao rei de Portugal, já conheciam o sertão como
lugar habitado por uma espécie de gente indômita e rebelde. Uma
zona negra. Temida e assombrada. Um lugar propício à desordem,
dado aos salteadores e ladrões. Lugar de criminosos e negros
foragidos pela lei. Lugar dos banidos e dos desprezados
pela lei. Lugar de exclusão social. Lugar maldito e repudiado
pela lei, como em carta apresentada ao Rei pelos moradores da
vila de São Bento do Tamanduá a respeito de uma quadrilha de
bandidos que assolava a população local:
Vossa Alteza Real, a disgraça e opreção que padecem os Povos desta
Villa de São Bento do Tamanduá, e seu termo, com avezinhança de
hua multidão de assassinos, que refugiados pellos atrozes e,
deshumanos delitos commetidos por varias partes desta capitania tem
feito assento e, morada nos Sertões das margens do Rio Grande9.
Muitos, ainda, fugiam para os sertões com receio do perigo
quando perseguidos “de maneira que temerozos se retiravão ao
sertão”10, aumentando uma população excluída e nômade, que
por vezes vadiavam ou assaltavam as vilas.
O problema enfrentado pelos governadores das Minas com
relação aos vadios já vinha desde os primeiros anos. Em 1735 o
governador das Minas Gomes Freire em carta para a coroa portuguesa
dava a entender sua política administrativa com relação
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Territórios de Mando
aos vadios: criava para estes grupos de excluídos da sociedade a
oportunidade de ou trabalharem em serviços oportunizados pela
Câmara municipal, ou irem para o sertão e não entrar mais nas
vilas para perturbar a ordem pública11. As formas de trabalho
foram ofertadas desde os ofícios mecânicos, os trabalhos nas
minas de ouro e metais preciosos e o manejo da enxada nas roças
para o cultivo das terras de plantio12. Um problema não resolvido.
O Conde de Valadares, D. José Luís de Meneses, no ano
de 1772 reclamava a Martinho de Melo e Castro sobre os insultos
dos vadios na capitania das Minas – problemas que não foram
solucionados pelas Câmaras Municipais e pelos ministros
da Justiça13. No governo Cunha Menezes, os sertões das Minas
estavam apinhados de vadios. Era verdadeiramente um lugar de
vadios, criminosos e os demais “rejeitados” pelas autoridades
das vilas e sociedade. O então governador da capitania das Minas
tentou coibir esta transformação com algumas ocupações
para a vagabundagem. Esta política administrativa, como alternativa
a uma possível solução social, não passou de mais uma
política administrativa sem efeito. A vagabundagem sobressaíase
à lei e às formas de governabilidade. Era uma acomodação do
sistema de exclusão num espaço possível, o sertão. Mas, o aumento
da vadiagem e da criminalidade tornava-se uma situação
já sem controle para os governantes das Minas setecentistas. Em
1781, D. Rodrigo de Menezes ordenou na capitania das Minas
aos seus comandantes e oficiais que alguma ocupação fosse dada
aos vadios e que “lhe remetessem presos todos os que se achassem
nos seus distritos”14.
Pela política administrativa do dito governador das Minas,
alguns destes vadios eram castigados com a prisão e outros, ainda,
eram mandados às conquistas15. A utilidade dos vadios pelo
seu ingresso no mundo do trabalho foi vista, durante todo o
século XVIII na capitania das Minas, com uma certa severidade
política desta visão nos anos posteriores, como foi o caso da
administração de D. Rodrigo que mandou que alguns homens
que fossem conduzidos à conquista do Cuité que,
como a conservação desta conquista era necessária e se não podia
conseguir que nela houvesse um corpo de tropas de qualidade para
se opor aos assaltos dos índios, se lhe pareceu que era mais conforme
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Célia Nonata da Silva
à razão a ser a mesma tropa composta de homens vadios e facinorosos,
do que de homens bem precisos para as culturas das terras16.
Confirma-se ainda pelos documentos de época que o discurso
da vadiagem pelas autoridades constituídas alicerçava-se
em outras prerrogativas complementares, tais como: inutilidade
e os adjetivos ‘sem valor’, ‘sem qualidade’, ‘sem merecimento’,
‘sem hábitos e educação’17. Termos e interpretações próprias também
à imagem do sertão.
