segunda-feira, 2 de abril de 2012

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO NO LIMIAR DA REPÚBLICA

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no limiar da República (1889-1912):
momentos decisivos
Hugo Hruby
Doutorando PUCRS/ bolsista CNPq
Resumo: A transição da Monarquia para a República, ao final do século XIX no Brasil, foi
objeto de uma ampla atividade intelectual, refletindo as opiniões díspares dos partidários de
várias correntes, trazendo consigo profundos reflexos na produção historiográfica. O Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, em razão das relações mantidas desde 1838 entre os seus
sócios e o Estado monárquico e por atuar até então como centro autorizado para a produção
de um discurso sobre o Brasil, envolveu-se igualmente nestes debates. As concepções dos
membros do IHGB sobre a História e o papel do historiador encontravam-se intimamente
ligadas a um projeto que fora extinto com a instauração do novo regime de governo. Este
artigo discute de que maneira aquela instituição, entre os anos de 1889 e 1912, portou-se
diante da ruptura política e quais foram as suas implicações na escrita da História do Brasil.
Palavras-chave: Historiografia. IHGB. Brasil República.
Além de se constituir em um momento de ruptura política, o final do século XIX no
Brasil nos apresenta uma miríade de questões pensadas, debatidas e colocadas em prática. Tal
efervescência conduziu inevitavelmente ao embate de projetos, não só nas tribunas, ruas,
livros, jornais e panfletos, mas chegando inclusive à luta armada. Inseridos nestes debates, a
intelectualidade passou a perceber o conflito não só entre a sua geração e a precedente, como
no interior de sua própria época entre concepções estéticas, políticas, científicas e filosóficas
opostas.1 Deste modo, as décadas situadas em torno da passagem do século XIX ao XX
assinalaram mudanças em diversos setores da vida brasileira. Tratava-se de um período de
indefinição e transição caracterizado pelo confronto entre energias díspares voltadas para
referências temporais completamente antagônicas.2
1 VENTURA. R. Estilo Tropical, história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 160.
2 SEVCENKO, N. Literatura como missão, tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2. ed. rev.
,

COPYRIGHT IHGB
2
Dificilmente no passado do país, pôde-se observar tão diversos futuros como nos anos
imediatamente após o 15 de novembro de 1889. O repentino triunfo republicano pôs os
brasileiros em face do problema do futuro nacional, ao mesmo tempo que lhes obrigou a
considerar no passado singularidades que vinham sendo desprezadas. Nestes primeiros anos
da República, os desafios de futuro se impunham a um presente ainda muito sobrecarregado
de passado: as recordações estavam lado a lado com as esperanças.3 Envolto nessas
discussões, o passado foi objeto de disputas mobilizando interesses políticos e de
conhecimento numa rede complexa em que do lugar do poder se construíram saberes a
respeito dos tempos pretéritos.4 Ademais o conflituoso uso pelos recentes e antigos donos do
poder, os estudos históricos no Brasil sofreram novas propostas de remodelação,
principalmente, a partir das influências intelectuais européias.
Dessa forma, como os homens de letras, em especial na cidade do Rio de Janeiro, se
posicionariam nesse momento entre o peso do passado, a instabilidade do presente e a
incerteza do futuro? Para esboçar algumas respostas a tal pergunta, parto da constatação de
que os anos finais do século XIX e os iniciais do XX são extremamente ricos a fim de
pensarmos o fazer história. Enquanto na Europa Ocidental as reflexões historiográficas
sofriam e produziam abalos, não menos sísmicos foram os efeitos dos debates na oficina da
História em terras brasileiras. Tanto lá como aqui, observa-se a reunião de intelectuais para
discutir os novos rumos dos estudos históricos. A partir desse ambiente, é extremamente
profícuo analisar a operação historiográfica
5 no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
diante da tensão entre espaços de experiências e horizontes de expectativas
6 num momento de
profundas e amplas transformações na sociedade brasileira.7
Na análise do lugar, nesses primeiros anos do regime republicano no país, não podem
ser relegadas suas intrínsecas relações com o regime de governo abolido e o monarca deposto.
