quarta-feira, 4 de abril de 2012

SIVINO SANTOS: O CINEASTA DA SELVA

História, imagem e narrativas
No 11, outubro/2010 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
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As narrativas d’O Cineasta da Selva e a historiografia sobre Silvino Santos !
Vitória Azevedo da Fonseca
Doutora em História pela UFF
vitoria.azevedo@gmail.com
Resumo: Neste artigo abordo as diversas dimensões dos discursos historiográficos, e/ou construções de memórias,
criados em torno do cineasta Silvino Santos, que foram inseridos no filme documentário O cineasta da Selva, de
Aurélio Michiles. O filme, pelas possibilidades de linguagem, consegue incorporar ao seu discurso dimensões
conflitantes que comumente aparecem em construções historiográficas.
Palavra-chave: Silvino Santos, cinema, história
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No processo de construção de sentidos em filmes com temáticas históricas os realizadores
empreendem o que podemos chamar de uma operação historiográfica tendo em vista que
selecionam, fragmentam, relacionam idéias sobre o passado e, ao final, propõem pontos de vista
sobre este passado. Para Robert Rosenstone, um documentarista realiza uma tarefa semelhante ao
historiador: “...como o historiador cuja tarefa é descobrir maneiras de transformar tais vestígios
em discurso histórico, os documentaristas devem fazer a mesma coisa” (ROSENSTONE, 2010,
p.111). No entanto, o autor afirma que o resultado desse trabalho de construção dos sentidos
históricos nos filmes tem preocupado muito pouco os estudiosos do tema. As reflexões e análises
contidas neste artigo fazem parte de um trabalho mais amplo que discute as relações entre cinema
e história no âmbito do processo da pesquisa histórica para roteirização de filmes com temáticas
históricas, e, de certa maneira, estão situadas nessa zona lacunar a qual se refere Rosenstone.
Na análise do filme/ficção/documentário O Cineasta da Selva (Aurélio Michiles, 1997),
foco deste artigo, foi possível observar, a partir dos procedimentos de pesquisa histórica, como
foram incorporados ao filme os diversos discursos presentes na historiografia sobre o personagem
Silvino Santos, um cineasta pioneiro que viveu na Amazônia no início do século XX.
O Cineasta da selva foi dirigido por Aurélio Michiles, que cresceu tendo contato com
cineclubes de Manaus e chegou a cruzar com o próprio Silvino Santos em mesas de bares, onde,
já velho, contava suas histórias “mirabolantes”, desacreditadas por muitos. Michiles estudou
arquitetura em Brasília, mas ingressou em trabalhos na televisão. A sua formação, segundo sua
própria definição, é de um cinéfilo. Na televisão, realizou, em vídeo, muitos documentários. Em
1990, foi convidado pela TV Cultura para fazer um documentário sobre o ciclo da borracha,
intitulado A árvore da Fortuna. E, “...claro, como era a saga da borracha, imagina, Silvino Santos
fazia parte e era a grande expressão artística e cultural desse ciclo econômico. Aliás, toda a parte
palpável, visível desse ciclo está no filme dele...”(MICHILES, 2004). Para esse documentário,
Aurélio convidou Cosme Alves Neto para fazer o papel de um coronel.
[...] o Cosme fez o personagem e quando ele viu disse, “Aurélio, você fez um
documentário [...] sobre o Glauber Rocha, “Que viva Glauber”, fez sobre o ciclo
da borracha, já fez sobre a Lina Bo Bardi, não é possível, você tem que fazer um
documentário sobre o Silvino Santos, [...] você que tem que fazer” (MICHILES,
2004).
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Aurélio Michiles pareceu a Cosme Alves Neto a pessoa mais apropriada para fazer um
documentário sobre Silvino Santos, talvez em função da sua origem, trajetória, sensibilidade e
identificação com a personagem. Alves Neto, que se propôs a ajudar na realização do
documentário, também era um amazonense apaixonado por cinema que trabalhou por muito
tempo na Cinemateca do MAM – RJ. E também foi um dos responsáveis pela “descoberta” de
Silvino Santos. Ambos têm uma proximidade e um interesse muito grande pela temática
relacionada à Amazônia e o cinema amazonense.