Também, os sertões da capitania das Minas eram vistos como
os lugares privilegiados das manifestações diabólicas da violência
e do medo, da dor e do sofrimento, mais condizentes aos
interesses dos Exus, Sacis, boitatás e caiporas18. Lugar do Negro
Surrão, do Zé Pelintra, da Mula-sem-Cabeça e do Cabeleira: “Fecha
a porta, Rosa; Cabeleira é-vem; Pegando mulheres, meninos
também”19. Sua gênese é trágica e sangrenta. Lugar de guerra.
Da guerra contra os índios, da conquista virulenta da terra, do
combate com a onça e a natureza cruenta. Lugar dos valentes
conquistadores de El Rei, que cuidaram das primeiras reses de
gado, da refeição dos cochos e da forja dos primeiros utensílios
ao molde dos índios. Era um modo de viver que se fazia no sertão
pela necessidade de sobrevivência. Um admirável “orbis” se
formava pela vida dos talentosos valentes e viris homens de armas.
Daqueles que lutavam e faziam da violência um estilo de
vida, produzindo uma estética cultural da valentia. Um lugar de
bandidos.
Como no seiscentos e setecentos, os sertões da capitania
das Minas aos poucos foram se tornando lugares apropriados
às formas de vadiagem e marginalidade, lugares infestados por
quadrilhas de negros armados e grupos rebeldes, onde a Lei do
poder público não alcançava. Homens que expressavam a vida e
a arte de viver na ponta da faca e do facão. Homens que rejeitavam
a ordem e a lei oficiais, acostumados aos chãos duros e cruéis
das matas densas, da vegetação fechada e sombria. Os sertões
foram habitados por indivíduos que combatiam para sobreviver.
Ou seja, lugar de “homens que não conhecem outra lei mais
que a sua própria vontade e paixões, e as suas alfaias e trastes
consistem em armas ofensivas (...) homens que pouco temem as
justiças de sua Majestade e nada, as da Igreja”20. Pela inseguran55
Territórios de Mando
ça, pelas adversidades geográficas e lutas constantes, os sertanejos
aprenderam logo uma existência distante e independente da
coroa portuguesa, e mais dependentes de si, identificando uma
cultura própria, fundamentada numa vontade de pertencimento
à terra, ao mando e à demarcação territorial de poder nas formas
de valentias, sustentadas numa moral que se transformava num
costume, uma tradição da cultura sertaneja.
As intempéries do meio eram suportadas, perfazendo uma
vontade divina da tradição barroca do convívio entre o sagrado
e o profano. Daí se ter, como equilíbrio da realidade humana e
divina, um lugar que comportasse o mal, num conjunto entre
as partes. O sertão se tornava um lugar de homens violentos,
feitos de sangue e adestrados ao uso da valentia. Bandidos acostumados
a matar, mas sem perder o senso de uma moral justiceira.
Farejadores de ouro e poder, que rasgavam a terra em pedaços,
revelando a fortuna fácil. Era o inferno na terra. Os berros
da euforia na terra selvagem geravam a truculência pelo poder e
pela vontade da riqueza. O inferno: lugar das maldades naturais
do homem. Lugar da ausência da justiça divina. Talvez, ainda,
da justiça humana. Lugar do mal que é esteticamente o “feio” e
por isso deve ser esquecido. Do Mal absoluto, por isso relegado
pelas autoridades administrativas setecentistas.
Da maldade para o limbo. O sertão transformar-se-ia no
imaginário cultural brasileiro de um lugar estranho e banido
para um espaço de esquecimento e de tradições não entendidas
pelo efeito do novo, da modernidade e do progresso. O tempo
revelaria uma outra representação do sertão como um purgatório
indecifrável. Supra-humano, irreal e misterioso. Inatingível
e poderosamente temeroso de uma memória reveladora. O esquecimento
de um espaço que é real e racionalmente perceptível
e codificável. Mas que transparece como um lugar incógnito pelos
tipos, variedades, misturas e traquejos fantásticos que não se
sabem decifrar.
Palco reiterado de críticas dos intelectuais, que respondem
sob diversas perspectivas às análises sobre este espaço incógnito
e ainda pouco frutíferas, “a História dos sertões nunca foi bem
investigada”21. Mesmo que não se faça uma discussão sobre o
pensamento brasileiro acerca do sertão e os sertanistas, iremos
constatar que as produções acadêmicas têm estudado e tratado
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Célia Nonata da Silva
muito pouco de um tema de grande monta para o entendimento
da cultura sertaneja e da cultura política do país.
