sexta-feira, 30 de março de 2012

TERRA DO DESCOBRIMENTO

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Índice


DescobrimentosVEJA, 1° de julho de 1501


Retorno da Nau do capitão- mor Cabral confirma o achamento de terra imensa do outro lado do Mar Oceano

ma terra imensa, coberta de matas verdejantes e cortada por rios de água muito doce, habitada por gente boa e inocente, que gosta de festa, de música e anda nua, exceto por magníficos enfeites de plumas, tão multicoloridos quanto os papagaios que voam entre os grandes arvoredos. Foi esse o mundo novo que se descortinou diante dos olhos da esquadra do capitão-mor Pedro Álvares Cabral no dia 22 de abril do ano passado. É essa a extraordinária notícia confirmada em detalhes na última terça-feira, 23 de junho, quando o navio do comandante embicou no porto de Lisboa. Gasta depois de tão longa viagem, velas esfarrapadas, tripulação pouca, a nau retornada trazia a boa nova e valorosos sobreviventes da armada que o rei dom Manuel mandou para as terras das Índias há mais de um ano. Ao entrar na Ribeira das Naus, entre os gritos de alegria da população, o capitão Cabral concluiu com sucesso a primeira missão militar-comercial de grande porte despachada pela Europa à rica Calicute e outras cidades das Índias. Mais extraordinário ainda foi receber de volta o comandante do descobrimento de uma terra desconhecida, um mundo virgem e pagão nas misteriosas bandas ocidentais do Mar Oceano.

Após o descobrimento, Cabral mandou de volta a Lisboa um de seus capitães, Gaspar de Lemos, a bordo de uma naveta, nove dias depois de avistado, na data que promete ficar memorável de 22 de abril de 1500, "um grande monte, mui alto e redondo, e outras serras mais baixas ao sul dele, e terra chã com grandes arvoredos, ao qual monte alto o capitão pôs nome o Monte Pascoal e à terra, a Terra da Vera Cruz". Assim relata a primorosa e detalhada carta redigida por Pero Vaz de Caminha, o escrivão da armada. Caminha, sabe-se agora, perdeu a vida no ano passado, impiedosamente massacrado, nas praias da cidade indiana de Calicute. Deixou, porém, a descrição minuciosa da terra, cujo nome já está sendo mudado para Santa Cruz.

Trata-se de terra povoada, habitada por gente de costumes diferentes e fala incompreensível, porém branda e alegre no trato. "A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, e estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto", anotou o escrivão. No breve período que lá passou a armada de Pedro Álvares, não trocaram palavra que se entendesse, mas deram e ganharam presentes. A carta de Caminha refere-se à vastidão de Santa Cruz, que os descobridores não concluíram ser ilha ou terra firme, embora a segunda hipótese pareça mais provável.



No momento, Vespúcio está a caminho da nova terra

Está viajando à nova terra, neste momento, uma nova frota. Seu objetivo é comprovar que Santa Cruz não é uma ilha, e sim massa de terra de grandes proporções. Sabe-se do objetivo da viagem graças aos comentários, feitos antes da partida, pelo navegante italiano Américo Vespúcio, comandante dessa empresa. Vespúcio não é nenhum novato. Já esteve navegando pelas águas e ilhas que o genovês Cristóvão Colombo desbravou, sob a bandeira espanhola, em sua memorável empreitada para o Ocidente em 1492. Da atual expedição portuguesa à Terra de Santa Cruz, que ainda tem muitos meses pela frente, certamente virá o enterro definitivo do mito ao qual se apega tão persistentemente o bravo navegante genovês – o de que as ilhas por ele descobertas, bem mais ao norte do Mar Oceano, fazem parte das Índias. Desde que Vasco da Gama chegou ao Oriente, navegando em direção oposta à de Colombo, aqui em Portugal se tem certeza do engano do genovês.

