terça-feira, 17 de abril de 2012

AVE-LALLEMANT: RIO PARAGUAI

A ALDEIA DE SÃO NICOLAU NOS OITOCENTOS: MAIS DE UM
SÉCULO ‘SEM NADA FAZER, NADA PENSAR, NADA SENTIR!’
Karina Moreira Ribeiro da Silva e Melo1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo. Esta pesquisa tem como principal objetivo analisar as fontes documentais primárias de
cunho administrativo disponíveis para o estudo do aldeamento de São Nicolau do Rio Pardo no
século XIX. Esse aldeamento foi fundado em 1757, sendo o primeiro constituído em território
lusitano, hoje correspondente ao Rio Grande do Sul. Enquanto os demais aldeamentos guaranimissioneiros
se extinguiram ou se transformaram em vilas e freguesias, São Nicolau permaneceu
como uma aldeia indígena até o terceiro quartel do século XIX. Procura-se recompor as relações
sociais e de poder em que estavam inseridos esses indígenas, levando-se em conta o seu papel de
agente social e sua participação ativa no processo histórico. Assim, busca-se entrever aspectos que
evidenciam processos de mudanças e permanências, no sentido de que tais elementos possam ser
articulados com os processos de formação de identidade.
Palavras-chave: São Nicolau do Rio Pardo, guarani-missioneiros, identidade.
Abstract. This research main objective is to analyze the primary sources of documentary stamp
administrative available for the study of the village of São Nicolau of Rio Pardo in the nineteenth
century. This village was founded in 1757, the first being established in lusitanian territory today
for the Rio Grande do Sul. As the other villages guarani-missionaries is extinguished or turned into
towns and parishes, São Nicolau was a native village until the third quarter of the nineteenth
century. Seeks to reconstitute the social relations and power in which these indians were included,
taking into account its role as social agent. In this way, try to perceive things that reveal processes
of change and stay in that these elements can be articulated with the processes of formation of
identity.
Keywords: São Nicolau of Rio Pardo, guarani-missionaries, identity.
1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, bolsista
CNPq, sob orientação do Prof. Dr. Eduardo Santos Neumann.
2
Introdução
O principal objetivo desse texto é apresentar o objeto e o problema dessa pesquisa que
recentemente iniciei, a nível de mestrado. De maneira sucinta, apresentarei também algumas
reflexões acerca das produções historiográficas referentes à problemática tratada e apontarei
caminhos e abordagens teóricas que podem ser usadas para resgatar a agência indígena na
construção dos processos históricos.
São Nicolau do Rio Pardo
A aldeia de São Nicolau foi fundada em 1757, em virtude do não-cumprimento do Tratado de
Madri. Cerca de 700 famílias de índios missioneiros foram trazidas e arranchadas nos arredores da
cidade de Rio Pardo, localizada no Continente do Rio Grande de São Pedro, atual estado do Rio
Grande do Sul. No extremo sul da América portuguesa, as Coroas ibéricas buscaram estabelecer
suas possessões territoriais na região do rio da Prata em 1750, através do Tratado de Madri. Uma
série de conflitos foi desencadeada, envolvendo outra série de negociações nas quais os indígenas
guaranis das missões orientais estiveram envolvidos de maneira crucial. Tais indígenas eram alvo
de disputa entre as Coroas que buscavam aliciar novos súditos que garantissem a posse do
território. Os índios guarani-missioneiros se encontravam em território pertencente à ‘Banda
Oriental’ e eram aliados dos espanhóis, motivo pelo qual os portugueses buscaram estabelecer
alianças e trazê-los para o lado lusitano. Uma das preocupações centrais do governo português,
tanto do ponto de vista geopolítico, quanto econômico, era constituir aldeias em locais
estratégicos, principalmente durante a década de 1760. Assim, em virtude das urgências de caráter
militar houve negociações e sucessivas migrações de indígenas para territórios lusos, alguns dos
quais em situação de litígio fronteiriço. No início de 1759, Gomes Freire deu algumas instruções2
para o estabelecimento dos indígenas que lá estavam e para aqueles que continuavam a chegar.