Discursos sobre o Sertão
A relevância deste item situa-se numa discussão tão antiga
quanto pertinente sobre a “visão” do sertão e do sertanejo não
apenas na historiografia, como no pensamento sócio-cultural
brasileiro. Para além de um certo cenário fragmentado, disperso
e anômalo que abunda nas teses acadêmicas, o tema é polêmico.
Salvo algumas investidas tímidas de repercussão reflexiva, a
maioria dos intelectuais ainda tem construído as suas análises
sobre as representações sócio-culturais interioranas a partir de
uma ótica dos processos teóricos da “matriz dualista” – base
teórico-interpretativa sobre o sertão e o litoral, reiterada pela
política governamental dos anos de 1930, elucidando a sociedade
brasileira como inclusiva.
Tema de um dos grandes trabalhos atuais, Um sertão Chamado
Brasil (1999), as investigações sobre os sertões e suas representações
simbólicas foram tentativas de responder à permanência
desta dualidade no pensamento social brasileiro. Dentre as
argumentações de Nísia, está a de que
Sertão e litoral representam os contrastes de uma sociedade vista
como o principal problema a ser investigado, e que foi objeto de
diferentes tentativas de interpretação. A idéia de um país moderno
no litoral, em contraposição a um país refratário à modernização, no
interior, quase sempre conviveu com concepção oposta, que acentuava
a autenticidade do sertão em contraste com o parasitismo e a
superficialidade litorâneos22.
As matrizes identificadoras do sertão estão historicamente
ligadas à idéia de sociedade tradicional. Este discurso tem representado
um mundo rural, portador de uma cultura rústica e
antiga, avessa ao progresso e reacionário às investidas modernas,
completamente fragilizada perante um comportamento
destrutivo das relações mercadológicas do capital, que valoriza
o novo. O conceito de ruralismo foi (e ainda é) percebido como
reacionário face aos projetos da modernidade capitalista. Donde
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Territórios de Mando
tradicionalismo e misantropia ainda se apresentam como elementos
identificadores da ruralidade brasileira que, ao se apropriar
das formas de comportamento e mobilidade humanas, determina
um contorno geográfico e espacial para o sertão, induzindo
uma noção de ordem temporal estática.
Essa matriz dualista nasceu da tríade “seca, tradição e violência”
ainda no século XIX. Neste período começaram os primeiros
traços e esboços do retrato do sertão – tomando-se como
referência o Nordeste brasileiro – como um lugar distante da
civilidade e do progresso. As cidades se tornariam o espaço palpável
do moderno pela urbanidade e polidez em detrimento de
tudo aquilo que poderia se referir à tradição, ao rural e ao sertão23.
E foram alguns símbolos que construíram tal imagem como
as de Lampião e do Coronel, perpetuando uma cultura da violência
e do medo, opostos ao comportamento da modernidade.”A
violência do sertanejo provém de sua natureza bruta, indômita
e cruel que é, por sua vez, o produto e o reflexo da natureza
ingrata da caatinga. No sertão, a Cultura é a Natureza, evidentemente
oposta a civilização”24. A complexidade deste discurso
representativo sobre o sertão e as cidades estava presente na linguagem
das elites Oitocentistas no país, demonstrando, de certo
modo, seu desconhecimento e alienação com relação ao sertanejo,
sua tradição e formas de cultura, aumentando o paradoxo
entre o sertão e os centros urbanos, entre as cidades e o desenvolvimento
e as formas de retrocesso, como tradição.
A divulgação deste imaginário discursivo seria perpetuada
pela literatura da época, principalmente por Euclydes da Cunha
em Os Sertões, obra em que retratava não apenas um mundo
hostil e retrógrado, mas também insólito e místico. A representação
discursiva do sertão, produzida a partir dessa idéia de
dualidade tradicional/moderno se acentuaria numa referência
paradigmática do contraste entre o litoral e o sertão, desde a
década de 1930, pelos trabalhos como os de Gilberto Freyre (Casa
Grande e Senzala), e de Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil,
Monções e O Extremo Oeste), cujas teorias incidiram numa discussão
contundente sobre a cultura sertaneja. As preocupações
ideológicas destes trabalhos revelaram um sentido nacionalista
proposto através das orientações políticas da época. Dada a importância
do conceito de fronteira, como já foi elucidado, o ser58
Célia Nonata da Silva
tão foi interpretado, no período, como um espaço fronteiriço a
ser enquadrado na geografia territorial do país, compreendendo
a criação de representações simbólicas como o Jeca Tatu na literatura
de Monteiro Lobato, para o homem do interior. O sertão
assumiu, então, no pensamento social brasileiro, um lugar de
coadjuvante para a construção da nação. O “cabra” iria despontar
nos cinemas como herói, e a visão romântica dos sertões
tomou conta da literatura da época25. Era uma tentativa de construir,
tal como na história norte-americana, um processo de nacionalidade
aos moldes do pioneirismo puritano na fronteira.