Além da instituição, cuja produção de um discurso historiográfico está inter-relacionada com
3 FREYRE, G. Ordem e Progresso. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1962. t. 1, p. 32, 127 e t. 2, p. 609.
4 GUIMARÃES, M. L. S. Entre amadorismo e profissionalismo, as tensões da prática histórica no século XIX.
Topoi, Rio de Janeiro, n. 5, p. 184-200, dez. 2002. p. 184.
5 DE CERTEAU, M. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
6 KOSELLECK, R. Futuro passado, contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2006. p. 305-327.
7 Uma análise mais detalhada é feita em: HRUBY, H. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo da
grande obra: a História do Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). 2007. 233 f.
3
o projeto político do Estado monárquico,8 os integrantes de seu quadro social possuíam
importantes cargos na estrutura burocrática do Ancien Régime.9 Por essas fortes ligações, o
Instituto Histórico foi acossado por incertezas e retaliações. Apesar dos discursos de
submissão pronunciados pelos sócios mais atuantes10 e da ampla adesão dos “vira-casacas”, a
instituição passou a ser vista como um “ninho de sebastianistas”.11 Os esforços da diretoria
para minimizar tal epíteto representados principalmente no empenho de um dos seus
presidentes no período, Olegário Herculano de Aquino e Castro (gestão de 29/12/1891 a
10/08/1906), enquadram-se em uma estratégia de negociação e sobrevivência para que o
Instituto não fechasse por mais tempo suas portas. Fato esse ocorrido entre 12 de agosto de
1893 a 15 de janeiro de 1894, quando do recrudescimento da Revolta da Armada na cidade do
Rio de Janeiro, com o conseqüente embate entre simpatizantes do antigo e do novo regimes.
A diretoria do Instituto esmerava-se por deter a febre destruidora das hordas jacobinas, a
fim de que o “domínio do martelo e da picareta” passasse ao largo da instituição.12 Além da
importante questão financeira, que fez com que o quesito “suficiência literária” fosse
atenuado,13 a aproximação com as instâncias de poder da República realizou-se através do
empenho em trazer para o IHGB importantes nomes de políticos vinculados ao governo,
como Ministros, Senadores e Governadores. Tal insistência acabou por render grandes
benesses à instituição14 e reciprocamente o Instituto Histórico disponibilizou seus saberes ao
poder.15 Mostrava sua utilidade acima das diferenças políticas. Como parte dessa estratégia
para resistir aos novos tempos, houve também o estabelecimento de amplos laços com outros
intelectuais, ainda que avessos ao regime instaurado.
Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS, Porto Alegre,
2007.
8 GUIMARÃES, M. L. S. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o
Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, p. 5-27, 1988.
9 GUIMARÃES, L. M. P. Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: O Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (1838-1889). RIHGB, n. 388, p. 459-613, jul./set. 1995. p. 489-564 passim.
10 21ª Sessão Ordinária em 29 de novembro de 1889. RIHGB, t. 52, parte 2, p. 534-535 e 538, 1889.
11 FAZENDA, J. V. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, subsídios para a sua história (1838-1911).
RIHGB, t. 74, parte 2, p. 277-439, 1911. p. 431.
12 16ª Sessão Ordinária em 9 de outubro de 1891. RIHGB, t. 54, parte 2, p. 266-267, 1892.
13 Sobre a criação da classe de sócios beneméritos: 10ª Sessão Ordinária em 4 de julho de 1890 e 11ª Sessão
Ordinária em 18 de julho de 1890. RIHGB, t. 53, parte 2, p. 456-466, 1890.
14 Como, por exemplo, o aumento do subsídio governamental, o custeio nas reformas das instalações, a
publicação gratuita da Revista pela Imprensa Nacional, a franquia postal para as suas publicações e
encaminhamento ao Congresso Nacional do projeto para que fosse reconhecido como de “utilidade nacional”.
