sábado, 14 de abril de 2012

A GUERRA DE CANUDOS

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002 - Dois Clássicos Centenários sobre Canudos: Manuel Benício e Alvim Martins Horcades (Oleone Coelho Fontes)

Em 1899, há um século, eram entregues ao público duas das mais expressivas obras sobre a historiografia de Canudos e ambas, desde então, têm contribuído para melhor se compreender o drama desenrolado nos sertões baianos entre 1896 e 1897: O Rei dos Jagunços, de Manuel Benício e Descrição de uma Viagem a Canudos, de Alvim Martins Horcades.

O professor Paulo Emílio Matos Martins, de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas, no preâmbulo à segunda edição de O Rei dos Jagunços, publicada sob os auspícios da Fundação Assis Chauteaubriand, nos presta esclarecimentos sobre a bibliografia a respeito do tema, precedente à quase centenária primeira edição do expoente máximo da literatura brasileira, Os Sertões, de Euclides da Cunha, na qual, com tintas dramáticas, e de modo épico, é narrada a epopéia sertaneja.


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A temática Canudos, hoje, supera em mais de duas centenas de trabalhos em todo o Planeta, desdobrados e multiplicados em teses acadêmicas, ensaios, reportagens jornalísticas, editoriais, relatórios, partes militares, poemas, poesias, literatura popular em verso (cordel), peças de teatro, obras de ficção, música, dança, filmes, assim como tem inspirado as artes plásticas, escultores, entalhadores, artesãos, lideranças sociais e políticas.

A iconografia e os estudos sobre Canudos, por si tão ricos, continuam paulatinamente a enriquecer-se com trabalhos atuais e anunciados. Um dos próximos é a tese de doutoramento do acima referido mestre Paulo Emílio - A Reinvenção do Sertão : Organização e poder na Comunidade do Belo Monte (Canudos: 1893-1897).

De acordo com José Calasans, o maior intérprete vivo da tragédia sertaneja, a historiografia concernente à saga de Antônio Conselheiro e seu séquito religioso abrange três períodos bem caracterizados. O primeiro tem início em 1874,quando do surgimento do infatigável peregrino cearense nos sertões da Bahia e Sergipe e prossegue até a primeira edição da obra de Euclides, em 1902. O segundo período é o da predominância de Os Sertões sobre os demais estudos até os anos cinqüenta. O terceiro período, quando começa a revisão da temática Canudos através de investigações participativas - pesquisa de campo, observação local - , à luz de modernas técnicas que têm fornecido contribuições de natureza histórica, sociológica religiosa e antropológica para melhor compreensão do fenômeno. Neste item inserem-se os estudos pioneiros de Odorico Tavares e do próprio José Calasans, utilizando como fonte primária de investigação a oralidade.

O repórter de guerra do Jornal do Comércio, Manuel Benício, que chega ao teatro de guerra no bojo da coluna Savaget, legou à historiografia nacional valiosíssima crônica sobre a guerra de Canudos três anos antes de Euclides da Cunha nos contemplar com sua universalmente reconhecida obra-prima. O Rei dos Jagunços, segundo o autor, é "crônica histórica e de costumes sobre os acontecimentos de Canudos" e foi impressa pela Tipografia do Jornal do Comércio, de Rodrigues & C., em 1899. Benício diz, com decência, ter organizado "a presente obra em linguagem chã e brasileira, saturada da sintaxe e vocábulos adotados pelos sertanejos, dando eu ao complexo um tom de romance (guardada a maior fidelidade histórica), pensando assim amenizar a aspereza do assunto e o enfaro de descrições enfadonhas de quem não tem estilo".

