domingo, 17 de abril de 2011

10387 - MANICÔMIO JUDICIÁRIO

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|MoreRevista de Antropologia
Print version ISSN 0034-7701
Rev. Antropol. vol.41 n.2 São Paulo 1998
doi: 10.1590/S0034-77011998000200010
Sérgio Carrara. Crime e loucura – o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1998, 22 pp.



Gabriel Figueiredo
Professor titular de psiquiatria – FCM/PUC Campinas



Sumário da obra

Posicionando-se como quem acredita ser a loucura, em grande medida, uma linguagem utilizada para fins de controle social, Sérgio Carrara vai discuti-la neste livro, na sua interface com o crime.

O autor adota dois conceitos, os de crime-doença e de crime-atributo a fim de fundamentar sues argumentos. Para enfocar o primeiro ocupa-se da psiquiatria alienista francesa do século XIX, através das monomanias, de Jean Étienne Dominique Esquirol, e das degenerações, de Benédicte Augustin Morel. Para examinar o segundo se ocupa da antropologia criminal italiana da segunda metade do século XIX, representada por Enrico Ferri, Cesare Lombroso e Rafaelle Garofalo.

A partir destes conceitos, Crime e loucura organiza um painel de discussões entre psiquiatras alienistas brasileiros com a medicina legal e o Direito penal. Este painel tem como roteiro polêmicas envolvendo um jovem homicida, cujo crime foi cometido em abril de 1896. Como pano de fundo estão os debates entre liberais e positivistas.

Assim, o autor organizou o contexto no qual aparece, em 1903, o manicômio judiciário no Brasil como proposta oficial, evento que ele considerou, num certo sentido, um "monumento ao triunfo da psiquiatria" (pg. 220).

Conclui dizendo que "ao serem levantados os muros do manicômio judiciário, emparedava-se o conflito e aqueles sobre os quais ele se projetava; emparedava-se uma concepção da pessoa humana que, mesmo incompatível com qualquer sistema de regras morais, impunha-se, através da ciência, em um mundo inebriado pelo progresso" (pg.199).

Num posfácio recente, já que o livro é resultado da dissertação de mestrado do autor, apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1988, ele termina conclamando o leitor para transformar os manicômios judiciários em algo mais justo e humano.



Desenvolvimento e Discussão

O autor começa o livro construindo seu objeto de pesquisa. Revela sua inexperiência informando que nunca havia entrado num manicômio judiciário. Vai mais longe: declara que foram de ordem emocional as razões que lhe fizeram debruçar, preferencialmente, sobre dados históricos e não "etnográficos" (as aspas são dele).

Além da inexperiência diante da instituição e da presença de fatores emocionais interferindo na construção do objeto de pesquisa (o que é raro os pesquisadores admitirem), há também uma questão acadêmica relevante: a metodologia.

Ao decidir-se por um caminho que é mais dominado pelo historiador do que pelo antropólogo, o autor sentiu-se ambivalente. Resolveu a ambivalência(?) organizando um espaço que ele denominou "aldeia-arquivo". "Aldeia" pelo seu inevitável olhar de antropólogo e "arquivo" pela sua pretensão de historiador.

Com esta dupla identidade, procurou matéria em bibliotecas (Nacional, Academia de Medicina, Manicômio Judiciário Heitor Carrilho) e no I Tribunal do Juri do Rio de Janeiro. Completou seu material com jornais da época, livros e artigos especializados.

Cumprido o capítulo metodológico, o livro dedica-se à problemática do crime no final do século XIX, inícios do XX, lembrando o leitor que este foi um tema de grande interesse não apenas do "mundo científico" (as aspas são dele), mas também da imprensa popular e do romance policial.

Considera dentre as classificações dos criminosos, a do italiano Enrico Ferri, como a mais amplamente aceita: "criminosos natos", "criminosos loucos", "criminosos por paixão", "criminosos por hábito".

Associa as classificações dos criminosos com as da medicina "científica" (as aspas são dele), e conclui que os adeptos da Escola Positiva de Direito penal entendiam ser necessário fazer, em relação aos criminosos, o mesmo que os alienistas já haviam feito com os loucos. É dentro deste espírito que o autor abre o espaço que desejava para colocar em tela o criminoso como objeto da patologia e da antropologia criminal.

Parece um tanto reducionista, em nossa opinião, a relação classificação de criminosos com classificação de alienados. Sistematizar e classificar já era uma imposição iluminista. Todos lembramos que os movimentos ligados às classificações científicas, tomam corpo na Segunda metade do século XVIII e invadem o XIX. Foi assim com a química de Lavoisier, com a botânica de Lineu, com as doenças humanas de Sauvages...