15 Principalmente no atendimento de pedidos de órgãos governamentais responsáveis pelos estudos de fronteiras.
4
As incertezas eram muitas pelas seguidas “viradas de mesa” nas disputas políticas. Se
com o passar do tempo o novo regime afirmava-se, apagando as pretensões daqueles que
almejavam o retorno do trono, a própria República não dispensou os serviços de declarados
simpatizantes do antigo regime. A experiência antes de ser descartada, foi incorporada. Em
razão disso, mesmo após 1889, um expressivo número de nostálgicos e atuantes restauradores
adentraram sob os umbrais da Casa da História, como Eduardo Prado, Visconde de Ouro
Preto, Conde de Afonso Celso, João Mendes de Almeida e Carlos Laet. E por mais que se
evitasse trazer para o interior do IHGB o “pó da arena política”,16 críticas foram ferozmente
tecidas contra os governos republicanos. Apesar do esforço da diretoria por delimitar os
espaços, os tumultos do lado de fora acabaram por perturbar a neutralidade e a calmaria do
lado de dentro. Não houve, no limiar da República, um ambiente sereno para que os
historiadores desfrutassem, como apregoavam, de uma “austeridade monástica” e usassem
uma “linguagem fria” nos seus discursos e registros.
Nocauteados ante a rapidez do desmoronamento de um regime a quem fervorosamente
serviam, os membros do Instituto, paulatinamente, tiveram que reavaliar aquele projeto de
escrita da História nacional gestado desde 1838, a fim de que o Instituto Histórico não se
tornasse uma “instituição obsoleta” adstrita a um só credo.17 As suas concepções sobre a
História e as atividades do historiador fragilizaram-se perante a alteridade de reflexões
oriunda da exacerbação da heterogeneidade do quadro social. Após 1889, fez-se necessário
adaptar o plano de Karl Frederick von Martius ou propor novos que orientassem os sócios na
substituição dos outrora “autores monárquicos-constitucionais-unitários”.18 Texto este que, no
século XIX, foi considerado pelos homens de letras como uma espécie de “manual de
introdução aos estudos históricos”.19 As amplas e controvertidas sugestões não puderam ser
unificadas em um novo plano para se escrever a História do Brasil, surgindo pretensos
fundadores de discursividades ao mesclarem antigas e novas concepções. 20
16 20ª Sessão Ordinária em 7 de dezembro de 1900. RIHGB, t. 63, parte 2, p. 526, 1900.
17 Relatório do 1º Secretário. Sessão Aniversária em 21 de outubro de 1906. RIHGB, t. 69, parte 2, p. 451, 1908.
18 MARTIUS, K. F. P. von. Como se deve escrever a História do Brasil. RIHGB, t. 6, p. 389-411, 1844. p. 409-
410.
19 CEZAR, T. Como deveria ser escrita a história do Brasil no século XIX. Ensaio de história intelectual. In:
PESAVENTO, S. J. (Org.). História cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 2003. p. 179.
20 FOUCAULT, M. O que é um autor? Lisboa: Vega, 1992. p. 58.
5
As atividades desenvolvidas na Casa da História passariam a ser historicizadas,
obrigando os sócios a inserirem a própria história numa perspectiva histórica. Imparcialidade
e patriotismo, que caminhavam de mãos dadas, começaram a levantar dúvidas a respeito do
fazer história. Escutar, enxergar, ler e debater com o outro acabaram por gerar entre os
consócios uma “crise de consciência histórica”.21 As sólidas verdades sobre o passado do país
estavam atreladas ao projeto político bragantino. Os sócios-historiadores tinham como mote o
patriotismo que estava sendo rediscutido e visto como maléfico para a tão requerida
imparcialidade do historiador. O amor à Pátria antes de depurar as inexatidões dos
historiadores, como defendia um dos fundadores do Instituto,22 acabava por agravá-las. Por
isso, surgiram novas propostas de remodelação e revigoramento dos estudos sobre o passado
do país, fazendo com que outros documentos fossem prospectados e os já existentes fossem
estudados de forma mais crítica, a fim de preencher as várias lacunas na história brasileira e
destruir as lendas arvoradas.
