segunda-feira, 16 de abril de 2012

INDIOS PAIAGUÁS: GUERRA DE MOVIMENTOS NAS AMÉRICAS

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Canoas e canoinhas paiaguá: guerra de movimentos na América
Portuguesa
Saulo Álvaro de Mello1
Wagner Batista Pinheiro2
Canoeiros sob representações
As reflexões de Edward Said exibidas na obra Cultura e Imperialismo sobre os
métodos institucionais e culturais empregados para estabelecer fronteiras hierárquicas
entre o Oriente e o Ocidente, ajudam a interpretar as narrativas relativas aos nativos de
Mato Grosso como parte do vasto conjunto de representações arbitrárias e úteis,
construídas pelos europeus para impor a identidade cultural e garantir as vastas
possessões coloniais nas Américas. Além da literatura de viagens do século 19, Said
destaca outras representações pertinentes:
[...] por trás da ficção, da historiografia e do discurso filosófico do Ocidente

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dessa época... há, [em primeiro lugar] a autoridade do observador europeu -
viajante, mercador, estudioso, historiador, romancista. A seguir, há a
hierarquia de espaços segundo a qual o centro metropolitano e, aos poucos, a
economia metropolitana são vistos na dependência de um sistema
ultramarino de controle territorial, de exploração econômica e de uma visão
sócio-cultural3.
O principal produto das reflexões de Said sobre a exterioridade é a
representação, constituída de estilos, figuras de linguagem, argumentos discursivos,
cenários, mecanismos narrativos, circunstâncias históricas e sociais. Com base na
premissa de que os lugares por onde transitaram colonizados e colonizadores não são
descrições fiéis da realidade - mas sim mera representação do real - passamos a pensar o
universo dos nativos canoeiros.
A região conhecida hoje como Pantanal mato-grossense passou a ser conhecida
partir do século 16, quando os navegadores a serviço da Espanha, Juan Díaz de Solis e
Sebastião Caboto subiram e reconheceram rio Paraguai. Exploradores, como Juan de
Ayalas, Nuflo Chavez; Ruy Dias de Guzmãn; Hernando de Ribera; Ulrico Schmidl,
entre outros, introduziram a planície pantaneira no imaginário europeu4.
O navegador Alvar Nuñes Cabeza de Vaca, também deixou em seus relatos,
sobretudo em Naufrágios e Comentários, importantes relatos sobre o Pantanal e alguns
de seus primitivos moradores. Descreveu roças, caçadas, pescarias, vestimentas,
1 Mestre em História/ UFGD – OBJETIVO/Jardim-MS
2 Filosofia/UFSM - EE Antonio Pinto Pereira/Jardim-MS
3 SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras. 1995. p. 95.
4 COSTA, Maria Fátima. 1999, op. cit. p. 22-36; SILVA. O antemural de todo o interior do Brasil – a
fronteira possível. Revista Território e Fronteiras, Cuiabá, v. 3, n.2, p. 79-106, jul. - dezembro 2002.
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ornamentos e pinturas no corpo dos naturais que habitavam aquele espaço. Observou e
descreveu a integração do homem em ambientes alagadiços, bem como seu
comportamento em relação ao ciclo das águas. Nessa aventura Cabeza de Vaca trocou
presentes com o gentio paiaguá no intento de conseguir deles a revelação da rota que o
levasse às Minas de Prata do Peru5.
As primeiras incursões castelhanas na América Meridional foram também
relatadas por Rui Diaz de Gúzman6 em 1528, com destaque para Sebastião Caboto que
subiu o Rio Paraguai e deparou-se com o gentio paiaguá. Em seus relatos Max
Schimidt7 presta conta sobre os primeiros contatos do gentio canoeiro com o
colonizador. Sebastião Caboto, ao navegar o Rio Paraguai se defrontou com os Agaces-
Payaguá, em 1528, e Juan de Ayolas, com os Sarigué-Payaguá em 1537. Estes povos
delimitavam sua ação entre o extremo sul do rio Paraguai, abaixo de Assunção, e o Alto
Paraguai, no Porto de Candelária.
Sem isenção de astúcia o europeu percebia e classificava o universo dos nativos,
buscando elementos capazes de subordiná-lo. Os relatos dos primeiros colonizadores
quase sempre traduziam conhecimentos oblíquos sobre eles oferecendo ao Antigo
Continente elementos significativos de dominação sócio-cultural. Conteúdos
apreendidos pelos sentidos, pela imaginação, pela memória ou pelo pensamento eram
escritos ou cuidadosamente construídos para destacar a relação desigual que marcou
historicamente povos ameríndios e europeus durante a fase embrionária do capitalismo.
Segundo a pesquisadora Ligia Osório Silva, do Núcleo de Estudos Estratégicos da
UNICAMP, “[...] esta forma de pensamento totalitário, [...] toma conjuntos humanos
distintos, complexos, heterogêneos, formados por países, povos, e nações históricas
individualizadas e procura lidar com eles na forma de uma totalidade homogênea” 8.
Canoas ameríndias
Dos relatos dos monçoeiros interessa-nos mais de perto, as anotações referentes
às canoas dos ameríndios, chamadas pelos portugueses de canoinhas, usadas para
5 CABEZA DE VACA. Naufrágios e Comentários. Tradução Jurandir Soares dos Santos. Madri: Anaya y
Oronoz, 1992.
6 COSTA, 1999, op. cit. p. 36; GUZMAN, Ruy Diaz de. Anais do Descobrimento Povoação e Conquista
do Rio De La Plata. Campo Grande/MS: Governo de Mato Grosso do Sul, 2009 (Coleção documentos
para a história de Mato Grosso do Sul).
7 SCHMIDT, MAX. Los Payaguá. Revista do Museu Paulista, Nova Série, v.3, São Paulo, USP, 1949, p.
129-270.