Como objeto da patologia, o criminoso é examinado no livro através das monomanias e das degenerações.

Apoiando-se em Henry Maudsley, psiquiatra inglês do final do século XIX, Carrara nos mostra as monomanias raciocinantes e as monomanias instintivas. Ressalta que as primeiras, na Inglaterra eram conhecidas como loucura moral.

Ao juntar as monomanias (delirantes, raciocinantes e instintivas), Crime e loucura nos proporciona um cenário para a apreciação do crime-doença como espécie de "culpa sem razão" ou "de uma razão sem culpa" (p. 75).

A abordagem das monomanias estaria completa não fosse a análise que o autor faz do seu declínio em favor das degenerações. Neste meio de tempo, entre o declínio das primeiras e a ascensão das segundas, houve um momento decisivo em 1822 na França: Antoine Laurent Jessé Bayle, estudando através de necropsia e de evoluções clínicas a Paralisia geral, comprovou que mania, monomania e demência poderiam estar, todas reunidas, numa mesma doença. Esta descoberta foi tão decisiva, que o método anatomoclínico tornou-se paradigma para a psiquiatria do século XIX e parte do XX. Liquidou com a classificação de Pinel e Esquirol. Abriu espaços para o surgimento de outras Escolas psiquiátricas. Aquilo que nós conhecemos hoje como a Escola alemã, despontando no final do século XIX como a mais importante, também nasceu daí.

Respeitando este espaço histórico não enfatizado, vamos para as degenerações. Aqui Sérgio Carrara nos proporciona um bom texto.

Recorrendo a uma excelente tese de medicina1 publicada em Paris em 1913, que discute as origens e a evolução da idéia de degenerescência em psiquiatria, o livro oferece ao leitor um entendimento sobre as obras de Morel e Magnan.

A abordagem sobre as degenerações mostra ao leitor a importância da etiopatogenia em medicina e o conduz a acompanhar a teoria de Morel sobre hereditariedade e loucura.

E assim, como nos mostra Crime e loucura, as monomanias viram degenerações, só que agora com status etiopatogênico, hereditário. O louco moral vira degenerado moral.

Desta forma Sérgio Carrara nos proporciona uma reflexão para o conceito de crime-doença, agora mais de acordo com o pensamento médico da época, que no dualismo cartesiano já havia se decidido pelo reducionismo biológico, e que no plano das influências mais recentes sentia a presença de Auguste Comte.

Sentimos a falta de uma melhor contextualização das teorias de Morel pelo autor. Facilitaria, se fosse proporcionado ao leitor, sobretudo os não especializados, a lembrança de que, por ocasião do aparecimento das idéias de Morel sobre hereditariedade e loucura, nem as ervilhas de Mendel eram conhecidas, quanto mais a drosophila melanogaster, de Morgan. Voltaremos adiante a mais alguns problemas de contextualização que o livro apresenta.

Na abordagem sobre o criminoso nato, pela primeira vez no livro um dos autores diretamente envolvido nas discussões entra também diretamente em cena: Cesare Lombroso visita a aldeia-arquivo de Carrara, de passagem.

O autor ressalta a utilização da teoria da degenerescência a serviço do ativismo e da involução por Lombroso, que a partir daí, traçou o perfil do criminoso nato criado por Ferri.

É dentro desta relação morelombrosiana, que Crime e loucura revela ao leitor o impacto sofrido pela nascente psiquiatria brasileira: "O que fazer deles (criminosos natos ou degenerados)?" "Para onde enviá-los?

Na medida em que vai nos contando através dos jornais da época a triste sina de um jovem homicida, vai também este capítulo nos revelando, por intermédio dela, as discussões envolvendo os alienistas com a medicina legal e o Direito penal.

São destacadas as posições do psiquiatra alienista João Carlos Teixeira Brandão e do médico legista Raimundo Nina Rodrigues. Neste ponto entra também, na opinião deste resenhista, problemas de contextualização. Vamos abrir um pequeno espaço para considerar a respeito.

Na época de Teixeira Brandão e Nina Rodrigues, as Escolas de psiquiatria mais respeitadas do mundo eram as francesas e alemã. Em ambas ainda se acreditava nas degenerações. Os alemães, com algumas reservas, introduziram a expressão psicopatias constitucionais, porém admitiam, como fizeram Juliano Moreira, Afrânio Peixoto, Henrique Roxo entre outros seguidores desta Escola, a expressão estados atípicos de degeneração como sinonímia.

Nesta mesma época não custa lembrar, por exemplo, que os negros, coisificados durante séculos no Brasil, mal se identificavam como homens livres nesta passagem do século XIX. O DNA então só veio em 1945 e sua aplicação aos estudos da evolução humana agora, em 1984.