Tais elementos são importantes pois, conforme os próprios sócios do Instituto, não
havia a pretensão de escrever a História do Brasil, entendida como a grande e definitiva obra
que seria escrita reunindo as várias narrativas. Além de faltarem fontes para tal intento, a
refulgência de ódios, paixões e partidarismos impediam, segundo os membros do Instituto, tal
redação. Somente o tempo traria o apaziguamento das fortes emoções. Num utópico futuro
sem discordâncias poderia ser escrito o grande livro sobre o passado do país: uma História do
Brasil “real e incontroversa”.23 A partir disso, três questões são recorrentes nos estudos
publicados na Revista: a imparcialidade do historiador, o uso dos testemunhos como prova e a
existência de um hiato entre o acontecido e o relatado. As discussões políticas permearam os
debates historiográficos, fazendo com que estas três questões (imparcialidade, testemunhos,
acontecido/relatado), defendidas veementemente como princípios nos discursos dos sócios,
fossem flexibilizadas mostrando-se condizentes ou não com os seus escritos.
Desta forma, determo-nos somente na história da instituição, ou na vida e nas obras dos
homens de letras que compunham seu quadro social, ou nos discursos proferidos nas posses e
sessões comemorativas, ou somente ainda nos documentos e artigos publicados, obscurece-
21 GADAMER, H. G. O problema da consciência histórica. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 17-18.
22 BARBOSA, J. da C. Discurso. RIHGB, t. 1, p. 9-17, 1908 [1839]. p. 13-14.
23 CANDIDO, A. Z. O 4° centenário do descobrimento do Brasil. In: IHGB. Comemoração solene do quarto
centenário do descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1901. p. 208.
6
nos a possibilidade de observarmos as disparidades entre estes quatro conjuntos de
referências. Cada um destes conjuntos não pode ser dissociado dos outros a fim de que possa
ser refeito o campo de tensões e conflitos em que o texto emerge.24 Concordâncias e
discrepâncias aparecem quando confrontamos lugares, concepções e escritos. A força e as
certezas dos discursos pronunciados nas atas das sessões não foram tão pungentes nos artigos
escritos. Diante disso, assim como Brito Broca apontou que nos 1900 a vida literária no Brasil
superou a Literatura,25 ouso dizer, pelo confronto entre lugares, fazeres, dizeres e escritos, que
as discussões historiográficas no IHGB superaram a História.
A partir da leitura da Revista do Instituo, antes e após a queda do regime monárquico,
pode-se constatar algumas continuidades e mudanças no fazer história, entendendo que não
houve rupturas, no sentido de modificações profundas, na organização do IHGB e na
produção de seus consócios. Como um lugar de preservação da tradição, seus guardiões
esmeravam-se em mostrar nos seus discursos o não antagonismo entre passado e presente.
Consagrando o passado, a produção do Instituto não repelia as contribuições do presente e
encaminharia o futuro da Pátria. A historia magistra vitae, “a mestra da vida”, continuaria a
ser um princípio que justificava e orientava as investigações, os documentos e artigos
continuariam a contribuir para a consecução do grande livro sobre a História do Brasil e o
Instituto continuaria sob o mecenato do governo. No entanto, o passado construído desde
1838 pela historiografia produzida no IHGB teve seus maiores representantes detratados (D.
João VI e D. Pedro I, por exemplo) e a importância de determinados episódios minimizados
(como a Independência nacional), ao passo que outros grandes homens estavam sendo
resgatados (Tiradentes e os “mártires” da Confederação do Equador) e o povo, por mais
abstrato que fosse seu entendimento e indefinida sua abrangência, surgia como fator atuante
em acontecimentos libertadores de cunho republicano e nacional outrora considerados como
meras contestações locais, despidas de projetos políticos consistentes.26
Mesmo alçado ao rol dos estudos históricos, o povo teria seus desejos canalizados e
satisfeitos por líderes com ideais democráticos. A instauração da República, não obstante a
24 GUIMARÃES, M. L. S. Apresentação. In: HARTOG, F. O século XIX e a História, o caso Fustel de
Coulanges. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. p. 13-14.