Nesse contexto foi fundado o aldeamento de São Nicolau do Rio Pardo, o primeiro aldeamento
guarani-missioneiro do Continente constituído nos moldes que remetem aos da política
2 Tais instruções pareciam estar de acordo com as diretrizes assimilacionistas oriundas do Diretório dos Índios.
Assinado em 1758, o Diretório dos Índios era um conjunto de normas e instruções, cujo principal objetivo era inserir o
indígena às sociedades que se formavam na América portuguesa, e a sua principal característica era o
assimilacionismo. A política de assimilação dos indígenas previa a eliminação de quaisquer diferenças entre ‘brancos’
e ‘índios’. A integração dos indígenas só seria possível se eles fossem civilizados de acordo com os hábitos, costumes
religiosos e culturais dos portugueses.
3
assimilacionista do marquês de Pombal3. Dos cinco aldeamentos guarani-missioneiros fundados
em território luso, São Nicolau parecia ser o ponto de partida e chegada para os demais. Dele
foram transferidas as populações indígenas que formaram os aldeamentos de Santo Antônio da
Patrulha4 e de Nossa Senhora dos Anjos5; assim como também recebeu os indígenas dos
aldeamentos que se mantiveram por pouco tempo, como o de Nossa Senhora da Conceição do
Estreito e provavelmente São Nicolau do Rio Pardo do Jacuí6. São Nicolau foi o primeiro
aldeamento a se constituir enquanto tal, e o último a se desmantelar. Em 1852, o vice-presidente da
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Luiz Alves Leite de Oliveira Bello, afirmava: “É a
aldeia mais antiga da Província e está reduzida a 273 indivíduos de origem guarani (...)” 7.
Enquanto os demais aldeamentos guarani-missioneiros do Continente do Rio Grande se
extinguiram ou se transformaram em vilas e freguesias, São Nicolau permaneceu como uma aldeia
indígena até o terceiro quartel do século XIX. Quais motivos teriam levado São Nicolau do Rio
Pardo a permanecer enquanto um aldeamento indígena, e quais razões possibilitaram sua
sobrevivência durante este considerável período de tempo, quando todos os demais não alcançaram
tal longevidade?
São Nicolau encontrava-se entre os limites fronteiriços dos Impérios ibéricos. Essa posição
geográfica e política peculiar fez com que os indígenas tivessem suas possibilidades de mobilidade
espacial aumentadas. Ao final do século XVIII, o governador do Continente, estava ciente do
paradeiro dos índios que fugiam de um aldeamento para outro, e do que esse fluxo significava para
a política indigenista da capitania. José Marcelino ponderava sobre os resultados que teria
conseguido no governo dos índios, caso não fosse a guerra e caso não tivessem “(...) os mais índios
3 Sebastião de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, foi o ministro todo-poderoso de D. José I (1750-1777) e
principal mentor da política indigenista, que ocupava lugar de destaque no bojo das reformas político-administrativas,
a fim de recuperar a defasada economia portuguesa.
4 Esse aldeamento tinha vários topônimos: aldeia da Patrulha, aldeia Nova, aldeia do Registro da Serra, Aldeia Velha e
Santo Antônio da Guarda Velha. Para maiores detalhes ver LANGER, Paulo Protásio. Os Guarani-Missioneiros e o
colonialismo luso no Brasil meridional, projetos civilizatórios e faces da identidade étnica (1750-1798). Porto Alegre,
2005, p.107-166.
5 A aldeia de Nossa Senhora dos Anjos foi o maior aldeamento do Continente do Rio Grande em termos
populacionais, contando com três mil almas em 1763, ano de sua fundação.
6Os anos de fundação e extinção dos aldeamentos são: Santo Antônio da Patrulha (1758-1772), Nossa Senhora da
Conceição do Estreito (1753-1763), Nossa Senhora dos Anjos (1763-1778) e para São Nicolau do Rio Pardo do Jacuí,
sabe-se somente que foi fundado em 1757, mesmo ano em que foi fundado São Nicolau do Rio Pardo. Alguns desses
dados estão presentes em LANGER, Protásio Paulo. Op. Cit. 2005, p. 128.
