quarta-feira, 4 de abril de 2012

O CORAÇÃO DAS TREVAS:JOSEPH CONRAD

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Sex, 03 de Dezembro de 2010 16:01 Eduardo Cesar Maia










Num pequeno ensaio crítico intitulado “As raízes do humano”, que faz parte do volume A verdade das mentiras, de 2001, Mario Vargas Llosa descreve apaixonadamente suas impressões de leitor sobre o já consagrado romance O coração das trevas, de Joseph Conrad, publicado pela primeira vez em 1902. Essa impactante narrativa se desenvolve na época da aventura colonial europeia na África – durante o governo de Leopoldo II, rei da Bélgica, que à época possuía como domínio colonial o Congo (o qual equivalia a mais de 75 vezes o tamanho da Bélgica). A experiência real de Joseph Conrad como funcionário da marinha mercante de Leopoldo II transformou-se, nove anos depois, em material literário e deu luz a uma das obras-primas do século 20. A marca que essa obra deixou em Vargas Llosa transparece durante todo o seu já citado ensaio e culmina em seu mais novo trabalho, o romance O sonho do celta, publicado recentemente em Madri, pela editora Alfaguara, e que já está sendo traduzido para o português.

O personagem central de O sonho do celta é uma figura histórica real: trata-se do irlandês Roger Casement (1864-1916), cônsul britânico que esteve no Congo Belga no início do século passado e foi testemunha das atrocidades cometidas em nome dos chamados três “C”, que, juntos, justificariam a empresa colonialista europeia: Cristianismo, Civilização e Comércio. Além disso, Casement foi amigo íntimo de Conrad naquele período e foi quem primeiro alertou o escritor a respeito do que realmente acontecia ali. Mario Vargas Llosa, por sua vez, realizou uma verdadeira investigação para reconstituir, com a máxima precisão possível, a vida aventureira e heroica desse “Bartolomeu de las Casas” britânico, que, após denunciar a barbárie praticada pelos homens brancos “civilizados” no Congo, viajou com o mesmo objetivo humanitário para a Amazônia Peruana – região que vivia o auge do ciclo da borracha – e, ainda, envolveu-se com a luta independentista da Irlanda em meio ao tumulto da Primeira Grande Guerra.

Não obstante toda a minúcia na representação dos fatos históricos, trata-se de uma obra de ficção e muito do que é relatado extrapola os limites da pesquisa realizada. O escritor peruano utiliza sua habilidade de narrador para tentar imaginar e descrever de forma viva, verossímil e pungente a turbulenta trajetória de Casement – e, principalmente, a riqueza e complexidade de sua vida interior –, mostrando o papel fundamental desempenhado por ele na mudança da percepção que a opinião pública europeia e norte-americana tinha em relação às atrocidades de que eram vítimas os trabalhadores congoleses e os índios amazônicos, uns sob o julgo da Companhia Comercial da Bélgica, e outros, submetidos a um regime de cruel servidão pela The Peruvian Amazon Company, empresa peruana de extração de látex pertencente a Julio César Arana, que funcionava numa região fronteiriça entre Colômbia e Peru chamada Putumayo, e que contava entre seus acionistas com personalidades da sociedade inglesa.

“MISSÃO CIVILIZATÓRIA”
Tanto no Congo Belga quanto na Amazônia peruana, Casement testemunhou até onde podia chegar a crueldade humana. Os castigos, psicológicos e físicos, alcançavam por vezes requintes de sadismo: órgãos genitais eram cortados ou esmagados a marteladas; mulheres e crianças de trabalhadores fugitivos eram violentadas e mortas diante de toda a tribo para servir de exemplo aos demais; mutilava-se uma mão ou um pé de quem não cumpria as cotas de trabalho. Mas a descrição não pára por aí – Vargas Llosa consegue fornecer um painel vivo e intenso do que foi aquele período tão efervescente quanto ignominioso. Ademais das torturas e explorações, o escritor nos mostra como aquela estrutura de poder funcionava em termos econômicos e como aquelas comunidades, além de passar pelo massacre físico, tiveram destruídas suas tradições, culturas e instituições. Os brancos, representantes da cultura europeia ocidental, aparecem como seres ainda mais primitivos, e com um agravante: ao contrário dos nativos, que acreditavam em rituais e sacrifícios como atos metafísicos, os representantes da “cultura superior” agiam de maneira cruelmente consciente. Homens que antes acreditavam estar numa missão civilizatória e moral se tornaram mais bárbaros do que os bárbaros. O fato é que, na “balança” dos brancos europeus, que aferia o grau de humanidade entre os diferentes povos, negros e índios “pesavam” muito menos, pois não eram considerados “racionais”.

