terça-feira, 27 de março de 2012

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Revista USP
versão ISSN 0103-9989
Rev. USP n.75 São Paulo nov. 2007

PENSANDO O FUTURO: CIÊNCIAS BIOLÓGICAS



A ciência norte-americana visita a Amazônia: entre o criacionismo cristão e o poligenismo "degeneracionista"





Maria Helena Pereira Toledo Machado

Professora do Departamento de História da USP e autora de, entre outros, Brazil Through the Eyes of William James. Letters, Diaries, and Drawings, 1865-1866 (David Rockefeller Center for Latin American Studies/Harvard University Press)





LOUIS AGASSIZ: UMA CIÊNCIA CRIACIONISTA?

Entre 1865-66 percorreu o Brasil uma das mais conhecidas expedições científicas, a Expedição Thayer, liderada pelo cientista de origem suíça Louis Agassiz (1807-73). Apesar de sua origem européia, o Agassiz que aportou no Rio de Janeiro na década de 1860 era, em realidade, um dos principais nomes da ciência naturalista norte-americana. De fato, tendo imigrado para os EUA na década de 1840, Louis Agassiz havia construído em terras americanas uma notável carreira como cientista, professor da Lawrence School, ramo da Harvard University dedicado aos estudos científicos, fundador e diretor do reconhecido Museu de Zoologia Comparada da mesma universidade.

Porém, além de sua carreira científica propriamente dita, Agassiz havia se tornado um dos mais famosos divulgadores de uma ciência cristã, que buscava estabelecer os laços entre o finalismo estático proveniente do pensamento religioso e transcendentalista que animava os meios intelectuais da época e os procedimentos de uma ciência naturalista moderna. Tendo se fixado na Nova Inglaterra, mais especificamente em Cambridge, Massachusetts, desde sua chegada, Agassiz havia incorporado um papel que pode explicar seu retumbante sucesso, que o catapultou, em poucos anos, ao nível de mais notável e popular cientista da América do Norte: o de divulgador de uma ciência idealista e cristã, que reafirmava as crenças do criacionismo, ao mesmo tempo que empregava uma linguagem vanguardista, recheada de nomes técnicos e alusões a procedimentos científicos. Nessa linha, as palestras proferidas por Agassiz no Lowell Institute de Boston, voltadas para a divulgação de uma ciência edificante e cristã, atraíam multidões que se deliciavam em ouvir as carismáticas apresentações do professor que sempre acabavam por sublinhar o maravilhoso papel do Criador na variedade das formas da natureza1.

Em suas palestras Agassiz sublinhava a existência de uma intenção divina que atuava diretamente, por meio das sucessivas catástrofes e recriações do mundo. Nessa visão, como ente privilegiado, ao cientista cabia desvendar o plano divino por meio da observação científica da natureza. Destinado a esclarecer os desígnios divinos, o cientista deveria ler na "bíblia da natureza" os caminhos traçados pela onisciência divina, assim ocupando o lugar tradicionalmente reservado aos teólogos e pastores. Dessa forma, se por um lado Agassiz decididamente se alinhava no campo daqueles que consideravam a ciência empírica como a chave do conhecimento, por outro ele imediatamente se reconciliava com as visões metafísicas e religiosas que buscavam interpretar, no livro da natureza, os desígnios divinos2.

Assim sendo, a visão de Agassiz claramente se atrelava a uma perspectiva pré-moderna ou platônica da ciência, cujas diretrizes se reportavam às certezas, como a da existência de tipos ideais, e, sobretudo, na reafirmação da precedência da idéia ou, em outras palavras, do plano divino sobre a realidade do mundo natural. Segundo ele, por exemplo, as espécies eram "categorias de pensamento corporificadas em formas de vida individuais", sendo a tarefa do naturalista a de desvelar os "pensamentos do Criador do Universo, manifestos nos reinos animais e vegetais"3. Notemos que sua defesa da proeminência da interpretação científica sobre explicações religiosas havia lhe fornecido a necessária independência tanto para discutir a teoria da glaciação da Terra em termos de milhões de anos (negando os meros 5.000 anos propostos pela interpretação mosaica) como para assumir, em termos raciais, a teoria poligenista, proposta pelos defensores do racismo científico norte-americano, e cujos preceitos harmonizavam-se ao criacionismo, questão que discutiremos à frente4.