Barbosa Lima Sobrinho saudou a segunda edição de O Rei dos Jagunços em artigo veiculado no jornal da ABI, Associação Brasileira de Imprensa, (fevereiro de 1998), tecendo considerações sobre o genocídio praticado no solo baiano. Indaga e responde o acadêmico pernambucano: "Não terá sido bastante todo um século, para fazer esquecer o crime, que foi a destruição de toda uma cidade, dominada pelos jagunços de Antônio Conselheiro? Com argumentos implícitos do poder de dinamite? A que não demoraram a juntar-se a degola dos que sobreviveram à cidade destruída com a presença dos soldados e, sobretudo, dos oficiais que compunham a tropa ali reunida, e que não chegaram a esboçar nenhum protesto quando a cidade se transformou num mercado de escravos, despachados depois para as cidades do litoral. Não teriam sido seus oficiais os que se tornaram mercadores de escravos, despachados para as cidades do litoral?(...) Enquanto mulheres e crianças eram distribuídas de graça, louvado o patriotismo dos que aceitavam um maior número de excluídos. O estoque de dinamite ficava responsável pela destruição da cidade, como que para acabar com os últimos vestígios do genocídio que se estava cometendo. O que poderia deixar a impressão de um suicídio coletivo de uma cidade, cujo crime era não se curvar diante de uma religião oficial e de um governo constituído. Uma rebelião silenciosa contra as autoridades oficiais. Com uma liderança que desdenhava todos os bens da vida, numa solidariedade surpreendente, que os próprios agressores não chegavam a entender (...) A destruição de Canudos se tornara uma necessidade nacional, voltando os seus habitantes à situação de escravos, para a distribuição de graça entre os vencedores, como se fosse o preço do triunfo".

Precederam a Manuel Benício e Alvim Martins Horcades, um rol de cronistas- testemunhas, a maioria dos quais militares e correspondentes de guerra que exerceram a profissão na área em conflito. Editadas em livros ou opúsculos, revisitemo-los, são preciosíssimas fontes primárias.

1. O relatório apresentado em 1895 pelo reverendo Frei João Evangelista de Monte Marciano ao Arcebispo da Bahia sobre Antônio Conselheiro e seu séquito no arraial de Canudos, publicado em Salvador pela Tipografia do Correio de notícias em 1895 e reeditado, ao menos uma vez, pelo Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, Salvador, em 1987 (edição fac-similada), com apresentação de José Calasans. Trata-se do relato do frei capuchinho italiano enviado a Canudos em fracassada missão pastoral com o objetivo de dissuadir o povo conselheirista da idéia de permanecer no arraial, citado freqüentemente como uma das causas do conflito armado que se seguiria. Em suas páginas, o autor sugere, aberta e francamente, a intervenção do Estado como única forma de conter o crescimento da comunidade libertária do Vaza-Barris. É sem dúvida prestante fonte primária sobre o cotidiano do Belo Monte, à parte a linguagem passional e o objetivo político, antes que humanitário e religioso.

2. O Relatório apresentado pelo senhor tenente-coronel Cândido José Mariano, comandante do Primeiro Batalhão de Infantaria do Estado, publicado em Manaus pela Imprensa Oficial em 1897- no mesmo ano do fim da guerra nas caatingas -, e que, para o professor José Calasans, é o primeiro documento público sobre a luta. Há pelo menos uma outra edição do mencionado documento, datado de 1996, um século quase após a edição original, anotado pelo coronel da PM/AM Roberto Mendonça, intitulado Cândido Mariano e Canudos.

3. O livro A Quarta Expedição contra Canudos (primeira fase das operações)- Cem léguas através do sertão de Aracaju a Queimadas, via Canudos: diário de campanha, do major Antônio Constantino Nery, publicado no Pará pela Tipografia de Pinto Barbosa & Cia., em 1898, ano seguinte ao fim dos embates. Há uma Segunda edição fac-similada publicada em Manaus pelo Governo do Estado do Amazonas, através da Editora da Universidade do Amazonas, em 1997. É, possivelmente, o primeiro livro divulgado sobre a campanha de canudos.

4. Também de 1898 é o livro Última Expedição a Canudos, do tenente-coronel Emídio Dantas Barreto, comandante da terceira Brigada - reorganizada em 27 de setembro de 1897 sob as ordens do general João da Silva Barbosa, editado originalmente em Porto Alegre por Franco & Irmãos-Editores e que seria posteriormente reeditado com o título Destruição de Canudos - quarto milheiro (conforme o autor),com correções, "aumentada com detalhes de costumes e hábitos dos nossos sertanejos" lançado em Pernambuco pelo Jornal do Recife-Editor, 1912.

5. Ainda no mesmo ano do Diário do major Nery e do livro de Dantas Barreto (1898), apareceria no Rio de Janeiro o fascículo número 3, volume 1, do curioso trabalho Guerra de Canudos - Narrativa Histórica, por J. P. Fávila Nunes (correspondente especial da Gazeta de Notícias junto às forças em operação nos sertões da Bahia), publicado pela tipografia Moraes. Na apresentação deste raríssimo e surpreendente trabalho, o autor anuncia que o mesmo terá mais de mil páginas.