Contudo, olhar para o interior era perceber um contraste entre
civilização e modernidade dos centros urbanos, com a “atemporalidade”
do sertão, até hoje.
O cinema de Glauber Rocha, na década de sessenta, sintetizava
esta dualidade matricial literária pela estética da arte cinematográfica
do cinema novo. O filme Deus e o Diabo na Terra do
Sol (1964) demonstra uma síntese da representação discursiva
sobre o sertão e a cultura sertaneja, colocando em cena, além
dos conflitos cotidianos e da violência, a idéia de uma “outra
nacionalidade” para o Brasil rural. Uma representação cinematográfica
que articula mito e política.
A narrativa de Deus e o Diabo na Terra do Sol tem como contexto três
importantes ciclos nordestinos justapostos: os movimentos messiânicos
populares (o beatismo), o ciclo do cangaço e o coronelismo. Três formas
distintas de poderes paralelos, que combinam crime e crença,
desafiando costumes e leis. Ao escolher seus personagens: o vaqueiro
Manuel, o beato Sebastião, o cangaceiro Corisco e Antônio das Mortes,
matador de aluguel, Glauber cria tipos-sínteses que concentram nas
suas ações e no seu ‘pathos’, etapas inteiras da moderna história
nordestina (...). História, Mito e Fábula se combinam numa narrativa
híbrida26.
Antes, vale lembrar as obras de Capistrano de Abreu, em
que o sertão foi retratado com uma geografia fantástica, e as
entradas e bandeiras abririam caminho aos portugueses, ou seja,
aos povoados e formação das primeiras populações. Destas, ele
dá preponderância às expedições paulistas, “que começaram a
descer o Tietê desde os primeiros tempos, provavelmente antes
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Territórios de Mando
do meado do século XVI. Uns foram subindo pelos seus afluentes,
Juquiri, Jundiaí, Piracicaba, Sorocaba. Outros foram até o
Paraná”27. A constituição do povoamento colonial no litoral
transparece como regulamentada por interesses administrativos,
impondo uma fisionomia de ordem. Já no sertão, por se tornar
lugar privilegiado das ambições desmedidas dos donatários, geravam-
se inúmeros conflitos de jurisdição. À estrutura social
rudimentar da colônia seguem-se as investidas do progresso capitalista
moderno na sociedade brasileira do século precedente.
O favorecimento para o comportamento moderno se dá em torno
das cidades e dos projetos de urbanização e o sertão seguiu a
esmo a tradição.
Também Viana Moog, seguindo esta linha de interpretação,
aponta o pioneirismo dos bandeirantes como ressalva para
a comparação entre o desenvolvimento norte-americano e o atraso
econômico do Brasil. A explicação tem suas raízes históricas.
Portanto, chegar às formas de colonização pelo modo comparativo
seria descobrir por que o desenvolvimento econômico não
havia dado certo aqui. Conseqüentemente, o resultado vem à
tona: lá os colonizadores alfabetizados e puritanos do Mayflower
não foram ao Novo Mundo em busca de ouro de prata, mas de
um lugar para trabalhar e prosperar. Diferentemente, aqui os
bandeirantes estabeleceram pela conquista e pela rapina formas
idiossincráticas do viver.
Como mencionamos, algumas das mais importantes interpretações
dos sertões nordestino, baiano e mineiro são literárias,
como a de Os Sertões, em que Euclydes da Cunha persegue
um paradigma bíblico como elemento de narrativa e interpretação
do sertão28. Não se pode deixar de citar, do mesmo autor,
uma coletânea de ensaios seus sobre a Amazônia29, nos quais
persegue um sentido de ver e entender o sertão como um lugar
distante, que causa estranheza e ao mesmo tempo admiração.
Mesmo vivenciando a unidade política da República, ele começa
a perceber a multiplicidade de fatores peculiares presentes tanto
na terra da Amazônia quanto nos sertões. Dentre estes elementos
importantes, o que mais o impressiona é a paisagem geográfica
da Amazônia, revoltosa e desordenada que o prende ao
mundo desconhecido e diferente da civilização. Uma natureza
soberana e bruta, mas ao mesmo tempo provedora para as cul60
Célia Nonata da Silva
turas aborígenes. A navegação e os reservatórios naturais, os
igapós, lagos e lagunas, como aqueles que vivem do rio, os
“caucheros” – aventureiros sertanistas –, os “ipurinans”, os
“tucurinas” e “amanhuacas”.