Conforme aponta Louis Menand, ao abraçar a teoria da recapitulação, isto é, de que a ontogênese recapitula a fitogênese, o pensamento de Agassiz também assumia bases profundamente hierárquicas, uma vez que ele acreditava que os seres mais evoluídos, em seu evolver, haviam transitado temporariamente por estágios mais rudimentares, nos quais os seres destinados à inferioridade permaneceriam por toda a existência. Nesse sentido, a cadeia dos seres estava organizada segundo uma linha hierárquica de complexidade crescente. Igualmente, ao buscar confirmar a proeminência do tipo ideal ou das categorias fixas sobre as mudanças, o pensamento de Agassiz mantinha-se estático. E, finalmente, ao negar a existência de conexões entre as diferentes espécies em termos sincrônicos e diacrônicos, seu pensamento era essencialmente não-relacional5.

No entanto, é preciso compreender bem como Agassiz conectava aspectos díspares em sua concepção grandiosa da ordenação e destino do mundo natural. Embora formado na universidade suíça de Zurique e nas germânicas de Heidelberg e Munique, na década de 1820, nas quais a Natur-Philosophie era a tônica principal, desde logo Agassiz se insurgiu contra o idealismo dos mestres, buscando na orientação de Georges Cuvier, naturalista francês, os métodos que lhe permitissem enfocar o estudo do mundo natural a partir de instrumentos analíticos empíricos, superando as visões abstratas e generalizadoras derivadas do idealismo. Além disso, ao alistar-se na Universidade de Munique como aluno de botânica do famoso naturalista-viajante Carl Friederich von Martius, que nos anos de 1817-20 havia empreendido a primeira grande viagem naturalista pelos territórios da então colônia portuguesa do Brasil, o jovem Louis Agassiz teve logo oportunidade de se enfronhar nos estudos da natureza e dos seres tropicais6.

Demonstrando especial dote para o ofício de naturalista, já em 1829, o jovem estudante alcançava seu primeiro grande êxito. Seguindo a autorização do mestre, Agassiz estudou minuciosamente a coleção brasileira de peixes coletada por Johann Baptist von Spix, companheiro de Martius na viagem da missão austríaca ao Brasil, que havia permanecido inédita devido à morte inesperada de Spix em 1826. Tão preciso foi o estudo desenvolvido pelo jovem estudante que, em 1829, o trabalho saiu publicado com o título Peixes do Brasil, qualificando-o precocemente para vôos mais altos.







A partir de 1832, ano em que Agassiz estagiou no Museu Nacional de Ciências Naturais de Paris - o conhecido Jardin des Plantes -, no qual atuava seu mentor, Agassiz incorporou o esquema teórico-analítico de Cuvier. A visão de Cuvier negava a fluidez e a interconexão genética das diferentes espécies entre si, propondo uma classificação do mundo natural em quatro ramos estáticos e não-inter-relacionados. Ao interpretar o mundo natural de forma não-dinâmica, o esquema explicativo concebido por Cuvier pressupunha uma descrição empírica minuciosa dos seres observados, uma vez que cada espécie era única em si mesma e o conhecimento de uma não autorizava qualquer injunção sobre a estrutura de outra. Além disso, rezava Cuvier, o mundo havia sofrido inúmeras catástrofes nas quais as espécies que o povoavam haviam completamente perecido, sendo em seguida outras criadas pela mão divina7. Dessa forma, não só na ordem sincrônica, mas também na diacrônica, não existia conexão entre os seres que vicejavam na face da Terra, peremptoriamente negando aquilo que Mayr denominou como a narrativa histórica das ciências biológicas8. Agassiz absorveu o esquema do mestre que, ao mesmo tempo, ratificava o caráter idealista-estático do mundo natural e valorizava a pesquisa empírica.