O único exemplar que se conhece desta singular obra pertence à coleção do Núcleo Sertão da Universidade Federal da Bahia e foi doado ao mesmo junto com a coleção José Calasans pelo organizador do mais completo acervo documental sobre a saga de Antônio Conselheiro, sua vida e obra. Não se tem notícias se o ex-correspondente da Gazeta de Notícias (Fávila Nunes) concluiu o anunciado e pretensioso projeto. Tudo faz crer , entretanto, que não.

O CORRESPONDENTE MANUEL BENÍCIO

Após o fiasco da Terceira Expedição Militar enviada para exterminar Canudos, sob a chefia do coronel de infantaria Antônio Moreira César (1850-1897), o governo precisava encontrar general que estivesse identificado com a corrente florianista, indócil diante sucessivas derrotas frente aos conselheiristas, supostos restauradores da Monarquia. O apontado foi o General Artur Oscar de Andrade Guimarães, então no comando do Segundo Distrito Militar com sede em Recife. Artur Oscar se havia distinguido durante a repressão à Revolução Federalista.

Em 21 de março de 1897, 18 dias após o insucesso de Moreira César, Artur Oscar já se encontrava em Queimadas, onde tratou de elaborar plano de ação distinto de seus predecessores.

A investida contra o povoado sedicioso iria ser levada a cabo partindo de duas vertentes: uma de Queimadas, via Monte Santo, daqui chegando ao Belo Monte, formada por dois mil homens. A segunda sairia de Aracaju e cruzaria por Jeremoabo, constituída de 1250 soldados. A expedição foi, assim, dividida em duas colunas entregues aos generais João da Silva Barbosa e Cláudio do Amaral Savaget. Cada coluna, por seu lado, foi subdividida em três brigadas, e marchou sob as chefias dos coronéis Joaquim Manoel de Medeiros, Inácio Henrique de Gouveia, Antônio Olímpio da Silveira, Carlos Maria da Silva Teles, Julião Augusto de Serra Martins e Donaciano de Araújo Pantoja.

Tiveram início em junho as operações quando as colunas se encontravam respectivamente em Monte Santo e Jeremoabo. A coluna Savaget, apelidada Talentosa, foi a primeira a enfrentar o fogo conselheirista no dia 25, no planalto de Cocorobó. Os jagunços contiveram o avanço dos soldados republicanos com cerrada fuzilaria que teve início ao meio-dia e durou até o anoitecer. Os militares, apesar de quase 200 baixas, dominaram as situação e forçaram os guerrilheiros a recuar. Savaget foi ferido em combate.

Apesar das dificuldades a coluna prosseguiu na marcha, aqui e acolá enfrentando piquetes guerrilheiros e acampou nas proximidades de Canudos no dia 26 de junho. E se preparou para assaltar o arraial. Teve, porém, que modificar os planos pois mensageiro do comandante-em-chefe Artur Oscar avisou que a primeira coluna estava cercada no Morro da Favela e precisava ser urgentemente socorrida.

Não fosse o socorro prestado por Savaget, certamente Artur Oscar teria sido derrotado. Em compensação, o chefe da coluna Talentosa foi despojado da glória de ser o autor do triunfo sobre Canudos.

As reportagens que Manuel Benício envia do teatro de operações para o Jornal do Comércio, em que pese não terem sido veiculadas com assinatura, encontram-se precedidas de termos e expressões facilmente identificáveis. Na época, de praxe, as matérias jornalísticas eram escritas sob a forma de cartas, e assim publicadas, a primeira das quais é veiculada no dia 3 de agosto e fora escrita em Canudos a 4 de julho. A última, publicada no dia 10 de agosto, fora redigida em Canudos a 24 de Julho, quando o jornal, no cabeçalho, informa: "Damos hoje a última carta do nosso correspondente especial, Capitão Manuel Benício, das retardadas em Monte Santo.Anterior à qual já publicamos sobre o ataque de Canudos, refere-se ela a fatos ocorridos de 9 a 17 do mês passado".

Somente em setembro é que o Jornal do Comércio envia o substituto que embarca no Rio de Janeiro junto á caravana do Ministro da Guerra, Carlos Machado Bittencourt.