25 BROCA, B. A vida literária no Brasil, 1900. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. p. 351.
26 Por exemplo, os artigos: CUNHA, E. Da Independência à República. RIHGB, t. 69, parte 2, p. 7-71, 1908;
ARARIPE, T. de A. Movimento colonial da América. RIHGB, t. 56, parte 2, p. 91-115, 1894 e AZEVEDO, M.
D. M. de. A Independência do Brasil. RIHGB, t. 60, parte 2, p. 97-104, 1897.
7
“vontade nacional” e a “inevitabilidade das leis”, se fez pela ação de alguns egrégios cidadãos
exaltados em um incipiente panteão republicano, tais como Benjamin Constant e Deodoro da
Fonseca.27 Seja através do povo ou dos dignos representantes da “aristocracia do gênero
humano”,28 estava também em discussão a influência dos indivíduos na direção geral dos
acontecimentos. Apesar de alguns defenderem que somente o aspecto coletivo era passível de
manifestações regulares, a existência das leis acabaria por limitar a influência dos homens,
individual ou coletivamente, nos acontecimentos pretéritos. A própria inconstância do
comportamento humano era motivo para que outros sócios descartassem a existência de leis
históricas. Mesmo para aqueles que acreditavam nelas e trataram de legitimar,
nomologicamente, suas opções políticas, as expectativas eram distintas: ao passo que uns,
como o sócio Aristides Augusto Milton, viam a República como inevitável, fatal, fruto de um
longo processo de evolução, outros, como o Conde de Afonso Celso, trataram de defender a
inevitabilidade da restauração e criticar o novo regime como uma involução.
Na missão maior do Instituto, que era de auxiliar os pósteros na escrita da História do
Brasil, os sócios acabaram por agir, muitas vezes, como “advogados do passado”,
apresentando provas a favor ou contra os réus desse pretérito (muitos dos quais ainda estavam
vivos), outorgando aos futuros historiadores a tarefa de um julgamento definitivo no Tribunal
da História. Nessa colaboração, a desconfiança atingiu aquele passado construído sob a
sombra do trono. Alguns falaram em remodelação, novo impulso, novas verdades. Além da
busca de novos documentos ainda não coligidos, aqueles garimpados desde 1838 e os estudos
deles decorrentes deveriam ser purificados das lendas e incorreções. Apesar de cinqüenta anos
de serviços no levantamento de fontes, o passado do país mostrava-se aos sócios do Instituto
como um grande quebra-cabeças com muitas peças faltantes.
Enquanto um novo ímpeto heurístico estava ocorrendo, o passado já desanuviado sofria
ressignificações. Os espaços de experiência foram readequados através de futuros passados
descartados por uma historiografia que até então afirmava a incontestabilidade do regime
monárquico. Novas lições viriam do passado. Novas tradições foram inventadas e outras
reelaboradas para legitimar o novo regime. E nessa luta, uma arma muito utilizada foi,
conforme já apontei, o uso dos testemunhos. Para o passado mais distante, usavam-se os
27 ARARIPE, T. de A. Três cidadãos beneméritos da República. RIHGB, t. 60, parte 1, p. 385-396, 1897.
28 Discurso do Presidente. Sessão Aniversária em 15 de dezembro de 1898. RIHGB, t. 61, parte 2, p. 733, 1899.
8
registros testemunhais daqueles que viram os episódios narrados; ao passo que, sobre os
governos de D. Pedro II e os republicanos, os sócios-historiadores, através de escritas autoreferenciais,
29 davam seus próprio testemunhos. Porém, mais do que usar o privilégio do
olhar para ver os outros, estes relatos testemunhais foram usados para que os sóciosburocratas
explicassem seus próprios motivos por aquilo que fizeram ou deixaram de fazer
principalmente quando ocupavam cargos nos diferentes gabinetes governamentais.30 Em
razão disto, é constante a dificuldade dos membros do IHGB no registro dos acontecimentos
recentes sem que eles próprios aparecessem nas linhas que redigiam.