Quem se aglomerou na Praia do Restelo, às margens do Tejo, no domingo, 8 de março de 1500, para dar o último adeus à expedição cabralina poderia imaginar que a disposição das terras e águas do planeta, tal como a conhecemos, estaria perto de se tornar obsoleta? Ninguém, responderiam os mais apressados. Alguma idéia disso, no entanto, já se formava. Mais instigante ainda é a possibilidade, nada absurda, de que o capitão Cabral nem tenha sido o primeiro enviado português a deparar com o novo território. A política real, como se sabe, é a de tentar manter sob estrito sigilo informações estratégicas sobre rotas de navegação e descobrimentos de áreas até agora desconhecidas da cristandade. Fontes bem informadas, no entanto, dão a entender que Duarte Pacheco Pereira, o grande cosmógrafo e navegador embarcado na armada de Cabral, já a teria avistado, em expedição secreta que largou em 1498 por ordem expressa do rei. O próprio Duarte Pacheco já estaria rascunhando um estudo secreto de cosmografia e navegação no qual menciona uma "grande terra firme" – palavras textuais, diz quem teve acesso ao rascunho – que teria avistado na sigilosíssima missão.

Há mais. A se confirmar a vasta extensão da nova terra, foi outra região dela que chegou o sevilhano Vicente Pinzón, no período entre a expedição de Duarte Pacheco e a de Cabral. Navegante experiente, companheiro de viagem de Colombo, Pinzón cruzou o Mar Oceano no comando de quatro caravelas no período extraordinariamente curto de vinte dias e chegou ao que poderia ser a porção norte do novo território. Ao contrário da armada cabralina, encontrou habitantes hostis, o que abreviou sua estada em terra. De volta ao mar, prosseguiu pela costa, encontrou um rio imenso e seguiu viagem rumo ao norte. Quem conhece de perto os meandros da corte conta, em troca da garantia de anonimato, que dom Manuel mandou seu capitão-mor Cabral dar por descoberta a Terra de Santa Cruz em nome de Portugal por ser sabedor de que: primeiro, ela estava lá pronta para ser achada; segundo, a Espanha chegar à mesma conclusão era só uma questão de tempo.

Outra indicação de que a descoberta não foi por acaso são as instruções de viagem que o capitão recebeu, ditadas pelo almirante Vasco da Gama em pessoa. Gama orientou Cabral a, saindo do Tejo, tomar o rumo da Ilha de São Nicolau, nos Açores. Até aí, tudo dentro dos conformes. O truque já conhecido para escapar das intempéries que assolam a navegação na costa africana é sair para mar aberto, no rumo oeste, num vasto semicírculo, passando pelas ilhas açorianas, primeira parada das expedições.

Gama, no entanto, manda Cabral passar sem aportar. "Se ao tempo que aí chegarem tiverem água em abastança para quatro meses, não devem pousar na dita ilha nem fazer nenhuma demora", instrui. Cabral não parou – seguiu os ventos para o mar aberto e para a grande curva a oeste. Com um detalhe: por motivos que não explicou publicamente, seguiu muito além que o descobridor do caminho das Índias. De tanto abrir a curva, foi dar com os costados, literalmente, nas praias de um mundo novo. Seria então uma escala planejada? Confirmação oficial não existe, e talvez a dúvida permaneça por muito tempo. Para aumentar o mistério, sabe-se que mestre João Faras, médico do rei e conhecedor das artes da navegação pelas estrelas embarcado na armada de Cabral, também escreveu a dom Manuel para falar sobre a localização exata da nova terra. Bastaria, disse o reputado cientista, consultar o mapa-múndi que existe em Lisboa, em poder do navegador Pero Vaz da Cunha, vulgo Bisagudo. Ou seja, o território já seria não só conhecido como secretamente mapeado.

Pouco versado nas artes da cartografia, o escrivão Pero Vaz de Caminha, ao contrário, tem os olhos mais voltados para a paisagem humana e o cenário natural da terra encantada em que a esquadra aportou. O escrivão é todo surpresa e deslumbramento com as florestas, os rios, os bichos e, principalmente, as gentes. Com base na sua descrição, percebe-se que os nativos, de físico, se parecem com os das Índias Ocidentais – aqueles indivíduos que Colombo trouxe de volta e exibiu inclusive em Lisboa, na imprevista escala que aqui foi obrigado a fazer na sua primeira e difícil viagem de volta. A julgar pelo encontro inicial, os habitantes das verdejantes florestas da nova terra são pacíficos, gentis e hospitaleiros.