8 SILVA, Ligia Osorio. Edward Said e o imperialismo cultural. Campinas: Link: unicamp.br, 11 Dez
2003. (Homenagem ao intelectual palestino-americano Edward em cerimônia realizada no auditório do
Clube Homs em 11/12/2003 em São Paulo).
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pesca, caça e reconhecimento, e as canoas de guerra, utilizadas nas batalhas e
transporte de tropas e cargas.
O conquistador Alvar Nuñes Cabeza de Vaca, ao registrar sua travessia pela
região da baixada do rio Paraguai em 1453, achou admirável a pequena embarcação sem
quilha conduzida com destreza por seus remadores: “Estas canoas, porém, são muito
velozes e eles são hábeis remadores, andando em enorme velocidade, tanto rio abaixo
como rio acima. Nem mesmo um bergantim com dezenas de remos consegue
acompanhá-los” 9.
A velocidade das canoas paiaguá, superior às embarcações dos luso-brasileiros,
foi também relatada por João Antonio Cabral Camello, por ocasião do ataque a monção
do Ouvidor das Minas de Cuiabá Antonio Álvares Lanhas Peixoto em 1727: “Velozes,
navegavam em uma hora o que os brancos faziam num dia (sic) pelo fato de terem
melhores canoas e remeiros” 10.
A velocidade das canoas paiaguá, em que pese à destreza dos remadores, pode
também ser atribuída à madeira usada na sua fabricação, conhecida como timbó. Os
nativos recorriam a essa madeira leve e flutuante e usavam a técnica básica de remarem
em pé sobre a popa. Nesse caso, corpo e remo eram usados para dar maior propulsão às
canoas monóxilas, imprimindo-lhe velocidade maior que as embarcações a vela, a
exemplo das sumacas e os bergantins, comuns nos rios mato-grossenses, após a chegada
dos colonizadores.
A propulsão de canoas com ajuda de remos era utilizada pelos remadores desde
a descoberta das minas de Cuiabá. Ao longo do tempo, tanto essa técnica de remagem
como as pequenas embarcações foram gradativamente substituídas por barcaças e
batelões. Entretanto, por muito tempo as canoas monóxilas foram usadas como meio de
transporte nos rios de Mato Grosso. Tampouco os remeiros deixaram de utilizar as
técnicas dos paiaguá, mesmo com a desarticulação da navegação monçoeira do sul, no
século 1911.
Sobre a agilidade e velocidade das canoas dos paiaguá, consta nos Relatos
Monçoeiros, Notícia 8ª Prática, que eram tão leves que os nativos ao se verem
9 CABEZA DE VACA. Naufrágios e Comentários. Tradução Jurandir Soares dos Santos. Madri: Anaya y
Oronoz, 1992.
10 TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas. Relatos Monçoeiros. 3. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1975, t. III. p. 191.
11 REYNALDO, Ney Iared. Comércio e navegação no Rio Paraguai (1870-1940). Cuiabá: UFMT, 2004.
p. 69.
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perseguidos lançavam-se ao rio e por baixo delas as reviravam12. Revirar a canoa
significava estratégia de luta, que envolvia a arte de planejar e executar movimentos.
Nessas operações os canoeiros se protegiam dos tiros desferidos pelos luso-brasileiros e
castelhanos. A canoa transformava-se num escudo eficaz, pois os nativos ficavam com o
corpo mergulhado na água apenas com a cabeça dentro da embarcação como se fosse
uma carapaça.
Nem todos os gentios embarcadiços remavam em pé ou usavam canoas
monóxilas. Os porrudos13 usavam canoas de casca de jatobá e remavam sentados. Estas
embarcações embora de fabricação mais simples do que as de um lenho só tinham uma
inconveniência – quando afundavam não retornavam mais à margem. As manobras de
guerra dos paiaguá davam poucas chances de contra-ataques. Segundo o Almirante
Antônio Alves Câmara, os nativos costumavam afundar as canoas de casca, para ocultálas
dos inimigos. Essa estratégia era aplicada principalmente às canoas de casca de
jatobá, que podiam ficar submersas sem apodrecerem14 .
Designado pelo Barão de Batovy, Presidente da Província de Mato Grosso, para
realizar uma expedição exploratória ao Rio Xingu, em 1885, o Capitão Francisco de
Paula Castro, na companhia do naturalista Carlos Von den Stein, registrou o uso de
canoas de casca de jatobá durante a travessia do rio Paranatinga, afluente do Rio
Tapajós 15.
De acordo com o Almirante Antonio Alves Câmara, a utilização de canoas de
casca, também foi observada pelos membros da expedição de Villegagnon16, na Baía da
Guanabara em 1555, por ocasião da tentativa dos franceses de estabelecerem uma
fortificação no litoral do Rio de Janeiro. Mediam entre cinco a seis braças,
aproximadamente onze a treze metros de comprimento, e noventa centímetros de
largura.
Singularidades na fabricação das canoas
Desde as canoas de Casca de Jatobá, paxiúba ou jutaí, usadas nos rios matogrossenses
ou amazônicos, às canoas monóxilas, utilizadas nas monções como
12 TAUNAY, 1975. p. 191.
13 Também chamados bororos. Viviam nas cercanias do Rio São Lourenço, conhecido nas antigas cartas
de Mato Grosso como Rio dos Porrudos. Cf. SOUZA, Lecio Gomes de. História de uma Região:
Pantanal e Corumbá. São Paulo: Resenha Tributária, 1973.
14 CÂMARA, Antonio Alves. Ensaio sobre as construções navais indígenas do Brasil. São Paulo:
Nacional, 1977.
15 Revista O Archivo. Cuiabá: Fundação Julio Campos. Coleção Memórias Históricas. Ano I, v.3, 1905.
p. 27-36.