A EXPEDIÇÃO THAYER: 1865-66

Foi no contexto dos debates acadêmicos norte-americanos, engendrados pela crescente difusão e aceitação de teorias dinâmicas a respeito da origem e evolução da vida, nas quais o darwinismo surge como momento definitivo, que se organizou a Expedição Thayer9. Como notou o principal biógrafo, Edward Lurie, nos anos de 1860 Agassiz havia incorporado em si mesmo a idéia de uma ciência norte-americana, que, trazida da Europa, se enraizara no solo prolífico da América do Norte, tornando-se representante de um tipo de nacionalismo-expansionista característico do século XIX. Como tal, Agassiz havia imaginado a si próprio como alguém que se colocava acima de qualquer restrição ou crítica, agindo em termos da política acadêmica e científica de forma autoritária e exclusivista. No entanto, a década de 1860 não o poupou. À medida que os cientistas norte-americanos passaram a considerar hipóteses derivadas do evolucionismo, levando seus trabalhos a foros acadêmicos, Agassiz passou a reagir de maneira discricionária, negando-se a considerar adequadamente aqueles colegas que estavam explorando hipóteses que o contradiziam.

A falta de disponibilidade acadêmica de Agassiz de colocar-se em uma posição menos arrogante, permitindo-se discutir de forma apropriada trabalhos que consideravam novas hipóteses, havia começado a resultar em críticas do meio acadêmico em direção a uma figura tão eminente, mas que demonstrava tão pouca disposição de espírito científico. Além disso, no início da década, Agassiz havia sofrido uma revolta de alunos-pesquisadores do museu, desgostosos com a política acadêmica encetada pelo mestre, que havia resultado em uma disputa a respeito da autoria dos trabalhos científicos produzidos nos quadros da instituição10.

As crescentes dificuldades enfrentadas por Louis Agassiz no ambiente acadêmico norte-americano e sua saúde debilitada estiveram na base de sua tempestuosa decisão de empreender a viagem ao hemisfério sul. No que concerne à pesquisa ictiológica, o objetivo da expedição era confirmar a teoria criacionista, cujo princípio escorava-se na idéia da existência de uma distribuição peculiar das espécies por região do globo, distribuição esta que espelhava os desígnios divinos quanto à vocação de cada região da Terra. Já a comprovação da glaciação das áreas tropicais viria a referendar a hipótese de Agassiz a respeito da existência de uma série de catástrofes climáticas enfrentadas pela Terra, cujas conseqüências teriam sido a destruição de todas as espécies e a recriação delas pela vontade divina. A conclusão precípua dessa teoria era a negação da teoria da evolução.

Os objetivos da expedição ao Brasil não se esclarecem totalmente se não levamos em conta os aspectos menos aparentes desse empreendimento. Por trás do discurso público do cientista-viajante tecia-se um outro discurso que ligava Agassiz aos interesses norte-americanos na Amazônia, conectado a duas linhas de ação diplomática e de grupos de interesses: uma primeira, à política da navegação fluvial e abertura do Amazonas à navegação internacional, e uma segunda, aos projetos de assentamento da população negra norte-americana, como colonos ou aprendizes, na várzea amazônica11. Não que Agassiz tenha pessoalmente montado o esquema da viagem para realizar um trabalho diplomático de proselitismo dos interesses norte-americanos na Amazônia. Mas, bem ao seu estilo, ele não perdeu a oportunidade de colocar-se em posição de influência, tornando a viagem ao Brasil, organizada no contexto da Guerra Civil, ocasião para influenciar positivamente Pedro II, com o qual Agassiz trocava correspondência desde 1863, com relação aos projetos de abertura da Amazônia12.

Pelo lado político, a expedição recebeu apoio oficial do governo norte-americano, que esperava utilizar da amizade epistolar de Agassiz com Pedro II para contrabalançar a influência européia sobre a diplomacia brasileira, que até ali havia conduzido a posição do Brasil frente à Guerra Civil, redundando numa posição na qual o Brasil reconhecia o sul confederado como parte beligerante (e não apenas em rebelião), justificando a neutralidade brasileira. A posição diplomática do Brasil que reconhecia a Confederação como parte beligerante justificava a tolerância na entrada de navios sulistas que procuravam os portos brasileiros para abastecimento. O secretário de Estado dos EUA, William Seward, entregou aos cuidados de Agassiz cartas confidenciais dirigidas a James Watson Webb, representante norte-americano no Brasil, amigo pessoal de Seward e organizador de um malogrado empreendimento de assentamento de negros norte-americanos na Amazônia. Embora a expedição tenha chegado ao Rio de Janeiro após o final da Guerra Civil, tornando essa faceta diplomática francamente obsoleta, Agassiz não deixou de realizar uma missão política delicada, de pressionar amigavelmente o governo brasileiro para abrir a navegação da Amazônia aos navios estrangeiros13. E ele assim o fez, conseguindo do imperador a promessa de abertura da navegação, que foi realizada pelo decreto de 7 de dezembro de 186614.