Com notável capacidade de observação, além da mente aberta para uma cultura desconhecida e diferente, o escrivão não escondeu sua admiração pela excelente forma física desses estranhos (e, principalmente, das estranhas) – nus, bem-feitos de corpos, cabelos longos raspados na fronte, cocares de penas na cabeça. Contou sobre sua moradia, em cabanas longas comuns a dezenas deles, e seu hábito de dormir em redes penduradas entre dois postes de madeira, com um fogo embaixo para aquecer. Encantou-se com comidas exóticas: "Um muito grande camarão e muito grosso, que em nenhum tempo o vi tamanho", e os "muito bons palmitos (que) colhemos e comemos deles muitos".

Com enorme curiosidade se aguarda a volta dessa segunda expedição à nova terra. Será ela abundante em ouro e riquezas? Será seu solo propício ao cultivo e à criação? Nosso escrivão não tinha dúvida: "A terra é de muitos bons ares, frescos e temperados. Águas são muitas, infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo". A primeira amostra dessa luxuriosa fertilidade já chegou a Portugal com a naveta de carga em que Gaspar de Lemos trouxe a notícia do achamento ao rei – troncos de brasil, a madeira cor de brasa que tinge de vermelho os finos tecidos de Flandres, da França e da Inglaterra.

Imaginar as maravilhas que tal descoberta pode envidar para a glória de Portugal, eis um exercício de virar a cabeça do cético mais empedernido. Fincar feitorias e garantir que embarquem em naus portuguesas a pimenta-malagueta, o gengibre, a canela, as sedas e as pedrarias das Índias é certeza de poder e riqueza ímpares. Controlar e prover a Europa dos escravos, do ouro e de metais preciosos da África é garantia de um inesgotável manancial de ricos tesouros. Mas tornar-se senhor absoluto de terras inexploradas, com tudo o que nelas se encontra em gente, animais, preciosidades, vegetação, rios e montes, é agigantar Portugal em escala nunca sonhada.

Só por isso certamente já terá valido a pena o grande investimento, humano e financeiro, representado pela esquadra de Cabral. Ao partir, a maior frota jamais montada nestas bandas tinha treze navios (nove naus bem armadas, três caravelas ligeiras e a naveta de carga), 200 homens, mais bagagens, víveres e armamento pesado. A financiá-la teve, mais que todos, os recursos do investidor florentino Bartolomeu Marchione, judeu convertido, um dos primeiros a pôr fé e ver fortuna na saga descobridora dos portugueses. Mais de 100 homens se empilhavam em cada nau – uns 30 metros de espaço útil rigidamente dividido de acordo com a hierarquia. Naufrágios e combates com forças hostis nas Índias (milagrosamente, a frota de Cabral foi poupada das doenças que grassam nas expedições marítimas, como o mal das gengivas e a fraqueza dos pulmões) cobraram o seu preço. Das doze naus que seguiram para as Índias, só duas voltaram até agora, a capitânia e a Anunciada, do mercador Marchione. Esperam-se para breve, por terem sido avistadas ou encontradas em Porto de Cabo Verde, outras quatro.

É esse o preço que pagamos por nos lançarmos ao mar, sempre para além de todos os limites conhecidos. Navegando águas tempestuosas, sob estrelas não mapeadas, plantamos uma fortaleza na África e abrimos caminho para as riquezas das Índias. Agora, temos diante de nós o mistério de uma nova terra, cuja vastidão apenas adivinhada nos tira o fôlego, em espanto. O que virá de tudo isso?



Na esquadra, espanhóis, judeus, um africano e até indianos

O comando dos 200 homens da armada confiada ao capitão Pedro Álvares Cabral foi entregue a fidalgos de espírito aventureiro e sede de fortuna, como é de hábito. As coisas práticas da marinharia ficaram a cargo de navegadores de conhecimentos incontestáveis, como o tragicamente falecido Bartolomeu Dias, e seu irmão Diogo e Nicolau Coelho. A gente de mar e de guerra veio dos campos lusitanos, tradicionais fornecedores da mão-de-obra dos desbravamentos. É interessante notar, ainda, que a grande quantidade de estrangeiros atraídos para Portugal pelo avanço incontestável da navegação nacional também estava bem representada entre a tripulação que viu nascer a nova terra aos olhos europeus.