16 Nicolau Durand de Villegagnon, comandante da esquadra francesa que aportou no Rio de Janeiro em
1555.
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transporte de passageiros, cargas, e, como meio de defesa, transporte de tropas e peças
de artilharia, houve inegavelmente influência indígena nessas construções.
A fabricação das canoas de casca, consistia em retirar a casca inteira, seja da
árvore em pé usando andaimes, ou derrubadas. As extremidades eram amarradas com
cipó e aparadas. Atravessavam pedaços de madeira para abrir o bojo e impedir que
fechassem quando secas. A seguir, colocavam-na em uma bancada e ateavam fogo
embaixo de forma a curá-las, para evitar que apodrecessem pela ação das chuvas 17.
As canoas de casca eram utilizadas pelos nativos do litoral do Rio de Janeiro,
para atacar os navios portugueses ou franceses, de acordo com alianças realizadas.
Representaram importante papel na defesa da cidade de São Sebastião.
Já as canoas dos Tamoios se pareciam com as enormes monóxilas usadas nas
monções e as técnicas de guerra se assemelhavam a dos paiaguá, conforme destacou o
Almirante Antônio Álves Câmara:
Para esse efeito [guerra contra os portugueses] fabricavam canoas de guerra
de grandeza notável, destroncando as matas, naquela paragem imensa,
viçosa, e que sobem as nuvens, e cavando aqueles corpos grossos. Curados
do sol, e dos anos, faziam embarcações fortíssimas, capazes as maiores de
cento e cinqüenta guerreiros, todos remeiros, e toldos soldados, porque com
o mesmo remo em punho de uma parte, e outra da canoa, sustentam o arco e
despedem a seta com destreza grande, 18.
Os nativos da planície pantaneira, também utilizavam canoas de casca, canoas de
guerra e canoinhas, para caça, pesca, reconhecimento e guerra de movimentos. Menores
e mais leves, eram utilizadas pelos luso-brasileiros, principalmente nas missões de
reconhecimento.
Forte Nossa Senhora da Conceição
A nomeação de D. Antonio Rolim de Moura, como Capitão-General da recém
criada Capitania de Mato Grosso em 1748, atendia aos interesses da Coroa Portuguesa
em relação à ocupação, defesa, povoamento, comércio, e navegação das raias de Mato
Grosso. Para cumprir essa tarefa, o Governador trouxe soldados, oficiais civis e da
justiça, necessários à implantação do aparato administrativo-jurídico-militar. Entre as
providências imediatas estavam à organização dos regimentos militares para sustentar a
navegação do Guaporé e garantir o domínio luso. Além disso, o primeiro capitãogeneral
tratou de construir e guarnecer as fortificações militares na região lindeira.
17 CAMARA, op. cit. p. 67.
18 CÂMARA, op. cit. p. 55.
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Em 1752, Rolim de Moura fundou à margem direita rio Guaporé, Vila Bela da
Santíssima Trindade. Como medida defensiva, criou um destacamento militar no Sítio
das Pedras, a Guarda de Santa Rosa, transformando-a no Forte Nossa Senhora da
Conceição. A decisão de fundar uma vila no distrito de Mato Grosso, já tinha sido dada
por Provisão Régia em 5 de agosto de 1746. Caberia ao Governador de São Paulo D.
Luis Mascarenhas executá-la. Sua fundação somente em 1752 demonstra as
dificuldades de comunicação com Mato Grosso dado aos perigos e aos altos custos de
uma expedição para concretização do projeto.
O Forte Nossa Senhora da Conceição19 também foi um empreendimento de
Rolim de Moura. O Capitão-General ocupou a antiga aldeia de Santa Rosa em 1753,
que havia sido restituída aos portugueses pela demarcação do Tratado de Madri. Nesse
local, estabeleceu um pequeno posto de vigilância - Guarda de Santa Rosa. Esse posto
fortificado visava o estrito cumprimento das Instruções recebidas por Rolim de Moura -
a ocupação da margem direita do Rio Guaporé.
Em Carta de 11 de dezembro de 1756 a Diogo de Mendonça Corte Real, Rolim
de Moura, dá notícia da entrada do Padre espanhol Raimundo Laines em terras
portuguesas, com objetivo de buscar nativo e colher cacau, Agora me chega à notícia de
que pretendem os padres espanhóis continuarem semelhantes entradas (PAIVA, 1982,
v.3, p. 4-3).
A fim de embaraçar a repetição desses atos, Rolim de Moura, aparelhou duas
canoas de guerra, guarnecida por soldados dragões, sertanistas e pedestres20, armadas
com duas peçinhas de amiudar, bacamartes e farta munição. As medidas defensivas
adotadas pelo Capitão General, contiveram, pelo menos naquele momento, as investidas
dos castelhanos. A fim de evitar novas investidas dos padres espanhóis, foi criado um
destacamento para policiar as raias entre as duas coroas – Destacamento das Pedras.
19 O Presídio de Nossa Senhora da Conceição localiza-se no atual município de Costa Marques – RO.
Construído a margem direita do Rio Guaporé, cerca de dois quilômetros a jusante do Forte Príncipe da
Beira. Em 1760, os espanhóis atacam a Guarda de Santa Rosa, levando Rolim de Moura, a transformá-la
num fortim de formato pentagonal, cercado de uma paliçada de madeira. Ver: BORZACOV, Yêdda
Maria Pinheiro. Forte Príncipe da Beira. Governo de Rondônia/secretaria de Educação e Cultura.
Calendário Cultural 1981/1985. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1981. p. 65-72; CORRÊA
FILHO, Virgilio. As raias de Mato Grosso. Volume IV Fronteira Occidental. São Paulo: Seção de obras
do Estado de São Paulo, 1926. p. 46-8.