Euclydes da Cunha não se contentou em fazer descrições e
narrativas da geografia e do relevo, mas foi atento aos fatores
que realçavam a Amazônia como única e detentora de elementos
de ordem ética e social, que a diferenciava do tempo civilizador e
das formas de mudança do progresso capitalista. Mas, suas descrições
da Amazônia não permitiam quaisquer hipóteses, mesmo
para uma natureza tão diferente e distante como aquela.
Foram interpretações desvinculadas da unidade política como
um todo, como se fosse um ambiente à parte, estravangante e
belo.
Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa, construiu um
ambiente mítico, narrado por “uma espiritualização imaginária”
30 como forma e discurso narrativo para se retratar o sertão.
Um lugar fantástico que seduz pelo convite a ser decifrado e
desvendado em sua essência. Uma terra onde o homem é feito
pela mistura da alma do sertanejo com o trabalho árduo, criando
um vínculo de posse.
Afonso Arinos contribuirá com Os Jagunços, romance feito
em traços de novela sertaneja publicada em O Comércio, e com a
mesma visão O Contratador de Diamantes. Ambas trataram a vida
e o cotidiano dos sertanistas, demonstrando seus valores, canções
tristezas e esperanças, considerando uma interpretação ingênua
para o mundo sertanejo, em que figura uma percepção de
mundo, cujo tempo diferenciava-se de uma realidade simples,
em contraposição ao urbano. A obra de Ulysses Lins de Albuquerque,
Um Sertanejo e o Sertão, é considerada um dos mais belos
trabalhos sobre o coronelismo nordestino. A ênfase é
notadamente política, com relatos de pessoas de mando e sua
extensão do poder. Para isso, o autor buscou retratar cenas do
cotidiano do interior de Pernambuco, evidenciando as formas
sociais da época, compilando-as em pequenas publicações. Já em
Moxotó Brabo, destaca principalmente os habitantes, as velhas
fazendas, os cangaceiros e os capitães – personagens importantes
no cenário do poder – sem contar as modas de desafios e
outras canções. As duas publicações são verdadeiros trabalhos
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Territórios de Mando
de história oral, cuja investida maior foi a preocupação em descrever
as cenas do cotidiano sertanejo e as pessoas de escol, preservando
a memória local, sendo, portanto, consideradas de grande
valor documental.
Tropas e Boiadas, de Hugo C. Ramos, apareceu pela primeira
vez na Revista dos Tribunais do Rio de Janeiro como romance de
época. Reúne coletâneas de cenas e situações cotidianas de
boiadeiros. As viagens sertão adentro em Mato Grosso e Goiás –
terras dos chapadões – deixam transparecer uma vida sertaneja
anestesiada pela improbidade do tempo. A visão regional dos
vaqueiros e as grandes tropas de boiadas são resgatadas com
maestria, identificando uma preocupação em se lidar com a realidade
regional, social e geográfica.
Atualmente, um trabalho vigoroso e capaz de um perfil crítico
que foge aos padrões de análise atuais é Guerreiros do sol, de
Pernambucano de Mello. O trabalho sobre Lampião retrata não
apenas a saga de um bandido famoso do sertão nordestino, revelando
um contexto social e cultural propiciadores de um comportamento
marginal. Mas, procura inserir o homem aos seus
elementos articuladores do poder a partir da estética da violência
e de um código de ética cultural entre os pares. O “escudo
ético” era a forma pela qual a violência e o banditismo
deflagravam-se no sertão, propiciando atividades perversas e
oportunamente contra a lei. Também, este escudo ético era o
amálgama da união estável entre coronelismo e cangacerismo
no sertão – formas de trabalho e manutenção de poder31.
A imagem e o discurso do sertão, em sua maioria, foi sendo
construída numa perspectiva de estranhamento e distância, cuja
reflexão analítica incide sobre o conflito das formas de organização
sócio-cultural brasileira. Ou seja, a civilização versus a
barbárie. Das repercussões historiográficas, percebe-se que o
conceito de cultura foi se estreitando ao de civilização e civilidade,
como se ambas fossem sinônimas das representações simbólicas,
culturais e arquétipicas de variações locais distintamente
geográficas. A partir daí, a idéia de sertão tem se postulado com
certos valores universais que o opõem, irreversivelmente, aos da
modernidade e do progresso. A distância entre estes elementos
conceituais tende a se acentuar quando se sobrepõe a estas análises
a categoria de identidade nacional, como na década de 1930,
62
Célia Nonata da Silva
sugerindo uma interpretação histórica da sociedade, propiciadora
para o sentimento nacionalista.