Sancho de Tovar, o subcomandante, é fidalgo castelhano, com história de honra e vingança típica de nossos esquentados primos do outro lado da fronteira – ele matou o juiz que sentenciou seu pai a ser degolado, por causa de uma disputa política com os monarcas espanhóis. Refugiado em Portugal, a Sancho coube a honra da soto-capitania da armada de Cabral. Dois judeus estrangeiros também estavam presentes na equipe multinacional. Um é o castelhano João Faras, médico do rei e cosmógrafo. Outro, por nome Gaspar, é hoje figura imprescindível nos tratos marítimos de Portugal. Vivia já há muitos anos na Índia quando se aproximou de Vasco da Gama, dizendo ser cristão. Apareceu bem vestido, simpático e insinuante, tanto que, mesmo confessando depois ser judeu, procedente da Polônia, caiu nas boas graças de Gama: batizado, dele ganhou o seu sobrenome. Gaspar da Gama, ou Gaspar da Índia, fala as línguas e conhece como ninguém os usos e costumes das Índias. Foi ouvido atentamente por Pedro Álvares, com quem embarcou, como conselheiro e intérprete.

Igualmente foi de valia um grumete negro, cativo da Guiné, nos contatos com os habitantes de regiões africanas O descobrimento da nova terra foi testemunhado ainda por um cinco habitantes das longínquas Índias, embarcados na viagem pioneira de Vasco da Gama para aprender as coisas de Portugal, que voltavam para casa com Cabral.



Soberano por acaso, dom Manuel abre as portas para um novo país

Venturosíssimo dom Manuel! Ascendeu ao trono de Portugal por pura obra do acaso – nono filho do irmão mais novo do rei Afonso V, suas chances de ganhar a coroa eram nulas, mas acabou por se beneficiar das reviravoltas políticas e da seqüência de mortes que tiraram de seu caminho todos os rivais. Investido do título e do poder real em 1495, em três anos já entrava para a História, quando o navegador Vasco da Gama abriu o caminho oceânico para as pedrarias e especiarias das Índias. Com o regresso, na semana passada, das primeiras naus da esquadra de Pedro Álvares Cabral, dom Manuel, rei por acaso, alcançou o pináculo almejado por toda uma linhagem de ambiciosos monarcas portugueses.

Aos 36 anos recém-completados, el rei tem sob seu controle, com certeza, mais volume de informação sobre a arte da navegação e sobre as manhas do Mar Oceano do que qualquer pessoa no mundo cristão. Sua coleção de títulos, embora um tanto pretensiosa, dá uma boa idéia do alcance da expansão portuguesa: ele é dom Manuel I, rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-mar em África, senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia.

Mais escolado no jogo do poder, nesses cinco anos de reinado dom Manuel aprendeu a movimentar-se nos meandros da política palaciana, e governa hoje com a desenvoltura de um soberano que se sabe poderoso e influente. Lembra menos o jovem recém-coroado que mandou trasladar o caixão do poderoso antecessor, dom João, e no caminho abriu o féretro para contemplar o corpo coberto de cal, pensando talvez em emular sua grandeza. Como ele, tem tino para os negócios e está sempre pensando no lucro – instruiu Pedro Álvares Cabral a dizer ao soberano indiano que pagaria menos pelas mercadorias compradas, mas "há de ser a quantidade tanta que lhe rendam os seus direitos muito mais do que agora rendem". Um tanto demorado nas decisões, cedeu às exigências da política e dos sogros espanhóis, ao decretar a expulsão dos judeus portugueses não convertidos (veja reportagem). Seu reinado carrega essa mancha, mas no momento o Venturoso e tantos de seus súditos só têm cabeça para as fortunas que o comércio com as Índias promete.




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