Os derradeiros informes jornalísticos assinados pelo substituto de Manuel Benício levam no cabeçalho apenas o indicativo: "O correspondente a quem encarregamos de ir ao teatro de guerra, em substituição ao Sr. Capitão Benício", ou simplesmente " nosso correspondente". Manuel Benício era pernambucano de nascimento. Vivia radicado na cidade de Niterói. Nascera em 1861. Anteriormente fora correspondente de guerra no Sul, por ocasião da Revolta da Armada, a serviço do jornal
O Tempo. Desempenhou as funções de professor e tabelião de notas. Cursara a Escola Militar, não chegando a completar o curso. Suas matérias sobre o desdobramento da campanha nos sertões baianos foram interrompidas de forma brusca movido pelo convite de retirar-se da zona em luta por haver passado para o público informações consideradas política e militarmente inconvenientes.

Havia reais entraves ao livre exercício da atividade jornalística na zona em conflito de que se queixava a maioria dos repórteres destacados para dar cobertura ao insurgente movimento sertanejo, exceção feita para Euclides da Cunha, de O Estado de São Paulo e Manuel Figueiredo, de A Notícia.

Benício tanto denuncia a desorganização, a fome, a penúria no acampamento da Quarta Expedição quanto as atrocidades praticadas contra os prisioneiros, da mesma forma que não lhe falta coragem para desmentir a invencionice jacobina, esposada pelos saudosistas ortodoxos de Floriano Peixoto, de que em Canudos se tramava contra a República. Artur Oscar proíbe oficiais de fornecerem entrevistas para o correspondente do Jornal do Comércio sob a alegação de que ele somente escrevia matérias alarmantes. Como Benício não se intimida e mantém com firmeza suas posições, é ameaçado de ser chicoteado pelos oficiais da expedição, enquanto os mais exaltados propunham o fuzilamento do profissional da imprensa.



AS REPORTAGENS

Adiante alguns parágrafos nos quais Benício se reporta através das páginas do Jornal do Comércio ao apavorante quadro das batalhas, bem como as críticas que faz à estratégia, à tática, à logística, e à deficiência enfrentada pelos combatentes para fazer face a duas guerras: uma ocasionada pela incompetência do general Artur Oscar, outra pelo espírito combativo do jagunço.

Informe publicado em 3 de agosto de 1897.
"Cavalos em correria de Mazeppa, cabeça alçada pelo assombro, arrastando cadáveres e feridos, por cima de feridos e cadáveres, outros assustados a pinotear, relinchando de susto, com os arreios por baixo do ventre, atritando-se no solo, um rebanho de cabras espantadas pelas descargas abandonaram as caatingas e corriam berrando furiosamente pelo campo, aqui uma barraca, aí um capote, além um cobertor nodoando de vermelho o solo já manchado pelo sangue de nossos valentes camaradas, alguns já mortos, outros moribundos, em toda a extensão do campo salpicado do armamento das vítimas".
(...)
Da passagem de Cocorobó dependeu a salvação do Exército nacional, da Coluna Artur Oscar, dependeu até o brio da república e arraso de Canudos. Verão pela continuação da história a verdade deste juízo".
(...)
Oficiais contaram-me que, depois do pedido de socorro que mandava pedir ao General Savaget, (Artur Oscar) tirava de quando em quando o relógio, angustiado pela demora da chegada da coluna que o havia de salvar, e salvar a República de um quinto desastre mais vergonhoso do que a soma de todas as vergonhas de Canudos.
(...)
É inacreditável como o General Artur Oscar, que tinha sobre Canudos opinião assentada de que aquilo não era um antro unicamente de bandidos e fanáticos, mas também de monarquistas poderosos, não previsse a resistência dos jagunços e não tomasse medidas e providências que garantissem, ao menos por alguns dias, o combate, o fornecimento e água a seus soldados.

Demais, S. Exa. já tinha exemplo nos comandantes das expedições anteriores de que os conselheiristas eram tenazes, corajosos e temíveis, ainda no tempo em que manobravam clavinotes, facões, bacamartes e armas de caça.

Chefe de uma expedição de tamanha responsabilidade, que já tinha custado à República duas patentes, o seu dever seria traçar bem um plano, prevendo os imprevistos agindo com inteira segurança.

Arrojando-se com a sua coluna apenas munida dos cartuchos que cada praça pôde levar nas cartucheiras, deixando atrás as munições, como outros já fizeram, e querer tomar Canudos, talvez por ambição de primazia, seria fútil se não fosse desastroso e terrível como foi para as armas brasileiras, tendo em vista a mortandade que sofreram as suas tropas.
(...)

