domingo, 1 de abril de 2012

Amazônica (LGA), que desempenhou aquelas funções básicas exercidas tradicionalmente
por toda e qualquer língua numa comunidade, o que acabou retardando o processo de
hegemonia do português. A memória desse fato, porém, se perdeu, fragmentada nos
próprios falantes que restam. Quanto aos atuais descendentes daqueles que falavam a LGA,
eles nem sequer sabem que ela existiu e que foi falada, até muito recentemente, por seus
antepassados, e ignoram que ainda hoje é bastante usada na região do rio Negro. Esse
apagamento, em grande medida, é o resultado do desinteresse dos pesquisadores pela
história social da língua, que ao desconsiderar essa dimensão, não levaram em conta a sua
força ativa, organizadora da sociedade e do próprio tecido histórico. Em conseqüência, foi
criada uma lacuna, que acabou sendo preenchida por “observações marginais, que
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expressam muito mais os preconceitos de seus autores sobre os grupos indígenas, do que
uma análise sobre a questão lingüística colonial” (Barros 1982:1). Os raros estudos
contemporâneos realizados se enquadram numa perspectiva filológica e lusófona, com o
objetivo muito mais de dar conta dos empréstimos lexicais das línguas indígenas ao português
falado no Brasil, do que refletir sobre o uso dessas línguas.
No entanto, desde o final da década de 1920, a Escola dos Annales, que renovou os
estudos históricos, vem chamando a atenção para o poder da língua e para
seu envolvimento com outras formas de poder. O historiador francês Lucien Febvre,
discutindo a relação entre linguagem e mentalidade, advertiu os pesquisadores de sua área
para a necessidade de acompanharem o trabalho dos lingüistas, sem o qual corriam ‘o sério
risco de interpretar incorretamente muitos de seus documentos que não são tão
transparentes ou desprovidos de problemas como freqüentemente se supõe.”(Burke 1995:
31). Porém, a abordagem da questão histórica da língua só começou a ganhar consistência a
partir dos anos 1960-70, com o desenvolvimento da sociolingüística, que permitiu analisar a
língua como uma instituição social, fazendo parte constitutiva da cultura, assim como das
práticas sociais cotidianas, o que representou também uma contribuição para os historiadores,
na medida em que concorreu para uma compreensão mais refinada das fontes orais e escritas.
Essa área transdisciplinar, denominada pelo historiador inglês Peter Burke como ‘história
social da linguagem’, ou ‘história social do falar’, construiu seu objeto em torno da busca de
explicações de como e porque, ao longo do tempo, algumas línguas ou variedades de línguas
se difundiram geográfica ou socialmente ou foram impostas com êxito, enquanto outras
retraíram-se e até mesmo desapareceram.
No caso específico da Amazônia brasileira, a documentação histórica contém
evidências, que apontam a Língua Geral Amazônica (LGA) como a língua em que brancos,
índios, negros e todo tipo de mestiços desenvolveram a maioria das suas práticas sociais e a
utilizaram como principal meio de interação, sobretudo no período colonial. Trata-se, aqui, de
realizar uma abordagem histórica sobre a dinâmica das línguas na região, para acompanhar
o processo de tensões entre a língua portuguesa e as línguas indígenas, e localizar uma das
principais bases de identidade étnica e regional. Acompanhando Peter Burke, este trabalho
postula que é nos fatores históricos e políticos que se deve buscar explicações sobre a
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diversidade lingüística e sobre o fato da língua de comunicação intergrupal não ser o
português, mas uma língua indígena.
Para discutir a história social das línguas na Amazônia brasileira, apresentaremos,
nesse capítulo, o quadro lingüístico no momento da Conquista, destacando três aspectos: a) as
funções sociais das línguas faladas na região, sobretudo uma delas, a função de comunicação;
b) a atitude dos falantes em relação a elas; c) e o papel que desempenharam como fatores de
identidade étnica e nacional e de coesão social em diferentes momentos históricos. Em
seguida, discutiremos a situação de contato entre essas línguas, e as marcas geradas por esse
contato, com observações sobre as situações de bilingüismo encontradas a partir da
documentação consultada, diferenciando ‘bilingüismo social’, quando numa sociedade
determinada são faladas duas ou mais línguas, do ‘bilingüismo individual’, que envolve os
diferentes estágios pelos quais os indivíduos, portadores da condição bilingüe, passam na sua
trajetória de vida (Appel & Muysken 1996: 10-11).
2. 2 - O quadro de línguas na Amazônia
“Na antiga Babel houve setenta e duas línguas; na Babel do Rio das Amazonas já
se conhecem mais de cento e cinqüenta, tão diversas entre si como a nossa e a
Grega; e assim quando lá chegamos, todos nós somos mudos, e todos eles surdos.
Vede agora quanto estudo e quanto trabalho será necessário para que estes mudos
falem e estes surdos ouçam”. Pe. Antônio Vieira, 1662 – Sermão da Epifania
(2001: 608).
A Pan-Amazônia - um território de 7.275.300 km², que representa 44.5% da
América do Sul - continua sendo, ainda hoje, a região de maior densidade lingüística do
continente americano, com um mosaico de línguas variadas, o que parece indicar a
existência, no passado, de movimentos migratórios intensos e em grande escala dentro de
seu território. Nele, no atual século XXI, são faladas cerca de 240 línguas - metade das
quais na Amazônia brasileira - pertencentes a 52 famílias lingüísticas. No entanto, as
comunidades lingüísticas são demograficamente frágeis nesta região, onde se verifica uma
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das mais baixas concentrações de população por língua. Nenhuma delas possui mais de
40.000 falantes, apenas cinco são faladas por mais de dez mil indivíduos, aproximadamente
cinqüenta línguas são usadas por menos de 100 pessoas, das quais nove contam com apenas
20 falantes. Muitas delas não são mais aprendidas pelas crianças, o que é uma das
características do que se convencionou chamar de ‘línguas moribundas’ ou ‘línguas em
perigo’ (Queixalós & Renault-Lescure 2000: 5-14).
Recentemente, Rodrigues (2000) esboçou um panorama das línguas indígenas da
Amazônia, considerando que nelas se encontram fenômenos fonéticos, fonológicos, de
organização gramatical, de construção do discurso e de uso das línguas, que não se
encontram em línguas de outras partes do mundo. Daí a preocupação de mantê-las vivas,
porque como já havia observado Couto de Magalhães, no contexto do positivismo do final
do século XIX, elas “são o mais valioso documento” que a ciência tem para resolver dois
problemas: “os graus de parentesco da grande família americana e as leis a que o
entendimento humano está sujeito no desenvolvimento da poderosa faculdade de compor
línguas” (Magalhães 1885:55). Ou, como é formulado hoje, em outros termos:
“Se as políticas de desenvolvimento – ou a falta delas – continuarem a
determinar a rápida extinção das línguas amazônicas, é mais provável que
fenômenos raros ou únicos, mas de importância crítica para a melhor
compreensão da linguagem humana, desaparecerão sem sequer terem sido
identificados” (Rodrigues 2000:26).
O quadro atual de línguas amazônicas já é o resultado de mudanças radicais, ocorridas
nos últimos quatro séculos, período em que muitas línguas foram extintas, outras tiveram
seu número de falantes reduzido e outras, de origem européia, foram introduzidas na região
e tornaram-se hegemônicas, conforme demonstra a documentação histórica. No contexto
multilingüe do rio Babel, o dado histórico novo mais importante, que merece abordagem à
parte, talvez seja, além da introdução da língua portuguesa na região, a formação da Língua
Geral, a partir de uma das línguas indígenas aí existentes.


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