domingo, 1 de abril de 2012

V IAJANTES E PESQUISADORES ESTRANGEIROS QUE PESQUISARAM A AMAZÔNIA

Reportagem

edição 78 - Abril 2010


“Viajantes viam um Brasil degenerado”
O pesquisador Jean Marcel Carvalho França conta como o Brasil foi representado nos relatos de estrangeiros que, ao longo de quatro séculos, moldaram a imagem do país
por Jean Marcel Carvalho França
DIVULGAÇÃO

O pesquisador e escritor Jean Marcel C. França, organizador da série O olhar dos viajantes.

Os interessados no tema “viajantes históricos” – os estrangeiros que andaram pelo Brasil dos séculos XVI ao XIX – frequentemente têm dificuldades de encontrar bibliografia referente a essa literatura de viagem de forma acessível, organizada e sucinta. Há excelentes edições em livros – infelizmente boa parte ou está esgotada ou é cara demais para o grande público.

Por isso, História Viva convidou o pesquisador e escritor Jean Marcel Carvalho França, professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), para organizar a mais nova série da Duetto Editorial, O Olhar dos Viajantes, que reuniu 20 dos melhores estudiosos dos estrangeiros que visitaram, fizeram relatos e produziram obras de arte sobre o Brasil desde o descobrimento.

O lançamento da primeira revista, dedicada à natureza, será no dia 29 de março. Traz as histórias dessas expedições e um pouco dos relatos, impressões, desenhos, aquarelas e outras obras de arte que resultaram das incursões de exploradores, cientistas, naturalistas e aventureiros pelo Brasil.

A segunda revista, que chega às bancas no dia 30 de abril, focaliza o povo brasileiro visto pelos viajantes estrangeiros no mesmo período, do descobrimento até a “era” de Darwin. Eles jamais esconderam o desprezo por um povo miscigenado e estranhamente tropicalizado.

Esse universo de referências sedimentou tanto a imagem do Brasil no exterior como a autoimagem dos brasileiros. Abaixo, entrevista com Jean Marcel antecipa alguns dos temas tratados na série e revela um pouco do material com que foi forjado o estereótipo da natureza extrema – diabólica ou paradisíaca – e da gente “estranha” que habitava os trópicos.


Planta típica de Minas Gerais reproduzida no livro Voyage, do naturalista alemão Alexander von Humboldt.

História Viva – Por que a literatura de viagem se tornou tão importante na formação da imagem do Brasil e dos brasileiros no exterior, entre os séculos XVI e XIX?

Jean Marcel Carvalho França – A maneira como nos comportamos em relação às coisas e às pessoas é, em larga medida, condicionada pelo conhecimento prévio que temos dessas mesmas coisas e pessoas. Ora, durante quatro séculos, um pouco mais, um pouco menos, uma parte enorme de tudo aquilo que os europeus conheceram sobre aqueles “novos mundos” – que, a partir do ocaso do século XV, tinham sido descobertos e incorporados ao mundo europeu pela expansão marítima – veio da literatura de viagens. Dito em outras palavras, uma parcela muitíssimo expressiva do que os europeus pensaram e escreveram sobre o além-mar – sobre a América, mas também sobre a África, a Índia, a China, o Japão, as terras do Pacífico Sul, a Austrália etc. – durante os quatro séculos que se seguiram à viagem de Colombo se baseou em relatos de viagem, em testemunhos de aventureiros e exploradores que, muitas vezes à custa da própria vida, viram com os próprios olhos – ou disseram que viram – aquelas terras que tanto atiçavam a imaginação dos seus contemporâneos. Em relação ao Brasil, isso é especialmente verdadeiro, na medida em que, durante pelo menos os três primeiros séculos de sua existência, diminutas foram as informações sobre o país produzidas pelos colonos e, posteriormente, pelos brasileiros a circular pelo mundo.

HV – Em que medida essa imagem do Brasil ainda vigora no mundo? Há europeus, por exemplo, que ainda imaginam o país tal como descrito por exploradores dos séculos XVI e XVII ou por naturalistas e cientistas dos séculos seguintes?

Jean Marcel – Por certo que sim. Essas imagens do Brasil e dos brasileiros que durante tantos séculos circularam pela Europa tiveram vida longa na cultura ocidental e, ainda hoje, povoam o repertório intelectual do Velho e, também, do Novo Mundo. Muitos dos estrangeiros que contemporaneamente desembarcam nos portos e aeroportos nacionais trazem consigo algumas dessas imagens, imagens de um país rico e exuberante, mas habitado por uma gente pouco elogiável do ponto de vista moral.
COLEÇÃO MARTIUSIANA, BAYERISCHE STAATSBIBLIOTHEK, MUNIQUE

A Amazônia na visão de Benjamin Mary, primeiro embaixador da Bélgica no Brasil. O desenho é do século XIX

HV – Os brasileiros assumiram em alguma medida essa identidade criada pelos viajantes estrangeiros?