Informe de 4 de agosto de 1897:
(...)
É singular como tendo o General Savaget de atravessar 72 léguas de sertão sem recursos, comandando uma coluna de dois mil e tantos homens, e uma caixa militar com quinhentos contos, somente em dois meses chegasse com os seus soldados a Canudos, todos de barriga cheia e muito fornecimento, ao ponto de dar ração aos da segunda coluna, e o General Artur com 1 500$000 em caixa, em três meses não tivesse tempo de fazer outro tanto a 3 000 soldados, tendo a 28 léguas de seu objetivo uma estrada de ferro que o ligava com melhor celeiro.

Informe de 6 de agosto de 1897.
Certa incúria que tinha imperado desde o inicio da marcha da primeira coluna, dando lugar aos oficiais e praças não receberem ração desde Monte Santo, deixando que o comboio que vinha na retaguarda fosse assaltado, caindo nas mãos dos jagunços cerca de 200 mil cartuchos e carretas de víveres, provocando a carnificina horrorosa e sem proveito dos dias de 27 e 28 de junho no alto da Favela, a fome, a sede, flagelando os soldados que para não morrerem em conseqüência dela subiam pelos campos a carnear, morrendo centenas deles nas emboscadas dos inimigos.

Informe de 8 de agosto de 1897, reza:
O General Artur Oscar age como entende, pouco atendendo à opinião dos companheiros. Devido a isto é que colocou-os nesta posição.
(...)
Os jagunços reúnem até, nos cercados, bois e cabras e ficam ocultos por detrás dos cercos. Os famintos soldados arrojam-se sobre os ruminantes, matam-nos e eis que cheios de alegria tentam soltá-los, quando chove sobre eles uma saraivada de balas certeiras que fazem fugir os mais felizes.

Os jagunços então acabam de matar os feridos e saqueiam as munições deles.

O REI DOS JAGUNÇOS

Do professor Paulo Emílio são as observações a seguir: "O trabalho de Manuel Benício destaca-se como preciosa fonte de consulta para os estudiosos e pesquisadores da temática sobre Canudos, quer pela extensão e minuciosidade do relato - 409 páginas - quer pela qualidade do texto e pelo conteúdo da matéria reportada. (...) Uma curiosidade de O Rei dos Jagunços é seu estilo: predominantemente descritivo, do gênero relatório-reportagem, o trabalho ensaia o romanesco, o que aliás, é anunciado pelo autor. (...) Quem sabe o romance de Manuel Benício teria mesmo a virtude de antecipar o realismo fantástico - gênero tão latino-americano quanto nossa tragédias sociais? Ou não seria o personagem Jararaca, com o qual o autor termina sua narrativa, um ancestral dos Buendía da solidão centenária do universo mágico de Garcia Marques?"

Diário de oficial morto em combate, achado por Manuel Benício e transcrito em O Rei dos Jagunços é uma das mais trágicas e deprimentes descrições dos horrores da guerra: "Como ruge este inferno tumultuosamente em desordem! Soldados sequiosos, esguridos, maltrapilhos,escassez de água, fartura de porcaria, burros que se devoram o pelo, clarins que tocam e que ninguém atende, cavaleiros que passam levantando o pó, resmungamento rouco de quem sucumbe à fome, respirações cansadas, gemidos pungentes, um brado ao longe, bois que mugem e morrem, mulheres de cócoras como múmias, falta de medicamento para os feridos nas malas da ambulância médica, um tiro desgarrado, uma ordem que não se cumpre, cavalos escavando o chão, todos varados de fome, feridos esmolando o que comer, burros lambendo a crosta da terra, ar de estupor nas fisionomias lúgubres, ambulância cheia de conserva, vinho, água do Setz e ovos em lata!- Um punhado de farinha senão eu morro! - Bangüês trazendo mortos e feridos com bicheiras, doentes no pó, oficiais deitados na poeira, praças ao pé, vento e sol canicular, poeira, exalação fétida, horrível, podre, dos cadáveres insepultos, animais assombrados em esparrame no meio do povo, gritos palavrões, ameaças, tudo sofre; a fome tortura, o calor queima, a sede abrasa, a poeira sufoca e olhos esbugalhados fitam o vácuo:

Quem os poderá fechar no meio estonteador deste inferno tumultuariamente em desordem? Favela 30-6-97".