LOUIS AGASSIZ: UMA CIÊNCIA DA RAÇA?

No entanto, outro grande fantasma rondava Louis Agassiz, assombrando a Expedição Thayer desde seus inícios. Era este o crucial problema da raça e o envolvimento do líder da expedição com o racialismo em sua forma mais virulenta, caracterizado pelo poligenismo, hibridismo, segregacionismo e expulsão dos afro-americanos do território norte-americano. Ao lado dos estudos da fauna marítima e da geologia, uma das preocupações de Agassiz ligava-se ao estudo das raças humanas.

Desde sua chegada aos EUA, no meio da década de 1840, o cientista havia se envolvido no debate norte-americano a respeito das raças, tendo se alinhado primeiramente ao lado dos poligenistas (isto é, aqueles que acreditavam que a humanidade não era una, mas formada por diferentes espécies, tendo havido mais de uma criação divina, posição a qual ele nunca abdicou) e, mais tarde, abraçado a teoria da degeneração, que rezava que a miscigenação entre as diferentes raças humanas ou o hibridismo levava à degenerescência. A base dessa crença era que as "raças cruzadas", ao invés de carregarem as melhores características de seus ancestrais, levavam a que traços atávicos viessem à superfície, expondo os descendentes de uniões mistas a todos os riscos de uma progressiva degenerescência. É importante notar que Agassiz esteve envolvido no debate a respeito da raça no ambiente norte-americano, defendendo tanto o abolicionismo - sendo ele partidário da abolição da escravidão - quanto a segregação das raças.

O que é notável em tudo isso é que, desde praticamente a sua chegada a Cambridge, Agassiz havia se envolvido com os baluartes da tese da inferioridade racial. Homens como Samuel George Morton e Josiah Nott, que publicaram o grosso dos estudos craniométricos racistas nas décadas de 1840 e 1850, haviam se tornado correspondentes e anfitriões de Agassiz em cartas, passeios culturais e palestras apresentadas para públicos de senhores de escravos e simpatizantes no Sul15. Mais ainda, Agassiz, não fazendo nenhum mistério de sua adesão ao racismo científico, havia, a partir da influência de Morton, aderido ao poligenismo, ainda na década de 1840. A idéia de que as diferentes raças humanas houvessem sido criadas para habitar "províncias zoológicas" específicas, estando, portanto, aptas a responder apenas aos desafios de seu meio ambiente, encontrava sua base no poligenismo e moldava-se com perfeição à teoria de Agassiz do criacionismo, cuja idéia fundamental escorava-se numa visão estática do mundo natural. Assim, a adesão de Agassiz tanto ao poligenismo quanto à teoria da degeneração das raças pelo hibridismo, concebida e defendida nos EUA por Josiah Nott, médico que atuava em Mobile, Alabama, sob o argumento de que o cruzamento das raças produzia uma descendência biologicamente enfraquecida e com acentuadas tendências à esterilidade, surgia como passo natural a referendar a interpretação criacionista e hierárquica do mundo natural, desde sempre esposada pelo mestre naturalista16.

Agassiz não apenas aderiu à american school of ethnology, defensora da interpretação racialista, mas passou, nas décadas de 1840 e 1850, juntamente com Morton e Nott, a compor o triunvirato que comandou a abordagem racialista-poligenista - defensora da segregação por meio do ataque ao hibridismo ou mulattoism ("mulatismo"), como os cientistas racialistas da época gostavam de se referir à questão da miscigenação entre brancos e negros17.