7 Arquivo Histórico de Porto Alegre / AHPA. Relatório do Vice-Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande
do Sul, Luiz Alves Leite de Oliveira Bello, na abertura da Assembléia Legislativa Provincial, 01 de outubro de 1852.
4
e índias pés para fugirem para o Rio Grande (...) 8 ”. No início do século XIX, um funcionário do
Império espanhol também relatava o trânsito dos indígenas e sua “noção de liberdade” em sentido
contrário às fronteiras impostas por demarcações territoriais: “(...) pero lo peor de estas
emigraciones es los muchos que se pasan a los dominios de Portugal, perdiendo el Estado estos
vasallos y aumentando el poder al extranjero en aquella parte. Las jurisdicciones de Río Pardo,
Puerto Alegre y Río Grande están llenas de indios de Misiones (...)” (DOBLAS, GONZALO
[1810], APUD WILDE, 2003. PP. 105-135). São Nicolau se situava numa região de conflito, onde
havia diferentes interesses, em busca da definição de limites territoriais. Tais limites ainda não
haviam sido definidos e os indígenas se encontravam em zonas fronteiriças, nas quais circulavam
pessoas, idéias e objetos. Seguindo os apontamentos de Guillaume Boccara, esse ‘complexo
fronteiriço’, constitui “un inmenso ‘laboratorio’ para el estudio de los procesos de mestizaje y de la
creación de nuevos sujetos históricos” (BOCCARA, 1999, PP. 425-426).
A lacuna historiográfica
São raros os trabalhos que abordam a aldeia de São Nicolau, estando os mesmos centrados na
segunda metade do século XVIII. No entanto, parece ser especialmente interessante analisar como
e por que São Nicolau teria sido o único aldeamento guarani-missioneiro a sobreviver por tanto
tempo e em contextos marcados por tantas mudanças nas políticas indigenistas. É instigante
constatar a perenidade de São Nicolau, sobretudo ao longo do oitocentos, século em que há uma
grande e grave lacuna na historiografia brasileira com relação às populações indígenas. A
participação do índio na História aparece constantemente associada aos primeiros contatos com o
colonizador, e paulatinamente suas ações e suas histórias se tornaram invisíveis nos discursos
historiográficos. No mais das vezes, são vistos como vítimas passivas de um passado ao qual não
foram capazes de sobreviver, nem física, nem culturalmente. Devido ao inegável extermínio físico
que houve, é comum pensar que praticamente não restaram índios e que os (apenas) remanescentes
estão tão diferentes do que um dia foram, que não são mais índios verdadeiros, senão índios
aculturados. Como parte desse processo que acabou por apagar a participação ativa da população
indígena na construção do estado nacional brasileiro, os guarani-missioneiros de São Nicolau
também foram postos à margem na História. É importante ressaltar que, no Brasil, são
pouquíssimos os estudos históricos feitos sobre populações guaranis durante o século XIX. Ao que
8 Biblioteca Nacional de Lisboa / BNL. Divisão de Reservados. Cód. 10854, carta do governador José Marcelino de
Figueiredo ao vice-rei marquês do Lavradio. Porto Alegre, novembro de 1776 [não consta o dia].
5
parece, para o caso especifico do Rio Grande do Sul9, todos os trabalhos de historia indígena no
século XIX são sobre os kaingang, sociedades ligadas à família lingüística Jê10.
As populações que haviam passado por uma experiência prévia de aldeamento, como é o
caso dos guarani-missioneiros de São Nicolau, tiveram suas histórias condicionadas à
determinados recortes espaço-temporais. Após a expulsão dos jesuítas em 1759, e a ‘conquista’
dos ‘Sete Povos das Missões’ em 1801, os guarani-missioneiros foram invisibilizados na
historiografia, como se suas existências fossem indubitavelmente dependentes da existência das
missões e dos missionários, e por extensão, dependentes do período em que foram feitas essas
alianças: a segunda metade do século XVIII. Desse modo, os guaranis, que viveram e
estabeleceram outras relações no século XIX, fora do espaço missionário, deixaram de existir na
produção historiográfica do estado, mas por certo não deixaram de existir na história. Esses
indígenas foram guaranis e missioneiros, e essas palavras – guaranis e missioneiros – também
corresponderam à situações que foram conflitantes em alguns momentos, convergentes em outros,
mas dificilmente excludentes. Ou seja, é descabido pensar que, os indígenas guaranis que foram
‘missioneiros’ tivessem deixado de ser guaranis, ou talvez sido ‘menos guaranis’ que aqueles que
não viveram as mesmas experiências. Da mesma maneira, esses indígenas certamente não
esqueceram automaticamente as relações estabelecidas nas missões quando essas foram extintas ou
quando os padres missionários foram expulsos.