Se, um autor, para lidar com as questões que Crime e loucura levanta, não estiver atento para esta contextualização, desorienta-se.

Há uma certa desorientação neste capítulo, refletida entre outras coisas, na maneira hostil como o autor trata Teixeira Brandão e Nina Rodrigues.

Após estas considerações prossigamos: Carrara deixa transparente que a posição de Teixeira Brandão, de separar a convivência do louco comum com o louco criminoso, foi majoritária na psiquiatria alienista brasileira. Foi isso mesmo que aconteceu. A posição de Brandão era majoritária. Juliano Moreira, Franco da Rocha e muitos outros pensavam assim, em desacordo com Nina Rodrigues. Nesta correlação de forças está um componente histórico e social importante para o surgimento do manicômio judiciário no Brasil. Crime e loucura considera este evento como um "monumento ao triunfo da psiquiatria".

O êxito que a psiquiatria obteve ao separar o louco comum do louco criminoso pode ser visto como um triunfo dela, como vê o autor. Eu aqui, como um simples psiquiatra que vive às voltas, no cotidiano, com as doenças mentais, há mais de um quarto de século, vejo neste episódio a fragilidade da psiquiatria.

Na sua incapacidade de dar conta sozinha do problema, a nascente especialidade médica chamou, literalmente, a polícia, para grosso modo resumir. Se tivesse continuado no Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, além de pesquisador, Sérgio Carrara teria tido oportunidade de entender melhor o significado da relação complicada que ele viu, entre terapeutas e guardas (p. 35), como um herança desta fragilidade que ainda hoje se pronuncia.

Atualmente, o problema do crime-doença continua sendo desafiador para a psiquiatria, sobretudo se cair no espaço dos transtornos de personalidade anti-social (os pepezões que o autor refere na pg. 38). Estudos de concordância entre gêmeos, aumento da atividade de neurotransmissores, testosterona, do limiar de endorfinas, entre outros achados no campo biológico são temas em discussão. O desenvolvimento da teoria psicanalítica vem revelando descobertas interessantes desde Freud, e que incluem fixações em estágios anteriores do desenvolvimento sexual, rigidez de mecanismos de defesa e relações objetais internas perturbadas. As linhas de pesquisa propostas por Ellenberger2 estão abrindo caminhos através da etnopsiquiatria.

Crime e loucura é lançado num momento oportuno. Polêmico e instigante surge num final de década onde vem se aquecendo as discussões sobre a reforma psiquiátrica brasileira.

Dois dos mais citados autores do livro, Robert Castel e Michel Foucault, penso que se veriam nesta obra de Sérgio Carrara. Talvez discordassem num só ponto, no da esperança do autor em transformar o manicômio numa instituição justa e humana. Castel apoiaria. Foucault rejeitaria: no seu mundo panóptico não entra sequer um fio de esperança.



Notas

1 Uma tese de medicina intitulada "Histoire des origines et de l’évolution de l’idée de dégénérescence en médicine mentale", de Genil-Perrin, G.P.H. (Paris, Alfred Leclerc, 1913) é um dos mais conhecidos trabalhos sobre a teoria da degenerescência. Ao lado do "Traité des dégénérescences" (Morel, 1857) e das "Leçons cliniques" (Magnan, 1891) a tese é obrigatória para os estudiosos de Morel e Magnan.
Nesta tese, Genil-Perrin examina, com rara competência, não apenas as obras destes dois alienistas, como também o impacto que elas provocaram.

2 Conforme Ellenberger, H.F. (Paris, Encyclopédie médico-chirurgicale – psychiatrie – 1965), a etnopsiquiatria deve responder a cinco problemas gerais:

1) A noção da doença mental é universal ou relativa a uma cultura em particular?
2) A doença mental é a mesma num país e no outro ou é apenas o produto de uma cultura particular?
3) Em que medida os costumes, as crenças, os consentimentos, o comportamento ambiental e da coletividade influi no quadro clínico?
4) Como se distribui e se define a doença mental em um grupo étnico?
5) Em uma determinada cultura quais os fatores que favorecem a gênese das doenças mentais?

Assim, está ficando cada vez mais difícil dissociar cultura das concepções de doença mental. É nela que se estrutura valores, regras, comportamentos, limites... E é também dentro dela que se decide o que é normal ou não. Dentro deste espírito tem sido possível reconhecer doenças mentais planetárias tais como esquizofrenia, transtorno bipolar, algumas depressões entre outras. Também tem sido possível reconhecer síndromes ligados a determinadas culturas, tais como bulimia (América do Norte), piblokto (entre os esquimós), nervios (América Latina), empacho (México), Latah (Sudeste Asiático) e outras mais.


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