UMA VIAGEM A CANUDOS

O mais completo e corajoso depoimento relativo à chacina praticada por militares republicanos contra prisioneiros, foi produzida pelo jovem acadêmico de Medicina Alvim Martins Horcades (1880-1940), que foi a Canudos como voluntário do corpo Médico, serviu nos hospitais de sangue e nos legou, há um século, Descrição de uma Viagem a Canudos.

Na época da campanha, Horcades era um dos líderes acadêmicos da Bahia. Nasceu em 1880 em Porto Seguro, filho de Francisco Martins Horcades e Maria Ramos Horcades. Formou-se em Farmácia (1902),e em seguida colou grau em medicina. Foi orador das duas turmas. Seu nome com freqüência é veiculado nos jornais da época, particularmente no Diário de Notícias, com o qual colaborava.

O jovem universitário foi sensível ao apelo das autoridades no sentido de prestar serviços profissionais no teatro de luta ao tempo da Expedição Artur Oscar, a quarta mandada para destruir a nação de Antônio Conselheiro. Enviou matérias para o Diário de Notícias, comissionado correspondente de guerra e, após o fim do litígio, no ano seguinte, 1898, redigiu série de artigos narrando o episódio sangrento, concebidos sob a ótica de observador do serviço de saúde.

Tais artigos surgem, em 1899, na forma de livro editado pela Lito-Tipografia Tourinho com o título de Descrição de uma Viagem a Canudos. Mestre José Calasans observa tratar-se de "valiosa colaboração à história da guerra do Conselheiro principalmente pela coragem de suas afirmações a respeito dos inomináveis degolamentos praticados depois do conflito, no qual foram vitimas pobres sertanejos, como o caso de Antônio Beatinho, possivelmente sacristão do Bom Jesus Conselheiro, que se apresentou aos vencedores como um agente de paz, recebendo do general-em-chefe a garantia de suas vidas. No ardor da juventude, Horcades denuncia a matança com muita coragem, sabendo mesmo que poderia sofrer as conseqüências da temerária afirmação, divulgada muito antes de Os Sertões, que é de 1902".
(...)
A guerra do Belo Monte (continua o mestre canudófilo), iniciada a 21 de novembro de 1896, com o choque de Uauá, poderá ser estudada nas páginas do acadêmico Martins Horcades, testemunha do sangrento prélio das margens do Vaza-Barris, onde assistiu, com desvelo, combatentes, inclusive um dos melhores soldados da Quarta Expedição Militar, o tenente-coronel Tupi Ferreira Caldas, que morreu nos seus braços".

A seguir alguns trechos entre os mais contundentes de Descrição de uma Viagem a Canudos, extraídos da segunda edição (fac-similada), patrocinada pela Universidade Federal da Bahia em 1996.

No prefácio o autor observa:

"O presente livro não é mais do que a série de artigos publicados desde o dia 26 de outubro do ano transacto no Jornal de Notícias com mais outras partes, que deixaram de ser publicadas por motivos imperiosos, inteiramente alheios à minha vontade e que não vêm a momento declarar.

Por contrariedade que tive de passar, inerentes a essas cousas, resolvi suspender a publicação, muito a contra-gosto, no distinto órgão da imprensa baiana, para fazê-lo em um opúsculo, onde pudesse com a responsabilidade do meu nome e máxima liberdade, facultada pela Constituição do meu país, explanar minha humilde opinião sobre o que vi e narrar com toda lealdade o que presenciei. Eis que neste lapso de tempo sou acometido por grave enfermidade que me prendeu ao leito, coibindo-me completamente de levar ao fim o meu desejo".

Um dos que testemunharam a exumação do cadáver de Antônio Conselheiro, Horcades descreve-o:

No dia imediato (6-de outubro de 1897), continuou-se a trabalhar e às 11 horas foi encontrado o cadáver de um indivíduo de cor parda, estatura regular, cabelos longos e quase pretos, tez queimada, olhos aprofundados e que pareciam ser grandes, boca rasgada, sem dentes, barba longa e grisalha, dedos compridos e unhas aparadas, pés grandes e descarnados, assim como todo o corpo, mostrando passar uma vida de duras privações; vestia ceroulas e camisa novas de algodãozinho, túnica azul, tendo aos pés alpercatas novas; achava-se envolto a uma esteirinha fina, vulgarmente chamada da Costa, e que foi reconhecido ser o de Antônio Conselheiro, o bandido-chefe da horda canudense".