Entre as complexas e contraditórias idéias, tendências e posições a respeito da escravidão e da raça que circularam tanto no Sul quanto no Norte entre os anos que precederam e acompanharam a Guerra Civil americana, Agassiz parece ter se identificado e contribuído para duas grandes linhas de pensamento racialistas, a já citada american school ethnology e o free soil movement. Este último, inspirado em idéias que associavam um forte nacionalismo à supremacia da raça branca ou anglo-saxônica nas terras norte-americanas, advogava a homogeneidade racial como condição para a sobrevivência nacional. Esse tipo de formulação, mais comum no Norte do que no Sul (o qual, obviamente dependia da mão-de-obra negra e, portanto, mostrava-se menos inclinado a abrir mão dela), embora propugnasse a abolição, via como solução final ao problema da presença da raça negra no conjunto da nação a emigração coletiva ou, pelo menos, a segregação dos afro-americanos em um cinturão de clima quente e semitropical no Sul, no qual os negros viveriam o mais apartados possível do âmbito político nacional, sempre sob a tutela de uma população branca que fiscalizaria o trabalho e a vida dos mesmos. Com isso, acreditavam os defensores da incompatibilidade da convivência da raça negra com a civilização, os negros seriam, ao menos, impedidos de cometer danos irreparáveis ao corpo da nação, uma vez que assim se preveniria, pela proibição legal, o "mulatismo" (isto é, o casamento inter-racial) e mesmo a mera convivência entre brancos e negros18.

Desde os anos de 1840, circulavam no Sul e no Norte propostas de "repatriação" ou emigração dos negros norte-americanos para a África, a América Latina e o Caribe. E não por acaso, Agassiz, como um dos criadores da teoria das províncias zoológicas, advogava fortemente a idéia de que a raça negra havia sido criada para colonizar especificamente áreas tropicais, áreas estas totalmente inadequadas para a sobrevivência e o labor do homem branco19. Nota-se que os projetos que visualizavam a transferência maciça de afro-americanos para áreas coloniais ou periféricas corriqueiramente lançavam mão do argumento da compatibilidade da raça negra aos trópicos para tingir iniciativas de expulsão dos negros do país com tons róseos da filantropia. Argumentavam os defensores da imigração forçada ou estimulada que a felicidade da raça negra dependia de seu enraizamento em seu ambiente natural, isto é, nas áreas de clima quente, pois apenas aí ela poderia prosperar.







A EXPEDIÇÃO THAYER E SEU LEGADO

Como se vê, a orientação científico-filosófica do líder da Expedição Thayer funcionava como justificativa para seu envolvimento nos debates político-ideológicos de seu tempo, permitindo que se compreenda a atuação de Agassiz e os próprios objetivos da expedição que veio ao Brasil de maneira bem mais ampla.

Nesse sentido, a viagem de Agassiz ao Brasil adquire novos significados. Além da antiga vinculação ideológica de Agassiz aos projetos expansionistas, que na década de 1850 haviam visualizado a imigração forçada ou voluntária de negros do Sul dos EUA para áreas tropicais da América Latina, especialmente para a Amazônia, como solução para o problema interno da raça, o Brasil oferecia também oportunidade para que Agassiz, em sua estadia, recolhesse provas materiais da degeneração, provocada pelo "mulatismo", tão comuns na população brasileira, fortemente miscigenada20. Essa iniciativa havia de muni-lo de dados a respeito dos perigos da degeneração, de forma que pudessem ser veiculados em sua volta aos EUA. De fato, ele assim o fez ao recolher uma expressiva coleção de fotografias que documentaram as mazelas das raças puras e híbridas no Rio de Janeiro e Manaus, coleção que permanece até hoje praticamente inédita, dado o seu caráter francamente racialista21.

Frente a essas questões, vê-se que a organização e a partida da Expedição Thayer para o Brasil nos anos de 1864-65 não se deram num clima que poderíamos chamar apropriadamente de inocente. Passeando pelo éden amazônico, a Expedição Thayer devassaria a Amazônia, apropriando-se dos peixes, das rochas e capturando imagens dos mestiços e mestiças amazônicos, fotografados nus em poses dúbias, congelados como exemplos da degeneração racial, em nome da construção de um inventário dos perigos da miscigenação. Mais uma vez, era ao Sul escravista que a Expedição Thayer se reportava, didaticamente elaborando o rol dos horrores do hibridismo. Além disso, o papel a que Agassiz provavelmente se prestou em sua volta aos EUA, de estimular a imigração norte-americana para o Brasil, refletiu-se na vinda de grupos de confederados. Em suas memórias, alguns comentaram, por exemplo, que as otimistas idéias divulgadas por Agassiz sobre a colonização da Amazônia haviam sido o fator determinante da escolha do país e província de destino22.