Como e por que São Nicolau durou mais de um século?
Ao longo da segunda metade do século XVIII houve outros aldeamentos fundados no
Continente do Rio Grande. Porém, São Nicolau foi o único a permanecer como um aldeamento
indígena. Conforme colocado no início deste texto, todos os demais aldeamentos foram extintos ou
9 Essa informação é referente a um levantamento preliminar, realizado por mim, no que se refere a trabalhos históricos
publicados e existentes nas bibliotecas, e/ou devidamente indexados nos sites das principais universidades do estado
do Rio Grande do Sul, a saber: (PUC-RS - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul); (UCPEL -
Universidade Católica de Pelotas); (UCS - Universidade de Caxias do Sul); (UFPEL - Universidade Federal de
Pelotas); (UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul); (UFSM - Universidade Federal de Santa Maria);
(ULBRA - Universidade Luterana do Brasil); (UPF - Universidade de Passo Fundo); (URCAMP - Universidade da
Região de Campanha); (UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul); (URI -
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões); (URG - Universidade do Rio Grande); (UNISC -
Universidade de Santa Cruz do Sul); (UNISINOS - Universidade do Vale do Rio dos Sinos). Nas principais
universidades especializadas na temática da historia indígena no país, como a Universidade Federal Fluminense
(UFF), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade de São Paulo (USP), nos programas de pósgraduação
também não foi realizada nenhuma pesquisa sobre índios guarani durante o século XIX.
10 Os kaingang são ligados à família Jê e ao tronco Macro-Jê.
6
transformados em vila ou freguesia. O aldeamento de Nossa Senhora dos Anjos, por exemplo, é a
atual cidade de Gravataí, situada próxima à capital gaúcha. São Nicolau localizava-se ao lado da
cidade de Rio Pardo, uma das mais antigas do estado, e permaneceu sendo um território dos índios
guaranis que o habitaram até o terceiro quartel do oitocentos, embora este tenha sido o século em
que muitos dos antigos aldeamentos foram extintos e novos foram fundados, a fim de seguir as
novas diretrizes da política indigenista. Isso não ocorreu somente no sul, mas em todo o Brasil. O
século XIX foi um período de grandes transformações e contradições políticas. As tensões
decorrentes da mudança de regimes políticos e os renovados propósitos econômicos oriundos da
ascensão do capitalismo refletiam as disparidades da época. Nos oitocentos, a política indigenista,
assim como a política de ‘povoamento’ do Brasil, foi marcada pela preocupação com a questão da
terra como principal meio de erigir a nação. Com a criação do Estado nacional brasileiro, tornou-se
necessário construir uma memória nacional que reunisse a sociedade em torno de novas
identidades históricas e culturais. Os discursos históricos e identitários de políticos e intelectuais se
contradiziam e evidenciavam as disputas presentes na elaboração da história, da memória coletiva
e da identidade da nação (ALMEIDA, 2007. PP. 192-212). Enquanto o jovem Estado nacional
brasileiro buscava auto-estima e símbolos identitários que incorporassem grupos étnicos presentes
em seu território, as comunidades indígenas lutavam para continuar existindo enquanto uma
coletividade em meio às políticas assimilacionistas.