20 As Companhias de Pedestres eram formadas por bastardos, filho de branco com índio, e caribocas,
filhos de negros com índios, preferidos por serem excelentes rastejadores. Geralmente andam descalços.
Usam como armamento uma espingarda sem baioneta, uma bolsa e uma faca de caça. Ver. Carta de
Antonio Rolim de Moura, a, D. José I. Vila Bela, 25 de fevereiro de 1757. In: PAIVA, 1982, v. 3, doc.
087, p. 47..
7
Em carta datada de dois de julho de 1758, endereçada ao Secretário de Estado
da Marinha e Ultramar, Tomé Joaquim da Costa Corte Real, Rolim de Moura,
informava a observância pelos padres espanhóis das fronteiras lusas, “Nas últimas
[notícias] que escrevi a Vossa Excelência, lhe dizia, como os padres espanhóis, não
haviam passado mais a nossa banda, mas haviam protestado não passar; o que tem
observado à risca; [...]” (PAIVA, 1982, v.3, p. 136). O aparente respeito aos limites
lusitanos, por parte dos espanhóis, levou o Capitão General a retirar a guarda do Sítio
das Pedras, pela despesa que fazia.
Diante de nova ameaça aos domínios lusos, Rolim de Moura escreveu a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Governador da Capitania do Grão Pará, sua
intenção de ocupar a Missão de Santa Rosa. Para justificar essa ocupação, expôs seus
motivos: a) demora na demarcação por parte dos espanhóis a fim de conservarem sua
posse; b) ocupação pelos espanhóis de ambas as margens do Rio Guaporé; c) pretexto
dos padres espanhóis de entrarem na missão para coibir ataques as suas canoas21
(PAIVA, 1982, v.3, p. 150-7).
Como estratégia de ocupação, os espanhóis fundaram a partir de 1675, missões
jesuítas nas províncias de Moxos e Chiquitos. O estabelecimento de missões
espanholas, a oeste de Mato Grosso, sobretudo, ao longo do Rio Guaporé, foi motivo de
conflitos entre as duas coroas ibéricas. A fundação da Missão de Santa Rosa em 1743, a
margem direita do Rio Guaporé, causou preocupação entre as autoridades portuguesas,
através delas poderiam ter acesso às minas de ouro do Vale do Guaporé22 (JESUS,
2008).
Como providência para conter as incursões castelhanas, Rolim de Moura se
aprestou de armas, munições, fardamento para a Companhia de Dragões, e,
encomendou no Grão Para, aos cuidados de Teotônio da Silva Gusmão23, peçinhas de
amiudar24, por serem ‘[...] de grande serviço, assim por poder armar-se para amiudar,
como por serem capazes de montar-se em qualquer canoa’ (PAIVA, 1982, v.1, p. 12).
21 PAIVA, Ana Mesquita Martins de. et al. Antonio Rolim de Moura. Correspondências. Cuiabá: UFMT,
1982. 3, v.
22 JESUS, Nauk Maria de. Disfarces e Cautelas: O Governo de Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e
Cáceres e o contrabando na fronteira oeste da América Portuguesa. In: Anais do II Encontro Internacional
de História Colonial. Mneme. Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v.9. n. 24, set/out. 2008.
23 Teotônio da Silva Gusmão, Juiz de Fora da Vila Bela de Santíssima Trindade.
24 Peçinhas de amiudar - inventada por Frederico Jacob Weinholtz, contratado como Instrutor de
Artilharia em 1736 pela Coroa Portuguesa, para introduzir novas peças de artilharia nas forças militares
de Portugal. Essa peça de artilharia disparava até vinte balas por minuto, lançando uma espécie de
granada que se amiudava, foi utilizada pelos portugueses na índia em 1740. No Brasil, o Governador do
Pará Francisco Xavier de Mendonça Furtado em carta ao irmão (Conde de Oeiras e futuro Marquês de
8
A decisão de ocupar a Missão de Santa Rosa foi informada a Francisco Xavier
de Mendonça Furtado, bem como o reforço que a Capitania do Grão Pará, deveria
prestar a Mato Grosso em homens e munição de guerra. Rolim de Moura decidiu
antecipar a ocupação de Santa Rosa, por não conseguir ocultar suas intenções e nem
despistar os espias espanhóis (PAIVA, 1982, v.3, p. 184).
A ocupação da Missão de Santa Rosa foi uma ação premeditada de Rolim de
Moura seguindo orientações da Coroa Portuguesa, conforme se depreende da sua
comunicação com o Grão Para, e os preparativos militares para sua execução. Porém, o
ciclo das águas atrasou a ação militar. O Sítio das Pedras deveria ser ocupado em abril
de 1759, e a Missão de Santa Rosa em julho do mesmo ano. Para o primeiro, usaria até
12 homens, e o segundo até 40 homens. A informação sobre a estratégia de ocupação
da Missão de Santa Rosa, o número de homens, o período de realização e os reforços do
Grão Pará, foram também informados ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar,
em 23 de dezembro de 1758 (PAIVA, 1982, v.3, p. 211-21).
No Diário Exato do que se tem passado nestas fronteiras de Mato Grosso, escrito
pelo Ajudante de ordens de Antonio Rolim de Moura, o Capitão de Dragões Manoel da
Ponte Pedreira, quando em 30 de agosto de 1759 saiu de Vila Bela para ocupar o Sítio
das Pedras, é relato precioso dos preparativos da ação militar em direção a Missão de
Santa Rosa. Nesse documento, é descrito a localização do Sítio das Pedras e da Missão
de Santa Rosa, os efetivos militares para a respectiva ocupação, os armamentos
utilizados e a intensa movimentação de tropas espanholas e portuguesas. Dá notícia
também das principais batalhas travadas pelas duas coroas pelo controle e posse da
região. O relato vai desde a saída de Vila Bela em 30 de agosto de 1759, até a assinatura
do Tratado de Paz em 10 de fevereiro de 1763 25.