E assim iniciou o projeto do filme. O roteiro foi feito pelo diretor e por Júlio Rodrigues e
a montagem ficou a cargo do cineasta Roberto Moreira. A sua produção iniciou em 1994 e
terminou em 1997, sendo exibido pela primeira vez no Festival de Brasília de 1997 e tido, na
época, como uma revelação do Festival em função de narrar a história de um pioneiro como
Silvino Santos. Durante sua produção houve uma interação grande entre o diretor e roteirista na
elaboração do roteiro. Esses vários sujeitos participaram da materialização do filme, mas a maior
parte da pesquisa ficou a cargo do diretor.
Para melhor compreender o diálogo entre O Cineasta da Selva e os diversos discursos
sobre Silvino Santos, aos quais a produção teve contato na sua elaboração, proponho a divisão do
filme em três linhas narrativas que são, basicamente: uma narrativa contextual, uma narrativa
“pessoal” e uma narrativa das imagens.
A narrativa contextual foi baseada, principalmente, nos autores Selda Vale Costa e Márcio
Souza e constrói a relação entre a vida de Silvino e o mundo político/econônico/social à sua
volta. A narrativa pessoal foi construída em cima do documento principal sobre a vida de Silvino
Santos, que são suas memórias. E, por último, a exibição das imagens dos filmes de Silvino
acabou por construir uma narrativa à parte pautada nas imagens ainda existentes e conservadas do
cineasta. Nessas três dimensões do filme é possível perceber três dimensões de construções de
memórias e de histórias.
Ao incorporar ao seu discurso essas diversas abordagens, o filme possibilita ao espectador
uma visão mais ampla sobre as construções de memórias em torno de Silvino Santos. E pelas
suas possibilidades de linguagem ele também consegue abordar questões aparentemente
contraditórias, não se reduzindo a apenas “uma visão” sobre o personagem mas propondo um
diálogo entre as diversas visões que fazem parte dessa memória. Quando um filme consegue
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trazer à tona as diversas temporalidades de discursos sobre o passado ele potencializa as
possibilidades da narrativa audiovisual na construção de uma compreensão desse passado.
Narrativa contextual: discursos sobre Silvino Santos e a construção de uma vida
No primeiro momento do filme há indicações do “descobrimento” de Silvino Santos por
jovens cinéfilos amazonenses. As primeiras imagens fazem referência ao Primeiro Festival Norte
de Cinema realizado em Manaus, em 1969. São exibidas imagens, em preto e branco, de pessoas
sendo recebidas. E a legenda: “Manaus, 1969”. Em seguida, a câmera passeia pelo hall do Teatro
Municipal de Manaus onde vemos cartazes de filmes como Nosferatu, Deus e o Diabo na terra
do sol e O Homem da câmera. A câmera enquadra um grupo de pessoas. Dentre elas estão
Joaquim Marinho, Domingos Demasi, Márcio Souza e Djalma Batista conversando no saguão do
Teatro Amazonas. O grupo no teatro folheia um exemplar de O Cruzeiro (6/11/1969) que exibe
uma reportagem sobre Silvino Santos.
Joaquim Marinho fala sobre o momento em que ficou conhecendo Silvino Santos: “Mas
foi exatamente aquele papo da janela, que o velho Cosme chegou e falou ‘vocês esquecem que é
um cineasta que vocês não estão descobrindo’. A gente estava se organizando pra fazer o festival
de cinema”.
A referência ao Festival Norte de Cinema é significativa pois representa o momento
de descoberta de Silvino Santos. Depois desse momento, a sua história passou a ser conhecida e
difundida. Esse Festival é sempre citado como um divisor de águas na história do cinema
amazonense, segundo Cosme Alves Neto, um dos organizadores do Festival: “...a descoberta do
Silvino Santos mexeu com a cabeça da gente e despertou o desejo de verificar e estudar um
pouco a história do cinema no Amazonas” (NETO apud COSTA, 1987, p.122)
Silvino Santos, homenageado e reconhecido como um grande artista em todo o
mundo nos anos 20, permaneceu esquecido em Manaus, vivendo como funcionário
da firma J.G. Araújo & Cia Ltda., até que em Manaus se realizou o ‘I Festival
Norte de Cinema Brasileiro’, promovido pelo DEPRO (Departamento de
Propaganda e Turismo do Amazonas), em outubro de 1969. Quem e como foi
Silvino Santos descoberto, já virou lenda. Cosme Alves Neto, atual diretor da
Cinemateca do MAM do Rio, Márcio Souza, Joaquim Marinho, Ivens Lima e
outros foram responsáveis pela feliz iniciativa de levá-lo ao Cinema Odeon...