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, fez parte da construção dos
discursos sobre a historia da formação do Brasil e da sua identidade nacional. Dessa forma,
também contribuiu para a repecursão de discursos sobre os indígenas que perduram até os dias de
hoje. Entre 1854 e 1857, Francisco Adolpho de Varnhagen publicou em cinco volumes a obra
História geral do Brasil, sob o patrocínio imperial. No primeiro volume, ele assentiu: para os
índios, “povos na infância, não há história: há só etnografia” (VARNHAGEN, [1854], 1942. PP
42). Em 1858, Avé-Lallemant viajou pela Província do Rio Grande do Sul e, de maneira diferente,
também tentou desvanecer a presença indígena na aldeia de São Nicolau. O médico alemão deixou
suas impressões sobre o aldeamento: “Ao visitar a aldeia de São Nicolau, encontrei na praça em
frente da capela um silêncio tumular. (...) Em breve descobri algumas cabanas, mas lá também se
mostrava a existência miserável, incolor. (...) Por isso são indubitavelmente seres humanos
provisórios. Tal como os indivíduos é o conjunto! E assim é também a aldeia de São Nicolau um
estabelecimento para esses retardados, onde lentamente, preguiçosamente vegetam sua vida de
7
lêmures sem nada fazer, nada pensar, nada sentir!” (AVÉ-LALLEMANT, [1858], 1980, PP. 168-
169). Neste mesmo ano, Joaquim José da Fonseca e Souza Pinto, diretor da aldeia de São Nicolau,
escreveu ao diretor geral dos índios informando que “a aldeia há muito está lançada no
esquecimento e a miséria nela é uma terrível verdade, seus povoadores são quase todos velhos e
crianças, encontrando-se dentre aqueles muitos servidores ao Estado, que por sê-lo, se inutilizaram
por ocasião da guerra civil nesta Província”11. As opiniões de Avé-Lallemant e do diretor da aldeia
de São Nicolau parecem ser conflitantes, mas têm algo em comum: todas elas contribuíram, de
algum modo, para apagar as ações dos indígenas, negando-lhes a participação na construção do
processo histórico. Pode-se, no entanto, encontrar uma brecha nas palavras deste este último que
indica o oposto. Segundo ele, os índios da aldeia que outrora estiveram em ‘idade produtiva’
teriam se inutilizado sendo úteis ao Estado. A maioria dos habitantes da aldeia era composta por
velhos e crianças naquela ocasião. Entre os velhos encontravam-se alguns inválidos,
provavelmente, devido à participação na ‘revolução Farroupilha’, como ficou conhecida a guerra
regional de caráter republicano contra o governo imperial do Brasil. Além disso, chama a atenção
o fato de quase não haver homens em idade produtiva na aldeia. Assim, para entender a ação dos
indígenas frente às situações com as quais se depararam e os processos de formação da suas
identidades, nos quais eles também se posicionaram, é necessário compreender o que eles
sentiram, como pensaram e o que eles fizeram com as suas vidas e com os limites que foram
impostos a elas. Certamente, o aldeamento de São Nicolau não teria sobrevivido por mais de um
século se seus componentes não tivessem agido, pensado e sentido nada, como escreveu Ave-
Lallemant. Ao contrário, para que o aldeamento fosse o único a alcançar tal longevidade, os
indígenas agiram conscientemente e de acordo com os sentimentos que os fizeram lutar por suas
sobrevivências físicas e culturais.
Nesse sentido, convém ressaltar que, se São Nicolau foi um espaço eminentemente indígena
no decorrer do século XIX, isso também se deu graças ao acionamento de uma identidade coletiva
na busca por direitos também coletivos. Em 1823, o capitão da aldeia, Miguel Guarací, solicitou,
através de um requerimento, que o privilégio da extração da erva-mate fosse mantido. Esse
privilégio havia sido concedido pelo governador José Marcelino na década de 1770. Trata-se do
mesmo governador que se mostrou preocupado com a fuga dos índios e índias e consciente dos
fluxos e dos paradeiros deles e delas. O privilégio garantia o monopólio do plantio, colheita e
11 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul / AHRS, Correspondência ativa José Joaquim da Fonseca e Souza Pinto;
José Joaquim de Andrade Neves. Diretoria Geral dos Índios, maço 4, março de 1858.
8
comercialização da erva-mate pelos aldeados de São Nicolau. O argumento apresentado por
Miguel Guarací para mantê-lo foi a necessidade de sustentar a aldeia e reparar a sua igreja12.