A fim de ocupar o Sítio das Pedras e a Missão de Santa Rosa, conforme
anunciou por carta a Francisco Xavier de Mendonça Furtado em 9 de dezembro de
1758, Rolim de Moura, destacou uma guarnição para aquartelar no referido
Pombal) datada de 9 de novembro de 1752, solicitou o envio de peçinhas de amiudar para prevenir
qualquer ataque por parte dos paiaguá. Era assentada nas canoas artilhadas perto da proa, em uma
carretinha sobre um pranchão, onde podia fazer fogo para todos os lados. Antonio Rolim de Moura,
embora soubesse fabricar espoletas usadas para disparo por conhecer o Segredo de Alpoim, não as
fabricava na capitania em virtude de não haver a palamenta necessária.
25 O Tratado de Paz de Paris, aludido pelo Capitão de Dragões no Diário Exato... refere-se a um acordo
assinado entre os monarcas de Portugal, Espanha, França e Inglaterra, dando fim a Guerra dos Sete Anos.
Na América Meridional, esse tratado restituiu à Portugal a Colônia de Sacramento, invadida em 30 de
outubro de 1762 pela Espanha, e ensejou a retirada das tropas espanholas da Missão de Santa Rosa.
9
destacamento, composta pelo Cabo de Esquadra de Dragões Marcelino Rodrigues
Camponês, sete soldados dragões, quatro pedestres e cativos remeiros-carregadores.
Não confiando no poder de persuasão da guarnição enviada ao Sítio das Pedras, o
próprio Capitão General, Rolim de Moura, embarcou para o dito sítio em 6 de fevereiro
de 1760, onde chegou no dia 17 do mesmo mês, e a 22 na Missão de Santa Rosa. As
casas, quartéis, armazéns e uma capela foram reconstruídos, bem como uma estacada
para fortificar a posição. Retornou a Vila Bela em 17 de abril de 1760 aonde chegou no
dia 22 de maio do mesmo ano. Deixou na missão, uma guarnição de 20 dragões, um
aventureiro26, 10 pedestres, o Capelão Estevão Ferreira Ferro, e trabalhadores
escravizados, necessários para as obras, e mais serviços do destacamento (DIÁRIO...,
1987, p. 97). Nas operações militares e de reconhecimento foi utilizados cativos e
indígenas, sobretudo, como remadores e nos serviços de edificações e desmatamento.
Em 1763, chegou a ter no forte Nossa Senhora da Conceição, 224 combatentes, dentre
os quais 114 cativos e 24 indígenas (CORREA FILHO, 1926, p. 104).
Diante dos protestos do Governador de Santa Cruz D. Alonso Berdugo
(CORREA FILHO, 1926, p. 46-8) e a visita dos seus emissários, Mestre de Campo,
José Nunes Cornejo em primeiro de novembro de 1760, e um segundo protesto em
novembro de 1761, entregue pelos oficiais espanhóis, D. José Franco e o Capitão José
de Mansanilla, sendo o segundo mais incisivo sobre a possibilidade de uma guerra.
Diante de um conflito iminente, Rolim de Moura reforçou as posições no Forte Nossa
da Conceição. Ainda como medida preventiva, solicitou reforços ao Capitão General do
Pará, Manoel Bernardo de Melo e Castro.
Canoas de Guerra no Rio Guaporé – Guerra de Movimentos
A intensa movimentação de canoas no Rio Guaporé, e a notícia da fundição de
peças de artilharia na missão espanhola de São Pedro, embora não levadas a sério pelo
Capitão dos Dragões Manoel da Ponte Pedreira, é gente que não se deve temer pela sua
frouxidão e fraqueza, (DIÁRIO... 1987, p. 99) levou Antonio Rolim de Moura a
organizar em agosto de 1762, nova visita ao Forte Nossa Senhora da Conceição. A
expedição composta de oficiais, soldados, pedestres e remeiros negros, partiram de Vila
Bela a 25 de agosto de 1762. Chegou ao presídio no dia 13 de setembro de 1762. No
caminho, encontraram com uma frota de seis canoas que vinham do Pará, com fazendas
26 Aventureiros, eram sertanistas práticos em entradas na mata para capturar nativos. Rolim de Moura
autorizou estes aventureiros a assentar praça, pagando-lhes um soldo correspondente ao que recebiam os
soldados-dragões. In: CORREA FILHO, 1926, p. 47.
10
secas, fardas, armas e munições. Esses apetrechos foram solicitados por Rolim de
Moura, em 15 de novembro de 1758, a cargo de Teotônio da Silva Gusmão conforme já
citado.
Rolim de Moura esperava ainda contar com reforços que solicitara ao Pará, nos
primeiros meses de 1761, 30 soldados infantes comandados por um oficial subalterno;
pólvora, balas, morrão, [espoleta] e outras coisas bem necessárias, de que não havia
nada27 (DIÁRIO... 1987, p. 99). Esses reforços chegaram no dia 9 de fevereiro de
1763, um Tenente de Infantaria, um Sargento, dois Cabos de Esquadra, vinte e um
soldados, um Tambor, pólvora, armas e munição. Com a chegada dos soldados infantes,
vindos do Pará, a guarda em torno do forte e as patrulhas de reconhecimento foram
intensificadas. A demora dos reforços vindos do Pará demonstrava as dificuldades em
manter uma guerra por muito tempo, sobretudo, pela reposição de pólvora e munição.