Antes de confeccionarem estudos sobre o governo do protetor perpétuo (D. Pedro II) e
dos presidentes republicanos, coligindo novos documentos e confrontando os já levantados, os
sócios trataram de “fazer” tais documentos, colocando no papel suas experiências. Além da
peculiaridade de ter em seu quadro social expressivos dirigentes de ambos os regimes, as
discussões historiográficas no Instituto Histórico baseavam-se em grande número de
documentos oficiais muitos dos quais dos arquivos particulares dos seus sócios, incluindo os
classificados como sigilosos. Compunham-se em mais um exemplo de argumento de
autoridade para provar a “verdade” do que havia sido registrado sobre o passado do país. No
entanto, no amplo quadro de sócios do Instituto, somente alguns ousaram ou puderam ter suas
falas e trabalhos publicados na Revista.31
As presenças de Capistrano de Abreu, Oliveira Lima, Sílvio Romero e Rui Barbosa nas
páginas da Revista foram mínimas. Outros, como Joaquim Nabuco, Visconde de Ouro Preto e
seu filho Afonso Celso, a despeito do tom polêmico dos seus discursos reproduzidos na
Revista, não tiveram suas contribuições registradas em artigos publicados até 1912. Soma-se a
esses o Visconde de Taunay cujos ásperos relatos fizeram-se fora da Revista. Contudo, tal
falta nos possibilita enxergar, através da Revista do Instituto, outros historiadores
considerados como “marginais” pela historiografia e suas contribuições ao desenvolvimento
dos estudos históricos no Brasil, como os médicos Alfredo do Nascimento Silva e César
Augusto Marques, o matemático e filósofo Antônio Zeferino Cândido e especialmente os
juristas Tristão de Alencar Araripe e Pedro Lessa.
29 GOMES. A. de C. Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 10-15.
30 O sócio Manuel Francisco Correia é um caso exemplar.
31 Cabe assinalar a possibilidade de ação de uma Comissão de Censura e o receio das coisas ditas através do uso
da Arca do Sigilo.
9
Pelo exposto, se a polêmica adentrava na Casa da História, mesmo com a postura
“moderadora-conciliadora” da sua diretoria, tal nível de debates não me permite restringir a
produção do conhecimento histórico, naquele período, de forma dicotômica: monarquistas
versus republicanos, antigos versus modernos, saudosistas versus futuristas, etc. As opções
políticas e historiográficas foram superiores a essa polarização, simplificadas muitas vezes
pela adjetivação em favor de um destes pólos. O exemplo mais palmar que foge ao
maniqueísmo historiográfico é a abordagem da imagem de D. Pedro II pelos sócios do
Instituto. Ao longo dos discursos e dos escritos transparece o intuito de separá-lo do regime
deposto. As virtudes do monarca extrapolariam o trono que representava. O respeito ao
falecido Imperador também era compartilhado pelos novos integrantes da República. No
entanto, a força dos discursos de gratidão ao monarca não correspondeu à timidez dos estudos
sobre o seu governo.
O Instituto, através de sua Revista, eximiu-se de fazer frente à uma historiografia que
denegria as contribuições do monarca e de seu governo, preferindo contrapô-la com outros
instrumentos de perpetuação de sua memória: discursos, cerimônias, pinturas, bustos,
coleções, etc. Almejava-se deixá-lo longe das contendas historiográficas. De protetor do
Instituto, D. Pedro II passou a ser seu protegido. Contudo, tão certo como alguns sócios
“mosqueteiros do rei” esforçaram-se por deter o “braço iconoclasta” dos radicais republicanos
sobre o passado registrado, alguns sócios não tardaram em utilizar a pena como “martelo e
picareta” na destruição de verdades construídas desde 1838. Mesmo assim, passados os
momentos turbulentos de instauração do regime republicano, o IHGB pôde continuar, de
forma mais tranqüila, com seus afazeres em prol dos estudos históricos, ainda que com
restrições.