Envolta em múltiplos interesses, a Expedição Thayer esteve longe de possuir apenas um perfil científico. Apesar disso, uma análise mais de profundidade das características da expedição mostra que foi a decidida adesão de seu líder ao criacionismo que justificou os aspectos extracientíficos adquiridos pela expedição. Como um Adão norte-americano, Agassiz percorreu o Brasil, sobretudo a Amazônia, acreditando possuir o poder de determinar, em muitos sentidos, o destino do paraíso tropical sul-americano. Aqui, o naturalismo criacionista de Agassiz aparecia como mais do que uma mera teoria sobre a origem da vida. De fato, surgia como a verdadeira expressão da verdade divina. Nada podia ser mais contrário à ciência.





Este artigo é uma versão sintética de trabalhos anteriores. Para visão mais aprofundada da discussão, ver: Brasil a Vapor. Raça, Ciência e Viagem no XIX, tese de livre-docência inédita, FFLCH/USP, 2005. Uma perspectiva mais ampla dessa expedição pode ser encontrada também na visão crítica construída por William James, que participou da Expedição Thayer na juventude, no papel de coletor-voluntário. Para tal, ver: M. H. P. T. Machado (ed.), Brazil Through the Eyes of William James. Letters, Diaries, and Drawings, 1865-1866.
1 Ver, por exemplo: M. H. Machado, "An American Adam in the Amazonian Garden of Eden", in Brazil Through the Eyes of William James, pp. 25-6.
2 Edward Lurie, Louis Agassiz. A Life in Science, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1988, pp. 31-70; Louis Menand, The Metaphysical Club. A Story of Ideas in America, New York, Farrar Straus and Giroux, 2001, pp. 97-116; Lorelai Kury, "A Sereia Amazônica dos Agassiz: Zoologia e Racismo na Viagem ao Brasil (1865-1866)", in Revista Brasileira de História, vol. 21, nº 41, 2001, pp. 157-72.
3 Louis Agassiz, Contributions to the Natural History of the United States of America, 1857-62, apud L. Menand, The Metaphysical Club..., op. cit., p. 128.
4 Louis Menand, The Metaphysical Club..., op. cit., pp. 97-116; E. Lurie, Louis Agassiz..., op. cit., pp. 97-106 (sobre a atuação de Agassiz no campo da geologia, especialmente pp. 99-100). Entre a extensa bibliografia sobre o tema, sublinho: David C. Smith, Harrold W. Borns Jr.,"Louis Agassiz, The Great Deluge, and Early Maine Geology", in Northeastern Naturalist, vol. 7, n. 2, 2000, pp. 157-77.
5 L. Menand, The Metaphysical Club..., op. cit., pp. 106, 108, 127-8.
6 Sobre Martius ver: Karen Macknow Lisboa, A Nova Atlântida de Spix e Martius: Natureza e Civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820), São Paulo, Hucitec, 1997.
7 Entre outros, ver: E. Lurie, Louis Agassiz..., op. cit., p. 99.
8 Ernst Mayr, Biologia, Ciência Única, São Paulo, Companhia das Letras, 2005, pp. 40 e 48.
9 Para contextualizar esse momento ver, entre outros: Bert James Lowenberg, "The Reaction of American Scientists to Darwinism", in The American Historical Review, vol. 38, n. 4, 1933, pp. 687-701.
10 Mary Winsor, Reading the Shape of Nature.Comparative Zoology at Agassiz Museum, Chicago, University of Chicago Press, 1991, pp. 43-65.
11 Nícia Vilela Luz, A Amazônia para os Negros Americanos. Origens de uma Controvérsia Internacional, Rio de Janeiro, Saga, 1968; Arthur Cezar Ferreira Reis, A Amazônia e a Cobiça Internacional, Rio de Janeiro, Limitada, 1965, pp. 60-85. Ver também: Whitfield J. Bell Jr., "The Relation of Herndon and Gibbon's Exploration of the Amazon to North American Slavery", in Hispanic American Historical Review, vol. 19, nº 4, Nov., 1939, pp. 494-503.