Novamente Rolim de Moura pediu reforços ao Pará. Na madrugada de 16 de
abril de 1763, uma canoinha de reconhecimento com seis remadores nativos, partiu do
fortim solicitando homens, armas e munições. Os espanhóis, cada vez mais asfixiavam
as tropas luso-brasileiras, inclusive impedindo-as de abater gado nas missões
espanholas. Um furriel, dois soldados dragões, um infante e seis nativos, foram
capturados por estarem carneando do lado espanhol.
As escaramuças entre lusos e castelhanos, bem como a intensa movimentação de
canoas de guerra, e canoinhas de reconhecimento se prolongaram até abril de 1763.
Os espanhóis cada vez mais entrincheiravam suas posições na barra do rio
Itonamas. De acordo com o Sargento de Infantaria Pedro de Figueiredo de Vasconcelos,
enviado como espia, para observar a qualidade, número e poder da gente [espanhola].
Informou a Rolim de Moura, existir aproximadamente 800 homens, entre brancos e
nativos, grande quantidade de armas, munições e peças de artilharia. Diante do poderio
espanhol, e da possibilidade de ver cortada a comunicação com o Pará e a linha de
suprimentos. No dia 16 de abril de 1763, os castelhanos receberam considerável
quantidade de reforços, segundo um dos espias de Rolim. Chegaram ao Itonamas 40
canoas, com homens e apetrechos de guerra. As tropas espanholas começaram a simular
um ataque ao fortim Nossa Senhora da Conceição (DIÁRIO..., 1987, p. 106).
27 DIÁRIO exato do que se tem passado nestas fronteiras de Mato Grosso e Santa Cruz ded La Sierra
desde o ano 1759 até o princípio do ano de1764. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro:
Biblioteca Naciona, 1987, v. 107. p. 95-120.
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O Capitão General, diante do iminente ataque espanhol, enviou dois avisos no
mês de abril, endereçados as autoridades em Vila Bela, entre elas ao Capitão-Mór,
Intendente, Provedor da Fazenda e ao Secretário de Governo, informando o estado da
guarnição do fortim, e solicitando ajuda de homens e armas aos moradores, para que
viesse socorrer suas tropas - as tropas espanholas eram superioras em relação aos lusobrasileiros.
Apesar da confiança de Rolim, era preocupante a situação das tropas. Os
espanhóis, apesar de ameaçarem atacar as posições a direita do Rio Guaporé, onde
estavam aquartelas as forças de Rolim, sem que passassem das intenções, levou o
Governador a perceber, que o intento dos castelhanos não era atacar, mais impedir a
navegação e a comunicação com o Distrito de Mato Grosso e a Capitania do Grão Pará
e Maranhão.
Na tentativa de enfraquecer os castelhanos, optou por uma Guerra de
Movimentos, em oposição a Guerra de Posições adotada pelos espanhóis. Nesse
sentido, resolveu ocupar um posto acima duas léguas da Boca do Itonamas – a Missão
de São Miguel. No dia 6 de maio de 1763, partiu do Forte Nossa Senhora da
Conceição, uma canoa de guerra, uma igarité e três canoinhas, comandados pelo
Tenente de Dragões Francisco Xavier Dorte Tejo, 10 soldados, um aventureiro, três
pedestres, oito nativos e 17 remeiro-defensores escravizados. A oito de maio, atacaram
a Missão de São Miguel. Aprisionaram os padres Francisco Espino e João Roiz, atearam
fogo nas casas e armazéns, saquearam e apreenderam duas canoas de mantimentos que
seriam enviadas ao Itonamas. Dentro dessa nova estratégia – Guerra de Movimentos,
dia 15 de maio, houve nova refrega entre lusos e castelhanos. Neste combate, houve
participação ativa dos cinco remeiro-defensores negros, inclusive portando armas de
fogo. Da emboscada, resultou a morte de 11 castelhanos e 3 nativos. Novos combates se
deram entre as forças querelantes, sempre sob a iniciativa dos luso-brasileiros
(DIÁRIO..., 1987, p. 110).
Os reforços solicitados a Vila Bela em 19 de abril de 1763, chegaram ao Forte
Nossa Senhora da Conceição no dia 22 de junho. Entre o pedido de reforços e sua
chegada ao forte, foram decorrido mais de dois meses. Esse tempo era suficiente para os
espanhóis, aprestados de homens e armas em número superior, atacarem o forte, se
tivessem optado pela Guerra de Movimentos. Entre os novos combatentes, estava o
Padre José Manoel Leite, que trouxe de Vila Bela, cativos de sua propriedade e
agregados, soldados dragões, pedestres, ordenanças, remeiros escravizados, num total
de 235 combatentes. Vários moradores das cercanias de Vila Bela, também acudiram
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aos apelos de Rolim, entre eles Domingos Ribeiro e José Tavares, sertanistas que
trouxeram armas, nativos e atiradores. As canoas, num contínuo vaivém, chegavam com
reforços e retornavam a Vila Bela, numa constante movimentação de tropas,
mantimentos e armas28.
Aprestado de homens, armamentos, munição e peças de artilharia, que
continuamente se dirigiam a Santa Rosa e ao novo ponto fortificado na Missão de São
Miguel, Rolim de Moura, resolveu atacar as posições espanholas, concentradas na Barra
do Itonamas, Contando já cerca de 500 homens, resolveu a 22 de junho acometer o
inimigo, na própria paliçada em que se embiocára (CORREA FILHO, 1926, p. 51).
No dia 26 de junho de 1763, as tropas luso-brasileiras se dirigiram a Barra do
Itonamas. Esta coluna era comandada pelo Ajudante de Ordens do Capitão General,
Manoel da Ponte Pedreira. Além de oficiais, soldados dragões, ordenanças e pedestres,
acompanham o Ajudante de Ordens, sertanistas, nativos, pardos29 e negros. Os cativos
negros formavam a Companhia de Negros, e outros portavam machadinhas para abriar
caminho na mata e derrubar as estacadas espanholas. Seguindo orientação de Rolim,
para despistar os castelhanos, uma frota de canoas desembarcou em frente ao
acampamento espanhol, para fazer-lhes fogo de mosquetaria e de uma peçinha de
amiudar montada numa igarité.