Sobre o avanço feroz das tropas republicanas, exara:.

... "vimos gigantes, leões, homens feitos de aço avançarem e em um momento mais de 20 casas foram tomadas a baioneta e mortos os seus moradores: muralhas de carne humana a oferecerem resistência à selvageria indômita daqueles que nada conheciam de impossível para impedir o seu desideratum; cadáveres gelados sobre o chão, envolvidos no pó vermelho, levantado pela certeira bala; corpos examines sobre o solo a soltarem os ais desesperados de quem sofre sem consolo; criancinhas ainda no verdor dos primeiros dias varadas pelo aguçado ferro do inimigo rancoroso ; finalmente espesso fumo do solo e das casas levantava-se para dar sombreado à apoteose sanguinária da desgraça!!!......"
(...)
Em uma dessas casas penetramos e a impressão foi a mais horrível: dezenas de homens, mulheres e crianças mortos quase todos à fome e sede e também quase privados da fala e de mistura com diversos corpos, que, gélidos adormeciam. Compungiu-me sobremodo a maneira por que estava uma menina de dez anos, tendo os lábios cobertos de pus e ressequidos pela sede que martirizava-a sentada debaixo de uma mesa, junto a uma velha, coberta de chagas,com uma bacia na mão, toda crivada de balas".

A despeito de estar com o coração petrificado pelas atrocidades presenciadas numa carnificina de quase três meses e sem vacilar sequer um só momento, pondo em risco a minha própria vida, atirei-me a ela para salvá-la da morte, e então talvez o meu anjo tutelar dirigisse ao nosso Deus um salmo fervoroso pela espontaneidade da ação com que eu fazia, e ao voltar-me vi em redor os inimigos ferozes, empunhando pujantes clavinotes, mas foram tão benévolos para comigo que me consentiram sair dali ileso! É que eles viram em mim, não o inimigo sanguinário, mas o apóstolo bondoso da caridade!"

Sobre a covarde matança de prisioneiros indefesos:

"Belo exemplo de civismo e progredimento social! Levar-se homens de braços atados para trás como criminosos de lesa-majestade, indefesos, e perto mesmo de seus companheiros, para maior escárnio, levantar-se pelo nariz a cabeça, como se fora a de uma ave, e cortar-lhe com o assassino ferro o pescoço deixando cair a cabeça sobre o solo - é o cúmulo do banditismo praticado a sangue frio como se fora uma ação nobilitante! Assassinara-se uma mulher, pelo simples fato de ser o seu companheiro conivente com o que se dava - é o auge da miséria! Arrancar-se a vida a criancinhas que ainda não haviam sentido o mais leve bafejo da ação corruptora do humanismo, cérebros inconscientes em que não haviam vibrado ainda sentimentos maus e que mais tarde concorreriam para solidificar a muralha pujante que sustenta as crianças republicanas - é o maior dos barbarismo e dos crimes monstruosos que o homem pode praticar! E além de tudo, estes prisioneiros estavam isentos de quaisquer castigo pelo juiz o mais probo e severo - a ciência, porquanto a psicologia diz que o fanático é irresponsável, é inconsciente; e ainda as leis de guerra do nosso país, como de todos, suponho que garantem a vida do prisioneiro".
(...)
"... tratou-se de por em prática o plano traçado pelo general-em-chefe (Artur Oscar ): "Não deixar ficar em pé nem um só pau que indicasse Ter havido ali uma choça sequer".
(...)
"Mas dizer-se que o elemento monárquico era o que ali existia, é uma mentira e ao mesmo tempo uma injúria atirada à face dos cidadãos que ali combateram em prol da República."
(...)
"Portanto digo: Monarquia em Canudos nunca houve: nunca, nunca, nunca"



Ficcionista, historiador, jornalista Oleone Coelho Fontes é autor das seguintes obras: Lampião na Bahia, (ensaio sobre cangaço na Bahia dos anos 30), Cristais em Chamas (romance da saga garimpeira), O Treme-Terra - Moreira César a República e Canudos), (ensaio biográfico sobre a terceira expedição enviada a canudos), Uauá - Terra dos Vagalumes e Guerra de Canudos em Quatro Atos. Ainda inspirado em Canudos, Oleone ora prepara o romance A Quinta Expedição que deverá ser entregue ao público provavelmente no ano 2001.








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