(COSTA, 1985, p.2)
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Esse momento também foi considerado um marco para as pesquisas sobre o cineasta. A
partir do grupo formado, de acordo com Neto, abriram-se duas frentes de trabalho.
[...] o Festival de Cinema foi um momento divisor de águas, com o surgimento de
dois caminhos complementares, no fenômeno cinematográfico amazonense. Nós
temos, por um lado, as pessoas que começaram a se dedicar às diversas atividades
na área de cinema: Márcio Souza, Domingos Demasi, Roberto Kahané que se
especializaram, se dedicaram mais à realização cinematográfica, além de Djalma
Batista, e a outra faixa que partiu para a pesquisa de nossa história
cinematográfica: Ivens Lima, Selda Vale da Costa, eu mesmo, Flávio Bittencourt
[e outros] (NETO apud COSTA, 1987, p.123)
Essa seqüência de referência à descoberta de Silvino Santos no Festival Norte foi
deslocada do final do filme, como estava previsto no roteiro, para o início. Essa foi uma inversão
importante no roteiro. Se ficasse no final, essa seqüência informaria, dentro da narrativa
cronológica, o que aconteceu no final da vida de Silvino. No entanto, inseri-la no início gerou
outra possível leitura do momento: o lugar de onde se fala sobre Silvino Santos. Sendo essas
pessoas e o Festival partes do momento da descoberta, inverter a cronologia, passando do final
para o início, significa marcar o momento de inauguração dessa história, a partir da qual também
foi construída a história do filme. Aí estão indicadas algumas referências discursivas. É o início
da configuração dessas histórias: seja a história de Silvino Santos, do cinema amazonense e do
próprio filme.
Os dois autores principais que criaram interpretações sobre Silvino Santos foram Selda
Vale da Costa, pesquisadora do cinema amazonense e Márcio Souza, já citados. No filme, as suas
interpretações aparecem numa narrativa contextual que propõe leituras, análises e que relaciona a
vida de Silvino Santos a outros aspectos de uma dimensão sócio-cultural mais ampla na qual
estava inserida a Amazônia.
A narrativa contextual mescla uma cronologia das obras do cineasta com referências a
situações sociais vividas. Essa trajetória de Silvino Santos pautada numa cronologia dos seus
filmes é recorrente na maioria dos ensaios biográficos a seu respeito.
O texto mais antigo publicado sobre a sua vida foi encontrado no cartaz da Exposição de
1981: Silvino Santos – 95 anos de seu nascimento, escrito pelo jornalista Flávio Araújo Lima
Bittencourt. O mesmo autor publicou um folheto com uma breve biografia de Silvino em Silvino
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Santos – Série Memória (BITTENCOURT, 1982). Atualmente esse texto encontra-se disponível
no site Biblioteca Virtual do Amazonas e Amazônia de A a Z. Já Selda Vale Costa escreveu uma
biografia de Silvino no texto “Paixão e arte na Amazônia”(COSTA, 1987) e em “Um poeta da
imagem - Silvino Santos: Uma reconstrução biográfica” ”(COSTA, 1987).
A mesma estrutura cronológica presente nos diversos textos foi usada no filme O Cineasta
da Selva, com alguns deslocamentos realizados na montagem. Apesar disso, parece que o
trabalho que mais influenciou diretamente a confecção do roteiro foi o livro Eldorado das
ilusões de Selda Vale da Costa, resultado de sua dissertação de mestrado, como podemos
perceber pelos créditos finais do filme: “para Selda Vale da Costa, cuja tese de mestrado sobre
Silvino Santos foi fundamental para contar esta história”.
Ou seja, a leitura da biografia de Silvino Santos proposta por Selda Vale contribuiu para a
organização da narrativa macro no filme. Outros temas abordados em sua dissertação, como as
exibições cinematográficas em Manaus também aparecem ao longo da narrativa. Além disso, o
seu trabalho de organização, identificação e restauro da filmografia de Silvino foi imprescindível
para constituir a materialidade do filme.