O ataque ao acampamento espanhol, ocorreu na madrugada de 26 de junho,
combinando forças terrestres e fluviais, assestou com carga de mosquetes e artilharia
miúda a reação espanhola. Após a refrega, os lusos se retiraram da estacada, deixando
grande quantidade de mortos e feridos. O sucesso do ataque deveu-se ao fator surpresa,
movimentação de tropas, simulação de ataque fluvial e retirada rápida do front. Os
espanhóis confiantes na superioridade bélica e numérica, não esperavam um ataque
luso, e nem guarneceram devidamente suas posições com sentinelas avançados e rondas
noturnas.
Fim das hostilidades – Tratado de Paz de Paris
Após o ataque de 26 de junho as posições espanholas no Itonamas, não houve
notícia de incidentes graves, se reservando os querelantes a guarnecerem suas posições,
28 No documento escrito pelo Ajudante de Ordens de Rolim de Moura, consta que o ataque a Barra do
Itonamas, foi realizado no dia 26 de junho de 1763. In: Diário Exato...., 1987, p. 111-3.
29 O recrutamento de pardos como forças de 2ª Linha, tinha como objetivo ampliar os efetivos militares a
serviço da Coroa Portuguesa na ocupação, colonização e consolidação dessa presença na América
Meridional. Sobre o recrutamento de pretos e pardos, ver: SILVA, Luiz Geraldo; SOUZA, Fernando
Prestes de; PAULA, Leandro Francisco de. A guerra Luso-Castelhana e o recrutamento de pardos e
pretos: uma análise comparativa (Minas Gerais, São Paulo e Pernambuco, 1775-1777). In: Anais VII
Jornada Setecentista. Curitiba, CEDOPE, set/2007.
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tratar dos feridos e observar movimentação de tropas. No dia 10 de agosto, uma igarité
proveniente do Pará, desembarcou no Forte Nossa Senhora da Conceição, trazendo
notícias do Tratado de Paz de Paris, assinado entre Portugal, Espanha, França e
Inglaterra, colocando fim a Guerra dos Sete Anos, e consequentemente aos conflitos
luso-castelhanos no Guaporé 30.
Rolim de Moura em 19 de abril de 1763 havia solicitado reforços a Vila Bela e
Cuiabá. O Senado da Câmara de Cuiabá, após receber pedido de socorro do Capitão
General Rolim de Moura, e diante do perigo iminente de um ataque espanhol ao Forte
Nossa Senhora da Conceição, se posicionou através da Junta de Governo de Vila Bela,
sobre a situação dos seus defensores.
[...] ameaçado do inimigo espanhol, que se tinha postado com trincheiras na
Barra do Rio Itonamas com grande número de soldados tanto espanhóis,
como índios das numerosas missões, que há naquelas vastas regiões com mil
e duzentas armas de fogo e muitas peças de artilharia, e não tendo o mesmo
general forças com que se opusesse aquele poder, receoso do perigo
iminente que corria toda a capitania (ANAIS DO SENADO DA CAMARA
DE CUIABÁ, 2007, p. 89-0)
De acordo com o Senado da Câmara de Cuiabá, os reforços solicitados partiram
dia 23 de junho de 1763, se armarão a sua custa, cada um com o número de escravos, e
camaradas que então puderam aprontar. Somente o Capitão de Ordenanças e
proprietário das lavras de São Jose de Cocais, Jose Paes Falcão, armou trinta homens,
dentre os quais, vinte eram trabalhadores escravizados.
De acordo com os documentos consultados, a maioria dos combatentes do Forte
Nossa senhora da Conceição, eram compostos de cativos negros, responsáveis pelas
tarefas ofensivas mais perigosas. Além de remeiros, foram usados nas missões de
reconhecimento, desmatamento, construção de paliçadas e carregadores. A derrubada
das estacadas castelhanas a golpes de machadinha, também a eles foram atribuídas.
Da análise dos reforços enviados da Vila de Cuiabá em socorro de Rolim de
Moura, infere-se que: a) houve demora no atendimento, pois enquanto os reforços de
Vila Bela chegavam ao front, em 22 de junho de 1763, partiam do Porto de Cuiabá no
dia 23 do mesmo mês; b) foi financiada por particulares; c) compunha-se na sua maioria
de trabalhadores escravizados e nativos; d) chegaram ao forte, somente em 21 de
30 Sobre as implicações e os desdobramentos da Guerra dos sete Anos na América Meridional, ver:
BARRENTO, Antonio GUERRA FANTÁSTICA, 1762 Portugal, o Conde de Lippe e a Guerra dos Sete
Anos. Lisboa: Tribuna («Batalhas de Portugal», 24), 2005; AMARAL, Manuel. OLIVENÇA 1801.
Portugal em Guerra do Guadiana ao Paraguai. Lisboa: Tribuna (“Batalhas de Portugal”), 2004.
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setembro de 1763, quando os espanhóis já estavam se retirando da Barra do Itonamas,
após o ataque luso-brasileiro e a assinatura do Tratado de Paz de Paris.
A retirada definitiva das tropas espanholas em direção a Santa Cruz, ocorreu no
dia 3 de novembro de 1763, e os luso-brasileiros retiraram o grosso das tropas do Forte
Nossa Senhora da Conceição de volta a Vila Bela no dia 3 de janeiro de 1764.