Sobre a participação dos indígenas guarani na construção da história da Província do Rio
Grande, há provas interessantes, entre as quais a seguinte vale a pena ser mencionada. Embora
ainda não tenha sido possível saber a procedência desses guaranis, é sem dúvida importante pensar
a atuação dos guaranis de São Nicolau levando em consideração histórias como a subscrita. Em
1865, um ano após o início da guerra do Paraguai, três índios kaingang, oriundos do toldo do
cacique Fong, se obrigavam “a servirem como voluntários do exército”. Os indígenas não só
achavam-se autorizados pelo cacique a prestarem tais serviços, como tiveram sua própria
autoridade reconhecida pelo dono da estância, que permitiu que se “fizesse a reunião no toldo, ou
taba de baixo, sob a direção do capitão”, dando “aos mesmos o armamento a fuzil, equipamentos,
arreios, cavalos e o fardamento que for necessário13”. Tal autorização foi concedida através de uma
portaria, visto que se tratava da estância do presidente da Província, Francisco do Rego Barros, o
Visconde de Boa Vista. Os três índios, a saber, Antônio Portella, Manoel Feliciano e Manoel da
Silva, foram respectivamente nomeados como capitão, tenente e alferes da Companhia ou Corpo
que os mesmos formaram com cerca de duzentos guaranis14. Dessa forma, o que chama a atenção
na situação descrita pelo documento, não é somente a aliança estabelecida entre uma autoridade
imperial e os indígenas para a defesa, a conquista e a garantia das fronteiras territoriais, mas
também a aliança estabelecida entre índios kaingang e guarani. Como se nota, com relação às
fronteiras elas parecem ser bem mais complexas, visto que nem sempre se tratava de territórios.
Conforme exposto acima, há pistas que oferecem indicativos para pensar em limitações e
delimitações sociais, sócio-culturais, étnicas e políticas. Como parte daquilo que pode ser
entendido como uma complexidade fronteiriça, podemos apontar políticas indigenistas e discursos
que contribuíram para polarizar as diferenças sócio-culturais entre esses grupos, através do
conhecido antagonismo entre tupis e tapuias. Segundo o historiador John Monteiro, “o que se nota
nas fontes quinhentistas e seiscentistas é precisamente a tensão entre a busca de uma unidade Tupi
– afirmada no contraste com os Tapuia – (...), esta tensão ganhou novos contornos no século XIX,
12 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, II – 35, 36, 1 n. 7. Guarací, Miguel e outros. Pedem, o capitão-mor e outros
lavradores, da aldeia de São Nicolau, na vila do Rio Pardo (RS), seja respeitada a concessão recebida há cinquenta
anos, do privilégio da plantaçao e preparo da erva-mate. Aldeia de São Nicolau, 1823.
13 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul / AHRS, Memorial sobre os Guaranis, do Visconde de Boa Vista
apresentado à Presidência da Província, Diversos, maço 5, agosto de 1865. Os três últimos trechos são citações deste
documento.
14 O grifo é meu.
9
através das releituras que os primeiros historiadores nacionais fizeram dessas mesmas fontes. No
entanto, se parte do problema pode ser atribuída às tresleituras de observadores que pouco
entendiam da organização social ameríndia, esses relatos também deixam transparecer algo da
percepção indígena do processo de “etnificação.”” (MONTEIRO, 2001. PP. 68).
A homogeneidade da jovem nação não seria conseguida facilmente, dada sua tamanha
heterogeneidade étnica. Nesse contexto, era preciso que o estado nacional tivesse não somente uma
unidade territorial, mas também memórias coletivas que garantissem uma identidade histórica e
cultural. Diante desse quadro, “é instigante identificar, então, a construção de, pelo menos, três
imagens de índios com valorações diversas nos discursos históricos e políticos do período: os
‘idealizados do passado’, os ‘bárbaros cruéis’ e os ‘desagregados’” (ALMEIDA, IDEM. PP. 200).