Ao contrário dos seus Estatutos de 1890 e anteriores, os novos de 1906 estabeleceram
que o Instituto deixaria de se comprometer com a criação de sociedades filiais, restringindose,
apenas, a se corresponder com elas. A partir daí, ficava cada vez mais difícil sistematizar
as várias histórias em um grande livro de História do Brasil. O IHGB deixava de ser uma
cidade letrada privilegiada diante das várias estabelecidas na República das Letras.32 À busca
de uma homogeneização de visão de Brasil pelas elites, perseguida pelo Instituto no decorrer
do século XIX, contrapõe-se a fragmentação. Porém, se os letrados nos diferentes Estados,
10
que compunham a República Federativa, procuravam fazer eles próprios suas histórias através
da fundação dos Institutos Históricos regionais, o IHGB localizado no centro da estrutura
governativa do país ainda teria utilidade para os projetos políticos em disputa no limiar da
República. O conhecimento histórico era exaltado pelos sócios do Instituto como elemento
fundamental na constituição da Nação em formação. Dentre todos os envolvidos na
construção de uma grande Pátria, destacavam-se, segundo eles, aqueles que no “silêncio dos
gabinetes” escreviam as páginas da História. Mesmo longe do trono que tanto contribuiu para
a sua existência, o IHGB continuou a imprimir a sua marca nos estudos históricos brasileiros
século XX adentro.
E se a fundação dos primeiros cursos para formar historiadores no país, nas décadas de
1930, nos faz pensar numa nova fase, em que os anciãos do Instituto Histórico e seus
alfarrábios foram esquecidos, ledo engano. Muitos dos professores para essas faculdades
foram recrutados entre os membros do Instituto Histórico. Mesmo após falecerem, seus
trabalhos continuariam a servir de fontes para os novos historiadores. Ainda hoje o IHGB na
cidade do Rio de Janeiro constitui-se num expressivo espaço de pesquisas e discussão,
editando periodicamente sua Revista. E neste periódico, apesar das várias remodelações em
seu leiaute, há uma epígrafe em latim que permaneceu desde os tempos pretéritos,
sobrevivendo aos bons e maus momentos: Hoc facit ut longos durente bene gesta per annos;
Et possint será posteritate frui. Esta frase mostra claramente a posição do Instituto Histórico
como articulador temporal entre passado, presente e futuro: “aqui se faz que os bons gestos
permaneçam por anos; e que possam ser usufruídos pela posteridade”. Reitera-se, assim, o
lugar da tradição.
As abordagens de temas e reflexões comuns no Instituto Histórico, alcunhado como a
Casa da História, exemplificam, de certa maneira, as palavras de Henri-Irenée Marrou
quando diz que o historiador não avança sozinho ao encontro do passado, ele o abordará como
integrante de um grupo. A questão que ele vai formular, exprimirá não só uma preocupação
exclusiva sua, mas também uma exigência comum a todos aqueles do seu meio coletivo.
Segundo Marrou, “a mais pessoal das obras será amiúde aquela em que, sem querer, o
historiador responderá de fato, ao procurar a solução para o seu problema, à questão que mais
32 RAMA, A. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 41-53.
11
importava aos homens do seu tempo.”33 Deste modo, o esforço coletivo dos sócios do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, por mais díspar que tenha sido, através da
pesquisa, reunião e organização de documentos, bem como das discussões e dos artigos
publicados, intentava fornecer aos futuros historiadores o que eles, como “obreiros diligentes
e zelosos”, acreditavam ser as questões mais importante naquele tempo, a fim de auxiliar a
escrita da História do Brasil.
Referências
BROCA, B. A vida literária no Brasil, 1900. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
CEZAR, T. Como deveria ser escrita a história do Brasil no século XIX. Ensaio de história
intelectual. In: PESAVENTO, S. J. (Org.). História cultural: experiências de pesquisa. Porto
Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2003. p. 173-208.
DE CERTEAU, M. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
FOUCAULT, M. O que é um autor? Lisboa: Vega, 1992.
FREYRE, G. Ordem e Progresso. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1962. 2 t.
GADAMER, H. G. O problema da consciência histórica. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2003.
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