12 David James, "O Imperador do Brasil e Seus Amigos da Nova Inglaterra", in Separata do Anuário do Museu Imperial, vol. XIII, 1952.
13 Lawrence F. Hill, Diplomatic Relations Between the United States and Brazil..., ver cap. IV, "The Diplomacy of Two New Yorkers", pp. 146-76; ver também: M. H. P. T. Machado, Brasil a Vapor, op. cit., e Brazil Through the Eyes..., op. cit. Sérgio Buarque de Holanda, em prefácio ao livro de Nícia Vilela Luz (op. cit.), discute esse evento. Atualmente Maria Clara Carneiro Sampaio realiza pesquisa sobre esse episódio. A localização, nos arquivos do Itamaraty e da Universidade de Yale (New Haven, CT), de documentação inédita resultará em nova perspectiva histórica do citado empreendimento.
14 Lawrence F. Hill, Diplomatic Relations Between the United States and Brazil..., op. cit., pp. 237-8.
15 Samuel George Morton, Crania Americana; or, A Comparative View of the Skulls of Various Aboriginal Nations of North and South America. To Which Is Prefixed an Essay on the Varieties of the Human Species, Philadelphia/London, J. Dobson/Simpkin/Marshall, 1839; e Crania Aegyptiaca; or, Observations on Egyptian Ethnography, Derived from Anatomy, History and the Monuments, Philadelphia, J. Penington, 1844; Josiah Clark Nott, Types of Mankind: or, Ethnological Researches, Based Upon the Ancient Monuments, Paintings, Sculptures, and Crania of Races, and Upon Their Natural, Geographical, Philological, and Biblical History; Illustrated by Selections from the Inedited Papers of Samuel George Morton... and by Additional Contributions from Prof. L. Agassiz, LL.D., W. Usher, M.D., and Prof. H. S. Patterson, Philadelphia, Lippincott Grambo & Co., 1854.
16 L. Menand, The Metaphysical Club..., op. cit., cap. "Agassiz", pp. 97-116.
17 George M. Fredrickson, The Black Image in the White Mind. The Debate on Afro-American Character and Destiny, 1817-1914, Hanover, NH, Wesleyan University Press, 1987, pp. 86-7.
18 Idem, ibidem, pp. 130-64.
19 M. H. P. T. Machado, Brasil a Vapor, op. cit., pp. 50-71; George M. Fredrickson, The Black Image in the White Mind..., op. cit., pp. 138-45.
20 Como afirmou o já mencionado J. Watson Web, plenipotenciário norte-americano no Brasil ao tempo da estadia de Agassiz, para o qual este entregou correspondência reservada do secretário de Estado W. Seward, autor de projeto de transferência da população liberta norte-americana para a Amazônia, "Os Estados Unidos serão abençoados pela ausência (dos negros), livrando da maldição que por bem pouco não o levou à destruição; o Brasil irá receber exatamente o tipo de trabalhador e cidadão melhor preparado para desenvolver seus recursos [...]" (apud Lawrence F. Hill, Diplomatic Relations Between the United States and Brazil..., op. cit., pp. 161-2, tradução minha).
21 Uma discussão aprofundada sobre aspecto específico da expedição, a partir do ponto de vista de William James, encontra-se em meu ensaio "An American Adam in the Amazonian Garden of Eden" (op. cit., pp. 40-8). Entre outros projetos relativos à Expedição Thayer, estudo a possibilidade de publicar essa coleção fotográfica em catálogo. O projeto encontra-se em negociação com o Peabody Museum da Harvard University.
22 Sobre a propaganda feita por Agassiz do país como terra prometida para imigração, ver: Louis Agassiz, "La Vallée des Tropiques au Brésil", in Revue Scientifique, (2) vol. 6, 1874, pp. 937-43. Sobre a imigração dos confederados, ver: Eugene C. Harter, The Lost Colony of the Confederacy, Texas, A&M University Press, 2000, p. 49.


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