Os primeiros eram enaltecidos e de certo modo admirados, os segundos eram temidos e
combatidos, e os terceiros eram tidos como misturados e aculturados, e por isso, desdenhados e/ou
desprezados. Para o caso aqui tratado, os índios kaingang tiveram sua imagem vinculada à
selvageria; os índios guarani à assimilação, e, por conseguinte, à aculturação. Assim, as
identidades dos grupos indígenas na Província de São Pedro também estiveram vinculadas à
dicotomia entre índios missioneiros e índios selvagens. No entanto, segundo o memorial que o
Visconde da Boa Vista apresentou à Presidência da Província em 1865, os ‘selvagens kaingang’
estavam a liderar os ‘assimilados guaranis’, e ambos planejavam ir à guerra cujo objetivo era
garantir a posse do território brasileiro.
Nas condições impostas pelo contexto imperial também é possível visualizar a
territorialização enquanto um processo de reorganização social que estabelece uma “intervenção da
esfera política que associa – de forma prescrita e insofismável – um conjunto de indivíduos e
grupos a limites geográficos bem determinados” (PACHECO, 1999. PP. 35). Ao que parece, os
índios de São Nicolau teriam conseguido garantir sua identidade indígena também através da
manutenção do território da aldeia e da longevidade da mesma. As relações estabelecidas neste
contexto foram fundamentais para reelaborações culturais e identitárias e para que esses indígenas
atuassem ativa e diferentemente em prol de seus interesses.
Por uma nova história indígena e brasileira
10
Abordagens com aproximações entre a História e a Antropologia, têm promovido debates
profícuos ao problematizarem conceitos e perspectivas teóricas. Segundo a historiadora Maria
Regina Celestino de Almeida15, “o resultado tem sido o desenvolvimento de pesquisas
interdisciplinares que tendem a valorizar as atuações dos índios como importantes variáveis para a
compreensão dos processos históricos nos quais se inserem”. De acordo com as novas correntes da
Etnohistória, tais reformulações não devem ser tratadas como contaminações que provocam o
desaparecimento do ser social indígena ou de uma suposta pureza cultural. O processo de
construção de identidades culturais não pode ser visto somente como um embate entre dominantes
e dominados; há trocas culturais que situam novas realidades sociais. Conforme Guillaume
Boccara, “ los mestizajes o las mezclas pueden, en cierto contexto y en función del estado de las
relaciones de fuerza, de la naturaleza del contato y del sentido que los agentes dan a sus praticas,
tener formas indígenas” (BOCCARA, 2005. PP. 29). Assim, a Etnohistória não deve ser entendida
como ‘história das etnias’, mas sim como percepções e construções que adquiriam sentido ao
longo do tempo e representavam para os grupos indígenas a possibilidade de controle sobre suas
histórias, através da sua capacidade de articular fatos ocorridos no passado e no presente para
pensar e decidir sobre o futuro (SIDER, 1994. PP. 109).
Apesar da inegável participação do indígena na construção do Brasil, atestada por algumas
fontes históricas, geralmente as suas histórias são tidas como algo à parte. No caso dos guaranimissioneiros
oriundos dos sete povos das missões, ainda é comum que eles tenham suas trajetórias
atreladas às idéias pejorativas sobre mito, lenda ou tradição. Traços das contradições presentes nos
discursos de políticos e intelectuais do século XIX podem ser encontrados, como por exemplo, na
conclusão do livro intitulado História da Missões Orientais: “Nas gemas do nosso folclore, nas
nossas lendas do campo, em todas as tradições da vida gaúcha, ficou a lembrança do índio
missioneiro. Carinhosa expressão de amor, nas bravatas heróicas do pago, a china, a chinoca, ainda
vive na sua beleza imortal de flor da estância” (PORTO, 1943. PP. 230). Podemos notar a
contradição existente entre o que teria permanecido na memória sobre a participação dos índios
guarani na história do Rio Grande do Sul e o que atestam as fontes da época.