A vitória militar de Rolim de Moura, contra tropas melhor municiadas e em
maior número, em parte se explica as estratégias de combate utilizadas. Para Virgilio
Corrêa Filho, o Capitão General, num rasgo de originalidade (CORREA FILHO, 1926,
p. 47) adaptou os meios militares disponíveis, aos conhecimentos bélicos que trouxera
da Europa. Entre esses novos conceitos, estava a redefinição dos métodos de combate
da guerra de sítio e resguardo inimigo31, onde as fortalezas militares, não só protegiam
posições entrincheiradas, mas também atuavam como forças de ataque. Essa estratégia,
Rolim de Moura, usou contra as forças espanholas aquarteladas na Barra do Itonamas,
no ataque na madrugada de 26 de junho de 1763. Um dos objetivos desse assalto era
evitar que os castelhanos pudessem utilizar as peças de artilharia montadas na margem
do rio, por possuírem maior calibre poderiam causar grandes danos às tropas lusas32.
Além desse reordenamento militar, Rolim de Moura, adaptou pecinhas de
amiudar e canhões de bronze, montados sobre pranchas na proa das canoas de guerra,
possibilitando disparar em qualquer direção.
A utilização de peças de artilharia, pedreiros de bronze33 e peçinhas de amiudar,
em canoas de guerra foram inicialmente usados na expedição dos paisanos em 173134
contra os paiaguá, “disparou-lhes a peça com bala miúda que matou muitos de uma
nação deixando-os tão atemorizados que os ao paiaguá recolhidos as suas canoas
rodarão rio [Paraguai] abaixo [...]” 35.
31 O Exército Português passou a utilizar a partir do século XVIII, o método Vaubau de fortificações
militares, que privilegia não só as forças de defesa, mas também de ataque. MIRANDA, Bruno Romero
Ferreira. Fortes, paliçadas e redutos enquanto estratégia da política de defesa Portuguesa (O caso de
Pernambuco-1654-1701). Recife: UFPE, 2006. Dissertação Mestrado em História, Centro de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, 2006.
32 Na desocupação da Barra do Itonamas, após a assinatura do Tratado de Paz de Paris, foi constatado
possuírem os espanhóis, peças de artilharia de diversos calibres, chegando as maiores a seis libras,
enquanto que os dos portugueses não passavam de uma libra. RELAÇÃO, op, cit. p. 117.
33 Pedreiros de Bronze - espécie de canhão de bronze, aproximadamente de um metro e dez centímetros,
que arremessava projéteis de pedra. Não tinha rodas e se apoiava sobre um banco colocado nas canoas
artilhadas. Os primeiros pedreiros foram levados para Cuiabá por Rodrigo Cesar de Menezes em 1726.
34 Expedição dos paisanos, ver: BARBOSA DE SÁ, Joseph Relaçaó das povoaçoens do Cuyabá e Mato
groso de seus principios the os prezentes tempos. Anais da Biblioteca Nacional, 1901, Volume XXIII.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1901. p. 30-1.
35 Idem ibidem; TAUNAY, 1975, p. 130;
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De posse do cabedal paiaguá em relação às construções navais, técnicas e táticas
de guerra utilizadas nos modernos exércitos europeus, Rolim de Moura organizou uma
flotilha de canoas artilhadas como estratégia de defesa.
A ação das Canoas Artilhadas permitiu a fundação da Capital Vila Bela, do
Forte Nossa Senhora da Conceição, e a destruição das missões jesuíticas as margens do
Rio Guaporé, cumprindo alguns dos principais objetivos do colonialismo português:
“Povoar a Capitania constituiu-se na lógica de consolidação da soberania lusa, cujas
atividades pareciam encadeadas sistematicamente entre um agente administrador e
outro” 36.
Dessa forma, evidencia-se, que: a neutralização dos paiaguá, como perigo a
navegação do Rio Paraguai e afluentes; a obstrução do front missionário; o
estabelecimento por decalque das balizas naturais na demarcação dos limites lusos e a
promoção do povoamento e miscigenação, só se tornaram possíveis pela ação da
Flotilha de Canoas Artilhadas organizadas por D. Antonio Rolim de Moura, legadas
pelas construções navais indígenas paiaguá.
As pequenas canoas, signos da cultura paiaguá, por vezes transformava-se em
morada, numa perfeita harmonia homem-natureza37, aspecto interpretado pela
historiadora Maria Fátima Costa como reinvenção de formas de sobrevivências na
região pantaneira. Ainda para Costa, “Dentre os povos pantaneiros, talvez tenham sido
os Payaguá aquele que melhor simbolizou a anfíbia relação homem-água tão própria
deste lugar. Sua vida se passava nos rios e cursos fluviais; era da água também que
vertiam suas crenças e sonhos” 38. A mesma relação foi ressaltada por Carlos Francisco
Moura: “Os Paiaguás nos deram um dos mais admiráveis exemplos de adaptação ao
meio. O rio Paraguai era seu reino, e nele se sentiam como peixes dentro d’água” 39.
36 Brasil e Portugal no período Pombalino: ocupação geoestratégica de Mato Grosso. In: IV Congresso
Internacional de Estudos Ibero-Americanos, 2000, Porto Alegre-PUC, 2000. CD-ROOM. p. 18; Crônicas
de Cuiabá. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, São Paulo, v. 4, 1898-9.
37 SUSNIK, Branislava. Los aborigenes del Paraguay. t. 2. Etnologia del chaco Boreal y su periferia
(siglo XVI y XVIII). Assunciín: Museo Etnográfico ‘ Andres barbero”, 1978.
38 Entre Xarai, Guaikurú e Payaguá: Ritos de Vida no Pantanal. In: PRIORE, Mary del; GOMES, Flávio.
Os Senhores dos Rios. Amazônia, Margens e Histórias. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. p. 63-90. p. 82.
39 MOURA, C.F, 1984, p. 424.


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