Jean Marcel – A dualidade mencionada acima – país rico e exuberante / habitantes deteriorados moralmente – teve um papel extremamente importante no pensamento da elite política e intelectual brasileira do século XIX, elite, vale lembrar, responsável por lançar as bases daquilo que passou a se intitular cultura brasileira.

HV – Seria possível separar essas influências por épocas? Por exemplo, no período do descobrimento, os relatos aproximavam o país tanto do paraíso quanto do inferno – os dois lados da natureza selvagem – e também carregavam alta carga de fantasias medievais, com figuras míticas e monstros. Mais tarde, sob a influência de Darwin, esses relatos mudaram.

Jean Marcel – Em relação ao Brasil, os relatos variaram muito pouco até 1808, quando D. João VI abriu os portos da colônia às ditas “nações amigas”. Os relatos posteriores a esse acontecimento são mais detalhados e mais extensos que os anteriores, pois derivam da experiência de viagem de indivíduos que permaneceram meses, anos, por vezes décadas no Brasil. Pode-se dizer que, a essa altura, os visitantes europeus promovem um verdadeiro redescobrimento do Brasil.
HV – Quem eram os viajantes? Em cada período, quais foram os mais importantes para a definição da imagem do Brasil e dos brasileiros?

Jean Marcel – A composição desse grupo que denominamos “viajantes” é muitíssimo variada. Há capitães de navio, sábios, naturalistas, marinheiros, comerciantes, aventureiros, prisioneiros, religiosos, em suma, um sem-número de tipos, provenientes dos mais distintos países – da Europa e, a partir do século XIX, do mundo. Desse variado grupo, os que mais influência tiveram na construção da imagem do país no mundo foram aqueles cujos livros, por razões as mais variadas, circularam mais intensamente pelas mãos do público europeu, livros como os escritos por Américo Vespúcio, Jean de Léry, Hans Staden, William Dampier, James Cook, Arthur Phillip, John Mawe, Richard Burton, Charles Darwin e outros.

HV – Como o povo do Brasil foi tratado na literatura de viagem? No caso, tanto índios e negros como colonos europeus.

Jean Marcel – O colono é a grande “mácula” que o visitante europeu detectou nesse Brasil exuberante e pródigo que descreveu nas suas narrativas de viagem. Notável é que tal percepção remonte aos primeiros relatos sobre o país e seja consensual entre os visitantes. Aos olhos desses homens, os colonos eram preguiçosos, ignorantes, carolas, ciumentos, desonestos e, sobretudo, excessivamente vaidosos e libidinosos. Isso quanto aos brancos, ou melhor, quanto àqueles que se passavam por brancos, pois havia ainda um toque a mais de barbárie no cotidiano da colônia e, posteriormente, do Império: o enorme contingente de negros escravos, vindos da “incivilizada África”, que perambulavam pelas ruas das cidades brasileiras.

HV – Por que a moral do brasileiro, a dos europeus aqui radicados e a de seus descendentes foi continuamente considerada inferior à dos habitantes do Velho Mundo?

Jean Marcel – Há um visitante francês do século XVIII, M. de La Flotte, que culpa a distância da Europa: os colonos, segundo ele, à medida que se afastavam da civilização europeia se tornavam mais e mais corrompidos do ponto de vista moral. Outros visitantes, muitos deles aliás, atribuem a corrupção moral à luxúria em que supostamente viviam os colonos e à consequente mistura de sangue. Outros culparam o clima quente, a herança lusitana, a frouxidão das leis, enfim, há opiniões para muitos gostos. Um ponto, no entanto, é consensual: a civilização ocidental, ao menos do ponto de vista moral, estava mal representada no mundo que o português estava criando nos trópicos.

PARA SABER MAIS




Série O olhar dos viajantes

Volume 1: O Brasil ao natural - Estrangeiros veem o inferno e o paraíso na exuberância das paisagens tropicais. 84 págs, R$ 13,90

Volume 2: O Brasil e sua gente - O papel das narrativas de viagem na construção da nossa imagem e identidade. 84 págs, R$ 13,90
Jean Marcel Carvalho França é professor do Departamento de História da Unesp e autor, entre outros livros, de Literatura e sociedade no Rio de Janeiro oitocentista (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999) e Outras visões do Rio de Janeiro colonial (José Olympio, 2000).


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