Outra etapa fundamental da vida de Roger Casement retratada no romance foi a de sua importante participação no movimento independentista irlandês, o que o colocou contra a Coroa e a opinião pública britânicas, que tanto o admiravam por seu labor humanitário anterior. O fato é que, durante a Primeira Guerra Mundial, Casement estabeleceu vínculos estratégicos com a inteligência militar alemã – rival maior da Inglaterra – a fim de conseguir treinamento militar e armamento para os independentistas. Seus planos não saíram como planejara e ele acabou sendo acusado de traição e condenado à morte na Inglaterra.

A conversão ao nacionalismo gaélico de Casement que, em sua juventude, esteve muito identificado com os ideais do Império Britânico de levar civilização e progresso aos países que colonizava, é um dos temas mais interessantes do livro. O rapaz idealista, que chegou à África como um orgulhoso representante de um mundo racional e ilustrado, foi sendo transformado pelo contato direto com uma realidade tão atroz que, pouco a pouco, levou-o a reavaliar todas as suas crenças e convicções. Sua posterior adesão ao nacionalismo radical e à luta independentista armada na Irlanda foi fruto dessa mudança de valores, de sua repulsa categórica a todas as formas de colonialismo, ainda que, obviamente, reconhecesse que a situação irlandesa como parte do Império era bem diferente da
desumana realidade colonial congolesa e amazônica.

Contudo, as múltiplas facetas de Roger Casement não se esgotam aí. Ao que tudo indica – inclusive por um diário pessoal divulgado à época do seu julgamento como parte da campanha difamatória promovida pelos ingleses –, Casement era homossexual. Um dos maiores méritos literários do romance é justamente a recriação ficcional desse aspecto de sua vida, sobre o qual muito pouco se sabe, mas que, no livro, tem uma importância fundamental na construção verossímil de um personagem tão complexo. A operação da inteligência britânica no intuito de desprestigiá-lo na Inglaterra e, principalmente, na Irlanda, alcançou em grande parte seu objetivo, devido obviamente ao estrito moralismo da época, principalmente entre os católicos irlandeses.

Na epígrafe, Vargas Llosa utiliza uma passagem de Motivos de Proteu, do uruguaio José Enrique Rodó: “Cada um de nós é, sucessivamente, não um, senão muitos. E essas personalidades sucessivas, que emergem umas de outras, costumam oferecer entre si os mais estranhos e assombrosos contrastes”. Palavras que caracterizam a extraordinária riqueza e ambiguidades da vida social e íntima de Casement. Em sua pesquisa, Vargas Llosa viajou ao Congo e se surpreendeu com o desconhecimento absoluto das pessoas em relação ao nome de Roger Casement; e o mesmo se dá na Amazônia, onde, fora de círculos acadêmicos muito específicos, ele é também uma figura completamente ignorada.

A RAZÃO CRIA MONSTROS
O sonho do celta – nome tirado de um poema nacionalista escrito pelo próprio Casement –, é um título que sugere muitos significados. A palavra sonho pode ser interpretada simplesmente como sinônimo de ideal ou desejo; contudo, como na frase gravada num famoso desenho de Francisco de Goya, “O sonho da razão produz monstros”, a palavra pode tomar uma conotação mais profunda, que se relacionaria com a capacidade humana de criar valores (razão universal, nacionalismo etc.) e depois esquecer de que na verdade não passam de construções, de grandes narrativas às quais acabamos submetendo-nos como indivíduos e sacrificando a liberdade e nossa consciência.

Essa é a crítica de Vargas Llosa – sempre latente em suas narrativas – ao entendimento da História como disciplina fechada, pretensamente “científica”, pois,para o ficcionista, a história, que deve ser escrita sempre com “h” minúsculo, é “um ramo da fabulação que pretende ser ciência”. Um exemplo muito claro disso pode ser dado justamente por Roger Casement: seus contemporâneos, ingleses e irlandeses, o julgaram de forma cabal, preconceituosa e parcial. Hoje, após a recriação ficcional de sua personalidade em O sonho do celta, somos levados a entender que um herói e um mártir não são um protótipo abstrato e perfeito, mas um homem... E cada homem, como escreveu Walt Whitman sobre si mesmo, “contém multidões”. Também fica claro que, seja pela história ou pela literatura, é impossível chegar a conhecer completamente um indivíduo em toda sua complexidade.


Eduardo Cesar Maia é mestre em teoria literária.



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