Esse afastamento e estranhamento são elementos pertinentes
do discurso da historiografia e da literatura com relação ao
sertão na contemporaneidade, como vimos. Um limbo na terra.
O sertão é representado por uma terra incógnita (mitos de valentes)
e estranha (rituais tradicionais e linguagens míticas), em
que as bases do desvendamento da alteridade, da diferença cultural
e social metamorfoseiam-se num espaço atemporal, cujos
hábitos e costumes dizem sobre uma vontade em conhecer sua
origem, ainda marcada pela insensatez que nos escapa à consciência
do trágico e do universo dramático de um contexto histórico-
cultural singular.
Entretanto, neste trabalho não nos preocupamos com as
inúmeras possibilidades interpretativas sobre a representação do
sertão. O hiato que permite analisar este espaço rural rico em
imagens e discursos é concebido por nós, enquanto afirmação
teórica, como um lugar a priori da construção de formas culturais
novas. Uma cultura de fronteira e, portanto, mestiça, prenhe
de possibilidades analíticas. É, também, uma tentativa de se
definir o mundo do sertão e o sertanejo como produtos de uma
fronteira matricial, que surgia ao sabor de um contexto histórico
específico.
Zonas de fronteira
Analisamos a representação deste espaço fronteiriço em dois
níveis de interpretação, como recurso de pesquisa: o primeiro
viés pauta-se por aquela imagem já pré-disposta no imaginário
europeu, dado a partir da Ibéria, pelos discursos de reconhecimento
e interação das terras recém-descobertas. Uma
condicionante discursiva que foi, antes, uma inauguração de
um domínio e de uma possessão ibérica celebrada no contexto
do imaginário barroco.
Como processo histórico dos descobrimentos portugueses
e espanhóis, as terras incógnitas, o vasto sertão, a zona estranha
e o espaço de fronteira foram entendidos como elementos de
um discurso majoritário, cuja significação foi produzir uma sen63
Territórios de Mando
sibilidade de uma ordem temporal apática pertencente a uma
territorialidade fantástica, condicionada ao imaginário místico
barroco. Lugar privilegiado das práticas heróicas dos bravos
conquistadores e dos habitantes monstruosos.
Monstrengos desenhados e imaginados por Taunay, Staden,
Gândavo, Lèry a Flecknoe, como outros. Seres condicionados a
uma realidade histórica da descoberta e do encontro de mundos
diferentes, criados e recriados pela imaginação e mentalidade
portuguesas, que encontraram espaço propício nas matas brasileiras.
Como,
o papagaio, conhecido no século XVI como a ‘ave do paraíso”, fazia
parte da fauna mítica, pois além da formosura da plumagem tinha a
capacidade de imitar a voz humana, confundindo-se com as aves
falantes às quais faziam alusão os velhos livros de devoção. (Ainda)
vários cronistas escreveram sobre o monstro marinho. Gândavo acusou
a presença de um destes “hipupiara”, o que significa demônio-d’àgua,
morto em São Vicente, no ano de 1564. Gabriel Soares de Souza
refere-se a essas perigosas criaturas, capazes de meter pescadores e
mariscadores debaixo d’àgua, onde além de morder-lhes as naturas,
os afogavam32.
Como nos sugere Mignolo33, a colonização foi uma reconfiguração
da memória e do espaço nas Américas. Uma superioridade
da língua conquistadora dada a partir da redefinição espacial
e histórica do mundo conhecido. O exemplo pode nos ser
oportuno ao lembrar as falas de Bandarra e do Padre Antônio
Viera ao re-introduzir e re-criar o Quinto Império Português. O
espaço cartográfico configurava, pelas descobertas e pela colonização,
os novos paralelos e linhas imaginárias de conquista e
posse dos conquistadores. Eram falas e escritas sobre espaços
redefinidos segundo as fontes de cada poder colonizador, em que
também se encontravam as crenças e imaginações sobre os indígenas,
produzindo particularismos coloniais, sem perder a expansão
do Velho Mundo.
Dentro desta construção progressiva de uma imagem de
América, alguns mitos fundadores e utopias foram rememorados,
como o Eldorado e o Quinto Império – signos da escatologia, da

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