Aparentemente a narrativa do filme desfila a cronologia da produção dos filmes de Silvino
Santos e suas problemáticas, no entanto, subjacente a esse desenrolar há um modelo explicativo
de ascensão e queda do personagem. A ascensão começa com a homenagem no Festival Norte e o
símbolo da sociedade da borracha, o Teatro Amazonas, e a decadência aparece ao final, quando o
artista se encontra isolado, fazendo imagens caseiras e rotineiras.
Essa interpretação está ligada às idéias de Márcio Souza que caracterizou Silvino Santos
como o cineasta ligado às riquezas do Ciclo da Borracha. Nesse sentido, o personagem, junto
com a “sua sociedade da borracha” passam pelo processo de ascensão e decadência. É importante
identificar essa idéia, pois faz parte do processo de criação das interpretações sobre o cineasta.
Longe de ser algo óbvio, pelo fato de ter sido patrocinado por um rico empresário, a idéia de
“cineasta do ciclo da borracha” é uma construção interpretativa a partir de um determinado olhar.
Silvino Santos esteve ligado ao “fausto da borracha”, nas palavras de Márcio Souza, que,
no trecho do seu livro Expressão Amazonense, define a trajetória profissional de Silvino como
tendo sido “[...] profundamente marcada pelo poder econômico dos coronéis da borracha, de
quem foi sempre um zeloso e fiel servidor.” (SOUZA, 1977). A idéia aparece em outras obras
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suas, tais como Breve História da Amazônia ou no livro Silvino Santos, o cineasta do ciclo da
borracha. “Os fabulosos lucros da goma elástica também levaram os barões do látex a buscar
expressão na mais moderna e dispendiosa forma de arte de seu tempo, o cinema. Com o pioneiro
Silvino Santos (1886-1971), imagens da região foram guardadas para sempre em filmes como No
paiz das Amazonas e No rastro do Eldorado” (SOUZA, 2001, p.188)
Para ele, Silvino Santos “é representante de uma civilização, que era a civilização da
borracha”, como fala no filme. Nessa abordagem, como o cineasta do ciclo da borracha, não
registrou os maus-tratos denunciados (aliás, parece que nem os viu); também não captou as
contradições dessa sociedade, não viu a pobreza oposta à sua opulência. Ao contrário, trabalhou a
serviço do “grande capital”, registrou sua opulência, serviu à propaganda ... E, ao que parece, só
fez cinema por causa dele. Márcio Souza reconhece a genialidade de Silvino Santos, mas não
deixa de marcar a sua posição “privilegiada” nessa sociedade de contradições, explorações,
ganâncias e mortes, financiadora de sua atividade cinematográfica.
A história de Silvino Santos carrega uma certa contradição: ao mesmo tempo em que é
considerado um representante de uma sociedade “condenável”, por outro lado, o seu talento, seu
pioneirismo e sua arte na fabricação de imagens não deixam de ser reconhecidos. Para Márcio
Souza, ele consegue “superar” sua condição: “Como artista ele supera as limitações impostas
pelo grande dinheiro com que esteve sempre envolvido”. Nessa declaração, percebemos a
valorização daquilo que chama da superação do “grande dinheiro”, transparecendo o estigma que
o cineasta carregou/carrega.
O diretor do filme, no entanto, parece não aceitar completamente essa imagem. Ele
privilegia o lado artístico do cineasta tentando uma abordagem menos carregada de julgamentos
“políticos”: “Eu persegui isso, pelo menos, eu quis passar isso. Queria mostrar, mais do que nada,
que ele era um artista, ele viveu como artista e foi, até morrer, muito respeitoso com seus
patrocinadores” (MICHILES, 2004).
E essa tensão interpretativa aparece no filme: se por um lado, o diretor mantém a idéia do
cineasta do ciclo da borracha, carregada de significados políticos, por outro lado, a dimensão
artística, técnica, poética, mágica e até sobrenatural da personalidade de Silvino Santos é
enfatizada numa outra dimensão da narrativa que é a que chamo de “pessoal”, que será analisada
adiante.


COIPYRIGHT VITÓRIA AZEVEDO DA FONSECA

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