15 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. "Apresentação" in Os índios na História: abordagens interdisciplinares,
Revista Tempo, Rio de Janeiro, nº 23, vol. 12, p. 1-4, Julho de 2007. Disponível em:
http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/v12n23a01.pdf
11
Não é raro encontrar esse tipo de abordagem em publicações sobre o tema. Após o período
colonial, os índios guaranis desaparecem do cenário historiográfico sul rio-grandense. Esta ótica
reducionista está quase sempre impregnada pelo viés aculturacionista com que a história das
populações ameríndias é usualmente tratada. Por esse mesmo motivo, há uma lacuna
historiográfica que os torna praticamente invisíveis a partir dos oitocentos. Para o caso do estado
do Rio Grande do Sul, não há produções historiográficas sobre indígenas guaranis no século XIX.
A maioria dos estudos realizados sobre populações guaranis do Rio Grande do Sul é anterior ao
século XVIII. Porém, nesses trabalhos mais recentes, a historiografia regional que trata a questão
indígena dos povos guaranis considera que as estratégias usadas pelos indígenas fazem parte de um
processo no qual eles também puderam agir. Alguns trabalhos enfocaram a ação dos índios através
da análise de documentos produzidos por eles próprios (NEUMANN, 2005). Apesar de terem sua
trajetória condicionada aos ditames do colonizador, os indígenas conseguiram tecer suas redes
sociais e, por conseguinte, suas próprias histórias. Nesse sentido, Elisa Garcia, analisando ‘as
diversas formas de ser índio no extremo sul da América portuguesa’ entre os anos de 1750 e 1820,
entende que “não havia uma única maneira de viver para as pessoas assim designadas no contexto
estudado. Esta categoria trazia em si limites e possibilidades e foi através da conjugação entre as
situações vividas e os seus próprios interesses que os índios ponderavam sobre os rumos a serem
tomados” (GARCIA, 2007, 292-293).
Pode-se dizer que São Nicolau não é um aldeamento representativo do seu enquadramento
social: localizava-se na fronteira entre o Império espanhol e português até 1801, com a conquista
das missões orientais do Uruguai; não se transformou em vila ou freguesia, tampouco se extinguiu,
como aconteceu com todos os demais aldeamentos guarani fundados no Continente do Rio
Grande. Isso significa que, em certa medida, é possível romper barreiras para que histórias sobre
populações guarani no século XIX sejam escritas e contadas. Se antes pouco ou nada se escrevia
em virtude da sua suposta assimilação e desaparecimento em meio à sociedade nacional, e também
em meio à documentação, há um aldeamento como São Nicolau que, com suas várias
peculiaridades, pode revelar aspectos importantes a respeito da história dos índios no Brasil
oitocentista. Do mesmo modo, a sobrevivência e o ressurgimento de diferentes grupos étnicos no
Brasil dos nossos dias, afirmando suas identidades indígenas obriga não só historiadores, mas
antropólogos e intelectuais a repensar as histórias nacionais e a rever as teorias sobre elas.
12
ABREVIATURAS
AHRGS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
AHPA – Arquivo Histórico de Porto Alegre
BNL – Biblioteca Nacional de Lisboa
BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
FONTES CONSULTADAS
Fontes primárias:
Biblioteca Nacional de Lisboa. Divisão de Reservados, PSS, caixa 3.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. II – 35, 36, 1 n. 7.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Correspondência ativa José Joaquim da Fonseca e Souza
Pinto; José Joaquim de Andrade Neves, Diretoria Geral dos Índios, maço 4, 1858.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Diversos, Diretoria do Aldeamento de São Nicolau,
maço 2, 1871.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Memorial sobre os Guaranis, do Visconde de Boa Vista
apresentado à Presidência da Província, Diversos, maço 5, agosto de 1865.
Arquivo Histórico de Porto Alegre, Relatórios dos Presidentes da Província, Catequese e
Civilização dos Índios. 1852.
Documentos impressos:
AHRS, Os Índios d’Aldeia dos Anjos Gravataí, século XVIII. Porto Alegre, EST, 1990.
DIRETÓRIO QUE SE DEVE OBSERVAR NAS POVOAÇÕES DOS ÍNDIOS DO PARÁ E DO
MARANHÃO ENQUANTO SUA MAJESTADE NÃO MANDAR O CONTRARIO. Apud,
ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios. Um projeto de civilização no Brasil do
século XVIII. Brasília: Editora UnB, apêndice.
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